segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Até a metade do céu)

Quando o rei de Wei decidiu construir uma torre que iria chegar até a metade do céu, ele deu uma ordem:

- Quem tentar me dissuadir, será condenado à morte.

Xu Wan, um ministro de Wei, procurou-o com um cesto nas costas e uma lança na mão.

- Senhor, ouvi que está querendo construir uma torre que vai chegar até a metade do céu - disse Xu,- e seu humilde servo veio lhe oferecer ajuda.

- O que de forte tem para me oferecer?- quis saber o rei.

- Eu não sou forte - respondeu Xu- mas eu posso trabalhar no projeto da construção.

- Sim - disse o rei.

- Senhor, ouvi dizer que a distância entre o céu e a terra é de 15 mil li. Como quer construir uma torre que chega até a metade da distância entre a terra e o céu, a torre deve ter 7.500 li de altura. Para aguentar essa estrutura, os alicerces devem ter a circunferência de oito mil li. Toda a suas terras juntas, senhor, não são suficientes para os alicerces. Há muito tempo atrás, os reis Yao e Shun estabeleceram ducados com a circunferência de cinco mil li. Se estiver determinado a construir essa torre, deve primeiro atacar os duques e pegar todas as terras deles. Mas ainda não vai ser o bastante. Deve também expulsar várias tribos que vivem em longínquas regiões ao norte, ao sul, a leste e a oeste. Quando conseguir uma áreas com limites de oito mil li, aí, sim, será o suficiente para os alicerces. Quanto a questão do material de construção, trabalhadores e depósitos de comida, tudo isso deve ser calculado em algumas centenas de milhões. For a da área cercada de 8 mil li, uma grande extensão de campos deve ser escolhida para a produção de comida para os trabalhadores se alimentarem enquanto estiverem construindo a torre. Quando todas essas condições para a construção das torres forem preenchidas, o trabalho pode começar.

O rei ficou calado, sem encontrar uma resposta. Ele abandonou a ideia da construção da torre.

Fonte: 

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte IV

Jorge Amado: Bar do Nacib 
CAPÍTULO II

JORGE AMADO E A REPRESENTAÇÃO DO MUNDO ÁRABE

Os turcos descobriram a América, desembarcaram no Brasil e se fizeram brasileiros dos melhores. 
Jorge Amado

A FREQUENTAÇÃO ÁRABE NOS ROMANCES DE JORGE AMADO 

Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e social no campo da cultura [...] Os decênios de 1930 e 1940 assistiram à consolidação e difusão da poética modernista, e também à produção madura de alguns de seus próceres, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
Antônio Cândido

Em seu texto, Menino de engenho: a memória das perdas, Heloísa Toller Gomes procede a uma leitura do Modernismo brasileiro, em especial de suas duas vertentes mais conhecidas e estudadas, a de São Paulo e a do Nordeste, buscando precisar as diferenças que separam essas experimentações modernistas em nosso país:

Delinearam-se, naqueles anos, as duas vertentes principais do modernismo literário brasileiro: a vertente do Sul, com seu nacionalismo irreverente e sua escrita iconoclasta, geradora e herdeira da “Semana”; e o modernismo regionalista do Nordeste, mas carrancudo e introspectivo, desconfiado do humor desbragado da nova literatura paulista e menos explicitamente ousado em termos formais. Esse segundo modernismo desdenhava a “calçada das cidades inacessíveis”, optando pelo cenário das grandes plantações e pelos ermos do agreste e da caatinga. Insistindo no meio físico e antropo-social da seca, do brejo e do sertão, ele também procurou, à sua maneira, sons, gostos e cheiros a partir dos quais modelar espaços, personagens e dramas entranhadamente brasileiros. Surgiu, assim, o chamado “romance de 30”. (GOMES, 2003, p. 646)

Embora ainda marcado por um olhar hierarquizante, através do qual situa essas tendências literárias numa ordem sucessiva, cabendo ao movimento de São Paulo o estatuto de primeiro modernismo e ao do Nordeste o lugar de segundo, o texto de Heloísa Gomes se constitui como uma espécie de inventário crítico do Modernismo brasileiro. Nele, a autora assinalaria tanto as diferenças quanto as similaridades entre essas modalidades literárias.

Nesse caminho, chegaria à tese da complementaridade entre essas duas vertentes, vendo no comum esforço de construção (e reconstrução) identitária, o eixo unificador dessas duas tendências modernistas:

O sentido de brasilidade da produção literária nordestina, embora bem diferente daquele exibido pelos modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, era também ambicioso em suas propostas estéticas, indo além da manipulação do rico repertório imagístico e temático nacional – este, aliás, já intensamente explorado desde o romantismo e agora coloridamente reinaugurado na novidade das diversas nuanças modernistas. Na verdade, complementavam-se as duas perspectivas, a do Sul e a do Nordeste, em relação a um Brasil que, encaminhando-se de maneira incerta para uma controvertida e avassaladora modernidade, necessariamente dramatizaria e confrontaria, na cena literária de então, e das décadas subsequentes, a sofisticação e a miséria das metrópoles aos grandes sertões e às decadentes casas-grandes, com sua “senzala dos tempos do cativeiro”.
(GOMES, 2003, p. 646)

Na verdade, o Modernismo do Nordeste, denominado também de Romance de Trinta ou de Regionalismo Nordestino, operou uma ruptura de maior porte. Rompeu, como destaca Antônio Cândido, com a perspectiva mistificadora do Brasil, com a qual se tecia, em nossos textos literários e culturais, de forma geral, as elaborações de brasilidade, atuante na escritura nacional, desde o Romantismo. Ao se voltarem para a tematização do espaço nordestino, os modernistas do Nordeste além de inaugurarem um novo olhar sobre o Brasil, dotam o romance de uma força desmistificadora, como salienta Antônio Cândido:

A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e a

curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico. Não é falso dizer que, sob esse aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CÂNDIDO, 1987, p. 142)

Não obstante a atitude pessimista e desmistificadora em face das possibilidades brasileiras, os modernistas nordestinos, a exemplo dos modernistas do Sul, também retomariam a tradição romântica em suas apreensões de brasilidade, como aponta Antônio Cândido, ao analisar a importância do romântico Franklin Távora, primeiro romancista do Nordeste, na formação da vertente nordestina do Modernismo:

O seu regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa ‘intercadência’ de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeldias nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte [...] Távora foi o primeiro ‘romancista do Nordeste’, no sentido em que ainda hoje entendemos a expressão; e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre, culminada pela geração de 1930. (CÂNDIDO, 1981, p. 268 – grifos do autor)

Integrante do Modernismo do Nordeste, movimento oficialmente iniciado por José Américo de Almeida, em 1928, com a publicação de A bagaceira, Jorge Amado, como a maioria de seus pares, traria à sua obra, o senso da terra e da paisagem nordestina, o sentimento de patriotismo  regional, o desejo de exprimir a preeminência do Nordeste, como se refere Antônio Cândido, ao voltar-se para as linhas do pensamento de Távora, retomadas desde 1921, com a publicação de Senhora de engenho: romance, do pernambucano Mário Sette.

Surgida na década de 30, com a publicação de O país do carnaval (1931), a obra de Jorge Amado, pela importância e pela frequentação da presença árabe, representa uma curiosa especificidade, tanto no conjunto de obras elaboradas pelos romancistas modernistas do Nordeste, como também no universo de nossa própria literatura, como comprova o dicionário biográfico das personagens de Jorge Amado, Criaturas de Jorge Amado (1985), elaborado por Paulo Tavares.

Procurando, confessadamente, seguir o exemplo de Fernand Lotte, responsável pela identificação e relação dos personagens anônimos da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, Paulo Tavares relaciona todas as personagens, reais ou imaginárias, das narrativas de Jorge Amado, se voltando, ainda, para a discussão dos títulos das obras amadianas, como
afirma a seguir:

Seguindo o exemplo de Fernand Lotte, que relacionou os personagens anônimos da Comédie Humaine – publicado em suplemento ao seu Dicionnaire, quatro anos mais tarde – organizou-se também idêntico repertório de personagens sem nome encontrados nas páginas do romancista patrício. Tal relação, em separado, acompanha a lista alfabética dos nominativos, complementando o recenseamento das criaturas de Jorge Amado. Mas a pesquisa não se ateve somente às criaturas – prossegui na garimpagem através do rico manancial que são os vinte e sete títulos de ficção de Jorge Amado e deles recolheu as informações agrupadas nos três apêndices anexados a este trabalho. (TAVARES, 1985, não paginado)

Pioneiro em nosso mundo editorial, o recenseamento das criaturas de Jorge Amado, procedido por Paulo Tavares, terminaria por nos apresentar uma variedade de perfis árabes no universo narrativo amadiano que, mesmo confirmando as nossas leituras, nos surpreenderia pela explícita assiduidade e pela diversidade que emolduram os perfis árabes, na obra do escritor baiano.

Mais tarde, num outro caminho, o romancista, contista e poeta Jorge Medauar, objetivando a identificação das marcas árabes nas várias culturas do mundo, ratificaria a pesquisa precedida por Paulo Tavares. Em seu artigo, “Introdução: aspectos gerais da cultura árabe”, publicado originalmente pela Revista de Estudos Árabes – DLO-FFLCHUSP, em 1993, Medauar veria, com naturalidade, a ostensiva presença árabe nos textos de Amado, resultante, segundo ele, do caráter popular da obra de Jorge Amado, como se apreende nessa passagem do seu discurso:

É mais do que natural que um escritor, com raízes tão populares quanto Jorge Amado, traga, no bojo de sua tão extensa obra, a presença marcante dessa influência não apenas na língua, seu preponderante instrumento de expressão, como nos personagens árabes ou de origem árabe que se misturam. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Em relação à influência do popular na obra de Jorge Amado, traço importantíssimo às elaborações românticas, sua presença seria reconhecida pelo próprio autor baiano, em entrevista a Eduardo de Assis Duarte, em dezembro de 1988, na qual também se refere ao contexto de atraso e de injustiça social no qual o Brasil estava inserido:

Na minha primeira juventude, minha quase meninice, quando comecei a trabalhar na imprensa e a ter contato com outros jovens ‘subliteratos retados’, nós vivíamos intensamente a vida popular baiana e nos revoltávamos contra as condições existentes de atraso e injustiça social, mas de uma forma muito vaga. Não havia nenhuma ideia mais precisa de ordem revolucionária, era uma rebeldia natural da juventude e muito literária, no sentido de fora da realidade. (AMADO, apud DUARTE, 1995, p. 339 – grifos nossos)

Na verdade, nascido em 1912, período do grande boom do cacau, que se iniciara na virada do século XIX, Jorge Amado assistiria à chegada dos imigrantes árabes, testemunhando seus esforços e suas estratégias de acomodação e sobrevivência na nova terra.

Convivendo com os árabes desde a sua infância, o escritor baiano alimenta as suas narrativas com as lembranças dessa convivência amigável e duradoura, tornando-os importantes e significativos personagens de suas obras, como testemunha o poeta Jorge Medauar:

Quem poderá dizer que Jorge Amado não conviveu, no Vesúvio, na cidade de Ilhéus, com Nacib e Gabriela, por exemplo, já que a casa do grande romancista (hoje Fundação Cultural de Ilhéus) era vizinha daquele bar? Os Nazal, Medauar, Maron, Daneu, Chalub, eram famílias de Ilhéus, portanto pessoas de seu convívio. Daí a matéria prima. O retrato. A matriz. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Elemento recorrente na obra do escritor nordestino, a presença árabe encontra-se desde as suas primeiras narrativas, O país do carnaval, de 1931; Cacau, de 1933 e Suor, de 1934.

Primeiras manifestações da escrita amadiana, esses primeiros textos seriam denominados, pelo próprio Jorge Amado, como cadernos de aprendiz de romancista, segundo afirma Assis Eduardo Duarte, estudioso da obra amadiana:

Jorge Amado costuma demarcar o início efetivo de sua obra romanesca a partir da publicação de Jubiabá em 1935. Os livros anteriores, País do Carnaval (1931), Cacau (1933) e Suor (1934), considera-os como experiência da juventude, simples ‘cadernos de aprendiz de romancista’, opinião de resto semelhante à boa parte da crítica. (DUARTE, 1995, p. 45)

Desses cadernos de aprendizagem romanesca, vítimas de desqualificação crítica do próprio autor, se iniciaria um modelo narrativo, marcado, acintosamente, pela presença árabe, em íntimo contato e solidariedade com o mundo brasileiro. Ironicamente, essas obras, responsáveis por um modelo narrativo incomum, tanto no conjunto de obras do Modernismo do Nordeste, quanto no acervo dos modernistas de São Paulo, seriam descartadas por Jorge Amado, apesar de desenharem, originalmente, as feições-mestras da maioria dos personagens de Jorge Amado, como se confere abaixo:

(Dona Maria era uma árabe muito magra que alugava todo o sótão e realugava os quartos. “Ganhava fortuna...” cochichavam pelos cantos os inquilinos) [...] Tão pequeno aquele sótão... E morava tanta gente  nele! Na sala da frente D. Maria, a árabe, com dois filhos pequenos, chorões e sujos que punham o sótão e a escada em polvorosa com as suas brincadeiras [...]
No quarto defronte morava outra árabe, que tinha um nome complicado que se reduzira a Fifi. D. Fifi, mãe de um filho malandrão, já homem (seus dezessete anos), que só vinha em casa buscar dinheiro para a farra. Vivia no meio de moleques da pior espécie, a calotear mulheres nojentas da Ladeira do Tabuão. Quando dormia em casa vez por outra, ficava nu no mesmo quarto com a mãe que, deitada [...] não cansava de reclamar o seu modo de vida. Ele a xingava muito em árabe. Às vezes, escapava alguma palavra em português que as vizinhas atentas percebiam. (AMADO, 1979 1, p. 70-71)

A casa acordava aos poucos. Na pia do sótão lavavam os rostos. A venda de Fernandes abria as portas, homens apareciam no pé da escada. Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal.
Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. E quem não era dominado pela religião bárbara dos negros? (AMADO, 1980, p. 69)

Inaugurando, no Modernismo do Nordeste, uma recorrência que chegaria à literatura de nossos dias, como comprova a obra de Milton Hatoum, Jorge Amado inunda suas narrativas de criaturas árabes, tematizando, dessa forma, a nossa própria constituição cultural, que se vai configurando pelas tintas da mestiçagem, da interação cultural.

Nesse patriotismo regional, como classifica Antônio Cândido, Jorge Amado cria um mundo ficcional habitado pelos imigrantes árabes, tornados, em suas ficções, elementos de nossa própria identidade cultural, numa configuração de suas personagens árabes, como membros do corpo brasileiro, posto que íntima e indissoluvelmente entranhadas ao Brasil.

Nesse entranhamento, circulam na obra de Amado, apesar do sotaque árabe, os mais variados tipos nacionais, do malandro ao capitão da areia, atendendo ora por nomeações brasileiras, como é o caso de Dona Maria e de Dona Fifi, personagens árabes femininas d’O país do carnaval, primeiro romance amadiano, ora por nomes e sobrenomes árabes, como é o caso do próprio Nacib que, representado, ao longo da narrativa, continuadamente como bom brasileiro, se manifesta, em momentos de emoção, na língua árabe:

E por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)
_______________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
Imagem = http://www.tripadvisor.com.br

domingo, 22 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Natação)

Foi em junho de 2012 que, com toda a coragem do mundo, procurei uma academia de natação de minha cidade, para aprender a nadar. Como sou do signo de Peixes, já devia ter meio caminho andado em direção às profundezas de uma piscina, que, assim como lagos e rios, tem sempre um lado onde dá pé. Péssima ideia. Não a de procurar uma academia a fim de nadar, mas a de pensar que eu ficaria sossegado, só no lado onde meus pés pisavam firme. Alguém já disse que nadar é o mais próximo que o homem pode chegar da sensação de voar. Talvez seja verdade. Eu, quando nadava, me sentia leve, muito leve. A cor da piscina, quase sempre azul, já me encanta. Se eu pudesse, teria nascido peixe. Seria o Nemo! 

Para o bem da verdade, aquela não foi a primeira vez que me aventurei no mundo das águas. Já tinha me inscrito meses antes em outra academia, mas a professora logo saiu e desanimei de continuar. 

O professor que tive naquela nova academia era muito atencioso comigo. Chamava-se Renan. Fazia exercícios de dessensibilização na água, pedindo que, com os óculos próprios, ficasse de olhos abertos enquanto ele me afundava, para que eu perdesse o medo de submergir. Outro dia, vi muitos bebês submersos num vídeo que achei no Youtube, mostrando o exemplo de uma aula de natação para recém-nascidos. Legal é ver como eles já têm naturalmente o instinto para se sair bem na piscina, os danados! 

Não, ainda não foi daquela vez que aprendi a nadar. Ainda vai demorar um pouco para eu honrar o símbolo cristão por excelência e me tornar um peixe. Eu, que nunca vi o mar ao vivo, espero um dia poder nadar um pouquinho em suas ondas verdes, tão doces quanto as canções de Caymmi, praieiras e sãs. Sumir, como o Príncipe Escamado, com Narizinho mar abaixo e, no Reino das Águas Claras, encontrar Ariel, a Pequena Sereia, e contar para ela como é o mundo da terra, onde tantos nadam, nadam, nadam e morrem na praia. 

Gosto de assistir às competições de natação na tevê, quando fico torcendo para que, algum dia, eu consiga nadar um por cento do que eles nadam. 

No mar de uma piscina, numa academia da cidade em que moro, quero ainda sentir o céu líquido em contato com as invisíveis asas de quem cai na água e não se afoga, rio acima, peixe vivo, avante.

Fonte:
O Autor

sábado, 21 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Lâmpadas)

O menino maravilhava-se com as lâmpadas da rua, que, pontualmente, ao fim de cada tarde, se lembravam de acender-se. Quisera ter uma memória assim, luminosa!... Não a tinha. Ou, para bem dizer, achava que não a tinha. Tinha mesmo era uma vela de memória, o que, para ele, já dava para o gasto. Não carecia muito. O trabalho como sorveteiro mirim necessitava de umas contas de cabeça, previamente retiradas da cartilha lá da escola. Um mais um, igual a dois, que, dividido por dois, é um. Hum... A vida era uma vela no peito, alento, e as lâmpadas, o além da vida.

"Um dia, quando eu for grande, vou ter uma casa enorme, com lâmpadas por todo o lado, de fazer inveja até pros vaga-lumes!", pensava consigo enquanto empurrava o carrinho de sorvete pelas ruas da Cidade. O peso do enorme carrinho contra o peso do corpo de um menino de doze anos e meio é um pouco ingrato, sobretudo em subidas. Mas, em nome da vida, vivemos, e o menino vivia seu dia, vendendo sorvete até cair o sol e erguer-se a lua. Aí, no mesmo horário, as lâmpadas, o lume de vidro em que o menino era vidrado. Voltava para casa sob essa luz, ora branca, ora amarela, alaranjada, das lâmpadas que via. Um visto para a luz, o que queria, já que a luz em sua casa tinha sido cortada havia um mês, e a mãe esquentava água num fogo de chão improvisado no quintal. A luz é cara. A cara enxerga a luz e é por ela banhada, ilumina-se. Beleza...

Foi no dia em que os irmãos do sorveteirinho sonhavam com Papai Noel que ele teve a ideia de pedir na igreja mais próxima para o santo mais pobre (logo para ele!), São Francisco de Assis, um pouco de luz para sua casa. Assim, sua mãe e os irmãos teriam banho quente quando noite e sorvete quando dia. Ajoelhadinho ao pé do santo, nosso amigo sussurrava o Cântico das Criaturas de que se lembrava, ou de que ouvia falar nos sermões que tinha de relance, lá da Praça Central.

O menino cresceu. Não mora em casa grande, nem em senzala. Mora numa casa simples, já sem irmãos, com sua mãe. Sua casa tem luz. Toma banho quente quando noite e sorvete quando dia. Mas não repara muito nisso. Hoje sonha com outras luzes. Aquela luz primeira, a das lâmpadas da rua, murcharam como rosas ao longo dos dias, depois de despertas, abertas ao sol. Luz, a de Francisco, é que é viva. A luz das lâmpadas, feito a de todo sonho, sombra de nós, velha infância.

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte III

Foto por Belchonock
Dispostos por Castro Alves em forma de epígrafes, os discursos de Les Orientale, de Victor Hugo, e Canto dos filhos de Agar de Sue, antecedem os poemas, “A criança” (ALVES, 1972, p. 75) e “Bandido negro” (ALVES, 1972, p. 83), ambos do livro Os escravos. 

Dessa inclusão resulta, no texto do poeta, tanto a adequação das letras nacionais à moda européia, quanto a presença do mundo oriental na escritura romântica brasileira. Exemplo dessa adequação constitui o “Navio Negreiro”. Nesse poema, um dos mais conhecidos de Castro Alves, o chamado poeta dos escravos ao tematizar a forçada travessia dos africanos para o Brasil o faz em aproximação com o êxodo forçado de Agar e de seu filho Ismael. Assim, configura, através de suas mulheres, os africanos seqüestrados para o trabalho forçado em nossas terras, em analogia com a narrativa sagrada dos árabes.

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas
De longe...bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leito de pranto
Têm que dar para Ismael.
(ALVES, 1972, p. 180-181)

Em relação às manifestações literárias correspondentes ao período do Realismo, é importante observar como o seu maior representante, Machado de Assis, se debruça, em sua poesia e em sua prosa, sobre a figura árabe.

Em relação ao seu discurso poético, vamos encontrar além de a “Lira chinesa”, escrita em 1870 (MACHADO, 1994, p. 53), o poema, “A cristã nova“ elaborada em 1875 (MACHADO, 1994, p. 110). Nesse último poema, o eu lírico tematiza a difícil aclimatação da mulher palestina, e de sua descendência, às voltas com as restrições religiosas impostas pela Inquisição, em nosso país, como se afere do texto de Machado de Assis:

Olhos fitos no céu, sentado à porta
O velho pai estava. Um luar frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda barba
Alva e longa, que o peito lhe cobria
.......................................

Assim talvez nas solidões sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito volvera
As desgraças da pátria. Quão remota
Aquela de seus pais sagrada terra
Quão diferente desta em que há vivido
......................................

“Braço lhe ameaça a vida?” Cavernosa
Um voz lhe responde: “O santo ofício!”
(MACHADO, 1994, p. 110-123)

Quanto à prosa machadiana, mais precisamente em suas crônicas, vamos encontrar várias referências ao mundo árabe, especialmente à poesia, à religião e ao declínio do Império Otomano (1281-1923), visivelmente expressas nas manchetes ocidentais e transfiguradas em signos literários. Revelando-se um profundo conhecedor da doutrina islâmica, Machado de Assis ressalta-lhe a profunda unidade entre o poder político e o poder sagrado, lamenta e critica o processo de ocidentalização do Oriente, terminando por associar o declínio do Oriente à morte da poesia, como expressa, em crônica publicada no primeiro dia de julho de 1876:

Dou começo à crônica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar às mãos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão. Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias. Só a idéia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto [...] Mas o que eu apuro de tudo o que nos vem pelo cabo submarino e vapores transatlânticos é que o Oriente acabou e com ele a poesia. (MACHADO, 1994, p. 335-336)

O período que se processa entre a última década do século XIX e a Semana de 22, fase que corresponde às experiências pré-modernistas e a uma boa parte do período de apogeu da entrada de imigrantes no país, verificada, segundo Lucia Lippi Oliveira, entre os anos de 1870 a 1930 (2002, p. 11), coincide, também, com a retomada da discussão, de forma mais sistemática, acerca da brasilidade, como ilustram as publicações de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Canaã (1902), de Graça Aranha; Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto e de Urupês (1918), de Monteiro Lobato. Desse contexto cultural, marcado pelos traços da mudança e da diversidade que caracterizariam o nosso Modernismo, surgiriam também as primeiras obras significativas dos brasileiros filhos de imigrantes, a exemplo das obras plásticas de Anita Malfatti, iniciada desde 1915, e as do pintor Victor Brecheret, iniciada em 1919.

A partir do Modernismo, cujo marco inicial é, comumente, assinalado pelo evento da Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922), a presença do imigrante no Brasil se tornaria mais visível e sistemática em nossos escritos literários. Movimento de ruptura estética, de busca de novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro (MENDONÇA, 2002, p. 20), os nossos vários Modernismos se voltariam para esses brasileiros, alguns já atuantes em nosso espaço artístico; outros recém-chegados, como se verifica, explicitamente, na narrativa de Menotti Del Picchia, O estrangeiro (1926), publicada quatro anos após a ocorrência da Semana.

Exemplares da abertura modernista, à tematização do mundo oriental e à figura do imigrante árabe, constituem a produção do poeta nordestino, Manuel Bandeira, e a elaboração dos escritores de Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. 

Em relação a Manuel Bandeira, em ação escritural desde 1917, as presenças orientais e a árabe, em particular, só se dariam a partir de 1936, se processando, para além das temáticas, nas próprias formas poéticas utilizadas. Após publicar “Canção das duas Índias” (Estrela da manhã, 1936), Bandeira escreverá “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga” e “Gazal em louvor a Hafiz”, ambos do livro Lira dos cinquent’anos, publicada em 1940. Assim, inclui em sua obra tanto a forma poética de origem japonesa, como o gazal, gênero lírico-amoroso dos árabes.

Apropriando-se da forma dos gazais, Bandeira incorporaria à sua poesia uma das formas poéticas mais importantes da literatura árabe: os gazais ou gazéis. Escritas no ano 800 da Era Cristã, por Abbas de Marv, os gazais desfrutam do status de primeiras manifestações conhecidas da literatura persa. Seria, pois, com o auxílio formal dos primeiros versos árabes que Manuel Bandeira homenagearia e imortalizaria Hafiz, poeta persa do século XIV, autor de poemas líricos, conhecido pelos versos harmoniosos, pela presença do amor, do vinho e da natureza em seus poemas:

GAZAL EM LOUVOR DE HAFIZ

Escuta o gazal que fiz
Darling, em louvor de Hafiz:

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.

Pois no mistério do mundo
Também me sinto infeliz.

Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”

E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis

Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.

As bem-amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!
(BANDEIRA, 1976, p. 159 – grifos nossos)

Dirigindo-se a um Outro, curiosamente nomeado pelo vocábulo inglês, Darling, Bandeira aponta para as afinidades líricas entre a sua poesia e a do poeta persa, reconhecendo, nas mágoas que se desprendem dos versos Hafiz, os seus próprios desencantos. Nesse caminho, em que forma e conteúdo se conjugam na aproximação entre a poesia brasileira e a poética árabe, Bandeira se aproxima de Jorge Amado, enquanto se anteciparia a Milton Hatoum, mais precisamente ao seu romance Dois irmãos (2000), publicado sessenta anos após a Lira de Bandeira.

Encaminhando-se nessa tradição, Milton Hatoum se utilizaria dos gazais de Abbas como elemento de mediação amorosa de seus personagens, Halim e Zana, casal árabe de origem libanesa; ele muçulmano, ela cristã maronita. Atualizando a presença da poesia e do poeta persa em nossa literatura, através de um artifício ficcional, Milton Hatoum transforma o poeta Abbas e os seus gazais em signos árabes já aclimados ao solo de Manaus. Em Dois irmãos, o poeta que elabora os gazais com os quais Halim conquista Zana já vive no Brasil e é, entre nós, que se processa a sua bilíngue produção poética. Assim, tanto Manuel Bandeira, em meados do século passado, quanto Hatoum, no alvorecer do século atual, estabelecem um diálogo entre a literatura brasileira e a literatura árabe, manifestando, então, a importância da literatura árabe entre nós, como ilustra a voz narrativa em Milton Hatoum: 

Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se dizia poeta, um certo Abbas [...] Um dia Abbas viu o amigo na loja Rouaix [...] Halim queria comprar um chapéu francês [...] Abbas se adiantou a madame Rouaix, cutucou o amigo, saíram da loja [...] Halim desabafou, e Abbas sugeriu que desse a Zana um gazal, não um chapéu [...] Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos, que ele mesmo traduziu para o português. Halim leu e releu os versos rimados: lua com nua, amêndoa com tenda, amada com almofada. Pôs a folha de papel num envelope e no dia seguinte fingiu esquecê-lo na mesa do restaurante [...] na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos [...] deu três passos na direção de Zana, aprumou o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme, grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo [...] dois meses depois voltou como esposo de Zana. (HATOUM, 2000, p. 48-51)

Quanto a Carlos Drummond de Andrade, integrante do Modernismo Mineiro e em atividade literária desde 1928, a frequentação de personagens árabes se verificaria a partir de 1952. Atento, como Machado de Assis, ao que se passa no mundo, Carlos Drummond de Andrade publica a crônica, “Sinais do tempo: reflexões sobre o fanatismo”, que integra seu livro Passeios na Ilha (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1406). Nesse texto, originado de um período marcado pelas dissensões entre interesses do capitalismo ocidental e os interesses árabes, o poeta de Itabira apreenderia a paisagem política mundial, através da apreensão dos conflitos religiosos, conflitos muitas vezes mascaradores dos interesses políticos.

Nessa apreensão, Drummond retoma Voltaire, endossando-lhe a crítica ao Concílio de Nicéia, marco inicial das guerras de religião, segundo os dois escritores. Assim, problematiza a Fé e o Político, no contexto do segundo quartel do século passado, enquanto expressa a estranha condição da sociedade moderna, desejosa de paz, mas arredia às diferenças e profundamente bélica:

Não é fácil decidir se nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua da crença Enquanto o século XVIII ficou marcado pelo racionalismo filosófico e revolucionário, e o século XIX pelo cientificismo e a ideia socialista, o período em que vivemos não logrou ainda definir-se como um tempo ateu, místico e idealista, materialista, hedonista, surrealista, infantil ou bárbaro [...] Ao definir em seu Dicionário Filosófico o conceito de tolerância (“perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices; é a primeira lei da natureza”.), Voltaire tinha em mente as guerras de religião, que desde o primeiro concílio de Nicéia vinham ensanguentando o mundo. Hoje em dia os concílios não têm mais poder para devorar o homem; mas os partidos, certos partidos, têm [...] Aspiramos a uma terra pacífica, através da crescente militarização dos espíritos, para já não falar na preparação bélica total. Pretendemos o congraçamento humano, eliminando a divergência política ou estética. (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1407)

Ao aproximar-se do fim do século, Drummond retomaria a tematização do mundo árabe, de forma mais explícita e específica. Em seu poema, “Turcos”, do livro Boitempo (1968), o poeta imortaliza a presença árabe entre nós, caminhando por uma ambiguidade poética que ora problematiza a presença árabe (síria) na região mineira – A língua cifrada/ cria um mundo-problema, em nosso mundo/ como um punhal cravado/ – ora se pergunta se os árabes já não são mineiros de tanta convivência com as Minas Gerais. Nesse artifício poético, Drummond terminaria por se aproximar da mesma perspectiva solidária em que o árabe assimila o Brasil e o Brasil assimila o árabe. Assim, terminaria por configurá-lo como a balança, o espelho, o perfume de Minas Gerais, num reconhecimento do entranhamento dos traços arábicos na cultura mineira, conforme se verifica a seguir:

OS TURCOS nasceram para vender
bugigangas coloridas em canastras
ambulantes.
Têm bigodes pontudos, caras
de couro curtido,
braços tatuados de estrelas.
Se abrem a canastra, quem resiste
ao impulso de compra?
É barato! Barato! Compra logo!
Paga depois! Mas compra!

A cachaça, a geléia, o trescalante
fumo de rolo: para cada um
o seu prazer. Os turcos jogam cartas
com alarido. A língua cifrada
cria um mundo problema, em nosso mundo
como um punhal cravado.
Entendê-los, quem pode?
.......................................

A turca, ei-la que atende
A fregueses sem pressa,
Dá de mamar, purinha, a seu turquinho
O seio mais que farto.
Jacó, talvez poeta
Sem verso e sem saber que existe verso
Altas horas exila-se
No alto da cidade, a detectar
No escuro céu por trás das serras
Incorpóreas Turquias. E se algum
Passante inesperado chega perto
Jacó não o conhece. Não é o mesmo
Jacó de todo dia em sua venda.
É o ser não mercantil, um elemento
Da noite perquirinte, sem fronteiras

Os turcos,
meu professor corrige: Os turcos
não são turcos. São sírios oprimidos
pelos turcos cruéis. Mas Jorge Turco
aí está respondendo pelo nome,
e turcos todos são, nesse retrato

tirado para sempre.... Ou são mineiros
de tanto conviver, vender, trocar e ser
em Minas: a balança
no balcão, e na canastra aberta
o espelho, o perfume, o bracelete, a seda,
a visão de Paris por uns poucos mil-réis?
(DRUMMOND, 1988, p. 604-606)

Como se pode observar, através dos exemplos anteriores, a tematização árabe em nossa literatura ultrapassaria a fase dinâmica do Modernismo, compreendida pelo período que vai de 1922 a 1945 (CANDIDO; CASTELLO, 1983, p. 7), persistindo nos meados do século XX e nos anos que se aproximam do fim do século, nos mais variados modernismos, nas mais variadas formas e nas mais diversas concepções literárias.

Em face do contexto atual, marcado pelas invasões e guerras no mundo árabe, pelos mais diversos tipos de terrorismo, não é demais assinalar que, em seu poema “Elegia 1938”, do livro Sentimento do mundo (1940), considerado como marco de reorientação de sua estética, Drummond abriria sua poesia para os conflitos do mundo externo, confessando, nos últimos versos, o desejo desesperado de implodir o centro financeiro dos Estados Unidos, Manhattan, como se lê na última estrofe do poema:

Coração orgulhoso, tens pressa em confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
(DRUMMOND, 1988, p. 73)

Numa ininterrupta continuidade, as gentes árabes voltariam à nossa narrativa com o lançamento, em 1956, do romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Acolhido, entusiasticamente, pelos leitores e pela crítica brasileira, o livro de Guimarães Rosa tematizaria a relação interétnica no Brasil, através de dois personagens imigrantes, um árabe e um alemão.

Estudiosa de Guimarães Rosa, Walnice Nogueira Galvão é a primeira a observar, na representação do imigrante, procedida pelas letras do romancista mineiro, a diferença de tratamento dada ao imigrante árabe e ao imigrante alemão. Sem a perspectiva histórico-literária assumida por esse trabalho, o artigo “Forasteiros” (1998, p. 15-28), de Walnice Galvão, acentuaria essa diferença, embora não observe que a conduta literária, adotada por Guimarães na representação árabe, se constitui numa tradição, iniciada desde os inícios do Modernismo:

Um alemão e um turco aparecem inextricavelmente ligados em Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa [...] O turco de Grande sertão: veredas se chama Seo Assis Wababa e o seu nome próprio árabe Azis aparece assimilado ao sobrenome luso-brasileiro. É o proprietário da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José, cidadão instalado na vida, comerciante de reputação e pai de família numerosa. Riobaldo, assíduo conviva, aprende a apreciar as comidas típicas [...] Contrastando com Seo Assis Wababa, de quem Riobaldo é amigo e cuja casa frequenta, há o alemão Vupes. Mascate e portanto itinerante, é admirado por Riobaldo, que lhe realça as qualidades de sensatez, bom humor, sangue frio, completadas pela capacidade de procurar seu conforto [...] Essas são, em suma, as relações de Riobaldo com os dois expatriados. Mais rica em implicações para a narrativa é a oposição entre os dois homens de negócios, o alemão e o turco. Enquanto este, como vimos, encarna a estabilidade, a permanência, a respeitabilidade familiar, e sua casa se abre para receber os nômades, o alemão, inversamente, está sempre passando. Ele vem de fora [...] E será fora do horizonte tanto da narrativa quanto do sertão que o Alemão Vupes vai-se sedentarizar, ao instalar-se um dia como abastado comerciante “na capital”.
(GALVÃO, 1998, p. 15-19)

Se os modernistas de São Paulo, Graça Aranha (egresso do pré-modernismo) e Menotti Del Picchia, inauguram a tematização do imigrante em nossas letras, seria no Movimento Modernista do Nordeste, especialmente em Jorge Amado, que essa representação, notadamente a árabe, se tornaria, sistêmica e assídua, como se observa da leitura de todos os seus romances, notadamente configurados com a presença de personagens árabes, em especial o protagonismo do sírio Nacib, personagem a quem dedicaremos nossos estudos, com a finalidade de fundamentar nossas afirmações.

continua
_________________

Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Tang, o caçador)

Meu primo Zhong Han era juiz no condado de Jin. Nessa época, um tigre tinha matado vários caçadores na região e ninguém conseguia pegá-lo. As pessoas foram então procurar meu tio para que ele contratasse Tang, o caçador, para prender esse tigre, achando que ninguém mais seria capaz de fazer esse serviço.

De acordo com Daí Dongyuan, de Xiuning, a história desses Tang vinha desde a Dinastia Ming, quando existiu um caçador chamado Tang, que foi morto por um tigre logo depois de se casar. Sua mulher, grávida, deu à luz um menino e fez uma promessa:

“Se não conseguir matar tigre, nunca vai ser meu filho e todos os seus filhos e filhos de seus filhos que não conseguirem, também não serão meus descendentes”.

Devido a isso, todos os Tang, do sexo masculino, são especialistas em matar tigres.

Zhong Han sabia disso e enviou então alguém para chamar um Tang, separando uma boa quantia de dinheiro para pagá-lo depois do serviço feito.

Na sua volta, esses homens disseram que eles tinham contratado os melhores dos Tang e que eles chegariam a qualquer momento. Chegaram, mas era um era um velho com a barba e o cabelo brancos, que tossia e fungava a cada instante e um ajudante de 16 anos.

O juiz ficou muito desapontado com o que viu. Mas ordenou que a primeira coisa a ser feita era alimentar esses homens. Percebendo que o juiz parecia desapontado, o velho ajoelhou com um só joelho e disse:

“Estou ouvindo esse tigre por perto, no máximo a 5 li* do povoado. Melhor a gente ir logo. A gente pega o tigre e depois come alguma coisa”.

O juiz mandou então que um de seus homens servisse de guia e eles partiram.

Chegando na boca de uma ravina, os homens não seguiram adiante. Maso velho sorriu:

“Comigo aqui, como podem estar com medo?”

Quando eles já tinham quase descido o barranco, o velho olhou para o rapaz e disse:

“Parece que esse tigre está dormindo. Vai lá e dá um jeito dele acordar”.

O rapaz então urrou como um tigre e num instante o tigre veio de entre as árvores na direção deles e pulou sobre o velho. O velho permaneceu firme, levantando um pequeno machado, de oito cun** de cumprimento e quatro de largura. Quando o tigre estava para esmagá-lo, ele afastou-se de lado, e tigre pulou, caindo no chão todo ensanguentado. As pessoas reuniram-se em volta e descobriram que o tigre tinha sido cortado do queixo até a ponta do rabo, ao tocar no machado.

O juiz então recompensou com generosidade os caçadores Tang, agradecendo-os por sua ajuda.

O velho contou então que que tinha treinado seus braços e olhos por mais de dez anos. Ele conseguia encarar um tigre sem piscar, mesmo quando seus olhos estavam com um cisco. E os seus braços eram tão fortes que mesmo o homem mais forte não conseguia movê-los um centímetro.

Zhuangzi, o antigo filósofo chinês, disse uma vez:

“O que é feito com prática é sempre convincente. Uma pessoa que nasce hábil nunca pode ultrapassar quem pratica constantemente”

Isso deve ser verdade. Um homem chamado Shi Sibiao podia escrever no escuro de uma forma tão perfeita como se estivesse usando uma luz de vela. Eu ouvi falar também de Sua Excelência, Li Wnke (1628-1703), de Jing Hai, que separava 100 pedaços de papel e escrevia um caracter em cada um. Punha todos em pilha contra a luz e os 100 caracteres ficavam exatamente um em cima do outro, formando um único caracter, e isso não é mágica.

Notas
*1 li = ½ quilómetro
**1 cun = 3,3 centímetros

Fonte: 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Bruta Saudade)

Há pouco, enquanto eu dobrava roupa, me deu uma bruta saudade de ter tido um amigo. Amigos, tenho-os todos com os quais me correspondo via e-mail. Amigos de longe, que me mandam notícias, que me fazem mimos, que se correspondem com este caro amigo que escreve. Falo de ter tido um amigo que me visita e me convida a sair, andar por aí, ir a um barzinho escutar alguém, alguém cantando, alguém fazendo a boa e eterna MPB de boa índole, que respeita os ouvidos e, acima de tudo, o espírito do ouvinte.

Ouço que esse tipo de amigo que eu queria ter tido e não tive, esse amigo é artigo de luxo; não se acha no lixo, quando se é pobre, nem na lancha, quando se é rico. "Amigo é coisa pra se guardar", diria o nosso Milton, mas como é que se guarda o intangível? Não sei. Fazia tempo que não tinha isso. Sofro da utopia de não ter sabido como é ter uma amizade "Toquinho e Vinicius", "Roberto e Erasmo", "Caetano e Gil". Puxa, meu Brasil, a vida é um peito vazio sem amigos chamando pra um chope, pra um bom bate-papo!

Papo furado, muita risada, choro convulso, coisas de amigo, as que nunca tive. Vive-se como se pode. Os poetas me guardam, a Poesia me aguarda, insone, indomável, à porta do quarto. Com ela, não deito, nem durmo: escrevo. Servo de seus ais, que me aliciam, alivio minha falta, essa calma sem ter paz que me alucina. A solidão. Não, a vida é mais que um amigo fiel, uma terna amizade, uma velha canção. Não, a nossa amizade é uma dura, uma estreita vereda, um grande sertão sem o amigo que eu queria ter tido.

Falo de ter tido um amigo que me visita e me convida a sair, andar por aí, ir a um barzinho escutar alguém, alguém cantando, alguém fazendo a boa e eterna MPB de boa índole, que respeita os ouvidos e, acima de tudo, o espírito do ouvinte. Ouvinte de longe, que lhe manda notícias, que lhe faz seus mimos, que se corresponde com seus caros amigos que o ouvem. Há pouco, enquanto eu dobrava roupa, me deu uma bruta saudade de ter tido um amigo. Amigos, tenho-os logo que a este amigo correspondem.

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte II

Foto por José Feldman
- Casamento árabe -
Por outro lado, o Piloto Anônimo, ao documentar a rota determinada pelo Reino lusitano à armada de 1500, do extremo Ocidente ao Oriente, verificaria, na cultura alimentar indígena, o único traço que aproximaria os nossos índios dos povos árabes. Das anotações do Piloto Anônimo, resultaria a inserção da presença árabe, tanto no evento inaugural da conquista européia em nosso solo, como também em um dos textos iniciais do nosso corpus escritural.

Dessa forma, não obstante constituir-se como uma das mais recentes ondas migratórias no Brasil, os árabes desfrutariam de uma inusitada presença entre nós, desde os primeiros escritos coloniais:

Das quais 12 naus ordenou que 10 fossem a Calecute e as outras duas para a Arábia para irem a um lugar chamado Sofala [...] Aos 24 dias de abril, que foi quarta-feira da oitava da páscoa houve a dita armada vista de terra [...] E alguns dos nossos foram à terra donde estes homens são, que seria a três milhas da costa do mar e compraram papagaios e uma raiz chamada inhame, que é o pão que comem os árabes. (PILOTO ANÔNIMO, 1999, p. 75 – grifos nossos)

Acirrando a similaridade entre árabes e indígenas, ligeiramente esboçada pelo Piloto Anônimo, os portugueses veriam no índio brasileiro, então confundido com o homem árabe, a própria feição semítica arábica. Ante a enorme resistência indígena à perda de sua terra e de sua liberdade, os colonizadores recorriam, sistematicamente, ao termo alarve, isto é, aquele que é árabe, para designar os nossos indígenas. Ao mesmo tempo em que expressam essa similaridade, manifestam o desejo do extermínio dos nossos ancestrais ameríndios, obstáculos à empresa lusitana, como se verifica nos discursos dos colonos portugueses Pero de Magalhães Gandavo e Gabriel Soares de Sousa, ao se referirem aos Aimoré, indígenas que povoavam as capitanias de Ilhéus, a de Porto Seguro e áreas circunvizinhas da Bahia:

Estes Aimorés são mais alvos e de maior estatura que os outros Índios da terra, com língua dos quais não têm destes nenhuma semelhança, nem parentesco. Vivem todos entre os matos como brutos, animais sem terem povoações, nem casas em que se recolham [...] Estes alarves têm feito muito dano nestas Capitanias depois que desceram a esta costa e mortos alguns Portugueses e escravos, porque são muito bárbaros. [...] Até agora não se pode achar nenhum remédio para destruir esta pérfida gente.
(GANDAVO, 1980, p. 140 – grifo nosso)

Deu nesta terra esta praga dos Aimorés de feição que não há aí já mais que seis engenhos, e estes não fazem açúcar, nem há morador que ouse plantar canas, porque em indo os escravos ou homens ao campo não escapam a estes alarves, com medo dos quais foge a população de Ilhéus para a Bahia, e tem a terra quase despovoada.[...] e se senão busca algum remédio para destruírem estes alarves, eles destruirão as fazendas da Bahia. (SOUSA, 2000, p. 42-43 – grifos nossos)

Percorrendo o caminho narrativo do Piloto Anônimo, de Pero de Magalhães Gandavo e de Gabriel Soares de Sousa, José de Anchieta também traria a presença árabe à sua catequese. Sequioso da conversão indígena ao credo cristão e, ao mesmo tempo, receoso de uma improvável, à época, inclinação ameríndia ao Islamismo, o jesuíta, em sua atividade religiosa, busca, principalmente, preparar e incitar os nossos aborígines a brigar, sem que eles saibam a razão (SANTIAGO, 1982, p. 14), contra os reformados e contra os árabes, estes últimos representados por Muhammad, vulgarmente denominado de Maomé, entre os povos ocidentais ou ocidentalizados.

Num tom distante da fraternidade entre os homens, máxima da religiosidade cristã, marcado pela hostilidade e desumanização, para lembrar Edward Said, Anchieta procede a uma configuração, cruel e demoníaca, do Profeta dos muçulmanos, conforme vemos expressa nos “Diálogos dos Diabos, Satanás e Lúcifer, contra São Maurício, no adro da igreja”, ato II, do texto dramático anchietano, Na vila de Vitória ou de S. Maurício, encenado em 22 de setembro de 1595, na Vila de Vitória no Espírito Santo:

Satanás a Lúcifer, antes que tente a São Maurício:
Onde irás,
sem levar a Satanás,
teu fiel, servo contigo?
Tens outro melhor amigo?
Eu te dou Barrabás
E com Judas te maldigo.
Com Mafoma e com Lutero,
Com Calvino e Melantão,
Te cubra tal maldição
que te queimes, bem, o quero,
ardendo como tição.
(ANCHIETA, 1977, p. 289-290 – grifo nosso)

Nessa recorrência, a frequentação árabe em nossa literatura – sem destacarmos, ainda, o importante papel da narrativa arábica, na formação da moderna ficção européia e, consequentemente, na constituição e sedimentação da nossa – chegaria às letras poéticas do Barroco, pelos versos satíricos do poeta brasileiro, Gregório de Matos.

Filho da nobreza luso-baiana, o berço fidalgo propicia a Gregório de Matos uma esmerada formação acadêmica, de base européia. Em Coimbra, onde se tornara bacharel, Gregório de Matos é agraciado com o título de doutor in utroque jure, num reconhecimento que, aliado à sua origem, abre-lhe amplas possibilidades de uma carreira promissora, como salienta Alfredo Bosi (BOSI, 1992, p. 99). O vendaval mercantil, da segunda metade do século XVII, vem alterar-lhe, no entanto, o curso de sucessos.

Com a queda do preço do açúcar e com a perda da proteção real à sua pequena fidalguia baiana – Portugal, a esse tempo, encontrava-se submisso, economicamente, aos ingleses – Gregório dispara contra essa desordem, elegendo, como seus objetos de ataque, os velhos alvos europeus: o árabe e o homem brasileiro. Nesse caminho, Gregório de Matos investe contra o brasileiro em formação, ainda com uma boa dose do sangue indígena, reatualizando, assim, em nossos primeiros versos, os discursos de Pero de Magalhães Gandavo, de Gabriel Soares de Sousa e de José de Anchieta. Nessa poeticidade, o poeta baiano reporia, em circulação, os preconceitos étnicos e religiosos, herdados dos europeus, conforme se lê nos versos abaixo:

O certo é, pátria minha,
Que fostes terra de alarves,
E inda os ressábios vos duram
Desse tempo e dessa idade.
(MATOS, 1990, p. 83 – grifos nossos)

Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão,
E que esgrima em demasia,
Quem nunca já na Sofia
Soube dar um argumento:
Anjo Bento.
(MATOS, 1990, p. 31 – grifo nosso)

Como na lei de Mafoma
Não se argumenta, e se briga,
Ele, que não argumenta,
Tudo porfia.
(MATOS, 1990, p. 61-62 – grifo nosso)

Dessa forma, Gregório de Matos garantiria, em vários de seus poemas satíricos, a presença árabe em nossa poesia que se iniciava. Elaborada, poeticamente, num estreito amalgamento com os traços indígenas, ou melhor, confundida com o próprio rosto ameríndio, a representação árabe/indígena de Gregório alteraria a nossa ascendência étnica. Com os olhos guiados pelo etnocentrismo europeu, tematizaria o Brasil, como pátria de alarves, nos considerando, cegamente, como descendentes do povo árabe, enquanto desclassifica, como José de Anchieta, o Profeta e fundador da religião dos muçulmanos.

Com o surgimento do Arcadismo, o tom do nosso discurso poético se alteraria. Última expressão da literatura clássica portuguesa no Brasil, o Arcadismo se processaria em meio à circulação das ideias iluministas, das idéias escolásticas, das discussões antimonarquistas, procedidas por setores do Iluminismo. Importando as teorias francesas e italianas, os árcades brasileiros se preocupariam com os grandes temas vindos do Ocidente, compartilhando, com o pensamento ilustrado, o ideal da paz, o elogio do saber e a condenação da violência, de acordo com Fábio Lucas, estudioso do Arcadismo no Brasil (1998, p. 18).

Partidários do despotismo esclarecido, da simplicidade da linguagem e do racionalismo filosófico, os neoclássicos do Brasil se ocupariam, tematicamente, com a virtude civil, a melhoria do homem pela instrução, pela obediência às leis da natureza, como assinalam os vários compêndios de literatura. Mais laicos, os nossos árcades se afastariam do verbalismo barroco e do seu espírito, que se identificava com a glorificação da monarquia absoluta como fato de origem divina; e, como que esmagado pelo sentimento da fé e do poder, favorecia na literatura o senso agudo das tensões (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 78). Assim se distanciariam do conformismo barroco, ante os fundamentos da ordem social estabelecida, como também da delimitação geográfica, ao qual estava circunscrita a poética barroca, como observam Antonio Cândido e José Aderaldo Castello, quando discorrem sobre a ação mais ampla do Arcadismo:

A Academia dos Renascidos, fundada naquela cidade em 1759, já procura superar o âmbito local e congregar escritores de todo o país, numa primeira demonstração de solidariedade geral. Esta tendência aumentou difusamente a partir de então, e por isso o legado dos árcades foi mais atuante que o dos cultistas, o principal dos quais, Gregório de Matos, ficou esquecido nos seus manuscritos inéditos até o século XIX. (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 84)

Numa escritura diferenciada da que lhe antecedeu, as representações árcades brasileiras, apesar da roupagem mitológica e da identificação cultural com as metrópoles europeias, se voltariam para o cenário nacional, particularizando-o. Nessa particularização, se não elegem o autóctone como herói ficcional, lhe garante o estatuto de objeto estético e de signo de brasilidade em sua lírica e epopeia. Dessa forma, os árcades se afastam das representações indígenas de Gregório de Matos, transformando suas manifestações literárias em representações pré-românticas, como reconhece Walnice Nogueira Galvão, em diálogo com o crítico Antonio Cândido:

Volvendo os olhos para as representações pré-românticas do índio na literatura brasileira, há que mencionar obrigatoriamente dois poemas épicos setecentistas, O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, e o Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, cuja matéria indígena se expõe desde o título. Num caso, o assunto é o arrasamento das reduções jesuíticas dos Sete Povos de Missões; no outro, a colonização da Bahia através do oportuno conúbio entre o pioneiro português e a princesa indígena. Mesmo assim os índios lá estão mais como signo, como observou Antonio Cândido, do que propriamente como personagem literária. Ambos os poemas pretendem defender outra causa que não a dos índios, o primeiro a causa da Ilustração e da política portuguesa contra os catequizadores, ao modo arcádico, e o segundo, da autoria de um padre, a causa da religião cristã contra a Ilustração anticristã, ao modo clássico-barroco. (GALVÃO, 1979, p. 384)

Nesse caminho, os árcades abririam seus textos à presença indígena, transfigurando-os em gênese da vertente indianista em nossa literatura. Gênese, essa, que os românticos brasileiros souberam muito bem aproveitar, em suas representações do índio como objeto estético, herói literário e antepassado mítico-histórico (GALVÃO, 1979, p. 383).

Apesar da ausência da representação árabe nos textos do Arcadismo brasileiro, encontramos, contudo, uma representação do Outro, totalmente diversa das formas lusitanas no tratamento ao distinto de si. Desejosos da harmonia social e da felicidade na terra, os nossos árcades defenderiam os métodos pacíficos para a resolução dos conflitos entre os povos, como lavraria Cláudio Manoel da Costa, em sua poética. Em “Vila Rica”, o líder do Arcadismo no Brasil descarta a violência na resolução das discórdias entre as nações, elegendo a brandura como o caminho privilegiado para o exercício do poder e da interação humana. Curiosamente, os versos de Cláudio Manoel da Costa retomam, pelo tom e pelo conteúdo, o discurso de Japia-açu, cacique tupinambá do Maranhão, no século XVII.

Aliado dos franceses na luta contra os portugueses, Japia-açu manifestaria, ao comandante da França, não somente a esperança de seu povo na brandura e na amabilidade dos soldados franceses, notadamente de seus comandantes, enquanto explícita, numa atitude preventiva, o modus político dos nossos indígenas. Nesse discurso, Japia-açu precede Cláudio Manoel da Costa na recusa da violência e da aspereza no exercício do poder, como também no elogio da brandura, tematizada como signo da sabedoria, conforme se observa na leitura dos discursos do árcade e do índio brasileiro:

Convém que antes os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
(COSTA, 1996, p. 390 – 420 – grifos nossos)

Te direi a esse propósito que quanto mais um homem é grande de nascença e quanto maior autoridade tem sobre os outros, mais brando, obsequioso e clemente deve ser. Pois os homens, especialmente os desta nação, mais facilmente se levam pela brandura do que pela violência. 
(JAPI-AÇU, apud D'ABBEVILLE, 1975, p. 61 – grifos nossos)

Com o advento do Romantismo, surgido nas últimas décadas do século XVIII, o discurso literário ocidental passaria por uma revolução. Substituiria o racionalismo neoclássico e estabeleceria, nas letras, o reino da emoção, da fantasia e da imaginação. Compreendido como visão do mundo, ou como crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno) (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34), essa vertente literária se abriria à curiosidade do exótico, do diferente, do longínquo; atenta a outros povos e a outras civilizações, como ressaltam Antonio Cândido e Aderaldo Castelo:

A curiosidade do romântico, alimentada pela insatisfação e também indefinição, multiplica-se no tempo e no espaço. Ela pode ser largamente enumerada, a partir do interesse pela cor, pelo exotismo que apresentam os países estrangeiros ou as regiões longínquas, com outros povos e outras civilizações. Para o europeu é a América ou o Oriente, para o brasileiro a Europa, por exemplo, aspectos da paisagem romântica da Itália, o mistério também do Oriente, sugestões retomadas à Bíblia, freqüentes em Castro Alves que chegou mesmo a contaminar com tudo isso as impressões da própria paisagem brasileira. (CÂNDIDO; CASTELLO, 1988, p. 160)

No Brasil, os inícios do Romantismo seriam marcados pela busca de si mesmo. Identificados com a recente nacionalidade, os românticos brasileiros, seja de forma mais acentuada ou de modo mais sutil, empreendem uma jornada escritural em busca de nossas feições culturais. Na atualização da temática do local e do próprio, da representação do índio como objeto estético, herói literário e antepassado mítico-histórico, prenunciadas pelos árcades, as nossas letras se dedicariam a traçar os variados tipos nacionais: o índio, o bandeirante, o sertanejo, o matuto, o gaúcho, o cangaceiro, o malandro, o senhor, o escravo, ao lado do universo feminino – urbano ou rural, de cujo mundo o Romantismo se ocupava.

Mesmo envolvidos nas configurações de nossas identidades, os românticos não se desapercebiam do novo aparato literário, nem da nova temática européia. Assim, se não vamos encontrar, restritamente, a presença árabe nesses textos, encontramos, porém, a presença oriental, como se verifica em Castro Alves, em sua saudação às noites orientais expressa no poema “A bainha do punhal”, do livro Os escravos (1972):

Salve, noites do Oriente,
Noites de beijos e amor!
Onde os astros são abelhas
Do éter na larga flor...
Onde pende a meiga lua,
Como cimitarra nua
Por sobre um dólman azul:
E a vaga dos Dardanelos
Beija, em lascivos anelos
As saudades de Istambul.

Salve, serralhos severos
Como a barba dum Pachá!
Zimbórios, que fingem crânios
Dos crentes fieis de Alá!...
Ciprestes que o vento agita,
Como flechas de Mesquita
Esguios, longos também;
Minaretes, entre bosques!
Palmeiras, entre quiosques!
Mulheres nuas do Harém!

Mas embalde a lua inclina
As loiras tranças p’ra o chão...
Desprezada concubina,
Já não te adora o sultão!
Debalde, aos vidros pintados,
Aos balcões arabescados,
Vais bater em doudo afan...
Soam tímbalos na sala...
E a dança ardente resvala
Sobre os tapetes do Iran!...
(ALVES, 1972, p. 217-220)

Unindo-se, solidariamente, às escrituras dos românticos europeus, Castro Alves inclui, em seus versos, a presença oriental, alusões e citações bíblicas, terminando por trazer a presença semítica, tanto a ligada ao Islamismo quanto ao Judaísmo, à sua poética. No poeta baiano, essa presença se fará de duas formas. Seja pelo discurso do próprio eu lírico, como no caso de “A bainha do punhal”; seja pela voz do artista europeu, mais particularmente de Victor Hugo e Edgar Sue, a quem incorpora em sua poesia.
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continua
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Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008