quinta-feira, 10 de julho de 2025

Guy de Maupassant (Um prudente)


Blérot era meu amigo de infância, o meu mais querido camarada; não tínhamos segredos um para o outro. Ligava-nos uma profunda amizade de espíritos e de corações, uma intimidade fraternal, uma absoluta confiança mútua. Ele dizia-me os seus mais melindrosos pensamentos, inclusivamente as pequeninas vergonhas de consciência que mal se ousa confessar aos seus botões; outro tanto eu fazia com ele.

Eu tinha sido confidente de todos os seus amores; ele fora-o de todos os meus.

Quando me anunciou que se ia casar, magoou-me isso como uma traição. Senti que era a cordial e absoluta afeição que nos unia. Sua mulher estava entre nós. A intimidade da cama estabelece entre duas criaturas, mesmo quando cessam de se amar, uma espécie de cumplicidade ou misteriosa aliança. Homem e mulher são como que dois sócios discretos, desconfiados de todo o mundo. Mas este laço tão estreito, que o beijo conjugal aperta, cessa bruscamente desde que a mulher toma um amante.

Lembra-me como se fosse ontem toda a cerimônia do casamento de Blérot. Eu não quisera assistir ao lavrar das escrituras, porque são coisas de que mediocremente gosto; só fui à mairie e à igreja.

A noiva, que eu não conhecia, era uma rapariga alta e loira, um pouco delgadinha, bonita, de olhos descorados, cabelo descorado, tez descorada e mãos descoradas. O seu andar tinha um balançozinho onduloso, como se a conduzisse uma barca. Parecia ir fazendo pelo caminho uma série de demoradas reverências graciosas.

O Blérot parecia apaixonadíssimo. Não tirava os olhos dela, e eu sentia palpitar nele um desejo imoderado daquela mulher.

Fui visitá-lo dias depois. Disse-me ele:

— Não imaginas quanto eu sou feliz. Amo-a perdidamente. De resto, minha mulher é... é...

Não acabou a frase; mas pondo na boca dois dedos, fez um gesto que significava: — divina, deliciosa, perfeita, e muitas coisas mais.

Perguntei, rindo:

— Pois tanto?! Ele respondeu:

— Tanto quanto tu possas fantasiar!

Apresentou-me. Ela foi encantadora, familiar sem excesso, disse-me que era minha a casa. Mas eu bem sentia que o Blérot é que já não era meu. A nossa intimidade fora cortada pela raiz. A custo atinávamos com alguma coisa que dizer.

Parti. Fiz depois uma viagem ao Oriente. Voltei pela Rússia, Alemanha, Suécia e Holanda. Só recolhi a Paris ao cabo de dezoito meses de ausência.

No dia seguinte, como vadiasse pelo boulevard a tomar o gosto a Paris, vi caminhar para mim um homem muito pálido, feições cavas, tão parecido com o Blérot quanto um tísico descarnado pode ser parecido com um rapagão rubicundo e sofrivelmente barrigudo. Eu olhava-o, surpreendido, inquieto, parafusando:

— Será ele?

Ele viu-me, soltou um grito, estendeu os braços. Abri os meus, e abraçámo-nos em pleno boulevard.

Depois de um passeio entre a rua Drouot e o Vaudeville, como fôssemos a separar-nos, porque ele parecia já esfalfado de caminhar, disse-lhe:

— Tu não tens bom parecer... Andas doente? 

Respondeu-me:

— É verdade, um pouco incomodado...

Tinha a aparência de um homem a morrer; e subiu-me ao coração uma onda de ternura por esse velho e tão querido amigo, o único que jamais tive. 

Apertei-lhe as mãos:

— Mas então que tens! Dói-te alguma coisa?

— Não, é um esfalfamentozinho. Não é coisa de cuidado. 

— Que te diz o médico?

— Anemia... Receita-me ferro e carne em sangue. 

Atravessou-me o espírito uma suspeita, e perguntei: — És feliz?

— Decerto, felicíssimo.

— Inteiramente feliz?

— Inteiramente.

— Tua mulher?

— Encantadora. Amo-a mais que nunca.

Mas notei que ele corara. Parecia contrafeito, como se receasse novas perguntas. Travei-lhe o braço, levei-o para um café àquela hora deserto, fi-lo sentar à força, e olhando-o fito:

— Vá, meu velho diz a verdade.

Ele balbuciou:

— Mas se eu não tenho nada que te dizer...

Prossegui com firmeza:

— Isso não é verdade. Tu andas doente, doente do coração sem dúvida, e não ousas revelar a ninguém o teu segredo. Aí anda desgosto assolapado. Mas hás de dizer a mim. Anda diz.

Ele tornou a corar, e depois gaguejou, desviando o olhos:

— Até é vergonha... mas estou... estou desbancado!...

Como se ficasse, eu tornei-lhe:

— Anda, desembucha.

Ele então pronunciou bruscamente, como se o fizesse perder a tramontana algum pensamento martirizador, ainda inconfessado:

— Pois lá vai! A minha mulher... dá cabo de mim. Ora aí está.

Eu não percebia:

— Dá-te má vida? Faz-te sofrer constantemente? Mas como? Em quê?

Ele murmurou em voz débil, como se confessasse um crime:

— Não. Amo-a... de mais.

Fiquei atrapalhado perante aquela confissão brutal. Veio-me depois uma gana de rir, e pude enfim responder:

— Mas parece-me que tu... Sim, parece-me que podias muito bem... amá-la menos!

Ele pusera-se de novo muito pálido, e decidiu-se afinal a falar-me sem rebuço, como dantes:

— Não, não posso. E morro. Sei-o. Morro. Mato-me. E tenho medo. Em certos dias, como hoje, tenho desejos de a abandonar, de partir para sempre, para o fim do mundo, para viver muito tempo. E depois, chegada a noite, recolho a casa sem querer, encurtando as passadas, com o espírito torturado. Subo lentamente a escada. Toco. Lá está ela, sentada num fauteuil; e diz-me: — «Vens tão tarde...» — Beijo-a. Vamos depois para a mesa. Enquanto como não cesso de pensar: — «Em jantando, saio, e meto-me em qualquer comboio para qualquer parte.» — Mas quando voltamos à sala, sinto-me tão cansado que nem coragem tenho para me erguer. Fico. E depois... e depois... Sucumbo sempre...

Não pude deixar de sorrir outra vez.

Ele reparou, e prosseguiu:

— Tu ris; mas afirmo-te que o caso é muito sério.

— Mas porque não prevines tua mulher? — disse eu. — Só se ela for um monstro é que não compreenderá.

Blérot encolheu os ombros:

— Tu falas bem! Se a não previno, é porque lhe conheço a natureza. Nunca ouviste dizer, ao falar-se de certas mulheres: — «Já vai de volta com o terceiro marido»? — Ouviste, decerto, e decerto sorriste, como ainda há pouco. E todavia, era bem verdade. Que volta dar-lhe? Ela não tem a culpa, nem eu. É assim porque a natureza assim a fez. Tem um temperamento de Messalina, meu caro. Não o sabe ela mas sei-o eu... infelizmente. E é encantadora, meiga, terna, achando moderadas e naturais as nossas doidas carícias que me esfalfam, que dão cabo de mim. Tem os modos de uma colegial sem malícia. E não tem malícia nenhuma, coitadinha... Oh! Todos os dias tomo resoluções enérgicas. Pudera! Ando a cair da boca aos cães... Mas basta um olhar dos seus olhos, um desses olhares em que leio o desejo ardente dos seus lábios, e sucumbo logo, calculando: — «Será a última vez. Não quero mais estes beijos mortais.» — E depois, tendo cedido mais uma vez, como hoje, saio, caminho à toa pensando na morte, pensando que estou perdido, que não há remédio. Ando com o espírito tão impressionado, tão doente, que ontem fui dar um giro pelo cemitério. E pensava, olhando para aquelas campas alinhada como pedras de dominó: — «Qualquer dia cá estou.» — Recolhi, bem decidido a dar-me por doente, a fugir-lhe. Não pude. Tu sabes lá!... Pergunta a um fumador empeçonhado de nicotina se pode renunciar ao seu vício mortal e delicioso; ele te dirá que cem vezes o tem tentado, embalde. E acrescentará: — «Paciência! Antes morrer dele!» — Eu estou na mesma. Uma vez pilhado na engrenagem de tal paixão ou de tal vício, é aguentar até à última.

Levantou-se, estendeu-me a mão. Invadiu-me uma cólera tumultuosa e odienta contra aquela mulher, contra a mulher em geral, criatura inconsciente, encantadora e terrível. Blérot estava abotoando o sobretudo para sair. Disse-lhe cara a cara brutalmente:

— Mas, com trezentos diabos! Para te deixares assim matar, antes lhe arranjes amantes!

Ele tornou a encolher os ombros, sem responder, e partiu.

Seis meses decorreram sem o ver. Cada dia esperava receber uma participação de enterro; mas não queria pôr os pés em casa dele, obedecendo a um sentimento complicado, feito de desprezo pela mulher e por ele, de cólera, de indignação, de mil sensações diferentes.

Um belo dia de primavera, andava eu a passear nos Campos Elísios. Era uma dessas tardes tépidas que em nós revolvem alegrias secretas, que nos incendeiam os olhos e derramam sobre nós um gosto tumultuoso de viver. Alguém me bateu no ombro. Virei-me; era ele, soberbo, florescente, corado, gordo, barrigudo.

Estendeu-me as mãos ambas, ímpar de prazer, e clamando:

— Felizes olhos que te veem!

Eu encarava-o, estupefato de surpresa:

— Sim senhor... sim senhor... Os meus parabéns... Em seis meses puseste-te como uma flor.

Ele fez-se carmesim, e tornou, rindo amarelo:

— Faz-se pela vida... faz-se pela vida...

Eu olhava-o, com uma obstinação que visivelmente o constrangia. E pronunciei:

— Estou, estou completamente curado, muito obrigado...

Depois, mudando de tom:

— Foi uma fortuna encontrar-te, meu velho. Hein? Havemos de nos ver amiúde, pois não?

Mas eu estava aferrado à minha ideia. Queria saber! E perguntei:

— Olha lá, deves-te lembrar da confidência que me fizeste, há seis meses... Então... então... tu agora resistes?

Ele articulou atrapalhadamente:

— Suponhamos que te não disse nada, e deixa-me em paz. O que é certo é que te encontrei, e que já te não largo. Hás de vir jantar a minha casa.

Tomou-me de repente um desejo louco de ver aquele interior, de compreender. Aceitei.

Duas horas depois, introduzia-me em sua casa.

A mulher recebeu-me de um modo encantador. Tinha um porte simples, adoravelmente ingênuo e distinto, que extasiava, As suas mãos compridas, o seu rosto, a sua garganta — eram de uma alvura e de uma delicadeza finíssimas; deliciosa e fidalga, carne de raça. E ainda o seu andar tinha o antigo movimento amplo de chalupa, como se cada perna, a cada passada, vergasse ligeiramente.

O Blérot beijou-a na testa, fraternalmente, e perguntou:

— Ainda não veio o Luciano?

Ela respondeu, numa voz clara e leve:

— Não, filho. Bem sabes que ele vem sempre tarde.

Ouviu-se a campainha. Apareceu um rapagão muito moreno, de faces penugentas e aspecto de Hércules de sala. Apresentaram-nos um ao outro. Chamava-se Luciano Delabarre.

O Blérot e ele apertaram-se energicamente as mãos. Fomos depois para a mesa.

O jantar foi delicioso, cheio de alegria. Blérot não se fartava de falar comigo, familiarmente, cordialmente, francamente, como outrora. Era a cada instante:

— Bem sabes, meu velho... — Ouviste, meu velho!... — Escuta, meu velho...

Depois, de repente, exclamava:

— Não imaginas o prazer que sinto em te encontrar. Até parece que me nasce uma alma nova.

Eu examinava a mulher e o outro. Conservavam-se perfeitamente corretos; mas pareceu-me, uma ou duas vezes, que trocavam um olhar furtivo e rápido.

Apenas acabado o jantar, Blérot declarou, voltando-se para a mulher:

— Minha querida, encontrei o Pedro, levo-o comigo; vamos dar à língua por esse boulevard, como dantes. Perdoa-nos esta gazeta de solteirões. Cá te fica o sr. Delabarre.

Ela sorriu-se e disse-me, estendendo-me a mão:

— Não o demore por lá muito.

E lá vamos nós de braço dado, pela rua fora. Então, querendo a todo o custo saber:

— Vamos a saber, o que há de novo? Conta lá...

Mas ele interrompeu-me bruscamente, e no tom rabugento de um pacato a quem vão incomodar sem razão, respondeu:

— Ora tu, meu velho! Deixa-me em paz com as tuas perguntas!...

Depois acrescentou a meia-voz, como que falando consigo, nesse tom convicto de quem tem tomada uma decisão justa:

— Era o que faltava, deixar assim dar cabo de mim...

Não insisti. Caminhávamos depressa e pusemo-nos a palrar. De repente, ele segredou-me ao ouvido:

— Vamos nós às garotas? 

Desatei a rir francamente:

— Pois sim. Vamos lá, meu velho.

Fontes:
Guy de Maupassant. A sereia e outras histórias. Publicado em 1883, Disponível em Domínio Público.   
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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