domingo, 1 de maio de 2011

José de Alencar ("O Guarani") Análise da Obra


O Guarani - A epopéia da formação da nacionalidade

Escrito originalmente em folhetim, entre fevereiro e abril de 1857, com 54 capítulos, O Guarani teve tal êxito na edição folhetinesca que, antes do fim do ano de 1857, foi publicado em livro, com alterações mínimas em relação ao que fora publicado em jornal.

Mantiveram-se as quatro parte originais: Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, com os capítulos dispostos como saíram do folhetim.

O romance se compõe, em grande parte, de personagens e episódios, mas as imagens permanecem na memória e amarram os fios mais importantes da narrativa. São imagens poderosas, que se impõem sobretudo por seu caráter plástico. Por isso, a crítica distingue em Alencar um grande escritor, um grande artista da palavra, mas não compartilha do mesmo entusiasmo quando se refere aos seus enredos, à carpintaria da narrativa, algumas vezes falha (os conhecidos "cochilos" do escritor), e quase sempre previsível quanto às ações das personagens, lineares ou planas.

A narrativa de O Guarani é simples, mas não simplista. Trabalhando habilidosamente as possibilidades e contradições do romance romântico, vale-se com muita liberdade da trama novelesca, da coloração épica, do devaneio lírico, da anotação histórica da efabulação mítica e lendária, do ímpeto ideológico nacionalista e de elevada carga simbólica, tudo isso revestido de uma profusão de luzes e cores que invade a pupila do leitor, como se ele estivesse assistindo a um espetáculo grandioso, povoado pelas forças da natureza e por titãs, absorto pela beleza da cena, mais do que pelos pormenores da intriga.

Personagens:

Peri: índio valente, corajoso, chefe da nação goitacá, o Guarani.

Ceci (Cecília): moça linda, de doces olhos azuis, gênio travesso, mas meiga, suave, sonhadora, herdeira da força moral interior de seu pai, D. Antônio Mariz.

Isabel: moça morena, sensual, de sorriso provocador; filha bastarda de D. Antônio Mariz com uma índia, oficialmente sobrinha dele e prima de Ceci.

D. Antônio Mariz: fidalgo português da mais pura estirpe.

Dona Lauriana: senhora paulista, de cerca de cinqüenta anos, magra, forte, de cabelos pretos com alguns fios brancos; um tanto egoísta, soberba, orgulhosa, diferente do marido, D. Antônio Mariz.

D. Diogo Mariz: jovem fidalgo, na “flor da idade”, que passa o tempo em caçadas e correrias; tratado com rigidez pelo pai, D. Antônio Mariz, em nome da honra da família.

Loredano: um dos aventureiros da casa do Paquequer; italiano, moreno, alto, musculoso, longa barba negra, sorriso branco e desdenhoso, ganancioso, ambicioso; ex-padre (Frei Ângelo de Luca), religioso traidor de sua fé.

Enredo

A ação passa-se na primeira metade do século XVII, iniciando-se em 1604. Por meio do flashback, o narrador, ao apresentar o fidalgo D. Antônio Mariz, recua até à fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1567, por Mem de Sá, da qual o pai de Ceci teria participado, combatendo os índios inamistosos e os invasores franceses. Após o desastre português nas areias do Marrocos, em Alcácer Quibir, em 1578, e o subseqüente domínio espanhol, em 1580, D. Antônio Mariz decide-se a permanecer no Brasil, para não submeter ao governo filipino. Decide estabelecer-se na sesmaria que lhe fora concedida por Mem de Sá, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Coroa Portuguesa. Em 1593, começa a construir uma habitação provisória, até que artesãos do reino edificassem e decorassem o misto de fortaleza, castelo e vivenda, em que se estabeleceu definitivamente com sua família, cavaleiros, agregados, aventureiros etc. Assim como o Frei Antão, protagonista das Sextilhas, de Gonçalves Dias, D. Antônio quer manter na Colônia a integridade do Império Português.

O espaço é o planalto fluminense, a Serra dos Órgãos, às margens do rio Paquequer, afluente do rio Paraíba. A ação principia e termina tendo o cenário o Paquequer; imagem primeira - primordial, plena e pura - que se associa à figura nuclear do protagonista, Peri: "filho(s) indômito(s) desta pátria de liberdade", mas também "vassalo(s) e tributário(s)": o índio, de sua"senhora", Cecília Mariz; o rio, "desse rei das águas", o Paraíba.

D. Antônio Mariz, fidalgo da mais pura estirpe, leva adiante no Brasil uma colonização dentro do mais rigoroso espírito de obediência à sua pátria. Sua casa forte, às margens do rio Paquequer, edificada como verdadeiro castelo medieval, abriga, dentro de um código cavaleiresco semelhante à suserania e vassalagem medievais, ilustres portugueses, afinados ao mesmo espírito patriótico e colonizador. Entre esses cavaleiros e fidalgos insinuam-se aventureiros, mercenários em busca de ouro e prata, liderados por Loredano (ex-frei Ângelo di Lucca), que assassinara um homem desarmado para obter o mapa das famosas minas de prata. Valendo-se da ingênua cordialidade de D. Antônio Mariz, Loredano trama a destruição da nobre família do fidalgo e de seus ilustres agregados. Trama também o rapto de Cecília, filha de D. Antônio. Mas os planos de Loredano esbarram na vigilância constante de Peri, índio da tribo dos goitacás, que, tendo salvo Cecília de uma avalanche de pedras, obteve a mais alta gratidão de D. Antônio Mariz e a amizade de Cecília, que o trata como a um irmão.

A narrativa inicia seus momentos épicos logo após o incidente em que Diogo, filho de D. Antônio, inadvertidamente, mata uma indiazinha aimoré, durante uma caçada. Indignados, os aimorés procuram vingança: surpreendidos por Peri, enquanto espreitavam o banho de Ceci, para logo após assassiná-la, dois aimorés caem transpassados por certeiras flechas; o fato é relatado à tribo aimoré por uma índia que conseguira ver o ocorrido. A luta que irá se travar não diminui a ambição de Loredano, que continua a tramar a destruição de todos os que não o acompanhem. pela bravura demonstrada do homem português, têm importância ainda duas personagens: Álvaro, jovem enamorado de Ceci e não retribuído nesse amor, senão numa fraterna simpatia; Aires Gomes, espécie de comandante de armas, leal defensor da casa de D. Antônio. Durante todos os momentos da luta, Peri, vigilante, não desgruda dos passos de Loredano, frustrando todas as suas tentativas de traição ou de rapto de Ceci. Muito mais numerosos, os aimorés vão ganhando a luta passa a passo. Num momento dos mais heróicos, Peri, conhecendo que estavam quase perdidos, tenta uma solução tipicamente indígena: tomando veneno, pois sabe que os aimorés são antropófagos, desce as montanha e vai lutar "in loco" contra os aimorés: sabe que, morrendo, seria sua carne devorada pelos antropófagos e aí estaria a salvação da casa de D. Antônio: eles morreriam, pois seu organismo já estaria todo envenenado. Depois de encarniçada luta, na qual morreram muitos inimigos, Peri é subjugado e, já sem forças, espera, armado, o sacrifício que lhe irão imprimir. Álvaro (a esta altura enamorado de Isabel, irmã adotiva de Cecília) consegue heroicamente salvar Peri. Peri volta e diz a Ceci que havia tomado veneno. Ante o desespero da moça com essa revelação, Peri volta à floresta em busca de um antídoto, espécie de erva que neutraliza o poder letal do veneno. De volta, traz o cadáver de Álvaro, morto em combate com os aimorés. Dá-se então o momento trágico da narrativa: Isabel, inconformada com a desgraça ocorrida ao amado, suicida-se sobre seu corpo.

Loredano continua agindo. Crendo-se completamente seguro, trama agora a morte de D. Antônio e parte para a ação. Quando menos supõe, é preso e condenado a morrer na fogueira, como traidor. O cerco dos selvagens é cada vez maior. Peri, a pedido do pai de Cecília, se faz cristão, única maneira possível para que D. Antônio concordasse na fuga dos dois, os únicos que se poderiam salvar. Descendo por uma corda através do abismo, carregando Cecília entorpecida pelo vinho que o pai lhe dera para que dormisse, Peri consegue afinal chegar ao rio Paquequer. Numa frágil canoa vai descendo o rio abaixo, até que ouve o grande estampido provocado por D. Antônio, que, vendo entrarem os aimorés em sua fortaleza, ateia fogo aos barris de pólvora, destruindo índios e portugueses. Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempestade. Cecília acorda e Peri relata-lhe o sucedido. Transtornada, a moça se vê sozinha no mundo. Prefere não mais voltar ao Rio de Janeiro, para onde iria. Prefere ficar com Peri, morando nas selvas. A tempestade faz as águas subirem ainda mais. por segurança, Peri sobe ao alto de uma palmeira, protegendo fielmente a moça. Como as águas fossem subindo perigosamente, Peri, com força descomunal, arranca a palmeira do solo, improvisando uma canoa. O romance termina com a palmeira perdendo-se no horizonte, não sem antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas do romance, uma bela união amorosa, semente de onde brotaria mais tarde a raça brasileira...

"O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte..."

As partes estruturais da narrativa - As quatro partes do romance compõem três que podem ser identificados com a distribuição ortodoxa da narrativa em: princípio, clímax e desfecho.

Cenário - A Natureza e a Cultura - Suserania e Vassalagem

O 1º movimento introduz o cenário e as personagens e caracteriza-se pela ausência de conflitos, pela harmonia entre o pólo da Natureza e pólo da Cultura, entre sujeitos e objetos. Há coordenação, complementação e harmonia. Descreve-se seqüencialmente um cenário de montanhas e rios no interior fluminense, os aspectos exteriores do "castelo / fortaleza / casa" de D. Antônio Mariz, e, logo a seguir, os interiores da construção, enfatizando uma antropomorfização da natureza e uma naturalização do homem, de forma que nessas três descrições o natural e o cultural constituam um cenário edênico, paradisíaco, no qual a natureza é a casa do homem, a casa é uma extensão da natureza e o homem opera a união das duas.

"Assim, a escada de lajedo é construída metade pela natureza e metade pela arte”, pois nessa paisagem a “indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar os meios de segurança e defesa". A integração é completa: "havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza, rica, vigorosa e explêndida, que o vista abraçava do alto do rochedo"; nos aposentos de Ceci "parecia que a natureza havia se feito menina", e seu quarto, decorado com aves, animais e pedras preciosas, é apresentado como“ninho da inocência" ou "como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava".

Exemplos dessa integração harmônica entre natureza e cultura podem ser fartarnente rastreados até o capitulo VIII. Esse clima edênico, paradisíaco está sugerido no brasão da família Mariz, no qual os três reinos, o vegetal, o mineral e o animal, estão enlaçados, numa clara simbologia ou, ainda, quando na descrição da missa rezada por D. Antônio diante de sua Família, a natureza é tomada como uma catedral aberta, imagem ao gosto da mais genuína tradição romântica: Chateaubriand, Lamartine, Garrett, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, para ficarmos nos exemplos mais próximos da tradição romântica luso-brasileira. Nessa missa, não apenas o homem, mas “a natureza se ajoelha aos pés doCriador para murmurar a prece da noite!, "uma prece meio cristã, meio selvagem", vale dizer, uma oração que integra o cultural ao natural.

A ideologia romântico medieval que embasa O Guarani toma a composição piramidal da sociedade, dividida em "senhor" e "servos", em "suserano" e "vassalos", e em "soberano" e "súdito", como princípio natural da ordem e da paz. D. Antônio Mariz exerce em seus domínios o direito natural, conforme concebido na Idade Média, a partir da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino. O chefe praticava tanto a lei natural quanto a lei humana. Para Santo Tomás de Aquino, a lei natural é o ato da razão e vontade de Deus, que prescreve a observância da origem moral, proíbe a violação e que se manifesta às criaturas na luz natural da razão; e a lei humana é um preceito da razão ordenado para o bem da sociedade, emanado da autoridade competente e por ela promulgado (Suma Teológica, XCIV, 1 e XCVI, 4). D. Antônio Mariz tipifica o exercício das duas leis, como um senhor feudal que associa o poder humano e espiritual, sendo guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo: "Assim vivia, e no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, com seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas."

A ideologia romântico-medieval que ilustramos até aqui com exemplos do romance é justificada por uma espécie de “modelo natural” que envolve o cenário e as personagens desde a primeira página. Aí, como já referido, a descrição entre o rio Paquequer e o Paraíba é assim descrita: "dir-se- ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro com os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática: suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso sofre o látego do senhor."

Essa descrição inicial vale como índice não só da estrutura feudal dentro da sociedade chefiada por D. Antônio, mas também da situação inicial de Peri diante de Ceci. O índio guarani (goitacá) chama a fidalga portuguesa de Iara, que significa Senhora, e aparece referenciado várias vezes como escravo submisso, diante da mulher que ele adora com fervor religioso, como um devoto diante de Nossa Senhora, ela Virgem Maria, de que já ouvira falar na educação mariana dos jesuítas, com a qual teve um ligeiro contato. Ao final, senhora e escravo serão descritos como irmã e irmão, sugerindo uma integração total dos elementos, de acordo, com a ideologia do autor, que agora vai afirmar a supremacia da Natureza sobre a Cultura, pois só com a integração total na natureza poderia haver paz.

Conflitos - Natureza e Cultura - Os bons e os maus

O 2º Movimento é o em que os conflitos começam a se delinear, as personagens vão entrando em choque até a quase destruição de todos eles.

O código dramático, a ação conflitual instaura-se quando elementos conflitantes começam a emergir dentro de um clima harmonioso que marca o início do romance e que ocultava os conflitos latentes entre o natural e o cultural e as oposições internas dentro de cada conjunto.

Assim, há dois eixos fundamentais e, em torno deles, desdobram-se todas as relações conflituais:

1º - Natureza x Cultura

2º - Os Bons x Os Maus

Formam-se assim quatro subconjuntos:

1. Os bons da natureza - Peri e os índios da tribo goitacá, pertencente à nação guarani, dóceis, nobres, leais, tomados dentro de uma perspectiva sempre positiva.

2. Os maus da natureza - os índios aimorés, antropófagos, descritos com "fisionomias sinistras, nas quais as braveza, ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana".

3. Os bons da cultura - D. Antônio Mariz, sua família, especilamente Cecília e, pouco abaixo, Diogo, o filho desastrado; D. Lauriana, a esposa paulista orgulhosa, preconceituosa; Isabel, a suposta filha natural do fidalgo com uma índia, que ele não perfilhou, mas assumiu discretamente como filha adotiva. Seguem-se o cavalheiro Álvaro, corajoso, cortês, dentro do mais restrito figurino das novelas medievais e o escudeiro de D. Antônio, Aires Gomes, espécie de chefe-de-armas do fidalgo.

4. Os maus da cultura - capitaneados pelo vilão, assassino e traidor Loredano, ex-frei Ãngelo di Lucca, que de posse do roteiro das minas de prata descobertas por Ribeiro Dias, no interior da Bahia, pretende vender o seu segredo ao Rei de Espanha, enriquecer e, ainda, destruir D. Antônio Mariz e sua família, raptar e possuir sexualmente, pela força, se necessário, a casta filha loira de olhos azuis do fidalgo. Seguem-se-lhe os demais aventureiros: Rui Soeiro e Bento Simões, entre os mais ativos.

Os elementos negativos e positivos da cultura e da natureza acabam polarizando-se em relações opositivas, regidas por um sentido geral de simetria, cuja bilateralidade vai compondo módulos narrativos que mantêm uma perfeita proporcionalidade.

A partir do segundo capítulo, Alencar começa a desdobrar os sujeitos em pares opostos, repetindo um modo dual de oposição, seja segundo a raça, a moral, a nacionalidade, a religião, os costumes e os sentimentos.

D. Antônio Mariz, fidalgo português, e sua esposa, D. Lauriana, paulista, não fidalga.

Cecília, filha legítima, loira de olhos azuis, e sua irmã por adoção, Isabel, filha natural "dos amores do fidalgo por uma índia", morena de cabelos e olhos escuros.

Álvaro, cavalheiro gentil, de fala cortês e bem cuidada, pretendente à mão de Cecília, Loredano, bandido e assassino, de fala italianada, recheada de lugares-comuns, que pretende raptar Cecília e destruir seu pai.

Álvaro e Loredano - O mocinho e o Bandido

Personagens antagônicos, esse antagonismo é referenciado pela própria natureza que os envolve. No primeiro lance do capítulo III, os encontramos caminhando paralelamente, junto ao rio Paraíba, numa conversa também paralela, em diálogo que não se entrelaça, e mais parece um duelo verbal:

"Uma dessas ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral."

De maneira concisa, a descrição começa a talhar a personagem que exerce a função de autoridade na tropa, ressaltando as qualidades positivas na aparência e na maneira nobre como domina a sua montaria. A gentileza do exercício do mando emerge com a frase alegre de Álvaro:

"— Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas umas quatro léguas!"

A voz do cavalheiro abre um diálogo tenso, através do qual Alencar, também hábil dramaturgo, constrói pela alternância das falas as personalidades antagônicas de Álvaro e de Loredano, definindo seus sentimentos e perfis morais: o bom-mocismo do primeiro e a mordacidade do segundo:

"Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura e, avançando algumas braças, colocou-se ao lado do moço.

— Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.

— Decerto, Sr. Loredano: nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar.

— Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animais.

— Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Álvaro com um movimento de enfado.

— Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.

Álvaro corou.

— Não vejo em que isto vos cause reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.

— Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.

Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeu:

— Ora, Deus, Sr. Loredano; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.

— Assim deve ser. Diz a escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.

— Oh! temos anexim! Aposto que aprendestes isto agora em São Sebastião; foi alguma velha beata, ou algum licenciado em Cânones que vos ensinou? disse o cavalheiro gracejando.

— Nem um nem outro, sr. cavalheiro, foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custoso brocados e lindas arrecadas de perólas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama.

Álvaro enrubesceu pela terceira vez.

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— Excelente. Vede, vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que nionguém percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu: disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.

— Contai-nos isto, há de ser curioso.

— Ao contrário, é o mais natural possível: um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite às luz das estrelas... Pode haver coisa mais simples?

Álvaro empalideceu eu desta vez.

— Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?

— Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.

— está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o ofício de espião.

Álvaro intervém com afirmações diretas e recusa-se a conversar "com meias palavras", apresentando sua opção pela franqueza, seu apreço à verdade e sua prática obediente e leal a Dom Antônio Mariz. Este é evocado para demarcar o universo do bem e para construir e legitimar autoridade do jovem sobre a tropa. Assim, ao enfrentar as insinuações de Loredano com recursos próprios à fidalguia, Álvaro revela não dispor de armas adequadas para tratar com a baixeza. Com esses traços, o narrador desenha o moço virtuoso que habita o reino da inocência e deste extrai um amor casto, trazendo mais um fio para o tecido romanesco. O moço sente-se surpreendido, pois seu interlocutor alude a um sentimento que ele julgava oculto. O traço ingênuo da personagem manifesta-se no seu constrangimento não só por titubear para responder ao tropeiro, mas sobretudo pelas anotações do narrador ao registrar que o moço três vezes enrubesce e finalmente empalidece.

Desta forma, Alencar põe em cena um preposto do Dom Antônio Mariz que conquista essa condição por sua conduta de lealdade e generosidade. A narrativa confirmará o caráter virtuoso e ingênuo de Álvaro provendo para ele ações que lhe permitam explicitar suas qualidades. O moço que apanha a flor e suspira será reencontrado quando deposita um presente na janela de Ceci ou quando a ela dirige a palavra de maneira tímida e respeitosa. A lealdade ao fidalgo será reiterada quando se compromete a casar-se com sua filha, renunciando a realizar sua paixão por Isabel, ou ainda por atirar-se à morte numa batalha. Tudo se dá como convém a um cavalheiro a quem o narrador não destina a princesa ou a um jovem a quem Alencar não atribuiu participação decisiva ao processo de configuração do país.

A esta figura contrapõe-se Loredano. Suas intervenções no diálogo são construídas por dois recursos fundamentais: a frase formulada de modo alusivo e o tom irônico. Considerando apenas sua fala, o leitor já percebe que falta grandeza a este homem para enfrentar a situação de conflito, pois ele opta pelas "meias palavras" e revela que seus conhecimentos sobre Álvaro decorrem da atitude de espreita. Mas fundamental para dar a esta personagem o talhe de grande vilão são os comentários do narrador:

"Decididamente o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto no tom mais natural do mundo.

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Nestas condições, o italiano lançava sobre ele um olhar a fundo, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo.

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pela chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa eram os principais traços deste aventureiro.

Ele é pródigo em adjetivos para qualificar o tropeiro como encarnação do vício e revela as paixões vis que lhe dão a estatura de agente do mundo demoníaco tão necessário para viabilizar o conflito da estória romanesca. A voz narrativa intercala-se com as frases de Loredano e descreve seu comportamento, realizando um movimento eficaz para anunciar que ele se constitui pela fraude. O narrador segue de perto a personagem e indica-lhe o modo de proceder pautado por disfarces e saudações. Assim, o leitor vê que "a expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita"; que "o sarcástico italiano, com seu espírito mordaz", destilava sua malícia "no tom mais natural do mundo"; no tom mais natural do mundo"; que se apresenta "com uma ingenuidade simulada".

Cecília e Isabel - A Loira e a Morena — A "Mulher-Anjo" e a "Mulher-Demônio"

O narrador retoma o mesmo recurso do contraste que utilizou para caracterizar Álvaro e Loredano; a virgem loira é descrita em um longo trecho, que integra a roupa, a moral, a fisionomia e o ambiente para em que imagens elevadas, de nítido gosto romântico, compor a personalidade de Ceci, aproximada das flores, dos pássaros e da idéia de inefável, gracioso, infantil e angelical.

Isabel tem sua beleza caracterizada como "o tipo brasileiro", revestido de languidez, malícia, indolência e vivacidade, um tipo bem mais terreno, com seus traços humanos mais vincados, os "cabelos pretos", os "lábios desdenhosos", em três parágrafos curtos e precisos:

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível.

Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede, e não pode furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito, passou pelo seu rosto mas esvaeceu-se logo.

A imagem sensual enfatiza o "poder de sedução irresistível", capaz não só de despertar sentimentos indignos, mas de portá-los também, como a insinuada sombra de despeito pela beleza e "superioridade" de Ceci.

Alencar colhe a mestiça em situação de precário equilíbrio entre a marginalização, imposta a ela pela dona da casa, e a integração a família, sugerida nos cuidados discretos do fidalgo a ela dispensados e claramente explicitada por Ceci, quando esta lhe propõe tratá-la por irmã. O favor, travestido de afeto, revela-se no testamento de Dom Antônio Mariz. A condição de filha natural pode ser tolerada na casa, mas o acesso ao nome da família lhe é vedado. Ela não pode sonhar com o príncipe encantado ao seduzir Álvaro, transformando o compromisso do moço com Ceci em obrigação e não mais ato de devoção, Isabel conquista o direito de encontrá-lo no céu, longe das normas e dos corpos.

A morte como expiação dos pecados dos amantes e os arquétipos românticos da mulher-anjo e da mulher-demônio dois elementos modulares da narrativa folhetinesca, que Alencar cumpriu à risca.

Na longa caracterização de Cecília que se vai ler, o narrador esmera-se nas comparações sugestivas, mobilizando recursos para traduzir a impossibilidade de descrever precisamente tanta graça e beleza: diminutivos, adjetivos, expressões como "pareciam", "uma espécie de", "um quer que seja de", e comparações que aproximam a graça ao pequeno e delicado, e a suavidade ao ingênuo e simples. As cores predominantes, branco e azul, mesclam-se ao louro e rosa.

Fusão de fada, menina e mulher, a ambigüidade aparece entre atitudes de menina e devaneios de moça.

À languidez do corpo motivada pelo encantamento amoroso vivido no sonho segue-se a criança contrariada a bater o "pezinho", porque em vez de "lindo cavalheiro" via um "selvagem". A imagem onírica perturba o corpo da menina imprimindo nele movimento de mulher, que leva a personagem a aparecer ‘"toda trêmula", "com o seio palpitante substituindo o contentamento pela tristeza. Ela mesma, usando a mediação da contrariedade, localiza a origem da melancolia na distância entre cavalheiro e selvagem. Já desperta, ela confessa seu sentimentoo a Isabel e esta também o vincula ao índio, mas através de outras mediações. As diferenças na interpretação da tristeza reapresentam, sob outro ângulo, a oposição entre a loura e a morena, contrapondo a inocência de um sonho de amor impossível, de "algum desses mitos de um coração de moça" à experiência cotidiana de lsabel, que vive na escala intermediária entre o branco, que domina e o selvagem escravizado.

A apresentação das duas personagens se dá através do emprego de diferentes procedimentos para descrever cada urna delas e da justaposição de uma cena de diálogo à narração de um sonho. Esta montagem deve alertar o leitor para tentar reconhecer a elaboração particular que Alencar dá ao cânon romântico de contrapor a loura casta à morena demoníaca.

Concluindo, O Guarani é inegavelmente belo, válido como obra de arte. A narrativa parte do lendário, mas segue uma racionalização gradual, com ações rigorosamente distribuídas por capítulos que levam a uma concepção harmônica da história e à consonância com os manifestos ideais de afirmação do jovem país.

Fonte:

José Faria Nunes (Um Rosto Miscigenado)

Imagem de Gilberto Queiroz
Na rua nem cortejo havia. O caixão barato, doação de uma instituição de caridade, era conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas que levavam o corpo.

Estivessem em campanha eleitoral o séquito chamaria a atenção de populares, atraídos por figuras da política à cata de simpatia para investimento nas urnas. Teatro de humildade, benevolência, humanidade, máscara comum de semelhantes tempos. A pessoa do esquife seria, no mínimo, reverenciada ainda que nem família tivesse. Pose pública na busca da notória atenção dos nem sempre incautos eleitores.

Em não estando em campanhas eleitoreiras, digo eleitorais, exceto a espontânea curiosidade de um ou outro garoto por onde seguia, ninguém nada perguntava. Ninguém se preocupava em saber de quem era o corpo, que só não fora deixado para decomposição natural em algum terreno baldio ou enterrado em algum fundo de quintal por razões óbvias: para não incomodar pelo cheiro nauseativo que por certo exalaria ou porque havia proibição legal para enterros em locais não autorizados. O cemitério, ainda que distante (do outro lado da cidade) era um mal necessário. Enterro em cova rasa, sem alvenaria nem obra de arte. Túmulos em mármore ou granito, só para pessoas de posse, que deixam herança, ou tenham merecido o respeito público local. E aquele não era o caso.

Ninguém sabia quem era, de onde viera. Até parece ter chegado ali só para morrer. O médico chamado para emissão do laudo cadavérico nem ver o corpo foi. Assinou o documento em do único estabelecimento comercial do bairro. Um misto de boteco, frutaria e armazém de secos e molhados.

Cortejo sem pompa, sem glória, só não ignorado de ter existido porque ali estava o corpo. Prova de que um dia, em algum lugar, alguma mulher teria dado à luz um filho. Ainda que sem a consciência de que um dia ele viveria como mendigo, morreria como um ninguém, seria enterrado como indigente. Sem lenço, sem documento, sem choro, sem vela.

E pelas ruas periféricas da pequena cidade seguia o corpo no caixão barato, conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas.

No cemitério o caixão foi aberto apenas para cumprir uma tradição, visto que ninguém ali estava por amor a um ser humano que perdera a vida, mas apenas por desencargo de consciência. Ainda havia alguém que ainda tinha consciência de que o homem, imagem e semelhança de Deus, ainda que ignorado pela vida, na morte teria que ter a reverência mínima de receber um enterro ainda que sem quaisquer formalidades. Não se poderia deixar um corpo apodrecer ao deus-dará, sem ao menos uma cova onde seus ossos pudessem ficar reunidos. A menos que o cemitério venha a encher tanto que não tenha lugar para o enterro de mais ninguém. Aí então restos mortais de pessoas ignoradas, desconhecidas, indigentes poderão ser removidos para covas coletivas para reserva de seus lugares para novos sepultamentos. Por certo nenhum local é seguro para a insegurança das vítimas da indiferença humana (humana?) da sociedade do ter. O ser, se não acompanhado do ter, apenas em dimensão que nos foge à compreensão terá o mérito de ter existido. Será que terá?

Aberto o caixão chamou a atenção dos circunspetos presentes o defeito físico da mão e antebraço direitos do corpo em desajeitada posição, cruzados sobre o peito do cadáver de aparência sexagenária. Cabelos poucos a ornamentar uma careca sobreposta a um rosto miscigenado. Herança de uma sonhada democracia racial que ainda inexiste no país, onde a corrupção, o crime organizado, os desmandos, o autoritarismo, a ganância e a hipocrisia insistem em manchar a grandeza de uma nação privilegiada pela generosidade da natureza. Aqui entre os trigais o joio se propaga, um joio de agentes ativos e passivos da especulação e da exploração do homem pelo homem, céticos de que cada um acabará por se tornar vítima de si mesmo, de suas próprias armadilhas.

Fechou-se o caixão e nem os três costumeiros punhados de terra sobre ele foram jogados. Para o agrado dos coveiros, ninguém ali ficou para lhes perturbar o trabalho, costumeiramente empertigado pelas presenças incomodativas próprias de enterro de pessoas, cuja notoriedade foram objeto em vida, ainda que apenas pelos cifrões.

Todos se foram, pois a vida haveria de continuar, até que algum dia em alguma estação o trem da existência tivesse que parar para uma breve reflexão sobre a própria vida. Ainda que poucos para isso tenham tempo.

No cemitério os coveiros perceberam que o relógio os liberava para o merecido descanso. Afinal a noite se aproximava com sua boca enorme para engolir a cidade e seu povo. Sobre a cova, um poodle que um dia teria sido preto, então grisalho como seu amo, aconchegara-se sobre o monturo de terra fresca na ala de sepultamento de indigentes.

Em algum lugar do planeta, duas filhas interrogam pelo destino do pai, há uma década desaparecido.
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Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.4

Fonte:
Colaboração de José Faria Nunes

Ademar Macedo (Homenagem ao Trabalhador)


Parabéns a você trabalhador,
empregada doméstica e diarista,
pedreiro, servente, e soldador,
a dona de casa e ao frentista;
o guarda noturno, o jardineiro,
a linda aeromoça e o coveiro,
o piloto e o cardiologista;
arquiteto, gari e contador,
manicure, palhaço e professor,
ao bombeiro, camelô, e taxista.

Parabéns a você telefonista,
ao alfaiate e ao cabeleireiro,
secretária, garçom e motorista,
segurança, pintor e sapateiro;
ao recepcionista e operário,
padeiro, bóia fria e ao bancário,
cirurgião, vigia e a parteira;
aposentado, chaveiro e corretor,
advogado, juiz e promotor,
policial militar e enfermeira.

Meus parabéns a você engomadeira,
ao funcionário público e zelador,
ao officce boy e camareira,
eletrotécnico, salva vida e cobrador.
parabéns ao herói caminhoneiro,
tratorista, flanelinha e carroceiro,
vereador, deputado e merendeira,
músico, florista e ao barbeiro,
trapezista, babá e ao porteiro,
ambulante, empresário e lavadeira.

Parabéns a você que é faxineira,
a governanta e ao eletricista,
agricultor, mecânico, e a copeira,
comerciante, atendente e ao dentista.
fotógrafo, gerente e comerciário
jogador, feirante e veterinário
ao sanfoneiro, soldado e escritor,
vaqueiro, locutor e jornalista;
parabéns à você radialista
e ao Violeiro, Poeta e Trovador!!!
--
Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXIV - O Macaco, a Onça e o Veado


Uma vez uma onça convidou um veado para ir com ela à casa dum compadre. Foram. Como houvesse no caminho um ribeirão a atravessar, a onça enganou o veado, dizendo que não tivesse medo, pois era água rasinha. O veado meteu-se no ribeirão e quase se afogou.

Seguiram. Vendo umas bananeiras logo adiante, a onça propôs:

— Amigo veado, vamos comer bananas. Você sobe e pega as verdes, que são as melhores, e me atira as amarelas, que não valem nada.

O veado subiu, jogou as amarelas para a onça e ficou com as verdes, que não pôde comer. Desceu coro o estômago no fundo, enquanto a onça arrotava de gosto.

Seguiram. Adiante encontraram uns trabalhadores capinando a roca. A onça disse:

— Amigo veado, quem passa junto daqueles homens deve dizer: "Que o diabo os carregue!" É uma saudação que deixa os homens contentíssimos.

O bobo do veado foi e disse aos trabalhadores: "Que o diabo os carregue!" mas os homens, furiosos, soltaram-lhe os cachorros em cima e quase o pegaram. Já a onça ao passar por eles, o que disse foi: "Deus ajude a quem trabalha!" E os homens, muito satisfeitos com a frase, deixaram-na passar sossegadamente.

Adiante a onça viu uma cobrinha coral.

— Olhe, amigo veado, que lindo colar vermelho. Leve-o para pôr no pescoço de sua filha.

Assim que o veado foi pegar aquilo, a cobra deu-lhe um bote, que por um triz o não alcançou.

Finalmente chegaram à casa do compadre. Era quase noite, de modo que depois duma prosinha trataram de dormir. O veado armou uma rede a um canto e logo ferrou no sono. A onça, então, foi pé ante pé ao curral, comeu uma ovelha e trouxe uma cuia de sangue, que derramou em cima do veado. Depois deitou-se e dormiu regaladamente.

De manhã o compadre foi ao curral e percebeu que lhe haviam comido uma ovelha. Desconfiou logo da onça.

— Eu, comer sua ovelha, compadre?

Que idéia! Olhe como estou sem o menor sinal de sangue. Talvez fosse o veado... O compadre olhou para o veado e o viu todo sujo de sangue.

— Ah, ladrão! — e deu-lhe de cacete até matar.

A onça despediu-se do compadre e lá se foi, muito lampeira.

Dias depois convidou o macaco para outra visita ao compadre. O macaco aceitou. Foram. No ribeirão a onça veio com a mesma história:

— Passe sem medo, macaco. A água é rasinha.

Mas o macaco, que tinha sabido da história do veado, não foi na onda.

— Nada! — disse ele. — Passe você primeiro, para eu ver se a água é mesmo rasinha como diz — e a onça não teve remédio senão passar na frente.

Lá nas bananeiras o macaco subiu, mas comeu todas as amarelas e à onça só deu as verdes. Furiosa do logro, a onça foi pensando: "Ah, bicho duma figa! Eu ainda acabo lanhando esse lombo com as minhas unhas!"

Quando chegaram à roça dos trabalhadores, a onça avisou:

— Escute, macaco. A saudação que esses homens gostam é assim: "O diabo leve quem trabalha!" — mas ao passar por eles o macaco disse coisa diversa: "Deus ajude a quem trabalha!" — e os homens, deixaram-no passar.

Quando encontraram a cobrinha e a onça lembrou que era um ótimo colar para a mulher do macaco, este respondeu:

— Está me parecendo muito melhor para pulseira de uma filha de onça! — e não quis saber de pôr a mão na cobra.

Chegaram por fim à casa do compadre. Depois duma prosinha foram deitar-se. O macaco, sabidão, armou sua rede bem alto; deitou-se e fingiu dormir. A onça foi ao curral e comeu outra ovelha, vindo com a cuia de sangue lambuzar o macaco. Mas este arrumou com o pé na cuia, de modo que o sangue caiu em cima da onça.

Indo pela manhã ao curral, o compadre deu pela falta da ovelha.

— Que coisa esquisita! Sempre que a onça vem cá, desaparece-me uma ovelha...

È foi para casa, furioso da vida. Deu com a onça roncando — fingindo que dormia, mas lá do alto de sua rede o macaco apontava para ela, dizendo:

— Veja como está barreadinha de sangue.

— Desta vez me paga! — gritou o compadre, e apontando a espingarda, pum! — matou a onça.
================
— Nas histórias populares — disse dona Benta—o papel da onça é sempre desastroso. Personifica a força bruta, a traição, a crueldade. Os contadores vingam-se dela ser assim, fazendo-a perder todas as partidas.

— Está claro — disse Emília. — Não tinha graça nenhuma se a onça acabasse vencendo. Ela é bruta, é má, é cruel; logo, tem de ser castigada — pelo menos nas histórias.

— E o pobre veado? — lembrou Narizinho.

— Já ouvi várias histórias de veado e até tenho dó. Uns bobinhos completos. Não há nenhuma em que se atribua a menor inteligência aos veados. Acabam sempre comidos.

— Veado, ovelha e outros animais não passam de carne com quatro pés — disse Pedrinho.

— Inteligência não existe em suas cabecinhas, nem para lograr a onça, que é o mais estúpido dos animais. Eu até me rio quando ouço uma ovelha fazer: Bé! Que bichos bobos! Só servem mesmo para dar lã e costeletas.

— Isso não — protestou Emília. — Quando os homens querem um símbolo de meiguice, de que se lembram? Dos cordeirinhos. S. João andava com um no braço.

— Bom, S. João era um santo, era diferente dos outros homens. Quando esteve no deserto só passava a gafanhotos, coisa que ninguém come. Juro que não comeu o cordeirinho que trazia no braço. Mas o resto da humanidade, nem é bom falar! Elogiam os cordeirinhos, sim, senhor. "Que beleza! Que encanto!" — mas passam-lhes a faca no pescoço e comem-nos.

— Ué! — exclamou tia Nastácia. — Pois para que serve carneiro senão para ser comido? Deus fez os bichos cada um para uma coisa. A sina dos carneiros é a panela.

Emília danou.

— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. Facínora!...

— Emília, Emílial — ralhou dona Benta.

A boneca botou-lhe a língua.
–––––––––––––
Continua… XX – O Veado e o Sapo
–––––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

sábado, 30 de abril de 2011

Trova 195 - Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoana/RJ)

Colaboração do Autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 201)


Uma Trova Nacional

A crise nos invadiu...
pindaíba nacional:
não sei se o real caiu
ou se eu "caí na real"...
–SELMA PATTI SPINELLI/SP–

Uma Trova Potiguar

Galo bom de galinheiro
e pegador de galinha,
quando disputa um terreiro
muitas vezes dá murrinha.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

1994 - Nova Friburgo/RJ
Tema: “LIVRE” - M/H

Fazer prédio? Desperdício!
Diz o caipira a sorrir:
– Se em baixo diz: “Edifício”,
como é que se vai subir?
–NEIDE ROCHA PORTUGAL/PR–

...E Suas Trovas Ficaram

Ante a noiva bem nutrida,
o cinquentão ficou louco:
– Ela só pensa em comida
e cinquentão come pouco...
–MÍLTON NUNES LOUREIRO/RJ–

Simplesmente Poesia


MOTE:
O filho toma apracur,
a mãe toma novalgina.

GLOSA:
Ele liga o abajour
pra que na cama se aqueça.
E, para a dor de cabeça
O filho toma apracur,
analgésico hor-concour,
recurso da medicina,
qualquer balconista ensina
e vende sem empecilho.
Contrariando seu filho,
a mãe toma novalgina.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Estrofe do Dia

Um candidato a prefeito
falando aos aduladores
distante dos eleitores:
vamos ganhar esse pleito!
Sou cidadão de conceito
só eu levo essa parada,
porém o que mais me agrada
nesta tremenda disputa
é ter um ano de luta
e quatro sem fazer nada.
-VICENTE GONÇALVES/PB-

Soneto do Dia

–BELMIRO BRAGA/MG–
Propaganda Eleitoral

Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extra-chapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira.
vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes... que ficar calado.

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal, representante,
agora aspiro a ser como escrivão;

E, eleito, espero, mas que maravilha!
Ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não..

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

Trovadores da Seção Bragança Paulista da UBT (Amor é...) Primeira Parte


Há muito tempo morri,
morri, amor, de saudade;
no dia em que te perdi,
foi que morri de verdade.
Adalzira Bittencourt (Céu)

Quem tem alma de poeta,
em geral é um trovador,
que na vida tem por meta
semear somente o Amor!
Amilton Maciel Monteiro (S. José dos Campos)

Amar é meu lema de vida;
viver, meu lema de amor.
Quem ama jamais duvida
que será um vencedor.
Anna Servelhere (Bragança Paulista)
-------------------
Antonio Miguel Cestari (Bragança Paulista)

O brilho do teu olhar
refletiu nos olhos meus.
Início do caminhar
unidos no Amor de Deus.

Pense em Deus, maior Amor
que criou o universo,
na singeleza do verso
que inspira neste louvor.

Deixe logo esse terror!
É o que todo mundo diz.
Viva em paz, em pleno amor.
Tenha uma vida feliz!
-----------------------------

Cida Moreira (Bragança Paulista)

Seu amor - e sou feliz!-
é o meu maior presente
pois tudo que sempre quis
é só te amar, simplesmente.


No mistério desse olhar
naveguei a minha vida
como um barco em alto-mar
sem jamais achar guarida.
-----------------

Flávio Rodrigues (Bragança Paulista)

Mágoa é desgosto, amargura,
paixão, descontentamento,
desagrado, dó, tortura,
tristeza...enfim, sofrimento!

Helena Walderez Scanferla (Bragança Paulista)

Sim! Desde que a vida existe
aqui na face da Terra,
só o amor é que subsiste
na palavra que encerra.

Tantos amores na vida
eu já tive com alegria;
hoje, esta vida bandida
levou-me tudo o que eu tinha.

Henriette Effenberger (Bragança Paulista)

Na grandeza do universo,
enxergo os olhos de Deus.
Na pequenez de meu verso,
mergulham os olhos teus...

O periquito atrevido
adivinhou meu desejo:
beleza, grana e um marido
no toque do realejo.

Joarez de Oliveira Preto (Bragança Paulista)

Sentei-me ali na varanda,
esperando, pode crer,
sem saber por onde anda
meu amor, meu bem-querer.

Olho da porta de entrada,
vejo pássaros voando.
Vi o ônibus na estrada,
mas não vi você chegando.

O ramalhete de flores
que preparei pra te dar;
não esqueças, se tu fores
pretendendo retornar.

No meu castelo de sonhos,
de rosas brancas cercado,
vejo teu rosto risonho,
paz e bem no teu reinado.

Fonte:
Colaboração de Lola Prata com o livro "Amor é..." - Trovadores da Seção Bragança Paulista
da União Brasileira de Trovadores - UBT - Novembro de 2010
Imagem = http://andreiamartins.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXIII - O Macaco e o Aluá


Um macaco, uma vez quis fazer aluá, mas estando sem dinheiro para comprar milho...

Narizinho interrompeu-a:

— Que história de alua é essa?

— É uma petisqueira lá do Norte, que se faz de milho. Mas o macaco, que não tinha dinheiro para comprar milho, armou um plano. Foi à casa do galo, onde comprou um litro de milho para pagar em tal dia e tal hora. Foi à casa da raposa, onde comprou outro litro para pagar a tal dia e tal hora — e marcou uma hora,, meia hora depois da hora marcada para o galo. Depois foi à casa do cachorro, onde comprou outro litro de milho para pagar meia hora depois da hora marcada para o pagamento à raposa. E na casa da onça comprou outro litro de milho para pagar meia hora depois da hora marcada para o pagamento ao cachorro.

E muito contente da vida com os quatro litros de milho arranjados a crédito, o nosso macaquinho foi para casa fazer uma porção de alua, que guardou num pote. Depois armou um jirau bem alto e deitou-se em cima, de cabeça amarrada com um pano, como quem está com dor de dente.

Na hora do primeiro pagamento apareceu o galo.

— Então, que é isso macaco? Doente assim?

— Estou que não posso comigo de tanta dor de dente — respondeu o macaco. — Abanque-se e sirva-se do alua aí do pote.

O galo sentou-se e começou a servir-se do alua. Nisto apareceu lá no terreiro a raposa, que vinha cobrar o litro de milho vendido. O galo ficou com a crista branca de medo.

— Não se assuste, compadre — disse o macaco. — Esconda-se ali no cantinho.

O galo foi e escondeu-se. Entra a raposa. O macaco, depois de contar a sua doença, manda a raposa servir-se de alua.

— Coma, coma, comadre, que está ótimo. O compadre galo já se regalou.

— Quê? — exclamou a raposa. — O galo andou por aqui?

— Ali está ele! — disse o macaco, apontando para o cantinho onde o pobre galo se escondera.

E a raposa foi e comeu o galo. Nisto apontou no terreiro o cachorro. A raposa tremendo de medo, escondeu-se num canto. O cachorro entrou, muito amável.

— Pois é — disse o macaco — estou tão doente que nem posso descer da cama. Mas vá se servindo de alua, compadre cachorro. Está muito bom. A raposa comeu de lamber os beiços.

— Quê? A raposa esteve aqui?

— Não esteve, está! — respondeu o macaco, e apontou para o canto onde a pobre raposa se escondera.

E o cachorro foi e comeu a raposa. Nisto apontou a onça no terreiro. Entrou. Soube da doença do macaco, e também, a convite dele, se serviu do alua.

— Coma, comadre. O cachorro disse que está da pontinha.

— Quê? Esteve o cachorro por aqui? O macaco piscou, apontando o cantinho onde estava escondido o pobre cachorro e a onça foi e comeu o cachorro.

— Bem, macaco — disse ela depois da festança. — Vamos agora ajustar nossas contas. Quero receber o dinheiro do meu milho.

— É boa! — exclamou o macaco. — Pois então a comadre entra aqui, serve-se do meu alua, come um cachorro que tinha comido uma raposa que tinha comido um galo, e ainda tem coragem de querer receber o dinheiro dum litro de milho cheio de caruncho?

A onça, furiosa, deu um pulo para pegar o macaco; mas este saltou do jirau para cima duma árvore e ficou a rir-se da lograda.

— Deixe estar, macaco, que você me paga! — rosnou ela, e lá se foi ruminando a vingança. Chamou as outras onças e combinou que ficariam tomando conta do riozinho que havia ali, de maneira que o macaco não pudesse beber.

O macaco ficou atrapalhadíssimo. A sede veio, e sede é coisa que nenhum animal agüenta. Como fazer? Nisto viu uma cabaça de mel. Teve uma lembrança. Lambuzou-se de mel e rolou sobre um monte de folhas secas ficando transformado no Bicho-Folhagem, que ninguém sabia o que era. E lá se foi para o riozinho, beber água.

Bebeu, bebeu à vontade, bem na vista das onças, que olhavam para aquilo com rugas na testa. Depois de bem saciada a sede, sacudiu-se das folhas e dum pulo alcançou um galho de árvore, gritando para as onças desapontadíssimas: "Piticau! Piticau!..."

— Deixa estar que você me paga! — disse a onça, e pôs-se a imaginar outro meio de pegar o macaco. Abriu um grande buraco, entrou dentro e deitou-se de costas, ficando com a boca arreganhada, como armadilha; e pediu às outras que a cobrissem de folhas secas para que o macaco não desconfiasse.

O macaco veio vindo. Mas ao ver aqueles dentes arreganhados no meio das folhas secas, desconfiou.

— Chão com dentes? Está aqui uma coisa que nunca imaginei. Mas dente de chão há de gostar de comer pedra — e, zás! jogou uma grande pedra dentro da boca da onça.

A onça morreu engasgada e o macaco lá se foi, muito satisfeito da vida.
==============
— Ora até que enfim apareceu um macaco esperto! — exclamou Narizinho. — Esse era dos tais de circo, como dizem, mais matreiro que uma raposa.

— A história deve estar errada — disse Emília. — Em vez de macaco devia ser uma raposa. Só as raposas têm idéias assim. Mas gostei. Está bem arrumadinha. Grau dez.

— Notem — disse dona Benta — que a maioria das histórias revelam sempre uma coisa: o valor da esperteza. Seja o Pequeno Polegar, seja a raposa, seja um macaco como este do alua, o esperto sai sempre vencedor. A força bruta acaba perdendo — e isto é uma das lições da vida.

— Já observei esse ponto, vovó — disse Pedrinho. — Todas as histórias frisam uma coisa só — a luta entre a inteligência e a força bruta. A inteligência não tem muque, mas tem uma sagacidade que no fim derruba o muque.

— E a gente quer que seja assim — disse Emília. — Se vier um conto em que a força bruta derrota a inteligência, os ouvidores são até capazes de dar uma sova no contador.

— E a história perderia completamente a graça — disse Narizinho. — Que graça tem, por exemplo, que um touro vença uma lebre? Ne-nhumíssima. Mas quando uma lebre vence um touro, a gente, sem querer, goza.

— Por isso vivo eu dizendo que a esperteza é tudo na vida — gritou a boneca. — Se eu tivesse um filho, só lhe dava um conselho: Seja esperto, Emilinho!
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Continua… XIX – O Macaco, a Onça e o Veado
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Aparecido Raimundo de Souza. (O Sósia)


- Oi, Aninha, é você?

- Quem está falando?

- Sou eu, Rafael.

- Ummmmmm! Com essa voz?

- Qual é Aninha? Ta me estranhando?

- Claro que não.

- Então. Vamos sair?

- Calma. Muita hora nessa calma. É você mesmo?

- Três meses de namoro e ainda tem duvida amor?

- Você nunca me chamou de amor. Começa por ai...

- Por isso mesmo. Resolvi fazer a partir de agora tudo o que você gosta e lhe agrada.

- Nossa, que mudança repentina. E a que devo tal honra?

- Ao amor que sinto por você.

- Muito esquisito!

- O que é esquisito, amor?

- Sua mudança de comportamento sem mais nem menos. Quando o santo é demais a esmola desconfia.

- Bobagem, minha princesa. Alguém deve estar botando minhoca na sua cabeça.

- Ninguém bota nada na minha cabeça. Principalmente minhoca.

- Não é o que tem chegado aos meus ouvidos. Suas amigas...

-... Qual delas, exatamente?

- Eliza.

- O que tem contra ela?

- Eu, nada. Só não gosto do que fala a meu respeito.

- Aí é que está, meu caro. Ela não fala. Nem sabe que você existe.

- Não é o que chegou ao meu conhecimento.

- Chegou ao seu conhecimento? Por quem?

- Um passarinho cor de rosa cantou na minha janela.

- Passarinho? Não sabia que gostava.

- Não gosto. Você sabe disso. Escuta amor da minha vida: não acredito que vamos começar a brigar por pouca bobagem. Por favor, me poupe.

- Não é bobagem. A coisa é séria. Você liga pra minha casa, diz que é meu namorado e me pede para sair com você. Hoje em dia... Do jeito que as coisas andam. Sem falar nessa sua voz parecendo de taquara rachada...

- Para com isso, minha linda. Taquara rachada? De onde tirou essa comparação? Resolveu tirar o dia pra me sacanear. Ta legal conseguiu. Um a zero pra você. Agora posso passar ai e te pegar?

- Você não é o Rafael.

- Pelo amor de Deus, Aninha. Não é hora pra brincadeiras.

- Sua voz. Há algo de errado com ela.

- Meu Deus! O que há com a minha voz?

- Não é a do meu namorado.

- Estou rouco. Lembra que falei pra você que estava com uma tosse danada, o nariz escorrendo, garganta inflamada?

- Mas isso já faz bem uns quinze dias.

- Em que planeta você está, Aninha. Na ultima vez que nos encontramos ainda me pediu para parar de tomar banho frio.

- E quando foi?

- Quarta passada. Ou seja, uma semana hoje.

- E onde você se meteu desde a última vez em que nos encontramos?

- Viajando, amor. Você não sabe que eu vivo viajando?

- Pra onde mesmo?

- São Paulo.

- Ué! Você não me ligou ontem de Belo Horizonte?

- Sim, liguei, mas você sabe que não paro muito tempo num lugar só.

- Tudo bem. Deixo você vir me buscar...

-... Legal. Passo ai em meia hora. Esteja pronta.

- Calma, meu caro. Pra que a pressa? Devagar com o barro que o andor é de santo.

- Xiiiiii! Aninha não estou a fim de brincar. Tive uma semana chata.

- Não estou brincando. Falo sério.

- Então se apronta.

- Primeiro me prove que você é o Rafael.

- Tá legal. Você quer brincar? Pois bem. Vou entrar na sua.

- Pensei que já tivesse...

- Modo de falar.

- Pois bem. Você não é o Rafael.

- Sou.

- Vou te provar que não.

- Vou te provar que sim.

- Tente. Se realmente for, pode passar aqui e me buscar. Estarei pronta, a sua espera, cheia de amor e carinho pra dar.

- Aninha, não sei qual é a sua, ou o que andaram te falando. Mas tudo bem. Vou fazer seu jogo.

- Então vamos jogar. No final terá que ter me convencido de que realmente é o Rafael.

- Certo. Concordo. Provar que sou seu namorado é a coisa mais fácil deste mundo.

- Não é provar que é meu namorado. Vai ter que provar que é o Rafael.

- Que seja. A ordem dos fatores não altera o produto. Eu sempre digo essa frase. Está lembrada?

- Claro que estou.

- Então. Pode começar seu jogo.

- Na verdade, Rafael, ele já está em andamento. Agora você precisa de um fator mais sério e talvez o mais importante desta conversa toda: ser o ganhador.

– Não me faça rir, Aninha.

- Quem ri por melhor, ri por último.

- Engraçadinha.

- Onde foi nosso primeiro encontro?

- Em frente a farmácia do seu Alcides

- Essa foi fácil. O bairro inteiro sabe. Quem me apresentou a você?

- A sua amiga Heliodora.

- Barbada.

- Então. Posso ir até sua casa te buscar?

- Não me lembro de ter marcado nada com você.

Ademais hoje estou...

- Estudando para a prova de sábado. Viu? Sou eu ou não sou, Aninha.

- Que eu estou estudando pra prova toda galera que convive comigo também sabe. Até aquele cachorro sarnento que fica ali na esquina.

- Amor, qual é! Resolveu me tirar?

- Não, resolvi te tirar?

- Me tirar?

- Não. Eu disse te tirar.

- Como assim, me tirar? O que é me tirar?

- Não é me tirar, é te tirar.

- Diabo, Aninha e o que é me... Digo te tirar?

- Te tirar do meu caminho.

Fonte:
http://www.paralerepensar.com.br/aparecidoraimundo_osocia.htm

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 200)


Uma Trova Nacional

Após busca pertinaz,Alinhar ao centrodescobri, um dia, a esmo:
- Só hei de encontrar a paz
na renúncia de mim mesmo!
–LUIZ ANTONIO CARDOSO/SP–

Uma Trova Potiguar

Quando eu não fizer mais trova
numa noite enluarada,
podem cavar minha cova,
que estarei no fim da estrada!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova Premiada

1998 - Bandeirantes/PR
Tema: PODER - Venc.

Do poder tens o infinito,
à fortuna tens direito,
mas não sufoques o grito
do amor que vive em teu peito...
–MÍLTON NUNES LOUREIRO/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram

Os laços indestrutíveis,
que reúnem corações,
são, geralmente, invisíveis:
nascem só das emoções!
–MARIINHA MOTA/SP–

Simplesmente Poesia

–CARLOS DRUMMOND DE ANDRADEMG–
Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que
lindas,
essas ficarão.

Estrofe do Dia

Aqui por estas areias
Já correram muitos pés...
Estalaram muitos arcos,
Vibraram muitos borés...
Estes garbosos coqueiros
São fantasmas de guerreiros
Que o tempo não quis matar!
Estas palmeiras delgadas
São índias apaixonadas
Por homens brancos do mar!
–ROGACIANO LEITE/PE–

Soneto do Dia

–FRANCISCO MACEDO/RN–
Água

A vida nasceu fazendo parceria
com a água, e, dela fez-se dependente.
Ação, relação, no Meio Ambiente,
que canto e decanto na minha poesia.

Esta água que bebo também te sacia,
no rio que passa, veloz, transparente,
ou mesmo na fonte, tão doce e tão fria,
é a vida real, nesta vida da gente.

Presente de Deus, ele é minha, ela é sua...
Conserve-a, proteja-a, favor não polua,
nós temos desta água, três terços em nós.

Que seja meu verso o maior mutirão,
minha arma é meu “grito de alerta” e de ação,
e as balas que tenho é só minha voz!…

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Santana do Matos, município no estado do Rio Grande do Norte (Brasil), localizado na microrregião da Serra de Santana. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano 2007 sua população era estimada em 14.312 habitantes. Área territorial de 1.420 km².

No Município de Santana se encontram dois sítios arqueológicos registrados pelo IPHAN nos quais se preservam pinturas rupestres deixadas pelos habitantes da região (paleoameríndios) no período pré-colonial. Localizam-se a sudeste do Serrote dos Cablocos.

Características geográficas

Área 1.420,313 km²
População 14.312 hab. est. 2007
Densidade 12,1 hab./km²

O Município de Santana do Matos, foi fundado a partir de uma fazenda de nome Bom Bocadinho, de propriedade do português Manoel José de Matos, onde teve início um povoado com o nome de Santana do Pé da Serra e por ter sido iniciada nas proximidades de uma capela construída em homenagem a Nossa Senhora de Santana , o povoado passou posteriormente a ser chamado de Santana do Matos, num vínculo direto com a capela que lhe deu origem.

Com o desenvolvimento do povoado criou-se o distrito por alvará em 13 de agosto de 1831. Em virtude da resolução Provincial no 9 de 13 de outubro de 1836, foi criado o Município com a denominação de Santana do Matos, em território desmembrado do município de Açu. Mas, outra lei de 07 de março de 1853, extinguiu o município de Santana do Matos e tudo voltou na estaca zero, passando a ser dependente de Açu novamente.

Somente em 06 de agosto de 1855, depois de muitas lutas políticas aconteceu a Emancipação Política do nosso município através da lei no 314, oriunda do deputado Manoel de Melo Montenegro Pessoa, e sancionada pelo presidente da província Antônio Bernardo de Passos. A referida lei restaura definitivamente o município de Santana do Matos. E a partir de 05 de setembro de 1855 começa a funcionar a Câmara de vereadores de Santana do Matos, prova do governo próprio sem depender de qualquer outro município.

Limitando-se ao Norte com os municípios: Angicos, Itajá, Fernando Pedrosa; ao Sul com: São Vicente, Florânia, Tenente Laurentino Cruz, Lagoa Nova; ao Leste com: Bodó, Cerro-Corá; ao Oeste com: São Rafael e Jucurutu. Distante 218 km da capital do estado do Rio Grande do norte (Natal) e 190 km de Mossoró RN.

Ponto Turistico:

Sítios Arqueológicos
Santana do Matos é o município com o maior número de sítio arqueológicos registrados no nosso Estado. São mais de 80 sítios repletos de pinturas rupestres, feitas em sua maioria com ocre, uma argila de coloração avermelhada devido à presença de óxido de ferro. Outros resquícios da presença de povos pré-históricos na região são ossadas humanas e utensílios da pedra polida e lascada encontrados nestes sítios.

Os sítios arqueológicos estão espalhados por toda região de Santana do Matos. Alguns são de fácil acesso, podendo-se chegar de carro até o local. Outros estão localizados em lugares de mais difícil acesso. Para chegar até eles, é preciso percorrer um longo caminho a pé. Um destes sítios fica no alto da Serra do Basso, onde há uma loca repleta de pinturas rupestres.

A trilha que leva ao topo da serra é um atrativo à parte. É uma prazerosa caminhada passando por rios, plantações, casas típicas da zona rural e ainda por lajedos repletos de rochas arredondadas e com outros formatos curiosos. No alto da serra, o visual é de tirar o fôlego. Não é difícil encontrar no caminho lascas de sílex, um tipo de pedra cujos pedaços foram usados como ferramenta de corte pelos povos pré-históricos.

Fontes:
Colaboração de Ademar Macedo
Santana do Matos
http://wikimapia.org/7814002/pt/Santana-de-Matos-Rio-Grande-do-Norte-Brasil
http://www.vivaviver.com.br/viagens/rn_pre_historico_conheca_santana_do_matos/973/

Moacyr Scliar (A Volta do Filho Pródigo)


"Cerca de 30 mil crianças e adolescentes fogem todo ano no Brasil. Oitenta por cento voltam para casa. Dificuldades com a família e busca de independência são as causas mais freqüentes das fugas. A volta é acompanhada de arrependimento". Folhateen, 28.mar.2005

Meus pais não me compreendem, ele pensava sempre. As brigas, em casa, eram freqüentes. Os pais reclamavam do som muito alto, das roupas estranhas, das tatuagens. Revoltado, decidiu fugir de casa. Sabia que, para seus velhos, aquilo seria uma dura prova: afinal, ele era filho único. Mas estava na hora de mostrar que não era mais criança. Estava na hora de dar a eles uma lição. Botou algumas coisas na mochila e, uma madrugada, deixou o apartamento. Tomou um ônibus e foi para uma cidade distante, onde tinha amigos.

Ali ficou por vários meses. Não foi uma experiência gratificante, longe disso. Os amigos só o ajudaram na primeira semana. Depois disso ficou entregue à própria sorte. Teve de trabalhar como ajudante de cozinha, morava num barraco, foi assaltado várias vezes, até fome passou. Finalmente resolveu voltar. Mandou um e-mail, dizendo que estaria em casa daí a dois dias. E, lembrando que a mãe era uma grande leitora da Bíblia, assinou-se como "Filho Pródigo".

Chegou de noite, cansado, e foi direto para o prédio onde morava. Como já não tinha chave do apartamento, bateu à porta. E aí a surpresa, a terrível surpresa.
O homem que estava ali não era seu pai. Na verdade, ele nem sequer o conhecia. Mas o simpático senhor sabia quem era ele: você deve ser o Fábio, disse, e convidou-o a entrar. Explicou que tinha comprado o apartamento em uma imobiliária:

- Seus pais não moram mais aqui. Eles se separaram.

A causa da separação tinha sido exatamente a fuga do Fábio:

- Depois que você foi embora, eles começaram a brigar, um responsabilizando o outro por sua fuga. Terminaram se separando. Seu pai foi para o exterior. De sua mãe, não sei. Parece que também mudou de cidade, mas não sei qual.

Fábio não agüentou mais: caiu em prantos. O homem se aproximou dele, abraçou-o. Entre aqui no seu antigo quarto, disse, tenho uma coisa para lhe mostrar. Ainda soluçando, Fábio entrou. E ali estavam, claro, o pai e a mãe, ambos rindo e chorando ao mesmo tempo. Tinha sido tudo uma encenação. Abraçaram-se, Fábio jurando que nunca mais sairia de casa.

A verdade, porém, é que não gostou da brincadeira, mesmo que ela tenha lhe ensinado muita coisa. Os pais, ele acha, não podiam ter feito aquilo. Se fizeram, é por uma única razão: não o compreendem. Um dia, ele terá de sair de casa. Mais tarde, naturalmente, quando for homem, quando tiver sua própria casa. Só que aí levará os pais junto. Pais travessos como os que ele tem precisam ser controlados.

Fontes:
Escritores do Sul
Imagem = http://mqccpinhais.blogspot.com

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXII – O Macaco e o Coelho


Um macaco e um coelho fizeram a combinação de um matar as borboletas e outro matar as cobras. Logo depois o coelho dormiu. O macaco veio e puxou--lhe as orelhas.

— Que é isso? — gritou o coelho, acordando dum pulo.

O macaco deu uma risada.

— Ah, ah! Pensei que fossem duas borboletas...

O coelho danou com a brincadeira e disse lá consigo: "Espere que te curo."

Logo depois o macaco se sentou numa pedra para comer uma banana. O coelho veio por trás, com um pau, e lept! — pregou-lhe uma grande paulada no rabo.

O macaco deu um berro, pulando para cima duma árvore, a gemer.

— Desculpe, amigo — disse lá debaixo o coelho. — Vi aquele rabo torcidinho em cima da pedra e pensei que fosse cobra.

Foi desde aí que o coelho, de medo do macaco vingar-se, passou a morar em buracos.
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— Bravos! — exclamou Emília. — Gostei da historinha. Vale por todas as outras que tia Nastácia contou. Está bem engraçada. Viva o coelho!

— E também nesta o macaco sai levando na cabeça — observou Narizinho. — O coelho, que é um coitado, mostrou-se mais inteligente.

— Por que mais inteligente? — contestou o menino. — Mostrou-se, sim, mais mau, porque o macaco apenas lhe puxou as orelhas e ele moeu o rabo do macaco.

— A inteligência do coelho veio depois — disse Narizinho — quando tratou de morar em buraco para livrar-se da vingança do macaco.

— Pois é — observou Emília. — Apesar da sua fama de inteligente e esperto, e de avô do homem, o macaco, pelo menos nas histórias, nem sempre fica de cima.

— Vocês precisam ler — disse dona Benta — as histórias de macacos que Rudyard Kipling conta naquele livro de Mowgli, o Menino Lobo. Esses macacos de Kipling são os Bandarlogs, nome de certos macacos da Índia. Os outros animais os desprezam, por causa da sua leviandade, da sua falta de seriedade, das suas molecagens. São uns perfeitos louquinhos, os macacos.

— Até parecem homens — disse Emília, que fazia muito pouco caso nos homens.

— Macaco é bobo — disse tia Nastácia — mas às vezes acerta a mão e sai ganhando — como aquele que logrou a onça.

— Conte, conte, pediram os meninos.
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Continua… XXIII – O Macaco e o Aluá
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Lucia Constantino (Nossa Senhora dos Sonhos)


Maria,
Há quanto tempo olho as nuvens,
esperando ver-Te numa estrela despertada
em pleno dia.

Há quanto tempo
deixei de contar ao sol os meus sonhos
porque a chuva sempre me surpreende
a caminho do Teu olhar.

Há noites, Maria,
em que penso ouvir Tua voz
na harpa que o vento toca nas ramagens
e meus ouvidos assemelham-se à terra
aguardando a semente que gerará a primavera.

Maria, Maria....
um a um os anjos me dizem de Ti
quando mal distingo as luzes do dia
entre as brumas dos meus olhos.
Vejo-os brincarem ao nascer de cada dia,
vejo-os rolarem pela grama e latirem para mim
seu bom dia de amor.

Eles me dizem de Ti
em cada pétala que o vento leva,
em cada pássaro que me sorri
do beiral do mundo, me dizendo
estou aqui esperando a chuva passar
para cumprir a vida.

Maria,
Mãe de todas as cores
do arco-íris por onde caminham os sonhos,
da Tua luz sobre a noite mais brilhante,
doa-me o sentir cada novo dia
como aquela Tua Noite de Paz.

Batista de Lima (O Demolidor de Mitos)


A poesia do Poeta de Meia-Tigela se alicerça sobre os escombros da mitologia que lhe incutiram ao longo dos anos, mas que ele preferiu escarafunchar nesse seu mais recente livro. O livro tem como título "Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema". Ainda tem um subtítulo "Combinação de realidades puramente imaginárias". Fica assim o leitor, logo de início, encafifado com essa volúpia verbal que parece não dizer nada mas termina por dizer tudo.

O primeiro mito que ele destrói é o seu próprio nome sacralizado na pia batismal e referendado no cartório de registro civil. Como não foi nome da sua escolha, ele então mudou para Poeta de Meia-Tigela. Só há um momento do livro em que aparece seu nome oficial: Alves de Aquino.

Mesmo assim, o primeiro não aparece. Após esse desfazimento da veste antiga, ele começa fustigando Shakespeare no seu "Sonho de uma noite de verão", e tange Dante das profundas dos infernos às delícias do paraíso no mesmo itinerário do poeta Virgílio no momento do seu resgate. Isso tudo levando a tiracolo Antônio Conselheiro e a procissão de seus beatos. E pode não ser nada disso, mas sugere.

Meia Tigela é um poeta semiótico. E quem não é? Mas no caso dele os signos verbais são transformados em não verbais através da desconstrução que opera sobre metáforas cansadas de tanto uso. Ele dilapida conteúdos, destrói fórmulas e endoida leitores.

Não é bobo, no entanto, esse poeta de tigela e meia. Chamou logo para prefaciar seu livro o professor Sânzio de Azevedo, maior conhecedor da Literatura Cearense e exímio desmontador de formas e fórmulas poéticas. Por isso que o professor Sânzio ficou "Antes dos Versos", diante da parafernália literária que Tigela derramou ao longo das 343 páginas do livro que a Expressão Gráfica Editora teve coragem de editar. Afinal, nem Osman Lins tanto ousou.

Para posfaciar esse seu libelo poético, ele conseguiu a adesão de Nilto Maciel, guru dessa mais recente geração de escritores cearenses. Nilto o classifica, acertadamente, logo no título, de "Vampiro". Depois verifica que para ler esse "Concerto" é preciso participar da brincadeira, do jogo que o poeta instaura. Para entrar nesse jogo é preciso entender de brinquedos verbais. Nesse comportamento lúdico, Nilto Maciel, diferentemente de Sânzio de Azevedo, deixou de lado a forma para mergulhar no conteúdo, fez muito mais uma análise no nível da metáfora. É aí que constatamos, como diz o crítico, que essa desconstrução tigeleana começa da mitologia grega e vem ao horóscopo dos jornais atuais.

Meia Tigela dilapida velhas construções à moda Alcides Pinto, Carlos Emílio Corrêa Lima e Gerardo Melo Mourão. Ao mesmo tempo reconstrói a seu modo a terra arrasada, inclusive fustigando a alienação ortográfica a que se submetem escritores tradicionalistas. Modifica a grafia dos vocábulos, dando-lhes uma forma mais convincente que aquela que eles oficialmente portam. Quando ele escreve "abissurdo" está bem mais próxima a grafia do seu som, do que na versão dicionarizada. O mesmo acontece com "iguinora" e com outras palavras dos poemas. Fica então patenteada sua vocação motivadora de signos. Desconstruir arbitrariedades verbais é dar uma função metalinguística inovadora às palavras.

A partir dessas desconstruções, pode-se pensar enganosamente que a função de sua poética é apenas deletéria daquilo que por aí está posto. Ledo engano de quem assim pensar. Meia Tigela tem o domínio dos versos nas suas feições mais tradicionais. No segundo movimento de seu "Concerto", quando ele trata de "Os prisioneiros", é impressionante o seu domínio do soneto clássico. "Achando pouco tal demolição", seu estro se volta para a confecção de sonetos clássicos de forma decassilábica até em rimas ABBA, ABBA CDC DCD como em "De virtude", um poema lapidado à beira da perfeição. É aí onde o leitor precisa parar e se extasiar com a eloquência do poeta.

Até sua depressão é eloquente. Afinal, é no seu momento de melancolia quando entra em cena o vampiro enfadado de dar conselhos. É então que todo um vocabulário é posto de oitiva para servir à tristeza: "merencório", "penseroso", "esquizofrênico", "misantropo", "anacoreta", "tartamudo", "macambúzio", "encabulado", "abirobado", "atarantado", "azarado", "songamonga", "mocorongo", "nefelibata", "rastaquera", "sotrancão", "estercorário" e por aí vem uma desvampiragem escorrendo pela eloquência de uma autoestimada zerada. Essa insônia constipada que vê a porta mas não vê a chave, se esvai pelas frechas e contamina o leitor, levando-o também a essa "vidinha solidã".

Esse livro do Poeta de Meia-Tigela é tão contaminador que o próprio autor a certa altura de sua trajetória criou um compartimento chamado de "Mantenha Distância". Depois ainda prega o aviso: "Este poema está temporariamente programado para não receber chamadas". Mais adiante ele chega a suplicar: "Leitor amigo, por que insistir em ler? Quando bastaria me olhasses adentrolhos?" Essa tentativa de afastar a aproximação do leitor da sua poesia é pura ciumeira. Depois da obra pronta, beirando a perfeição, o poeta se narcisa, se enamora do que fez, à sua imagem e semelhança, convence-se de que criou uma bela obra de arte e agora não quer dividir o prazer de possuí-la com seu concorrente leitor. Isso tudo mostra que esse Poeta de Meia-Tigela é poeta de muitas tigelas e meias.

Fonte:
Literatura Sem Fronteiras

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Trova 194 - Antonio Juraci Siqueira (Belém/PA)

Montagem da Trova sobre imagens obtidas em Imagem = http://ajursp.romandie.com (delegacia) e http://www.acatolica.com/ (homem apontando o dedo)

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXI – O Rabo do Macaco


Era um macaco que resolveu sair pelo mundo a fazer negócios. Pensou, pensou e foi colocar-se numa estrada, por onde vinha vindo, lá longe, um carro de boi. Atravessou a cauda na estrada e ficou esperando.

Quando o carro chegou e o carreiro viu aquele rabo atravessado no caminho, deteve-se e disse:

— Macaco, tire o rabo da estrada, senão passo por cima.

— Não tiro! — respondeu o macaco — e o carreiro passou e a roda cortou o rabo do macaco.

O bichinho fez um barulho medonho.

— Eu quero meu rabo, eu quero meu rabo — ou então uma faca!

Tanto atormentou o carreiro que este sacou da cintura a faca e disse:

— Tome lá, seu macaco dos quintos, mas pare com esse berreiro, que está me deixando zonzo.

O macaco lá se foi, muito contente da vida, com a sua faca de ponta na mão.

"Perdi meu rabo, ganhei uma faca! Tin-glin, tinglin, vou agora para Angola!"

Seguiu caminho. Logo adiante deu com um tio velho que estava fazendo balaios e cortava o cipó com os dentes.

— Olá, amigo! — berrou o macaco. — Estou com dó de você, palavra! Onde já se viu cortar cipó com os dentes? Tome esta faca de ponta.

O negro pegou a faca mas quando foi cortar o primeiro cipó a faca se partiu pelo meio. O macaco botou a boca no mundo.

— Eu quero, eu quero minha faca — ou então um balaio!

O negro, tonto com a gritaria, acabou dando um balaio velho para aquela peste de macaco — que, muito contente da vida, lá se foi cantarolando: "Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio! Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!"

Seguiu caminho. Mais adiante encontrou uma mulher tirando pães do forno, que recolhia na saia.

— Ora, minha sinhá — disse o macaco — onde se viu recolher pão no colo? Ponha-os neste balaio.

A mulher aceitou o balaio, mas quando começou a botar os pães dentro, o balaio furou. O macaco pôs a boca no mundo.

— Eu quero, eu quero o meu balaio — ou então me dê um pão.

Tanto gritou que a mulher, atordoada, deu-lhe um pão. E o macaco saiu a pular, cantarolando: "Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio; perdi meu balaio, ganhei um pão. Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!"

E lá se foi, muito contente da vida, comendo o pão.

— Foi para onde? — indagou Emília. — Para Angola?

— Sei lá para onde o macaco foi! — respondeu tia Nastácia. — Para Angola não havia de ser, que é muito longe. Foi para o mato, que é a Angola dos macacos.

— Esperei que a história acabasse melhor — disse Narizinho. — A esperteza do macaco para ganhar coisas está boa, apesar de que isso de dar parte do corpo em troca duma faca não me parece negócio. Mas o inventor da história chegou no meio e não soube como continuar; por isso parou no pão.
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— É, sim — concordou Pedrinho. — Ele devia fazer o macaco ir ganhando coisas de valor cada vez maior, para mostrar que com esperteza uma pessoa consegue tudo quanto quer na vida. Mas o pobre macaco fazia os negócios e ia ficando na mesma. Saía perdendo sempre.

— Bobinho! — exclamou Emília. — Dar a cauda por uma faca ordinaríssima, que quebra ao cortar um cipó, parece-me o pior negócio do mundo. Depois trocou a faca por um balaio velho e podre. Outro negócio péssimo. E acabou trocando o balaio por um pão. Comeu o pão e ficou sem balaio, sem faca e sem cauda. Isso é mesmo o que se chama "negócio de macaco". E ainda acham que macaco é bicho ladino! — observou a menina.

— Não — disse dona Benta. — Nas histórias populares o mais ladino não é o macaco, sim a raposa e o jabuti. A raposa, ladiníssima, sai ganhando sempre. Chegou a ficar o símbolo da esperteza. Quando queremos frisar a manha dum político, dizemos: É uma raposa velha! E o jabuti, não sei por que, também ficou com fama de fino. O macaco, coitado, faz suas espertezas mas nem sempre sai ganhando. Esse de tia Nastácia, por exemplo. Lá foi, muito contente da vida, a comer o pão — mas não se lembrou de que estava sem cauda.

— Tolinho! — gritou Emília. — Quando for trepar a uma árvore é que verá a asneira que fez. Macaco sem cauda é macaco aleijado. Eles fazem na floresta aqueles prodígios de agilidade justamente por causa da cauda. Idiota!
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Continua… XXII – O Macaco e o Coelho
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source