quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Maria do Carmo Marino Schneider (Cristais Poéticos)


SONETO DO ETERNO AMOR 

Sabes que, em tempo algum, jamais alguém
 te amou, assim, como eu sempre te amei.
 É o brilho de teus olhos diz, também,
 que eterna amada para ti serei...

 Esse amor de ontem que pensei perdido,
 é chama ardente, sonho revivido,
 mar proceloso que meu ser invade,
 a me afogar em ondas de saudade.

 Minh'alma aflita sofre a se indagar:
 virá tão grande amor a extinguir-se
 perdendo-se no ardil do esquecimento?

 E o coração me diz a sussurrar:
 jamais! Pois esse amor há de nutrir-se
 no seio de um e outro, enquanto houver alento.

QUIMERAS

Eu quisera poder parar o tempo,
 retendo o doce enlevo do momento,
 naquela grata surpresa, inesperada,
 de ver-te à minha espera, na chegada...

 Eu quisera esquecer, enfim, o mundo,
 correndo ao teu encontro, num segundo,
 para beijar-te longa e ternamente,
 como sempre o desejara, ardentemente...

 Eu quisera não deter o grito rouco
 e o descompasso do coração louco
 amando-te, afinal, ao ter-te perto...

 Eu quisera tantas coisas que não fiz...
 Mas embora muda a boca e preso o gesto,
 O meu olhar falou-te: estou feliz!

CORRENTEZA

O meu barco vida
 governar quisera
 nesta correnteza...

 Nas águas do tempo,
 em veloz corrida,
 eu me vejo presa...

 Navego o meu barco
 e, na dura lida,
 me vence o cansaço...

 São tantos os seixos,
 são tantas as pedras,
 são tantos percalços...

 Mas sigo sem queixas.
 Se a esperança medra,
 não detenho os braços.

 O leme seguro
 e, transpondo as águas,
 contemplo o futuro

ONDE ESTAVAS?

Onde estavas, onde estavas,
 Quando as sombras e o silêncio
 Vestiram a ilha dos sonhos
 De solidão, sem candeias?

 Por certo que te encontravas
 Velejando em outros mares,
 Buscando estrelas e luares
 Em céus que não conhecias...

 Da ilha, berço do carma,
 No teu baú de saudades,
 Só levaste farpas, mágoa,
 Quando na noite fugias...

 Abandonaste, esquecidos,
 O pão, o mel, a água fresca,
 A luz que clareia a estrada,
 E os sonhos, tesouros perdidos…

FIO DE ARIADNE

Ah! esse sabor amargo
 que na boca aflora
 e esse vazio atróz
 que faz de mim sozinha
 o que antes era nós...

 Ah! esse silêncio largo
 que me envolve agora
 e essa dor intensa
 que cedo me definha
 e cala minha voz...

 Ah! esse amor aziago
 que minh'alma chora,
 que torna a vida densa
 e os dias negras mós,
 é o que cortou a linha
 de seculares nós…

ACALANTO

Hoje, tranquei o meu canto.
 Nenhuma palavra vem.
 Quisera poder prender meu pranto
 também!

 O tempo é um duende alado
 que não permite a ninguém
 viver feliz sempre ao lado
 de um bem.

 Por isso, choro saudade,
 lamento a falta de alguém,
 Onde está a felicidade?
 Não vem?

 Adormeço na esperança
 De encontrá-la no além,
 Que ela venha sem tardança...
 Amem!

AMOR ANTIGO

O amor antigo que minh'alma abriga
 nasceu há muito, já não tem idade.
 É como som dolente de cantiga
 a repetir-se pela eternidade.

 O amor antigo, de esperança ausente,
 nada pede, nem exige, só perdura
 na espera triste, vã, calma e silente
 da sofrida e amante criatura.

 O amor antigo tem raízes fundas,
 feitas de sofrimento e de beleza;
 é o guardião dos sonhos mais profundos
 criando, na alma solitária, a fortaleza.

 O amor antigo, cultivada flor,
 perfuma, assim, a dor e não fenece.
 E, tanto mais vence o tempo é mais amor,
 no seio de quem ama e não esquece.

VÔO PEREGRINO

A alma, em suspense,
 espera o vôo que retarda
 adiando o sonho...
 Soltar-se,
 romper cadeia,
 deixar o tempo
 tecer sua teia,
 sem outro desejo
 que o de viver,
 e nada esperar,
 senão o adormecer
 da última esperança.

Fonte:
http://www.poetas.capixabas.nom.br/pesquisa/poesia.asp?poesia=3369

Maria do Carmo Marino Schneider (1941)


Maria do Carmo Marino Schneider nasceu no município de Colatina, no Estado do Espírito Santo, em 1 de setembro de 1941. 

Professora universitária, Graduada em Letras pela UFES, com especialização em Educação à Distância, pela UNED-Madri, Espanha, Mestrado em Educação pela PUC - Rio. 

Membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira nº 17, cuja patrona é Maria Madalena Pisa. 

Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e do colegiado cultural do jornal Estado de São Paulo. 

Diretora Cultural da Aliança Francesa de Vitória. 

Vencedora de vários prêmios literários no país, em prosa e verso, tem obras publicadas em antologias de poetas representativos da literatura nacional em Brasília, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. 

Maria do Carmo lançou em 2007 um CD "Caminho, Verdade e Vida", com músicas religiosas.

Obras:

– "Fio de prumo" 1989
– "Só ser" - 1991
– "Nós" - 1992
– "Sonatas" - (Reune textos dos primeiros livros, Fio de prumo (1989), Só ser (1991), e mais inéditos), Prefácio de Francisco Aurélio Ribeiro, Vitória, 1996
– "Aquarelas Poéticas" ( poemas) - Prefácio de Maria de Lourdes M.A. Soares, Lei Rubem Braga/Companhia Vale do Rio Doce, Vitória, 1996
– "A música folclórica brasileira" - das origens à modernidade 1999
– "Victor Hugo - a face desconhecida de um gênio" 1999

Participação nas coletâneas: 
– A poesia Espírito-santense no Século. XX - org. Assis Brasil, Ed. Imago.
– Antologia de Escritoras Capixabas - org. Prof. Francisco Aurélio Ribeiro
– Entre dois séculos: Escritos de Vitória -18 - Cidade Presépio
Poemar.
– Antologia 2003 - Textos e Tramas, da AFESL
– Antologia 2004 - Ecos da Terra Capixaba, da AFESL
– Antologia 2005, da AFESL, Dança das Palavras, organização dela e de Marlusse Pestana Daher.
– Antologia Clepsidra, da AFESL, organização de Jô Drumond e Graça Neves, Vitória/ES, 1a. edição, GSA - Gráfica Santo António Ltda, 2007
– IV Varal de Poesias, com os poemas "Sombras no silêncio", declamado por Ângela Chequer e "Ninho da alma", declamado por Márcia Galdio. Este projeto é uma realização do Vagão Espaço Arte, idealizado pelo poeta Italo Campos, em 1998,
– V Varal de Poesias, com o poema "Informática” declamado por Ângela Chequer e "Sombras no silêncio", declamado por Haroldo Bussotti.
– VII Varal de Poesias, com o poema "Chama", declamado por Madu Marino.
– VIII Varal de Poesias, com o poema "Mulher ".
– IX Varal de Poesias.
– “Fruta no Ponto” - 2009, sob a Direção Geral de Suely C. Milagres, Gestora Cultural e Curadora do Vagão Espaço Arte. 
– Catálogo 2009, Letras Capixabas em Arte, organizado por Maria das Graças Silva Neves.
– Projeto "Primavera: Arte e Literatura", realizado na Galeria Virgínia Tamanini, no período de 27/10 a 20/11/2009
– "Espaço Cultural do TECAB", realizado do dia 22/06 a 12;07/2010.
– Antologia "Múltiplas Vozes", 2010, da AFESL.

Parcerias: 
Canzoni D'Amore (italiano/português)1999
Ave Marias 1998
Mistral (português e francês.)1999

Bibliografia: 
Vozes e Perfis - Antologia 2002 Academia Feminina Espírito-santense de Letras
A Poesia Espírito-Santense no Século XX, organização, introdução e notas de Assis Brasil,1998

Fonte:
http://www.poetas.capixabas.nom.br/pesquisa/poesia.asp?poesia=3369

Machado de Assis (Raimundo Correia: Sinfonias)


[Jul. 1882.]

SUPONHO que o leitor, antes de folhear o livro, deixa cair um olhar curioso nesta primeira página. Sabe que não vem achar aqui uma crítica severa, tal não é o ofício dos prefácios; - vem apenas lobrigar, através da frase atenuada ou calculada, os impulsos de simpatia ou de fervor; e, na medida da confiança que o prefacista lhe merecer, assim lerá ou não a obra. Mas para os leitores maliciosos é que se fizeram os prefácios astutos, desses que trocam todas as voltas, e vão aguardar o leitor onde este não espera por eles. É o nosso caso. Em vez de lhe dizer, desde logo, o que penso do poeta, com palavras que a incredulidade pode converter em puro obséquio literário, antecipo uma página do livro; e, com essa outra malícia, dou-lhe a melhor das opiniões, porque é impossível que o leitor não sinta a beleza destes versos do Dr. Raimundo Correia:

MAL SECRETO

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N' alma, e destroi cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Aí está o poeta, com a sua sensibilidade, o seu verso natural e correntio, o seu amor à arte de dizer as cousas, fugindo à vulgaridade, sem cair na afetação. Ele pode não ser sempre a mesma cousa, no conceito e no estilo, mas é poeta, e fio que esta seja a opinião dos leitores, para quem o nome do Dr. Raimundo Correia for inteira novidade. Para outros, naturalmente a maioria, o nome do Dr. Raimundo Correia está apenso a um livro, saído dos prelos de S. Paulo, em 1879, quando o poeta tinha apenas 19 anos. 

Esse livro, Primeiros sonhos, é uma coleção de ensaios poéticos, alguns datados de 1877, versos de adolescência, em que, não Hércules menino, mas Baco infante, agita no ar os pâmpanos, à espera de crescer para invadir a Índia. 

Não posso dizer longamente o que é esse livro; confesso que há nele o cheiro romântico da decadência, e um certo aspecto flácido; mas, tais defeitos, a mesma afetação de algumas páginas, a vulgaridade de outras, não suprimem a individualidade do poeta, nem excluem movimento e a melodia da estrofe. Creio mesmo que algumas composições daquele livro podiam figurar neste sem desdizer do tom nem quebrar-lhe a unidade.

Não foram esses os primeiros versos que li do Dr. Raimundo Correia. Li os primeiros neste mesmo ano de 1882, uns versos satíricos, triolets sonoros, modelados com apuro, que não me pareceram versos de qualquer.

Semanas depois, conheci pessoalmente o poeta, e confesso uma desilusão. Tinha deduzido dos versos lindos um mancebo expansivo, alegre e vibrante, aguçado como as suas rimas, coruscante como os seus esdrúxulos, e achei uma figura concentrada, pensativa, que sorri às vezes, ou faz crer que sorri, e não se se riu nunca. Mas a desilusão não foi uma queda. A figura trazia a nota simpática; o acanho das maneiras vestia a modéstia sincera, de boa raça, lastro do engenho, necessário ao equilíbrio. Achei o poeta deste livro, ou de uma parte deste livro: - um contemplativo e um artista, coração mordido daquele amor misterioso e cruel que é a um tempo a dor e o feitiço das vítimas.

Mas, enfim, Baco conquistou a Índia? Não digo tanto, porque preciso ser sincero, ainda mesmo nos prefácios. Trocou os pâmpanos da puerícia, jungiu ao carro as panteras que o levarão à terra indiana, e não a vencerá, se não quiser. Em termos chãos, o Raimundo Correia não dá ainda neste livro tudo o que se pode esperar do seu talento, mas dá muito mais do que dera antes; afirma-se, toma lugar entre os primeiros da nova geração. Estuda e trabalha. Dizem-me que compõe com grande facilidade, e, todavia, o livro não é sobejo, ao passo que os versos manifestam o labor de artista sincero e paciente, que não pensa no público se não para respeitá-lo. Não quero transcrever mais nada; o leitor sentirá que há no Dr. Raimundo Correia a massa de um artista, lendo, entre outras páginas, "No Banho", o "Anoitecer", "No Circo", e os sonetos sob o título de "Perfis Românticos", galeria de mulheres, à maneira de Banville. Não é sempre puro o estilo, nem a linguagem escoimada de descuidos, e a direção do espírito podia às vezes ser outra; mas as boas qualidades dominam, e isto já é um saldo a favor.

Uma parte desta coleção é militante, não contemplativa, porque o Dr. Raimundo Correia, em política, tem opiniões radicais: é republicano e revolucionário. Creio que o artista aí é menor e as idéias menos originais; as apóstrofes parecem-me mais violentas do que espontâneas, e o poeta mais agressivo do que apaixonado. Note o leitor que não ponho em dúvida a sinceridade dos sentimentos do Dr. Raimundo Correia; limito-me a citar a forma lírica e a expressão poética; do mesmo modo que não desrespeito as suas convicções políticas, dizendo que uma parte, ao menos, do atual excesso ir-se-á com o tempo.

E agora, passe o leitor aos versos, leia-os como se devem ler moços, com simpatia. Onde achar que falta a comoção, advirta que a forma é esmerada, e, se as traduções, que também as há, lhe parecerem numerosas, reconheça ao menos que ele as perfez com o amor dos originais, e, em muitos casos, com habilidade de primeira ordem. É um poeta; e, no momento em que os velhos cantores brasileiros vão desaparecendo na morte, outros no silêncio, deixa que estes venham a ti; anima-os, que eles trabalham para todos.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Humberto Rodrigues Neto /SP (Sonetos Avulsos I)


SAUDADE
(a minha esposa, in memoriam)

 Teu desencarne fez-me descontente,
 com a alma e o coração sempre em quebranto;
 do nosso lar foi embora o antigo encanto
 que tu levaste assim... tão de repente!

 Do alto onde estás podes sentir o quanto
 por ti pranteio ao te sentir ausente,
 e nada existe que tão fortemente
 me incline à solidão e ao desencanto!

 Não mais teus lábios, nem os teus abraços
 tentei buscar noutros alheios braços,
 preso à paixão que só por ti nutria!

 E hoje vergado a esta infelicidade,
 a Dor se fez a esposa do meu dia,
 e à noite faço amor com a Saudade!

 AGORA...

 Agora que o meu sonho está desfeito,
 e enfim sepultos os meus ideais;
 agora que, ao invés de madrigais,
 choram dobres de réquiens no meu peito;

 agora que me foge até o direito
 de imaginar-te em sonhos irreais;
 agora que ilusões não me vêm mais
 ao coração magoado e insatisfeito;

 que eu siga só, o meu trágico caminho,
 onde da sorte a aguda e acerba foice
 ceifou-me as dádivas do teu carinho;

 que por ti meu coração não mais baloice...
 ah... deixa-me esquecer-te, aqui sozinho,
 soprando o pó de um grande amor que foi-se!

 MIGALHAS

 Que mais desejas, afinal, que eu faça
 pra ter por meu o que de ti não tenho,
 se já cansado estou de tanto empenho
 de haurir de ti a mais suprema graça?

 Há quanto tempo mendigando eu venho
 um pouco mais que esta ventura escassa!
 Do amor apenas pingos pões-me à taça
 que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!

 Somente a um outro, nas liriais toalhas
 da mesa de Eros serves tua paixão,
 mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!

 E ali enjeitado, a farejar o chão,
 o meu amor vive a lamber migalhas
 que tu lhe atiras qual se fora a um cão!

MÃE!

Tu foste, mãe, na treva a claridade,
 na dor meu riso e na tormenta o norte,
 a doce companheira e a consorte
 das minhas horas de infelicidade!

 Que anjo não foste, toda vez que a sorte
 não me sorriu! E com que imensidade
 de amor, desvelo e angelical bondade
 tu me ensinaste a ser paciente e forte!

 E hoje a alegria anda a sorrir nos ares...
 é o “Dia das Mães” numa porção de lares
 e eu vou fingindo que inda o comemoro!

 Finjo, mãezinha, até que em doce jeito
 vens doer tão tristemente no meu peito,
 que eu cerro os olhos, pendo a fronte... E choro!

O AMANHÃ

 Acreditemos, poetas, no amanhã
 que está chegando após tardia demora,
 quando todos os seres, de alma sã,
 serão mais puros do que são agora.

 Se unirmos forças nesse nobre afã,
 todos os vícios hão de ir embora;
 e a idéia de uma sociedade irmã
 propaguemos, ó vates, mundo afora!

 Ter nalma o brilho que arde nas estrelas
 não são lucubrações de mero acaso
 e até na Terra é fácil concebê-las.

 Se à perfeição nós, vates, dermos azo
 no céu seremos endeusados pelas
 argivas nove musas do Parnaso!

RESGATE DAS CORES

 Aquarelas do amor há, que descoram
 se expostas a um desejo insatisfeito.
 Se presas a um anseio contrafeito,
 em vez de rir todas as cores choram!

 Janelas fecham-se e jardins desfloram,
 vazios de flores no deserto leito,
 qual se chorassem o ideal desfeito
 em findas ilusões que se evaporam!

 Talvez por força de fatais adágios
 jamais os tons da cor e da emoção
 conservam para sempre iguais estágios.

 Mas reverte o sol de um sim a situação:
 ordena lave a chuva os maus presságios,
 e em riso e cores ri-se o coração!

CILADAS DA VIDA

 Ao marulho das vagas que separam
 este imenso Brasil de Portugal,
 dois seres, num destino desigual,
 em dois sonetos seu amor declaram.

 Se amam demais, porém seria fatal
 o malogro dos bens com que sonharam;
 talvez nem um, nem outro cogitaram
 de não chegar tal sonho a um bom final.

 Ah... quanto almejariam, pessoalmente,
 trocar um beijo apenas, frente a frente,
 pra consumar o amor que hoje os seduz!

 Porém, a sorte, alheia a tais instantes,
 coloca o Atlântico entre os dois amantes
 e os crucifica sobre a mesma cruz!

TÉDIO

 A mesma dor, o mesmo nada em tudo,
 uma ânsia funda de morrer, chorar;
 na alma engasgado um sentimento mudo,
 e em tudo o nada de um vazio lunar...

 A fronte baixa... nas feições o agudo
 vinco das rugas, a testemunhar
 que o sofrimento anda afinal desnudo
 na dor que franze-me o semblante e o olhar...

 olhar há tanto, acostumado ao pranto,
 e à dor há tanto tempo acostumado,
 que nem teus nãos me causam medo ou espanto!

 E já nem sei, a este martírio atado,
 se o que mais dói é ter te amado tanto,
 ou se dói mais o não ter sido amado!

Fontes:
Bernardo Trancoso. http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=40

Humberto Rodrigues Neto (1935)


Humberto Poeta

Nasceu em São Paulo - Capital, no dia 11 de novembro de 1935, no bairro da Lapa.

Aposentado da Eletropaulo, antiga Light; fez o curso de Técnico de Contabilidade, e alguma cultura que adquiriu deve ao autodidatismo face à paixão que sempre teve pela leitura.

Dedica-se à poesia desde os 14 anos, quando passou a ler quase todos os grandes poetas brasileiros e portugueses, além de traduções dos franceses, ingleses, italianos, etc. E o que mais lhe agradava era ver com que técnica tais poetas, em especial lusos e brasileiros, compunham seus sonetos! Chegava mesmo a sentir inveja deles, por aquelas coisas magníficas que escreviam, verdadeiras gemas literárias engastadas no magnífico acervo de nossas letras.

Ficava frustrado quando recorria a um editor para editar seus poemas e ele lhe pedia uma remuneração, motivo por que nunca publicou livro nenhum, exceto três e-books expostos ao público na Net poética: “Rabiscando Rimas” e “Metrificando Sonhos”, editados, respectivamente, por Olga Kapatti e Teka Nascimento, detentoras de sites poéticos, além de “Solfejando Sonetos”, em conjunto com a poetisa Regina Coeli, constante exclusivamente de duetos, num trabalho elaborado pela “Del Nero”.

Participou, com outros poetas, da VI Antologia “Palavras de Poetas”, da editora “Physis".

Premiado no I e II Concurso Nacional de Poesia ”Menotti Del Picchia”, bem assim no XI Certame Cultural de Poesias da Secretaria de Educação de Guarulhos – SP, e no Concurso de Poesias do C.T.A., de São José dos Campos – SP.

Fora da poesia tem alguns contos, diversas crônicas, estudos comparativos que faz entre as demais religiões, e duas peças teatrais: “Extorsão” e “Sempre Há Sol Depois da Chuva”.

Fonte:
Reino da Poesia.

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 9, final


Camilloff

– Não! nunca! – rugi com furor, amarrotando a carta, monologando a largas passadas pelo melancólico claustro. – Não, por Deus ou pelo Demónio! Ir de novo bater as estradas da China? Jamais! Oh sorte grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadora de Marselha a Xangai, sofro as pulgas das bateiras chinesas, o fedor das vielas, a poeirada dos caminhos áridos – e para quê? Tinha um plano, que se erguia até aos Céus, grandioso e ornamentado como um troféu: por sobre ele cintilavam, de alto a baixo, toda a sorte de acções boas: e eis que o vejo tombar ao chão, peça a peça, numa ruína! Queria dar o meu nome, os meus milhões e metade do meu leito de oiro a uma senhora Ti Chin-Fu – e não mo permitem os prejuízos sociais de uma raça bárbara! Pretendo, com o botão de cristal de mandarim, remodelar os destinos da China, trazer-lhe a prosperidade civil – e veda-mo a lei imperial! Aspiro a derramar uma esmola sem fim por esta populaça faminta – e corro o perigo ingrato de ser decapitado como instigador de rebeliões! Venho enriquecer uma vila – e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia enfim dar a abundância, o conforto que louva Confúcio, à família Ti Chin-Fu – e essa família some-se, evapora-se como um fumo, e outras famílias Ti Chin-Fu surgem, aqui e além, vagamente, ao sul, a oeste, como clarões enganadores... E havia de ir a Cantão, a Kao-Li, expor a outra orelha a tijolos brutais, fugir ainda pelos descampados, agarrado às crinas de um potro? Jamais!

Parei: e de braços erguidos, falando às arcadas do claustro, às árvores, ao ar silencioso e fino que me envolvia:

– Ti Chin-Fu! – bradei. – Ti Chin-Fu! Para te aplacar, fiz o que era racional, generoso e lógico! Estás enfim satisfeito, letrado venerável, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança oficial? Fala-me! Fala-me!...

Escutei, olhei: a roldana do poço, àquela hora do meio-dia, rangia devagar, no pátio: sob as amoreiras, ao longo da arcaria do claustro, secavam em papel de seda as folhas de chá da colheita de Outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um sussurro lento de declinações latinas: era uma paz severa, feita da simplicidade das ocupações, da honestidade dos estudos, do ar pastoril daquela colina, onde dormia, sob um sol branco de Inverno, o burgo religioso... E com aquela serenidade ambiente, pareceu-me receber na alma, de repente, uma pacificação absoluta! 

Acendi com os dedos ainda trémulos um charuto, e disse, limpando na testa uma baga de suor, esta palavra, resumo de um destino:

– Bem, Ti Chin-Fu está contente.

Fui logo à cela do excelente padre Giulio. Ele lia o seu Breviário à janela, debicando confeitos de açúcar, com o gato do convento no colo.

– Reverendíssimo, volto à Europa... Algum dos nossos bons padres vai por acaso em missão, para os lados de Xangai?...

O venerável superior pôs os seus óculos redondos: e folheando com unção um vasto registo em letra chinesa, ia assim murmurando:

– Quinto dia da décima Lua... Sim, há o padre Anacleto para Tien-Tsin, para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodécima Lua, o padre Sanchez para Tien-Tsin também, para a obra do Catecismo aos Órfãos... Sim, caro hóspede, tem companheiros para leste...

– Amanhã?

– Amanhã. É dolorosa a separação nestes confins do mundo, quando as almas se compreendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe faça um bom farnel... Nós já o amávamos como irmão, Teodoro... Coma um confeito, são deliciosos... As coisas estão em feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar do coração do homem é o coração de Deus: e o seu está nesse asilo seguro... Coma um confeito... Que é isso, meu filho, que é isso?

Eu estava colocando sobre o seu Breviário, aberto numa página do Evangelho de Pobreza, um rolo de notas do Banco de Inglaterra; e balbuciei:

– Meu reverendíssimo, para os seus pobres...

– Excelente, excelente... O nosso bom Gutierrez que lhe faça um farnel copioso... Amen, meu filho... In Deo omnia spes...

Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E aí vamos para Hiang-Hiam, vila negra e murada, onde atracam os barcos que descem a Tien-Tsin. Já as terras ao longo do Pei-Hó estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a água ia gelando: e embrulhados em peles de carneiro, em roda do fogareiro, à popa do barco, os bons padres e eu íamos conversando de trabalhos de missionários, de coisas da China, por vezes dos interesses do Céu – passando em redor sem cessar o grosso frasco da genebra...

Em Tien-Tsin separei-me daqueles santos camaradas. E daí a duas semanas, por um meio-dia de sol tépido, passeava, fumando o meu charuto e olhando a azáfama dos cais de Hong-Kong, no tombadilho do «Java», que ia levantar ferro para a Europa. 

Foi um momento comovente para mim, aquele em que vi, às primeiras voltas do hélice, afastar-se a terra da China.

Desde que acordara, nessa manhã, uma inquietação surda recomeçava a pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera àquele vasto império para acalmar pela expiação um protesto temeroso da Consciência: e por fim, impelido por uma impaciência nervosa, aí partia, sem ter feito mais que desonrar os bigodes brancos de um general heróico, e ter recebido pedradas pela orelha numa vila dos confins da Mongólia.

Estranho destino, o meu!...

Até ao anoitecer estive encostado sombriamente à borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de seda azul, dobrar-se aos lados em duas pregas moles: pouco a pouco grandes estrelas palpitaram na concavidade negra, e o hélice na sombra ia trabalhando em ritmo. Então, tomado de uma fadiga mole, fui errando pelo paquete, olhando, aqui e além, a bússola alumiada; os montões de cabrestantes; as peças da máquina, numa claridade ardente, batendo em cadência; as fagulhas que fugiam do cano, num rolo de fumaraça negra; os marinheiros de barba ruiva, imóveis à roda do leme; e as formas dos pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na cabina do capitão, um inglês de capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam conhaque, ia tocando melancolicamente na flauta a ária de «Bonnie Dundee»...

Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já estavam apagadas: mas a Lua que se erguia ao nível da água, redonda e branca, batia o vidro da cabina com um raio de claridade: e então, a essa meia-tinta pálida, lá vi, estirada sobre a maca, a figura pançuda, vestida de seda amarela, com o seu papagaio nos braços!

Era ele, outra vez!

E foi ele, perpetuamente! Foi ele em Singapura e em Ceilão. Foi ele erguendo-se dos areais do deserto ao passarmos no canal de Suez; adiantando-se à proa de um barco de provisões quando parámos em Malta; resvalando sobre as rosadas montanhas da Sicília; emergindo dos nevoeiros que cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no Cais das Colunas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da Rua Augusta; o seu olho oblíquo fixava-me – e os dois olhos pintados do seu papagaio pareciam fixar-me também...

VIII

Então, certo que não poderia jamais aplacar Ti Chin-Fu, toda essa noite no meu quarto ao Loreto, onde como outrora as velas inumeráveis das serpentinas davam aos damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir de mim, como um adorno de pecado, esses milhões sobrenaturais. E assim me libertaria talvez daquela pança e daquele papagaio abominável! 

Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de nababo. Fui, com uma quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a minha doce pena de amanuense!...

Mas um sofrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam a minha miséria. A Aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do nababo, ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu enriquecera, acusava-me de «feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; e a Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granítica dos bifes, plantava as duas mãos à cinta, e gritava:

– Ora o enguiço! Então que quer você mais? Aguente! Olha o pelintra!...

E apesar desta expiação, o velho Ti Chin-Fu lá estava sempre à minha ilharga, obeso e cor de oca – porque os seus milhões, que jaziam agora estéreis e intactos nos bancos, ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!

Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo no meu palacete e no meu luxo. Nessa noite, de novo o resplendor das minhas janelas alumiou o Loreto: e pelo portão aberto, viram-se como outrora negrejar, nas suas fardas de seda negra, as longas filas de lacaios decorativos.

Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame Marques chamou-me, chorando, «filho do seu coração». Os jornais deram-me os qualificativos que, de antiga tradição, pertencem à Divindade: fui o Omnipotente, fui o Omnisciente! A Aristocracia beijou-me os dedos como a um tirano: e o Clero incensou-me como a um ídolo. E o meu desprezo pela humanidade foi tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou.

Desde então uma saciedade enervante mantém-me semanas inteiras num sofá, mudo e soturno, pensando na felicidade do não-ser...

Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de mim o Personagem vestido de preto com o guarda-chuva debaixo do braço, o mesmo que no meu quarto feliz da Travessa da Conceição me fizera, a um ti-li-tim de campainha, herdar tantos milhões detestáveis. Corri para ele, agarrei-me às abas da sua sobrecasaca burguesa, bradei:

– Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria! 

Ele passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu com bondade:

– Não pode ser, meu prezado senhor, não pode ser...

Eu atirei-me aos seus pós numa suplicação abjecta: mas só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra de um cão farejando o lixo.

Nunca mais encontrei este indivíduo. – E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar...

As flores dos meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro – como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias defuntas...

Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta.. 

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!»

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!

Angers – Junho de 1880.

FIM

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Mitos e Lendas (O Marido da Estrela)


Zapalo quis um dia casar-se com uma estrela. 

Ela desceu à terra e casou-se com ele. Mas como na terra não havia alimento próprio para a estrela, ela fez o marido subir num pé de bacaba e subiu com ele. 

Depois, a árvore começou a crescer e cresceu até chegar ao céu. 

Ela queria que seu marido ficasse com ela no céu. Mas no céu não havia alimentos próprios para o homem e ele quis voltar à terra. 

Então fizeram um grande pote e amarraram nele uma longa corda. Zapalo entrou no pote e começaram a descê-lo pela corda. Quando estava perto da terra, largaram a corda. 

O pote caiu e quebrou-se. Os pedaços do pote viraram jabutis e cágados e a corda transformou-se em cobra. 

E foi assim que apareceram os jabutis, os cágados e as cobras, que antes não existiam. 

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (O Tatu)


 Eu vim pra contar a história
 Dum – tatu – que já morreu
 Passando muitos trabalhos
 Por este mundo de Deus

 O tatu foi muito ativo
 Pra sua vida buscar
 Batia casco na estrada
 Mas nunca pôde ajuntar

 Ora pois, todos escutem
 Do tatu a narração
 E se houver quem saiba mais,
 Entre também na função

 - Anda a roda
 O tatu é teu;
 Voltinha no meio
 O tatu é meu! - 

 O tatu foi homem pobre
 Que apenas teve de seu
 Um balandrau muito velho
 Que o defunto pai lhe deu!

 O tatu é bicho manso
 Nunca mordeu a ninguém
 Só deu uma dentadinha
 Na perninha do seu bem

 O tatu é bicho manso
 Não pode morder ninguém
 Inda que queira morder
 O tatu dentes não tem

 O tatu saiu do mato
 Vestidinho, preparado
 Parecia um capitão
 De camisa de babado!

 O tatu saiu do mato
 Procurando mantimento
 Caiu numa cachorrada
 Que o levou cortando vento!

 O tatu me foi à roça
 Toda a roça me comeu
 Plante roça quem quiser
 Que o tatu quero ser seu!

O tatu é bicho chato
 Rasteiro, toca no chão
 Inda mais rasteiro fica
 Quando vai roubar feijão

 O tatu de rabo mole
 Faz guisado sem gordura
 Ele é feio mas gostoso
 O que lhe falta, é compostura

 Depois de muito corrido
 Nos pagos em que nasceu
 O tatu alçou o poncho
 E proutras bandas se moveu

Eu vi o tatu montado
 No seu cavalo picaço
 De bolas e tirador
 De faca, rebenque e laço

 Onde vai, senhor tatu
 Emtamanha galopada?
 – Vou pra Cima da Serra
 Dançar a polca mancada! - 

 O tatu subiu a Serra
 No seu cavalo alazão
 De barbicacho na orelha
 Repassando um redomão

O tatu subiu a serra
 Pra serrar um tabuado
 Levou mala de farinha
 E um porongo de melado

 O tatu subiu a Serra
 Com ganas de beber vinho
 Apertaram-lhe a garganta
 Vomitou pelo focinho!

 Depois de grande folia
 Em que o tatu se meteu
 Deram-lhe muito guascaço
 E o tatu ensandeceu!

E logo desceu pra baixo
 Mui triste da sua vida
 Co’a casca toda riscada
 De orelha murcha, caída!

 O tatu foi encontrado
 No serro de Batovi
 Roendo as unhas, de fome
 Ninguém me contou, eu vi!

 O tatu foi encontrado
 Pras bandas de São Sepé
 Mui aflito e muito pobre
 De freio na mão, a pé

O tatu depois foi visto
 No serro de Viamão
 Com seu lacinho nos tentos
 Repassando um redomão

 O tatu foi encontrado
 Lá nos serros de Bagé
 De laço e bolas nos tentos
 Atrás dum boi jaguané!

 O tatu foi encontrado
 Na serra de Canguçu
 Mais triste que um socó
 E sujo como urubu

Ao chegar à sua casa
 Veio alegre e mui contente
 Por ver a sua tatua
 E quem mais era parente

 Minha comadre tatua
 Adeus, como tem passado?
 – Tenho passado mui bem
 Porém com algum cuidado - 

 Tatua, minha tatua
 Acuda, senão eu morro!
 Venho todo lastimado
 Das dentadas de um cachorro

Até chegar nesta idade
 Remédio nunca tomei
 Tatua, estou mui doente
 Faz remédio, eu tomarei

 Ela deu folhas d’umbu
 Co’a raiz de pessegueiro
 Mas coitado do tatu
 Morreu inda mais ligeiro!

 A tatua e os tatuzinhos
 Puseram-se a cavoucar
 Pra fazer a funda cova
 Pra o seu tatu enterrar

A tatua está viva
 O seu tatu já morreu
 Ela agora quer marido
 Travesso como era o seu

 A tatua está mitrada
 Quer marido doutro jeito
 Que não viva longe dela
 E seja tatu de respeito

 E se algum dos meus senhores
 Quer ser tatu preferido
 A tatua está viva:
 É só fazer seu pedido!

 O tatu desceu a Serra
 Com fama de laçador
 Bota laço, tira laço
 Bota pealos de amor

 Meu tatu de rabo mole
 Meu guisado sem gordura
 Eu não gasto meu dinheiro
 Com moça sem formosura

 Dei graças a Deus achar
 Uma toca já deixada
 Pois que vinha um caçador
 Co’ uma grande cachorrada

 O tatu foi encontrado
 No passo do Jacuí
 Trazendo muitos ofícios
 Para o general David

 O tatu subiu no pau!
 É mentira de você:
 Só que o pau fosse deitado
 Isso sim, podia sê

 O tatu caiu na roça
 Pelo cheiro da banana
 Também eu quero cair
 Nos braços de dona Ana

Fonte:
Lopes Neto, J. Simões. Cancioneiro guasca. Porto Alegre, Editora Globo, 1954. (Coleção Província, 6). Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário