segunda-feira, 10 de março de 2014

Cida Micossi

Aparecida de Lourdes Micossi Perez é natural de São Paulo, cresceu em Descalvado/SP e mora em Santos/SP. Casada e mãe de dois filhos, desde criança se dedicou à leitura e se encantou com a poesia.

Na adolescência arriscou alguns poemas, mas foi somente na maturidade que se propos a escrever textos simples, sem maiores pretensões, a não ser expressar as sensações.

Também desenvolveu o gosto pela fotografia e, sem conhecimento técnico, saiu com sua máquina a clicar situações que mexem com suas emoções. Juntou textos e fotos.

Professora de Português e Inglês, pós-graduada em Direito Educacional.

Participação com fotografias e poemas na Mostra dos Funcionários da Prefeitura Municipal de Cubatão - outubro/2007.

Coordenação e aplicação de Oficina de Poesia culminando com a publicação do livro de poemas produzidos pelos alunos da escola onde trabalha:

2008 Premiação – 3ª colocação no Concurso de Poesia do Grêmio Literário Castro Alves de Porto alegre/RS em abril 2009 com o poema “Sensações de Minas”.

Participação em Cirandas Poéticas na internet.

Participação em entidades culturais:
Confreira Fundadora, Presidente Seccional Santos/SP e 
Presidente Regional CAPPAZ (Confraria de Poetas e Artistas pela Paz) no estado de São Paulo.
Membro da Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande – SP.

Publicações:
1º Calendário Poético – 2009,
2º Calendário Poético – julho/2009 a junho/2010.
Realidade, sonhos e delírios. 

Participação na Antologia da Casa do Poeta em junho/2009.

Coordenadora e aplicadora - oficina de poesia no XVI Congresso Brasileiro de Poesia em Bento Gonçalves/RS para alunos das escolas públicas em outubro 2008.

Nilto Maciel (Minhas Leituras)

Sou apenas um leitor de poemas, contos e romances. Desde cedo, desde menino. O principal livro escolar, para mim, era o de português. Não a gramática, os exercícios, a História da Literatura, mas os poemas, contos e capítulos de romances. Eu os lia todos durante os primeiros dias do ano letivo. Um dos contos que mais me impressionaram, pela beleza rítmica das frases, pela poesia, foi “O suave milagre”, de Eça. Cheguei a decorá-lo. Eu tinha 13 anos, cursava a 1º série ginasial, correspondente hoje ao 5º ano do ensino fundamental. O conto assim começa: “Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades: – mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar”. Nesse tempo eu ainda não me afastara da Igreja Católica e das doces e luminosas margens da lagoa de Porangabussu. A descrença viria dois ou três anos depois. Quando troquei Eça por Engels. Não sei se o livro apresentava o conto na sua integralidade. Pois lembro muito mais da parte final: “A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos”.

Adolescente, cioso de ser também rebelde, descuidei-me dos estudos. Porém, lia tudo: as antologias, não somente aquelas de minha série escolar, jornais, revistas, almanaques. Lia poemas, contos, trechos de romances. Portugueses quase todos; alguns brasileiros. Nada dos modernistas ainda. Lia antes do dia da lição, com muita antecedência, por curiosidade e prazer. Enquanto ria da cara do professor de geografia, lia, com sisudez, trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos. Mais tarde, li os livros da pequena biblioteca de meu imrão Amadeu, que se dizia poeta e escrevia e copiava, diariamente, sonetos de poetas brasileiros. Todos falavam de amores não correspondidos. Num caderno grande, desses para comércio, de anotações mercantis. Um desses poemas se iniciava assim: “Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...” Muito mais tarde, encontrei-o em Juca Mulato, de Menotti Del Picchia.

            Fui me encantando mais e mais, a cada livro lido. Vieram outros lusitanos: Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano. Minha primeira leitura de livro parece ter sido Três Figuras: o Frade Poeta, o Padre Voador e o Frade Preceptor. Li-o durante um retiro no colégio dos salesianos, em setembro de 61. Convidado a conhecer a biblioteca do colégio e a retirar um livro para leitura, depois de alguns minutos de pesquisa, interessei-me pelas três figuras. Talvez por se tratar de um dos poucos livros mais ou menos profanos da pequena biblioteca.

            Em casa havia alguns livros. Um deles, Pussanga, contos de Peregrino Júnior. Lido este, folheei um romance obsceno, A Mulher do Caixeiro-Viajante, de autor desconhecido, certo Alcides Vaz. Livro recomendado para maiores de 18 anos. Puro erotismo. Deste período é também a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que me pareceu obscuro, sobretudo a primeira parte. Mesmo assim, não tive, em nenhum momento, vontade de desistir da leitura. A pequena biblioteca doméstica eu a devorei nos anos seguintes, até 1963.

            Em 1962 li, pela primeira vez, um romance, um grande romance: Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Contava 17 anos de idade e acabava de chegar a Fortaleza, pela segunda vez.

            Já preparado para leituras mais agudas, logo me aproximei de A Besta Humana, de Émile Zola. Durante e logo após a leitura, senti profunda repugnância pela nossa espécie. Então éramos aquilo? Causou-me verdadeira comoção. Pois eu me tinha acostumado aos românticos e me defrontava com um naturalista. Por muitos dias, o céu me pareceu mais escuro, sombrio, baixo, como se fosse chover muito, desabar tempestades duradouras. As ruas, de uma tristeza inexplicável; nas casas escondiam-se assassinos em potencial; as pessoas tramavam, em silêncio, bestialidades inomináveis. Permaneci doente por longo período. No entanto, outros livros me dariam um pouco de alegria, como Agulha em Palheiro e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

            Lida a pequena biblioteca doméstica, onde encontrar outros livros? Nas livrarias nem pensar, porque não dispunha de dinheiro. Eu deixava de merendar ou assistir a filmes para comprar livros. E, sem nenhuma orientação, comprava quase sempre bons livros. Adquiri, então, o gosto pelo livro velho, usado. Eu tinha sede de conhecimento, de leitura. Lia tudo o que via. Pedia livros por empréstimo. Mas não me bastavam.  Restavam-me as calçadas das ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, onde camelôs vendiam livros usados, velhos, antigos, cheios de mofo, roídos de traças, sujos, páginas amarelecidas, rasgadas, anotadas. Alguns nem capas tinham mais. Havia livros de todos os gêneros, dos mais variados autores. Nenhum deles, porém, eu conhecia. Passava horas a folheá-los. Nada daqueles nomes das antologias escolares. Nada de Camões, Machado de Assis, Herculano, Alencar, Bilac e outros citados e analisados em sala de aula. Então quem seriam aqueles dos livros das calçadas? Seriam bons escritores? Valeria a pena ler aqueles livros tão antigos? Os nomes não me eram familiares, todos ingleses, franceses, alemães. Folheava um volume, lia um trecho, apanhava outro, espirrava, tanto era o pó acumulado em suas páginas ao longo dos anos. Depois de algum tempo, perguntava o preço de um volume grosso, capa vermelha, título curioso. E ia comprando e lendo romances góticos, novelas de cavalaria, contos fantásticos, misteriosos. Enquanto isso, me metia em lutas e leituras políticas. Vindo o golpe de 1964, dediquei-me em tempo integral à literatura. Entre outubro de 65 e setembro de 67, li dezenas de livros: O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Joias do Conto Ídiche; Quem Perde Ganha, de Graham Greene; A Tragédia de Zilda, de Menotti Del Picchia; A Volta ao Mundo em 80 Dias; A Brasileira de Prazins; Sete Palmos de Terra; Iracema; Ubirajara; O Gaúcho; Senhora. Cinco ou seis anos depois, reli Iracema. Passaram-se mais dez anos para reler os dois primeiros de Alencar nesta relação e pela primeira vez conhecer O Guarani e O Sertanejo. Li também O Moço Loiro; Eurico, o Presbítero; O Vinagre e a Sede, de Sinval Sá, meu professor de português; Clara dos Anjos; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Quincas Borba; As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo; Poemas, de Verlaine; Pensamentos, de Pascal; umas novelas do Marquês de Sade; Os Vegetarianos do Amor, de Pitigrilli; Contos Escolhidos, de Machado; Ascânio, de Alexandre Dumas; e outros. Lembro-me também de dois romances, em edições antigas, que mantive comigo durante muito tempo: A Última Encarnação de Vautrin, de Balzac, e A Fossa, de Alexandre Kuprin. Li também Cleo e Daniel, de Roberto Freire.

            Da biblioteca do colégio retirei, por empréstimo, grossos volumes de contos e romances, como a série “Maravilhas do conto moderno”: norte-americano, italiano, russo, brasileiro, fantástico, etc. Fascinou-me nesses livros a oportunidade de conhecer o melhor da literatura universal. Ora, em pouco tempo conheci Guimarães Rosa, D’Annunzio, Trilussa, Pitigrilli, Moravia, os russos, todos os pilares da ficção curta.

            Muitos e muitos livros lidos naqueles anos eu não lembro nem sequer os títulos. Não sei precisar quantos. Recordo, no entanto, de ter vendido mais de quinhentos volumes, todos lidos, a um comprador de livros velhos, talvez um daqueles camelôs da Rua Guilherme Rocha. Não gostava dos ficcionistas brasileiros, especialmen­te dos nordestinos. Nem de Machado e Alencar. Outros nunca consegui ler. Como Érico Veríssimo e Jorge Amado. De ambos devo ter li­do um ou dois livros apenas.

            Quando descobri Graciliano, li-o de uma vez. Mas já depois de 77. Estava em Brasília e queria “conhecer” o Nordeste. Nostalgia, talvez. Antes disso, devo ter lido apenas trechos dessa literatura em antologias. Sentia ojeriza por tudo quanto cheirasse a sertão, mato, interior. José Américo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego não passavam de contadores de histórias sertanejas. E eu queria escrever como Machado de Assis, uma prosa de ficção sem cheiro de mato, urbana, nacional, universal. Eu não conhecia a lição da aldeia e do universal ou não a compreendia. Queria personagens universais, atemporais, criaturas sem nenhuma semelhança comigo mesmo. Nada de românticos, naturalistas e realistas.

            A fase de leituras dos clássicos estrangeiros e brasileiros acabou cedo, talvez em 1980, embora desde os anos 1970 eu viesse lendo escritores contemporâneos. Julgando-me escritor feito, pouco escrevi depois de 1990. Passei a ler a pedido dos amigos ou escritores novos. Recebia livros quase que diariamente. E foram ficando para trás muitas e muitas obras fundamentais da literatura universal.


Fonte:
Nilto Maciel

Isabel Dias Neves (Fardo Florido)

Primeiro livro de poesia de Isabel Dias Neves, a Belinha, Fardo Florido, foi publicado em 1995.

O que faz a grandeza deste livro de poemas e torna muito especial o fazer poético de Belinha, é a sua ligação com a terra, o fio condutor do livro, tornando-a a mais autêntica representante dos cantores do Cerrado e uma das poucas (senão a primeira) poetisa do Tocantins, o Norte tão amado de onde veio, trazendo no coração essa bússola que aponta ininterruptamente para as suas raízes mais profundas.

Belinha já recebeu alguns importantes prêmios literários, o que garante a qualidade do seu trabalho de poeta exemplar que exercita a palavra com esmero. Demonstrando habilidade técnica, a poeta tira seus versos das moendas, dos moinhos loucos, amassando com os pés o barro das estrofes e enchendo nossas vidas dessas coisas principais e primeiras, paisagens tão esquecidas, como as madrugadas, as luas, rios, matas, as mangueiras, os pomares, os frutos, o plantio, o plantação, pássaros, gaivotas, ninhos: é “a mulher que planta” o encanto do seu canto de poesia.

Há, em Fardo florido, importantes registros históricos e sociológicos sobre as festas populares, o folclore, os usos e costumes dos povos do interior do Brasil, mais especialmente de Goiás e do Tocantins, “um povo que se abraça/ e só vive de promessa”, um povo cujo “suor de mãos calejadas/ dá comida pros romeiros”. Nossa poeta é corajosa quando propõe a beleza do verso ousado e profundamente verdadeiro: “Sentindo o cheiro de bosta de vaca”, que companheiro, igual, tem a mesma significação simbólica do “ouvindo o canto da fogo-apagou”- são os sentidos, o olfato, o ouvido, interpretando o mundo onírico das terras interioranas. A grande verdade é que a arte em Goiás é uma resistência cercada de bois e vacas por todos os lados. Obviamente, há muito estrume (aqui, sem conotação, por favor).

Nesse canto, quase que épico, na lírica de Belinha, não passaram despercebidas as diferenças sociais que desfilam com as crianças carregando enxadas e semeando o milho; a fome do pobre que morre roçando a terra e, fundamentalmente, “o suor do roceiro que se reparte entre aqueles que não roçam”. O poeta é o porta-voz do seu momento histórico e, mesmo não pretendendo realizar uma poesia engajada, a poeta nos mostra, de forma diluída pelos poemas, toda a problemática social que é profundamente dolorosa.

Fardo florido não é um grão que nasce, é um que renasce no coração da poeta que fez o seu plantio de sol e promete uma colheita farta. Isabel Dias Neves, a cantora da Gesta, a Terra, está colhendo o fruto sazonado da maturidade, “no reencontro (di)gesto/ da mulher com o seu chão”. Assim, este fardo que é florido torna-se leve e torna-se, principalmente, um livro que deve ser lido e dever ser amado.

Textos escolhidos

P(OMAR) DE NÓSPara Marcelina Dias Neves, minha mãe

É doce e vão esse pomar;
sombra feita,
flores fartas,
frutos gerados
sensualizam a boca.

Pomar que se almeja e conta
é o que se planta.

Sombra firme - reduzida,
flores novas - raras,
frutos fartos - racionados.
Tudo à mão - sem suor
nem invenção.

Pomar que se almeja e planta
é o que conta.

o trabalho com a terra
é um gesto de promessa:
molha a raiz com pranto e riso,
canta o plantio e a colheita,
sonha e arde a todo canto.

Pomar que se planta e conta
é o que se canta.

NOS PASSOS DE EVA

Rasgada a grossa veste,
brinca branco o algodão
nos dedos silenciosos
que lhe deliciam o âmago.

Batido, vira nuvem
e se deita no balaio,
ciente do novo corte
- o seu destino rodando.

Roda na roda ou no fuso;
faz-se infinito em fios.
O algodão que se fia
faz a maciez das redes.

Trançando rendas e rodas,
Eva semeia os sumos
e cria novos rostos.

Muda o mundo em silêncio
com o suor dos seus restos.

CHAMA

A chama que alimenta o passo
cassa o vôo na direção do eterno.

É inútil traçar o mundo
que não vai fundo na vida-morte
do amor. Todos dançam. Uns se entortam
na (di)gestão do doce e do acre - na aorta.

EXATO MISTÉRIO

A rachadura exorta
o canto e a aliança
que se deixam

e dilacera o manto
desse elo desvelado.

A racha é dura
e esmaece o gosto
desse laço
que foi denso
e misteriosamente ex(ato).


Fonte:
Cleber Toledo e Antônio Miranda. Disponível em Passeiweb

Eliana Jimenez (Participe do Blog Poesia em Trovas)

 
O blog "Poesia em trovas", onde publico a Trova-legenda, completou 100 mil acessos nesta semana. Para comemorar, vou incrementar a postagem com uma enquete, desta forma:

1) A publicação será feita da maneira costumeira, por ordem alfabética.

2) Somente os trovadores participantes terão direito a voto e podem mandar um e-mail, em até 2 dias após a publicação, informando qual foi a trova que mais agradou na postagem;

3) A trova que for mais votada figurará logo abaixo da imagem e as outras, por ordem alfabética, logo em seguida;

4) Se houver empate ou votação muito dividida, até três trovas poderão figurar abaixo da imagem.

5) A enquete já vai valer a partir da imagem atual (veja no blog) para envio da trova até 15/03/2014.

Aproveito para agradecer a todos os amigos trovadores pela participação, incentivo e principalmente pelo carinho que esse trabalho recebeu desde o início.

abraços

Eliana
 http://poesiaemtrovas.blogspot.com.br/

sábado, 8 de março de 2014

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Mulher)

clique sobre a imagem para ampliar

Francisco Pessoa (Trova para a Mulher)


Débora Novaes de Castro (Mulher)

Clique sobre a imagem para ampliar

Ógui Lourenço Mauri (Mulher... A Vida!...)

clique sobre a imagem para ampliar

Dorothy Jansson Moretti (Trova)

Dorothy é de Sorocaba/SP

José Antonio Jacob (Tu, Mulher)

clique sobre a imagem para ampliar

Carlos Lúcio Gontijo (Mulher Amada)

O poeta é de Santo Antonio do Monte/MG

Errata do Universo de Versos n. 145

Aos que receberam as postagens de ontem pelo e-mail:

Como bem observado pela autora do soneto, houve uma falha não de digitação, mas de desatenção de minha parte (peço desculpas):

No primeiro verso do último terceto do Soneto Velha Chácara, de Dorothy Jansson Moretti, de Sorocaba

onde se lê:

 No pomar um jardineiro abrindo os braços mansos

O correto é:

No pomar um jambeiro abrindo os braços mansos.

Aos que acessarem o soneto pelo blog, já está corrigido.

Luiz Alberto Machado (É pra ela)


Regina Kreft (Mulher)


Anônimo (Uma Flor para a Mulher)


Cecília Meireles (Serenata)


Cora Coralina (Assim eu vejo a vida)


quinta-feira, 6 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Ser "alguém")

Nestas últimas décadas, um dos fatos sociais mais importantes é a saída da mulher do seu casulo doméstico e a sua entrada, quase em massa, nas profissões e atividades dantes reservadas ao homem. Tivemos agora a prova disso com a espetacular vitória das mulheres nas recentes eleições, em muitos casos com maioria esmagadora sobre os seus adversários - homens. E aquelas que ainda não tiveram a sua oportunidade - a sua hora e sua vez, como diria mestre Rosa - ficam num desespero de "aparecer", de "vencer", de "ser alguém".

Na minha área, por exemplo: as que me procuram, o que elas chamam de "ser alguém" é ver o próprio nome em letra de forma, assinando colunas de prosa e verso, é aparecer nos jornais, nas revistas, na TV.

Não sabem que isso de "ser alguém" acaba não sendo nada. É apenas um nome impresso ou uma imagem no vídeo. É renunciar a si, conformar-se em ser apenas a figura que o público imagina que ela é, encher o molde do figurino que lhe traçaram, realizar perante o auditório a personalidade que o público quer que ela seja -, sem consideração nenhuma pela sua própria personalidade. Ser alguém é não ser ninguém, é ser um boneco, uma voz, uma assinatura. Posso dar muitos exemplos práticos, como demonstração. E, para não ofender ninguém, começaremos com o exemplo da mulher que assina esta coluna, que é pau para toda obra e já não se ofende com coisa nenhuma.

Em geral, as moças me escrevem dizendo que "gostariam de estar no meu lugar, serem conhecidas, citadas", etc. Muito bem. Pois então quem é que sou?

Na minha própria opinião sou uma pobre de Cristo, mas isso não vem ao caso.

Aos olhos delas, sou uma senhora que escreve nas folhas, tem retrato impresso e é lida ou citada em toda parte onde se lê o jornal ou se vêem os programas "educativos" da TV. Mas já se lembraram vocês que este nome que lêem impresso e que vai a todo lugar é apenas um nome, não é uma pessoa? Que não tem nada comigo, apenas me dá trabalho e incômodo? Nada tem a ver coma minha vida propriamente dita, com o que eu queria ser e que não fui, com o que eu sofro e com o que eu gosto? A entidade que vocês conhecem, o nome que vocês pensam que eu sou, é apenas aquela assinatura no alto ou ao pé do artigo. Não é uma mulher, é uma contrafacção. Não me pertence, antes me escraviza, me obriga muitas vezes a dizer o que não quero, a fingir o que não sinto.

Se eu por exemplo, quisesse mudar e escrevesse nesta página receitas de crochê ou segredos de cozinha - temas de que gosto, ou, pelo menos gostava quando não tinha as limitações da vista e dos movimentos - o homem do jornal teria vindo, com todo o respeito, me tomar satisfações, porque sou paga para outra coisa. Era como se o cachorro ensinado de circo de repente deixasse de fazer aqueles papéis ridículos e ladrasse contra a platéia, feito um cachorro normal.

É verdade que posso comentar meus aborrecimentos, minhas singelas alegrias - mas dentro de determinadas condições, submetendo tudo à deturpação literária, "escrevendo", maculando a pureza e a autenticidade do desabafo com a obrigação de transformar aquilo em matéria impressa. Se conto apenas que tive uma úlcera ou uma dor de fígado, talvez os enoje ou pelo menos os enfade; preciso usar de astúcia e transformar a dor e a náusea em qualquer coisa comovente, ou engraçada, ou curiosa. E, no entanto, o que tive foi uma dor comum, igual à dor de todo mundo, mas que me incomoda ou me assusta, e da qual eu gostaria de falar, como todo doente gosta.

É esse o meu, o nosso privilégio - o privilégio de ser escravo. Outro exemplo: imaginemos que a nossa artista predileta, no meio do espetáculo, se chateasse, largasse a peça, tirasse a caracterização incômoda e se pusesse a falar de outra coisa. A menos que o gesto não fosse tomado como um novo maneirismo gracioso da atriz, o público ficaria danado da vida, reclamaria aos gritos e obrigaria a fugitiva a repor a cabeleira falsa, a voltar docilmente a dizer as linhas alheias, prisioneira do público, do papel, prisioneira principalmente do seu cartaz, da sua obrigação.

É no anonimato e no silêncio que se pode realmente ser alguém. Na paz, na decência da vida particular, o homem é dono do mundo inteiro. Tudo que tem ao redor é seu, pode sonhar, ou dormir, dizer o que quer ou transformar-se à vontade. Recitar a peça ao seu gosto, não tem leitor nem ouvinte que o obrigue a conformar-se com um papel ou uma figura, como é o caso quando ele quer ter valor comercial e êxito. Aliás, a palavra êxito só agora apareceu aqui, mas é ela é a chave de tudo. Pois toda a nossa vida está condicionada a isto: êxito. Por amor dele nos padronizamos num tipo que no fundo detestamos, por culpa dele vivemos no terror da frase errada, do gesto errado.

E, no final de contas, já que me dei como exemplo, feliz de mim que não fui, não sou, praticamente ninguém nessa escada perigosa. Quem menos sobe, menos tem medo da queda. Mas quem está lá nos pináculos do favor público, mais forte sente a melancólica ameaça da descida. É que, além dos cimos, não há nada - senão a vertente oposta.

 Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 12 de outubro de 2002.

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) Parte 1

(tradução Monteiro Lobato)

 Vou contar a história da grande guerra que Rikki-tikki tavi sustentou sozinha, na sala de banho dum grande bangalô do acantonamento de Segowlee. É verdade que Darzee, o passarinho-alfaiate, a ajudou, e Chuchundra, o rato mosqueado que nunca ousa caminhar pelo meio da casa e sempre passa deslizando ao longo das paredes, lhe deu um aviso. Isso, porém, foi pouco diante do muito que Rikki-tikki fez.

Era uma jovem mangusta, que pela cauda e pêlo se assemelhava a um gatinho, embora pela forma da cabeça e hábitos lembrasse a doninha. Tinha os olhos cor-de-rosa, e também a ponta do focinho; podia coçar-se com todas as patas, as de diante e as de trás, à vontade; podia também eriçar a cauda ao jeito dos chumaços de lavar garrafa, e seu grito de guerra, quando estava em casa nos campos, era Rikk-tikk-tikki-tikkitchek !

Certo dia as águas dum temporal de verão a arrastaram da toca onde vivia com os pais, e a levaram, a debater-se aflitíssima, para dentro dum valo que havia perto. Rikki agarrou-se a um tufo de ervas flutuantes e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, estava numa rua de jardim iluminada pelo sol, com um menino na frente, que dizia:

- E uma mangusta morta. Vamos enterrá-la.

- Não, disse a mamãe. Vamos pô-la a secar, porque pode não estar bem, bem, bem morta.

E a recolheu dentro de casa, onde um homem a examinou e declarou que realmente não estava morta, mas apenas asfixiada; envolveram-na então em flanelas e a puseram perto do fogo... e Rikki-tikki logo abriu os olhos e espirrou.

- Bravos! - exclamou o homem (era um inglês que havia alugado o bangalô muito recentemente). - Agora é não a assustarem e veremos o que a pobrezinha faz.

A coisa mais difícil do mundo consiste justamente em assustar a mangusta, porque é um animalzinho da cabeça aos pés feito de curiosidade. Parece que a divisa da raça é: "Procura e descobre", e Rikki-tikki não desmentia as qualidades do seu povo. Provou logo a flanela que a envolvia e verificou não servir para comer; correu depois em redor da mesa, sentou-se, foi empoleirar-se sobre o ombro do menino.

- Não tenha medo, Teddy, disse-lhe o pai. Esse é o modo de as mangustas mostrarem amizade.

- Ui! Ela está-me fazendo cócegas no pescoço...

Rikki-tikki enfiou os olhos por entre a gola e o pescoço do menino, farejou-lhe as orelhas e depois veio dum salto ao chão, onde se sentou, esfregando o focinho.

- Meu Deus! - exclamou a mãe de Teddy. - Então é a isto que chamam animal selvagem? Será que compreende que somos bons para ela e mostra-se grata?

- Todas as mangustas são assim, disse o marido. Se Teddy não lhe puxar a cauda, nem procurar metê-la em gaiola, viverá em paz aqui dentro, correndo por toda a casa o dia inteiro. Vamos dar-lhe alguma coisa de comer.

Veio um pedaço de carne crua, que Rikki-tikki achou excelente. Depois que a comeu foi para a varanda e sentou-se ao sol, eriçando a cauda para fazê-la secar completamente. Estava já quase sarada.

- Há mais coisas a descobrir nesta casa do que a minha gente lá no mato verá em toda a sua vida, pensou consigo a mangustinha. Vou ficar por aqui.

E começou a correr o bangalô, peça por peça. No banheiro por um tico não morreu afogada. No escritório sujou a ponta do nariz no tinteiro e a queimou na brasa do charuto, ao saltar para o colo do pai de Teddy a fim de vê-lo manejar a pena. Ao cair da noite correu ao quarto do menino para ver a criada acender o lampião, e quando Teddy foi para a cama Rikkitikki fez o mesmo. Mas era má companheira, visto como se levantava cem vezes durante a noite para descobrir a causa de todos os barulhinhos. Os pais de Teddy tinham vindo dar no filho a última vista d'olhos e lá encontraram a mangusta, muito esperta, deitada no travesseiro.

- Não gosto disto, declarou a mamãe. Ela é capaz de mordê-lo.

- Não morde, não, disse o pai. Teddy está mais seguro na companhia deste animalzinho do que se estivesse uma ama a guardá-lo. Se uma cobra entrasse no quarto agora...

No dia seguinte, muito cedo, Rikki-tikki veio à varanda para a refeição, repimpada no ombro de Teddy; recebeu uma banana e um pouco de ovo cozido, deixando-se tomar ao colo por todos os presentes. A mangusta bem educada procura tornar-se logo doméstica, e a mãe de Rikki, que já morara na casa do general comandante da região, lhe havia ensinado o que fazer, caso caísse nas mãos dos homens brancos.

Depois do almoço Rikki foi passear e observar o que havia pelo jardim. Era um grande jardim, mas um tanto largado, com tufos de roseiras Marechal Niel espessos qual moitas, e limoeiros e laranjeiras e touceiras de bambu enormes. Rikki-tikki lambeu os beiços de gosto.

- Que esplendido campo de caça! - disse, e a esse pensamento sua cauda se eriçou. Imediatamente se pôs a correr dum lado e doutro, farejando tudo. Súbito, ouviu lamentações doloridas que vinham de dentro duma moita de espinheiros.

Era Darzee, o passarinho-alfaiate e sua companheira. Moravam ali, tendo construído um belo ninho por meio da junção de duas folhas largas que coseram com fibras nos bordos; a concavidade assim formada fora enchida de paina. O ninho balouçava-se no ar, enquanto os donos, com os olhos no chão, piavam um choro triste.

- Que é que têm vocês? - perguntou Rikki-tikki.

- Somos muito infelizes, respondeu Darzee. Um dos nossos filhotes caiu do ninho, e Nag o devorou.

- Hum ! exclamou Rikki-tikki. O caso é realmente triste. Mas sou nova por aqui e não sei quem é Nag.

Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o cabelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco - e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu cabelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direi to de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigilava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag molejou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás ! cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado ! Malvado Darzee! exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.
================
continua…
 
Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

Jangada de Versos do Ceará (12) José Albano

José d'Abreu Albano
Fortaleza 1882-1923


SONETO DA DOR
 

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.

SONETO DA PRECE
 

Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminando este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor Divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!

SONETO DA SAUDADE
 

Trato só da perpétua saudade
Que mora neste peito desditoso
Mas o queixume derramar não ouso
Com medo de que aos outros desagrade.

Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se traslade.

Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro em que ando
Para espalhar o meu tormento infindo.

Ah! seja o teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando!

SONETO DO AMOR

Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido,
Sem um suspiro vão, sem um gemido,
No mal mais doloroso e mais cruento.

É vagar desta vida tão isento,
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido,
É todo o seu sentir num só tormento.

É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.

É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido, por dinheiro,
E entre ladrões morrer crucificado.

SONETO DO SONHO

Doce me foi viver, quando sonhava
E entre esperanças e ilusões sorria,
Antes de conhecer a dor sombria
Cuja lembrança na alma inda se grava.

Naquele tempo não adivinhava
A pena sem igual que dura um dia
Mas sempre faz surgir a fonte fria
Que os saudosos olhos banha e lava.

Cansado coração, tu nunca viste
Outro que tanto gozo e mágoa sente,
Outro que a tanto bem e mal resiste.

Amor te castigou severamente,
Pois foste, uma só vez apenas, triste
E nunca mais tornaste a ser contente.

SONETO PESSIMISTA

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com as saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

Rachel de Queiroz (Falso Mar, Falso Mundo)

Falso mar, falso mundo reune 89 crônicas produzidas por Rachel de Queiroz entre 1983 e 2000. A autora deixa em sua obra as impressões de quem assistiu a todo o processo e degradação do mundo ao longo do século XX.

Especialmente na crônica Falso mar, falso mundo, que dá título à coletânea, Rachel de Queiroz apresenta-nos, por meio de suas experiências e escrita, a confirmação da existência de um sujeito cuja identidade fragmentada remete a literatura contemporânea brasileira a uma nova perspectiva. Aberta a situações, as mais diversas possíveis, que surgem, talvez, como respostas alternativas da modernidade ou ainda, para reforçar a posição de que essa nova literatura permite a coexistência de traços muito diferentes e marcantes, a autora deixa transparecer sua posição sobre todas essas ocorrências: o medo de que, em meio a tantas transformações, os indivíduos deixem de ser seres animados e passem a ser considerados, meramente, bonecos comandados por um novo ponto de vista, alterado e distorcido, e deixem de ser sujeitos ativos para aceitar, com passividade, as novas imposições sociais.

As crônicas também mostram uma narração generosa e profunda sobre a velhice. Traz ainda as impressões da literata, da bisavó, da amiga e acima de tudo, da cidadã, que com a idade e vasta experiência que tinha, não abandonou o sertão nordestino e, especialmente, o cearense, onde está encravada a sua Fazenda Não Me Deixes, se entristecendo com o período seco e vibrando com a volta das chuvas:

    “Não é entusiasmo sertanejo, não é patriotismo cearense, mas o sertão está lindo, tão lindo, que poderia competir com as paisagens clássicas de além-mar” ("Nós e a natureza").

Aliás, algo que não lhe saía do pensamento, era o sertão; estando em Berlim Ocidental, encontra “a caatinga nordestina em réplica”. Isso foi o suficiente para o retorno à Pátria natal, “Me vi de repente no Ceará, tal como deve ele estar agora...” E prossegue a lúcida amiga, que lembra “Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza...” ("Ah, os amigos").

A arte da escrita, tão bem dominada por Rachel de Queiroz, está presente nessas crônicas. Ao final de cada crônica, uma lição nos é dada e enriquecidos ficamos com a leitura de quem muito sabe, muito viveu e mostra que a vida é um eterno aprendizado.

Nas lições de seu bisneto Pedro e sua ânsia de conhecer o mundo, acompanhada da busca da liberdade, Rachel nos dá um exemplo de sua sabedoria, revestida da simplicidade comum aos gênios e sábios dessa vida, com suas paixões, seus declínios e acertos.

Na crônica “Rubem Braga explicava Portugal...”, Rubem Braga, à sua maneira casmurra, justificava o título e ainda ensinava à linda rapariga que não lhe dava bola, que é impossível recitar Os lusíadas ao ritmo do atual falar português, pois Camões metrificou o poema ao ritmo do falar de então, que veio a ser o nosso, brasileiro e, sobretudo, carioca.

A crônica "Os Noventa", fecha o livro com chave de ouro. Sendo que nele vemos o futebol e a ânsia que tínhamos pelo pentacampeonato que conquistamos; os colegas; o sertão; o Rio de Janeiro; as Guerras; enfim, o dia-a-dia sob a ótica lúcida de quem se preocupava com o fim do mundo e via atenta as novidades do novo milênio e lembrava o "Falso mar, falso mundo", tendo por pano de fundo uma ´Praia Artificial´ no Japão, observando que "Aquilo não pode deixar de ser pecado".

Fonte:
José Luís Lira, advogado e escritor e Adriana Giarola Ferraz Figueiredo (UEL)
Disponível em Passeiweb

quarta-feira, 5 de março de 2014

Rachel de Queiroz (Livro, Televisão, Internet)

É dizer como o outro: já que o homem não vai ao livro, que vá o livro ao homem. Multipliquem-se as feiras de livros pelas praças da cidade, e não só desta, como de todas as cidades do interior. Ah, o interior! As livrarias são poucas, a distribuição das editoras não é boa. Nunca se pisa em cidade do interior sem escutar dos interessados a queixa de que livro de fulano, que está muito falado, não apareceu à venda na terra. Talvez fosse um êxito inesperado a inauguração de feiras de livros por este Brasil afora: o pessoal ver os livros assim de cara como a farinha e os legumes. Poder mexer, palpar, olhar as figuras, se interessar. Seria talvez uma revolução.

É claro que, com a vida difícil de hoje em dia, o pessoal anda primeiramente preocupado em juntar algum no bolso para adquirir o pão, a roupa e o teto: e assim se esquece que a alma também precisa de alimento, esquece aquela velha história de que nem só de pão vive o homem, e vai deixando o livro de lado.

Mas assim mesmo, com todas as dificuldades da vida, o fato é que, para terra tão grande, vende-se muito pouco livro no Brasil. Será que o povo não tem mais tempo para ler? Nas casas mais humildes de cidades do interior aparece com notável frequência a antena de TV. E se tem antena, tem TV lá dentro.

O homem tem posto em uso invenções estupendas para o seu divertimento, mas a verdade é que não há milagre eletrônico capaz de superar o poder de entretenimento de um bom livro. A TV é ótima mas você tem de depender dos caprichos da programação, escuta e vê o que não pediu, tem de se submeter a horários criados pelos outros de acordo com as conveniências deles, não da sua, e sabe que está sendo incluído numa categoria subjetiva a que eles chamam de público-alvo, tudo catalogado como roupa em gaveta: roupa chique (classe A e B), gavetas de cima; roupas de uso doméstico e de trabalho, gavetas do meio; e lá embaixo, a roupa descombinada e sem grife dos programas de auditório. E ainda não falei na praga maior, que é o anúncio. O eterno, inevitável, apavorante anúncio, mal necessário, sim, que chateia durante meia hora para nos deixar ver um programa de cinco minutos.

Cinema é muito bom, mas é caro, longe de casa, exige que se saia, mude de roupa, e também, só se veem as fitas que estão em cartaz, e não aquelas que a gente desejaria.

O livro, não. Apesar de ter subido de preço, ainda custa barato, mais barato do que um ramo de rosas para a namorada ou um jantar no restaurante. Uma noitada em boate, com show e bebida, dá para comprar algumas dezenas de volumes - quer dizer, divertimento para meses e até ano, se o leitor é vagaroso. O livro não exige capital nem maquinismo, não tem anúncio - e não tem patrocinador! A sua variedade tem como limite o infinito; discute com você todos os assuntos que a mente humana já tratou, apresenta-o às personalidades mais ilustres e lhe conta os seus segredos. Você quer saber as últimas teorias científicas sobre o espaço cósmico, os ritos funerários dos egípcios, a série cronológica dos amantes de Catarina, a Grande? Há sempre um livro que lhe dará a informação. E se o que você deseja é sentir a presença inefável dos grandes poetas, a imaginação dos maiores ficcionistas - ah, eles estão todos aí, se oferecendo à sua mão, na hora em que você os convocar. Poemas, romances, contos, narrativas, memórias - o que a mente do homem criou, desde que sabe escrever - e isso já faz séculos, milênios - está tudo nos livros, guardado nos livros, como um tesouro para seu uso.

E a feira de livros, além de colocar o livro ao alcance fácil do comprador, a preços de desconto, ainda tem a parte social e simpática: as festas de autores, em que não só o livro, mas os que os escrevem, os autores, são convocados a se apresentar ao povo, num contato democrático e cordial. Aí você, leitor, terá oportunidade de conhecer em carne e osso seu romancista predileto, o seu poeta de estimação ou o seu erudito de confiança.

Eu sei, eu sei: todos vocês, jovens, vão dizer - "Mas hoje, toda informação que quisermos, vamos encontrar na internet." Mas é isso: internet é informação, é trabalho, não traz prazer ou divertimento. Pois então vá experimentar ler, na íntegra, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, ou Guerra e Paz, de Tolstoi, pela internet. E depois me diga.

Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo. 19  de outubro de 2002

Humberto Rodrigues Neto (Trovas Avulsas)


Ah, que fados sorrateiros
têm nossas vidas sombrias...
os leitos sempre solteiros,
de duas camas tão vazias!

Ano velho não demora,
põe-te ao largo e vai saindo.
Anda, ano velho! Cai fora,
pois o novo já vem vindo!

Ao teu vigor vibro, tremo,
sinto o sangue em alvoroço
se ao leito te abraço e espremo,
volta a mim o ardor de moço!

As contas de amor resolvo
E as liquido de uma vez:
teu beijo com dois devolvo
pra me dares outros três!

As mulheres são primores,
que Deus fez pensando em mim...
e ao perceber que eram flores,
plantou-as no meu jardim.

Até nos dias frios, nevados,
as nossas sensuais fraquezas
tornam dois corpos gelados
em duas fogueiras acesas!

A um retiro me decido
levar-te pra ousarmos mais,
mas calo e não te convido,
porque não sei se tu vais!

Buscar o céu noutro espaço,
não, meu bem, não é  preciso;
se eu tiver o teu abraço,
que me importa o paraíso?

Como é bom, como eu desejo,
quanto a minh'alma se agita
de nos lábios ter um beijo
de mulher moça e bonita!

Como é doce, em terno encosto,
debruçar por entre apelos,
o entardecer do meu rosto
na noite dos teus cabelos!

Como sofrem meus desejos,
ao saber, meu querubim,
que os teus braços e os teus beijos
não foram feitos pra mim!

Confesso-te meus queixumes,
que esquecer jamais consigo:
suportar mortais ciúmes
desse alguém que está contigo!

Dá-me, Deus, com certa urgência,
a graça que aqui rabisco:
dez por cento da paciência
que puseste em São Francisco!

Dá-me um beijo bem ardente,
já que és moça e tão menina,
só pra ver se assim a gente
sente algo que combina!

Das mágoas que me consomem,
a que mais me faz chorar
é ter ciúme do homem
que puseste em meu lugar!

Desse teu beijo fagueiro,
jamais vou sentir-me farto...
dá-me mais dois, e um terceiro,
e mais três depois do quarto!

Deus foi artista perfeito
no marcar da noite os mastros,
mas bem que podia ter feito
dos teus dois olhos, dois astros!

De vez em quando o ciuminho
vem junto a mim e reclama;
sente inveja desse ursinho
com que enfeitas a tua cama!

Dois mimos teus inda anseio,
pois vivos n’alma  os mantive:
o abraço que jamais veio
e o beijo que nunca tive!

Do paraíso os recamos
não estão nas Escrituras,
pois de há muito os desfrutamos
nas nossas mútuas loucuras!

Do teu rosto a linda imagem
é um colírio à nossa vista,
pois pareces personagem
dessas capas de revista!

Em matéria de grandeza,
Deus não se omitiu em nada;
pegou tudo que é beleza
e deu tudo à minha amada!

É nos becos da tua rua
que eu quero te namorar,
pra que só o olhar da lua
se atreva a nos espiar.

Entre afagos e carinhos,
pressentem meus sonhos vãos
que há mil sins escondidinhos
na timidez dos teus nãos!

Entre nós Deus colocou
da distância os desatinos;
sem saber crucificou
na mesma cruz dois destinos!

É sublime ouvir o frolo
da saia erguida em viés...
desde a alvura do teu colo
ao rosado dos teus pés!

Eu não sei qual julgamento
de ti sobre mim recaia,
mas adoro ver o vento
levantando a tua saia!

Lisinhas, macias, mimosas,
carinhosas e branquinhas,
são fofinhas, são formosas
quais duas rosas, tuas mãozinhas!

Meu amor, eu não pensava,
que pra ver o paraíso,
bastava, apenas bastava
contemplar o teu sorriso!

Meus olhos não mais buscaram
mentirosos paraísos
desde o dia em que pousaram
no encanto dos teus sorrisos!

Mimos de tanta beleza,
tais como os teus, jóia minha,
não possui uma princesa,
nem os sonha uma rainha!

Não maldigas as diabruras
que o amor nos faz cometer,
antes fazer mil loucuras
que ser sãos e não viver!

No amar-te tanto é que sinto
do pecado o vil assomo,
pois ao te abraçar pressinto
mil tentações que eu não domo!

No céu Deus gravou a face
de faiscantes universos
pra que o poeta os cantasse
na beleza dos seus versos!

No olhar que a noite esquadrinha,
eu procuro a imagem tua
e te encontro sentadinha
na foice prata da lua!

Outra mulher não havia
sentido o amor tão desperto,
pois  antes sequer sabia
que o céu ficava tão perto!

Pergunta ao mestre o aprendiz:
- Que é a luz, nos conceitos teus?
E a sorrir, Einstein lhe diz:
– A luz é a sombra de Deus!

Por nuances maravilhosas
meu raciocínio se espraia
no quão devem ser ditosas
as tuas colchas de cambraia!

Possa eu dar-te, ó sepultura,
algo que os vermes não comem:
mente limpa e alma pura,
dois tesouros num só homem!

Pra não viver tão sozinho,
quisera ter-te por dona,
só pra ser como o gatinho
que em teu colinho ronrona.

Quando deito não me esgueiro
de carinho tão escasso,
pois me abraço ao travesseiro
na ilusão de que te abraço!

Que em nós dois Cupido mire
suas flechas num voo breve;
que de ti ninguém me tire,
que de mim ninguém te leve!

Quem foge à paixão tirana
temendo remorsos ter,
ou tem uma mente insana,
ou nunca amou pra valer!

Quero afastar os revezes
das mágoas que me consomem:
ser teu menino cem vezes
e mil vezes ser teu homem!

Quero, em anseio incontido,
do céu levar-te aos confins,
e escutar junto do ouvido
teus nãos simulando sins!

Que vivam na dor, conjuntos,
dois corações machucados,
pois é melhor sofrer juntos
do que chorar separados!

Remexo da mente o cofre,
mas não descubro o que é isto:
na face de alguém que sofre
eu vejo o rosto do Cristo!

Saudade é glória ou castigo
quando alguém, num tom pungente,
noss'alma leva consigo
e deixa a sua com a gente!

Saudade, pensando bem,
é quando a mente se queixa
que tenta esquecer alguém,
mas o coração não deixa...

Se consulto o coração
pra ver aquela que o dome,
ele pulsa de emoção
e diz baixinho o teu nome!

Se há algo que nos deslumbra
e ao proibido nos inclina,
é aquele beijo em penumbra
no cerrar de uma cortina!

Sempre alheia ao meu apelo,
és a encarnação de Fedra,
pois em teu peito de gelo
bate um coração de pedra!

Se puxo as mãozinhas tuas,
tento mais perto senti-las
pra ver dividida em duas,
minha  face em tuas pupilas!

Se teu bem partiu, foi embora,   
não penses nunca mais nele;          
enxuga os olhos, não chora,
e me põe no lugar dele!

Sobre meu chão colocaste
um mar de espinhos e abrolhos
desde o dia em que lançaste
sobre mim teus lindos olhos!

Somos seres incompletos
vivendo eterno amargor...
Você tão pobre de afetos
e eu tão carente de amor!

Tão intenso é aquele amar
que mantemos eu e ela,
que a lua vem nos espiar
pelas frinchas da janela.

Vão tão bem os  teus pezinhos
calçadinhos nas chinelas,
que os meus olhos, coitadinhos,
vão doidinhos atrás delas!

Vem, neste inverno polar,
aquecer-me em teus mormaços...
Vem, meu quindim, me aninhar
no verão dos teus abraços!

Vem, ó “Príncipe Encantado”
dar nela o beijo da vida,
depois deixa a meu cuidado
a tua “Bela Adormecida”!

Ver amor igual ao nosso,
nunca sonhes nem esperes:
quero ter-te mas  não posso,
podes ter-me mas não queres!

Teófilo Braga (O Coelho Branco)

Recolhido na Ilha de São Miguel, Açores

Havia um rei que tinha uma filha já crescida, que gostava muito de se lavar no balcão, e pedia à aia que levasse a bacia e outros preparos e uma bandeja para pôr os anéis. Vinha um coelhinho branco, furtava-lhe os anéis e fugia; a princesa gostava de ver aquilo, não dizia nada, ia ao cofre e metia outros nos dedos.

Continuou o coelhinho a furtar, até que a princesa ficou sem nenhum anel. Antes tinha tão grande abundância, que ela ficou muito triste e melancólica; o rei teve muita pena com isto, e até mandou pôr um edital para virem todas as pessoas antigas para contarem contos e histórias para alegrarem a princesa. Vieram muitas pessoas, mas a princesa estava no mesmo; até que vieram duas velhas sem saberem o que haviam de contar.

Pelo caminho encontraram um burro sem pés nem mãos, carregado de lenha; as velhas foram em seguimento do burro, viram-no chegar a umas casas, descarregar a lenha, e acarretá-la para dentro. Elas então subiram e no patim em cima viram umas púcaras a ferver; uma das velhas meteu o dedo e provou, e neste tempo ouviu uma voz a dizer-lhe:

— Não proves, que não é para ti.

E a velha olhou pelo buraco da chave e viu um coelho, que tirou a pele, e tornou-se em um príncipe, e disse:

— Quem me dera ver a dona dos anéis que tenho aqui.

As velhas partiram para o palácio, e lá contaram o que tinham visto à princesa. Isto, já se sabe, alegrou logo a princesa, e disse ao rei que queria ver aquilo. Foram todos, velhas, princesa e rei. Viram o burro fazer o mesmo, e foram à dita casa. A princesa meteu o dedo e provou; neste ponto ouviu dizer:

— Prova, que é para ti.

Ela foi vigiar (espreitar), e as portas abriram-se, e o coelho disse:

— Quem me dera ver a dona dos anéis que tenho aqui!

A princesa respondeu:

— A dona sou eu.

O coelho tornou-se príncipe, porque aquelas palavras lhe quebraram o encantamento, e casaram, foram muito felizes, e as duas velhas ficaram damas de honra do paço.
======================
Notas Comparativas

Em uma versão do Algarve, inédita, vinha o estribilho poético:

Lenço, liga, cordão e cuidado,
Quem me dera ver aqui
A dama do meu agrado!


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_Tradicionais_do_Povo_Portugu%C3%AAs/O_coelho_branco

Laurindo Rabelo (Sonetos Avulsos)

SONETO DO FADO

Geme, geme, mortal infortunado,
É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinqüente,
Sempre tirano algoz terás no Fado

Mas, para não ser mais envenenado
O fel que essa alma bebe, e o mal que sente,
Não te iluda o falaz riso aparente
De um futuro de rosas coroado.

Só males o presente te afiança:
Encrustado de vermes, charco imundo,
Se te volve o passado na lembrança.

Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.

A UMA SENHORA

Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade impia,
Tu, amada do Anjo d'Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.

Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-me de magia,
E lá dos mortos na solidão sombria
Operou-se um milagre de repente.

A morte sobre a fouce, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!

Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C'um sorriso de glória um — bravo — deu.

À SRA. MARIETA LANDA

Disseste a nota amena d'alegria,
E, arrebatado então nesse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh'alma aos céus subia.

Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em sucessivo e rápido transporte?!

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida ou dar a morte,
Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.

À MESMA SENHORA

Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena,
À cheia de solene majestade,
Já lânguida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Mulher, do canto teu no dom superno
A dádiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.

E minh'alma, num êxtase embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gozá-lo, eterna a vida.

À MESMA SENHORA

Alcíone, perdido o esposo amado,
Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia
O céu, de seus amores descuidado.

Em vão o pranto seu d'alma arrancado
Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia,
De seu cruel penar se ria o fado.

Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera
Tão bela, tão gentil, tão doce e clara,
Daquela que hoje neste palco impera.

Se assim cantasse, o túmulo abalara
Do bem querido; e, branda a morte fera,
Vivo o extinto esposo lhe entregara.

CONTA E TEMPO

Deus pede estrita conta do meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas como dar em tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
Dado me foi bom tempo e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta;
Quero, hoje, fazer conta e falta tempo.

Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis esse tempo em passa-tempo:
Cuidai enquanto é tempo em fazer conta.

Mas, oh! se esses que contam com seu tempo
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não choravam, como eu, o não ter tempo.