quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

H. G. Wells (A Loja Mágica)

Eu já tinha visto várias vezes a Loja Mágica, a distância; já tinha passado diante da sua vitrine cheia de objetos curiosos, bolas mágicas, galinhas mágicas, cones coloridos, bonecos de ventríloquo, material para mágicas usando cestos, baralhos que pareciam comuns, todo tipo de coisa; mas nunca me ocorrera entrar ali até que um dia, quase sem aviso, Gip me puxou pelo dedo até aquela vitrine, e se comportou de tal forma que não tive escolha senão entrar ali com ele. Eu não lembrava que a loja ficava justamente ali, para falar a verdade — uma fachada de tamanho modesto em Regent Street, entre uma loja de fotografias e uma loja cheia de pintos recém-saídos das incubadoras. Mas lá estava ela. Eu tinha imaginado que ela ficava mais perto de Piccadilly Circus, ou depois da esquina, em Oxford Street, ou mesmo em Holborn; sempre a vira do outro lado da rua e um pouco inacessível, com algo em sua posição que lembrava uma miragem; mas aqui estava ela, agora, sem nenhuma dúvida, e a ponta do dedinho gordo de Gip batia com ruído na vitrine.

— Se eu fosse rico — disse Gip, apontando para o Ovo Que Desaparece — eu compraria aquele ali para mim. E aquele. — Era o Bebê Que Chora, Muito Humano. 

— E aquele também. — Este último era uma coisa misteriosa, e se chamava, de acordo com um cartãozinho pregado sobre a caixa, “Compre Um e Deixe Seus Amigos Espantados”.

— Qualquer coisa — explicou Gip — desaparece embaixo de um desses cones. Li isso num livro. E ali, pai, está a Moeda Que Desaparece... só que eles a colocaram com o outro lado para cima, para ninguém perceber como é feito.

Gip, bom menino, herdou as boas maneiras de sua mãe, e não pediu para entrar na loja nem me aborreceu em qualquer sentido; mas, sabem como é, de maneira inconsciente ele puxava meu dedo na direção da porta e suas intenções eram muito claras.

— Olhe aquilo — disse, apontando a Garrafa Mágica.

— E se você tivesse uma dessas? — perguntei, e ele me olhou radiante, ao ouvir uma pergunta tão promissora.

— Eu ia mostrá-la a Jessie — respondeu ele, como sempre pensando nos outros.

— Faltam menos de cem dias para seu aniversário, Gibbles — falei, pousando minha mão na maçaneta.

Gip não respondeu, mas agarrou meu dedo com mais força, e assim entramos na loja. Não era uma loja como as outras; era um bazar mágico, e toda a desenvoltura que Gip iria assumir se se tratasse de uma simples loja de brinquedos ia fazer-lhe falta agora.
Ele deixou a conversação por minha conta.

A loja era pequena, estreita, não muito bem-iluminada, e os sininhos presos à porta tintinaram novamente sua musiquinha plangente quando ela se fechou às nossas costas. Por alguns instantes ficamos ali sozinhos e pudemos olhar à nossa volta. Havia um tigre de papel machê sobre a tampa de vidro que cobria um balcão não muito alto: um tigre sério, com olhos bondosos, que agitava a cabeça metodicamente; havia uma porção de bolas de cristal, uma mão de porcelana segurando cartas de um baralho mágico, um bom estoque de aquários mágicos de variados tamanhos, e uma cartola que exibia suas molas internas com pouca modéstia. No chão estavam pousados espelhos mágicos: um que nos reproduzia longos e finos, um que inchava nossas cabeças e sumia com nossas pernas, e um que nos tornava atarracados e gordos como peças do jogo de damas; e enquanto ríamos diante deles o lojista, suponho, entrou no aposento.

De qualquer modo, em certo momento ali estava ele atrás do balcão: um homem moreno, de aspecto curioso, pele macilenta, com uma orelha maior que a outra e um queixo como o bico de uma bota.

— Em que posso ajudá-los? — disse ele, abrindo os seus dedos longos e mágicos sobre o tampo de vidro do balcão; e com um sobressalto percebemos sua presença ali.

— Gostaria de comprar alguns truques simples para o meu filho — respondi.

— De prestidigitação? — perguntou ele. — Mecânicos? Domésticos?

— Tem alguma coisa divertida? — perguntei.

— Hmmm... — disse o lojista, e coçou a cabeça por um instante, pensativo. Então, com um gesto bem visível, retirou da cabeça uma bola de vidro. — Alguma coisa assim? — perguntou, estendendo a bola.

Aquilo foi inesperado. Eu já tinha visto esse truque em parques de diversões inúmeras vezes — faz parte do repertório de qualquer mágico — mas não estava esperando por ele ali.

— Muito bom — falei, com uma risada.

— Não é mesmo? — disse o lojista.

Gip estendeu a mão que estava livre para receber o objeto... e achou apenas uma mão aberta e vazia.

— Está no seu bolso — disse o lojista. E lá estava mesmo!

— Quanto custa? — perguntei.

— Não cobramos pelas bolas de vidro — disse o lojista, com cortesia. — Elas vêm para nós... — tirou mais uma, agora do cotovelo — ... de graça. — Tirou mais uma bola da nuca, e a colocou em cima do balcão, junto da outra. Gip examinou sua bola de vidro com olhar esperto, depois observou as duas sobre o balcão, e finalmente encarou o lojista, que estava sorrindo.

— Pode ficar com estas também — disse o lojista — e, se não se incomodar, fique com esta, da minha boca. Olhe aí!

Gip me olhou calado em busca de orientação, e com um silêncio profundo separou para si as quatro bolas, agarrou de novo meu dedo, e preparou-se para o prodígio seguinte.

— É assim que obtemos nosso material mais barato — observou o lojista.

Dei aquela risada de quem soube entender a piada.

— Em vez de ir ao armazém de atacado — falei. — Claro que fica bem mais em conta.

— De certa forma, sim — disse o lojista. — Embora sempre acabemos pagando. Mas não pagamos tão caro quanto as pessoas imaginam. Nossos equipamentos maiores, nossas provisões diárias e todas as outras coisas de que precisamos vêm todas de dentro dessa cartola. E, sabe, cavalheiro, se me permite dizê-lo, não existe uma grande loja de atacado, não para artigos de Mágica Genuína. Não sei se reparou no nosso letreiro: A GENUÍNA LOJA MÁGICA. — Ele puxou um cartão de visita da bochecha e o estendeu para mim. — Genuína — repetiu, apontando a palavra com o dedo. — Não há o menor engano, cavalheiro.

Pensei que ele estava mantendo a piada com bastante seriedade. Ele se virou para Gip com o mais afável dos sorrisos.

— E você, sabia? É o Tipo Certo de Garoto.

Fiquei surpreso com o fato de ele saber disso, porque, no interesse da disciplina, nós mantemos isto em segredo, em nossa casa; mas Gip recebeu a informação com um sólido silêncio, mantendo os olhos fitos no homem.

— Somente o Tipo Certo de Garoto consegue entrar por aquela porta. 

E então, como que para ilustrar o que ele dizia, ouviu-se um barulho na porta, e uma voz de criança quase guinchando se ouviu do lado de fora.

— Nãããão... Eu quero entrar lá dentro, papai, eu QUERO entrar lá! Nããão... 

E depois a voz cansada de um pai, cheia de consolos e promessas.

— Está fechada, Edward — dizia ele.

— Mas não está! — disse eu.

— Está, senhor — disse o lojista. — Sempre está, para esse tipo de criança.

Enquanto ele falava tive pela vitrine o vislumbre do rosto do menino, um rosto branco, miúdo, pálido de tanto comer doces e comidas açucaradas, distorcida por maus sentimentos; um pequeno e implacável egoísta, batendo no vidro mágico.

— Não adianta, senhor — disse o lojista quando eu, com meu impulso instintivo para ajudar, fui na direção da porta. Logo o garoto mimado foi levado para longe, aos berros.

— Como consegue fazer isto? — perguntei, já mais à vontade.

— Mágica! — disse o lojista, fazendo um gesto descuidado com a mão, e, presto! Faíscas de um fogo multicor brotaram dos seus dedos e sumiram por entre as sombras da loja.

— Você estava dizendo — falou ele, virando-se para Gip —, antes de entrar, que gostaria de ter uma caixinha dos nossos “Compre Um e Deixe Seus Amigos Espantados”?

Gip, com um valoroso esforço, respondeu:

— Sim.

— Está no seu bolso.

E inclinando-se sobre o balcão — ele tinha um corpo extraordinariamente longo — aquele sujeito incrível produziu o objeto no estilo habitual dos mágicos.

— Papel! — disse ele, e tirou uma folha de papel de embrulho da cartola que exibia suas molas. — Barbante! — e vejam só, sua boca tornou-se um estojo oco de onde ele começou a puxar um interminável fio de barbante, que cortou com os dentes depois de amarrar o pacote (e, ao que me pareceu, engoliu o rolo). Depois ele acendeu uma vela no nariz de um dos bonecos de ventríloquo, colocou um dos dedos (que tinha se transformado num bastão de cera de lacrar) na chama, e selou o pacote.

— E há também o Ovo Que Desaparece — lembrou ele, e, retirando um exemplar do bolso do meu casaco, fez outro pacote, e depois repetiu tudo com o Bebê Que Chora, Muito Humano. Quando todos os pacotes ficaram prontos, entreguei-os a Gip, que os apertou de encontro ao peito. Ele quase não disse nada, mas seu olhar era eloquente; o modo como apertava os pacotes nos braços era eloquente. Naquele instante ele era um playground de emoções indizíveis. Aquilo, sim, era Mágica verdadeira. Então, com um sobressalto, senti alguma coisa se movendo dentro do meu chapéu, alguma coisa macia e irrequieta. Ergui-o, e um pombo com as penas eriçadas — um cúmplice, sem dúvida — saltou sobre o balcão e correu a se esconder, pelo que pude ver, dentro de uma caixa de papelão por trás do tigre.

— Ora, ora! — exclamou o lojista, tomando meu chapéu com um gesto hábil. — Que pássaro descuidado, e ainda por cima chocando!

Ele balançou meu chapéu e derramou na mão estendida dois ou três ovos, uma bola de gude, um relógio, mais uma meia dúzia das inevitáveis bolinhas de vidro, e pedaços de papel amassado, cada vez mais e mais e mais, falando o tempo inteiro de como as pessoas esquecem de limpar os seus chapéus pelo lado de dentro do mesmo modo como o fazem por fora, falando com polidez, é claro, mas com certa determinação pessoal.

— Todo tipo de coisa se acumula, cavalheiro... Não no seu caso particular, é claro... Mas quase todo cliente... Incrível as coisas que conduzem consigo... 

O monte de papel amassado acumulava-se e erguia-se em cima do balcão até que ele ficou praticamente oculto, menos sua voz, que prosseguia.

— Nenhum de nós sabe na verdade o que se oculta por trás de nossa aparência de seres humanos, cavalheiro. Será que não somos mais do que fachadas limpas, sepulcros caiados por fora...

Sua voz parou, exatamente como quando a gente alveja o gramofone de um vizinho com um tijolo e boa pontaria; o mesmo silêncio instantâneo, e o roçar do papel se interrompeu, e tudo ficou muito calmo...

— Ainda precisa do meu chapéu? — perguntei, após um intervalo.

Não houve resposta.

Olhei para Gip, e Gip olhou para mim, e ali estavam nossas imagens distorcidas nos espelhos mágicos, com uma aparência muito esquisita, e grave, e quieta...

— Acho que vamos embora agora — falei. — Pode me dizer quanto foi?

— E depois de uma pausa, num tom mais alto: — Quero a conta, por favor, e também
o meu chapéu.

Pensei ter ouvido um fungado por trás da pilha de papel amassado.

— Vamos olhar atrás do balcão, Gip — falei. — Ele está brincando conosco.

Conduzi Gip e demos uma volta em torno do tigre, que ainda agitava a cabeça, e quem acha que estava atrás do balcão? Ninguém! Somente meu chapéu caído no chão, e um coelho de longas orelhas, o típico coelhinho dos mágicos, perdido em meditação, e com uma aparência tão amarfanhada e boba como só os coelhos de mágico têm. Recuperei meu chapéu, e o coelho se afastou dando pulinhos.

— Pai! — disse Gip, com um sussurro culpado.

— O que é, Gip?

— Eu gosto desta loja, pai.

“Eu também deveria estar gostando”, pensei comigo mesmo, “se este balcão não tivesse se alongado até barrar o nosso acesso à porta de saída”. Mas não chamei a atenção de Gip para esse detalhe.

— Coelhinho! — disse ele, estendendo a mão para o coelho, que passou por nós pulando. — Coelhinho, faça uma mágica para Gip!

Seus olhos acompanharam o bichinho enquanto este se esgueirava através de uma porta cuja existência eu, com toda certeza, não tinha percebido até então. Essa porta abriu-se, e através dela avistei o homem que tinha uma orelha maior que a outra. Continuava sorrindo; seu olhar, ao cruzar com o meu, tinha uma expressão divertida, mas com um quê de desafio.

— Acho que gostaria de ver a nossa sala de demonstrações, cavalheiro — disse ele, com inocente suavidade. Gip puxou meu dedo, querendo avançar. Olhei para o balcão e olhei de novo o lojista. Eu estava começando a achar aquela mágica genuína demais.

— Acho que não temos muito tempo — falei. Mas antes que concluísse a frase já estávamos na tal sala de demonstrações.

— Todo o material é da mesma qualidade — disse o homem, esfregando suas mãos muito flexíveis. — Ou seja, a melhor. Não existe nada aqui que não seja de Mágica genuína, com todas as garantias. Se me der licença...

Ele estendeu a mão e puxou alguma coisa agarrada à manga do meu casaco, e vi que era um pequeno diabinho vermelho, que se contorcia, pendurado pela cauda. A criaturinha mexia-se sem parar, tentando morder sua mão, mas ele logo o atirou para trás de um balcão afastado. Claro que aquilo não passava de um bonequinho de borracha, mas, por um instante...! E o gesto dele foi exatamente o de quem pega a contragosto algum bichinho repulsivo e que morde. Olhei para Gip, mas Gip estava com o olhar pregado num cavalinho mágico. Alegrei-me por ele não ter visto aquela coisa.

— Veja só — falei em voz baixa, indicando Gip e depois o diabinho vermelho com o olhar —, vocês não têm muitas dessas coisas por aqui, não?

— Não, não é nosso! Provavelmente entrou aqui com o senhor — disse o lojista, também em voz baixa, e com um sorriso mais desconcertante do que nunca. — É espantosa a quantidade de coisas que conduzimos conosco sem perceber! — E virandose para Gip: — E então? Algo lhe interessou? 

Muitas coisas ali tinham interessado Gip.

Ele virou-se para o comerciante com uma mistura de confidencialidade e respeito.

— Aquela é uma Espada Mágica? — perguntou.

— Uma Espada Mágica de Brinquedo. Ela não curva, não quebra, nem corta os dedos. Ela pode tornar invisível durante uma batalha qualquer pessoa com menos de dezoito anos. O preço vai de meia-coroa até sete coroas e seis pence, de acordo com o tamanho. Aquelas panóplias são artigos para cavaleiros andantes muito jovens, e são muito úteis: escudo de segurança, sandálias de velocidade, elmo de invisibilidade.

— Oh, pai! — exclamou Gip.

Tentei me informar sobre o preço, mas ele não me deu atenção. Tinha se voltado totalmente para Gip, o qual já havia largado meu dedo, e agora estava lhe mostrando todo o seu estoque como se nada pudesse impedi-lo. Daí a pouco percebi, com alguma desconfiança e uma ponta de ciúme, que Gip estava segurando o dedo daquele sujeito do modo como geralmente segura o meu. Sem dúvida era um indivíduo interessante, pensei, e tinha um estoque interessante de truques falsos, truques falsos muito bem-feitos, mas mesmo assim... 

Fui acompanhando os dois, falando pouco, mas mantendo sempre um olho nas prestidigitações do sujeito. Afinal, Gip estava se divertindo. E sem dúvida quando quiséssemos ir embora poderíamos fazê-lo sem dificuldade. Era um lugar enorme, desordenado, uma espécie de galeria cujo espaço era dividido por barracas, estandes, pilastras, e arcadas que conduziam a outras divisões, onde era possível ver ajudantes de aparência esquisita vagabundeando e olhando para nós; aqui e ali viam-se cortinas e espelhos de aparência estranha. Tudo era tão fora do comum que acabei me vendo incapaz de apontar a porta por onde tínhamos entrado. 

O lojista mostrou a Gip trens mágicos que se moviam sem usar vapor ou mecanismos de relojoaria, bastando ligar o sinal; e algumas caixas muito valiosas de soldadinhos que começavam a se movimentar assim que se erguia a tampa da caixa e alguém dizia... bem, não tenho um ouvido muito bom, e era um som que parecia um travalínguas, mas Gip, que tem o ouvido da mãe, aprendeu bem rápido. “Bravo!”, exclamou o lojista, jogando os soldados de volta à caixa sem a menor cerimônia, e entregando-a a Gip. “Agora!”, disse e Gip fez com que voltassem a se mover.

— Vai levar esta caixa? — perguntou o homem.

— Sim, vamos levar, a menos que você cobre o preço total. Nesse caso vou precisar da ajuda de algum magnata.

— Deus meu! Não! — exclamou o lojista, voltando a guardar os soldadinhos e fechando a tampa. Ele agitou a caixa no ar — e ali estava ela, envolta em papel pardo, amarrada, e com o nome e o endereço completos de Gip!

O homem riu ao ver o meu espanto.

— Esta é a mágica genuína — disse. — A coisa de verdade.

— É genuína demais para meu gosto — falei novamente.

Depois ele se dedicou a mostrar outros truques a Gip, truques bizarros, e feitos de um modo mais bizarro ainda. Ele explicava o método, revirava os objetos, e lá estava o meu garoto, abanando com firmeza a cabecinha, com ar de entendedor.

Eu não lhe dei a atenção que deveria dar. O Lojista Mágico dizia: “Hey, presto!”, e eu escutava sua voz de menino ecoando: “Hey, presto!” Mas minha atenção estava voltada para outras coisas. Eu começava a ter uma percepção mais clara do quanto aquele lugar era bizarro; ele era, para falar a verdade, impregnado por uma impressão tremenda de bizarrice. Havia algo de bizarro em sua própria aparência, no teto, no piso, nas cadeiras distribuídas ao acaso. Eu tinha a sensação esquisita de que quando não estava olhando diretamente para aquelas coisas elas mudavam, moviam-se, ficavam silenciosamente brincando de esconder às minhas costas. E a cornija era adornada por uma guirlanda de máscaras, que eram muito mais expressivas do que era possível a uma máscara de gesso.

De súbito, meu olhar foi atraído por um daqueles estranhos assistentes. Estava um pouco afastado, e sem se dar conta da minha presença — eu o avistava em diagonal, junto a uma pilha de brinquedos e através de uma arcada; ele estava encostado a um pilar numa atitude ociosa, e fazendo as coisas mais horríveis com o rosto! A mais horrível de todas era algo que ele fazia com o nariz. Fazia aquilo na atitude de quem não tem nenhuma tarefa para cumprir e está apenas se divertindo à toa. No começo o nariz era pequeno, bulboso, mas de repente ele se projetava para diante como um telescópio, e ia se alongando e se afinando até tornar-se uma espécie de chicote vermelho e flexível.

Parecia uma coisa de pesadelo! Ele ficava fazendo floreios e atirando aquilo para diante, como um pescador que atira a linha de sua vara. Pensei de imediato que Gip não deveria ver aquilo. Virei-me, e vi que ele estava completamente entretido pelo lojista, sem imaginar nada desagradável. Os dois conferenciavam em voz baixa e olhavam na minha direção. Gip estava de pé sobre um banquinho, e o lojista segurava na mão uma espécie de barril grande.

— Vamos brincar de esconder, pai! — gritou Gip. — Você me procura!

E, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa para evitá-lo, o lojista o cobriu com o barril enorme. Percebi de imediato o que aconteceria.

— Tire isso daí! — ordenei. — Agora! Vai assustar o menino. Tire-o daí! 

O homem das orelhas desiguais me obedeceu sem dizer nada, e virou o barril na minha direção, mostrando que não havia nada dentro. E o banquinho também estava vazio! Bastara um segundo para meu filho desaparecer?...

Vocês conhecem, talvez, aquela sensação sinistra quando alguma coisa como uma mão enorme brota de um lugar desconhecido e aperta nosso coração. Sabem, portanto, que aquilo afasta de cena o Eu normal de um indivíduo e o deixa tenso, decidido, nem lento nem apressado, nem enfurecido nem com medo. Foi o que aconteceu comigo.

Fui na direção do lojista e dei um chute no banquinho, jogando-o para longe.

— Pare com essa palhaçada — disse. — Onde está meu filho?

— Está vendo? — disse ele, ainda mostrando o interior do barril. — Não há ilusão alguma...

Estendi a mão para agarrá-lo pela lapela, mas ele se esquivou, com um movimento ágil. Tentei de novo, e ele voltou a me evitar, e abriu uma porta para fugir.

— Pare! — gritei, e ele recuou, rindo. Saltei para agarrá-lo, e mergulhei na escuridão. 

Thud!

— Meu Deus! Desculpe, senhor, não vi que estava aí!

Eu estava em Regent Street, e tinha acabado de esbarrar num operário, um homem de aparência decente; e a um metro de distância, talvez, e também numa atitude perplexa, estava Gip. Houve um rápido pedido de desculpas, e Gip virou-se para mim com um sorriso radiante, como se por alguns instantes tivesse me perdido de vista. E carregava quatro pacotes embaixo do braço!

Imediatamente apossou-se do meu dedo.

Por um segundo fiquei completamente perdido. Olhei em redor à procura da porta da lojinha, e vejam só, não havia porta nenhuma ali! Nenhuma loja, nada, apenas uma pilastra comum separando a loja de fotografias e a loja com os pintos e as incubadoras!...

Fiz a única coisa que me foi possível no meio daquele tumulto mental. Fui direto até a beira da calçada e ergui meu guarda-chuva, chamando um cabriolé.

— Vamos de carro! — exclamou Gip, no auge da exultação.

Ajudei-o a subir; com algum esforço lembrei-me do meu endereço para informar o cocheiro, e acomodei-me. Alguma coisa inesperada proclamava sua presença no bolso do meu casaco; extraí dele uma bola de vidro. Com um trejeito petulante, joguei-a pela janela do carro.

Gip não disse nada.

Durante algum tempo nenhum de nós falou.

— Pai! — disse ele daí a pouco. — Aquela, sim, é que era uma loja!

Aquilo me serviu de deixa para começar a examinar de que maneira ele tinha visto todo o episódio. Ele me parecia ileso, e até aí, tudo bem; não estava assustado nem desorientado, estava, sim, tremendamente satisfeito com as aventuras daquela tarde, e trazia quatro pacotes apertados de encontro ao peito.

Que diabos! O que poderia haver dentro deles?

— Hmmm... — falei. — Garotos não podem ir todos os dias a uma loja como aquela.

Ele recebeu isto com seu estoicismo habitual, e por um momento lamentei ser seu pai e não sua mãe, e não poder naquele mesmo instante, na rua, dentro do carro, dar-lhe um beijo. Afinal, pensei, a coisa não tinha sido tão grave. Mas foi somente quando começamos a abrir os pacotes que me senti mais seguro. Três deles continham caixas de soldados, soldadinhos de chumbo bem comuns, mas de tão boa qualidade que Gip logo esqueceu terem sido eles, originalmente, parte de um truque mágico do tipo mais genuíno; e o quarto pacote continha um gatinho, um pequeno gatinho branco, vivo, com excelente saúde, excelente temperamento e um notável apetite.

Acompanhei a abertura dos pacotes com um alívio provisório, e fiquei por ali, pelo quarto do garoto, durante um tempo maior que o normal.

Isto aconteceu há seis meses. E agora estou começando a acreditar que tudo está bem. O gatinho tinha apenas a mágica natural de todos os gatos, e os soldados formam uma companhia tão confiável quanto a que qualquer coronel poderia desejar. E Gip?

Os pais mais inteligentes devem compreender que com Gip tenho que usar bastante cuidado. O máximo que consegui, certo dia, foi isto. Falei:

— Não gostaria que seus soldados ficassem vivos, Gip, e pudessem marchar sozinhos?

— Os meus fazem isso — disse ele. — Basta que eu diga uma palavra que sei, antes de abrir a caixa.

— E então eles marcham sozinhos por aí?

— Oh, claro, pai. Eu não ia gostar se não fosse assim.

Não externei nenhuma surpresa inadequada, e desde então já por uma ou duas vezes me aproximei dele, sem avisar, enquanto brincava com os soldadinhos, mas não os vi se comportar magicamente. É tão difícil perceber. Há também a questão financeira. Tenho o hábito incurável de pagar minhas contas. Tenho percorrido Regent Street de cima a baixo, várias vezes, procurando a loja.

Estou inclinado a considerar que, da minha parte, minha obrigação está cumprida, e, já
que o nome e o endereço de Gip são conhecidos, posso deixar que essas pessoas, sejam elas quem forem, nos enviem a conta de acordo com a sua conveniência.

Fonte:
H. G. Wells. O País dos Cegos e outras histórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Convite Centenário de Nascimento de Luiz Otávio (14 de Dezembro)


Gislaine Canales (Glosando Delcy Canalles)

Nota: Todos motes sâo de Delcy Canalles

CASCATAS DE LUZ...

Mote:
Contemplo a noite sombria
que, a trevas, só se reduz
e, na minha fantasia,
vejo cascatas de luz!

Glosa

CONTEMPLO A NOITE SOMBRIA
de um acinzentado escuro...
Esquecer a nostalgia
é o que eu mais quero e procuro!

Sabemos que a noite é triste
QUE, A TREVAS, SÓ SE REDUZ,
que chora, pois não existe
alívio pra sua cruz!

Desejo pôr alegria
nessa noite de tristeza
E, NA MINHA FANTASIA,
eu a cubro de beleza!

Sinto a Lua e o Sol brilhando
num encanto que seduz,
e, nos meus sonhos, sonhando,
VEJO CASCATAS DE LUZ!
_____________________

CIÚMES DA FELICIDADE

Mote:

Meu universo traduz
minhas angústias sem fim...
Sou como um cego sem luz,
perdido dentro de mim!

Glosa:

MEU UNIVERSO TRADUZ
tristeza, insatisfação...
Tentei, mas eu não transpus
as muralhas da emoção!

Sofro sozinha e tão triste,
MINHAS ANGÚSTIAS SEM FIM...
Para mim já nem existe
o sonho, esperado, assim!

Eu carrego a minha cruz
em completa escuridão,
SOU COMO UM CEGO SEM LUZ,
a viver na solidão!

Sigo nessa busca enorme,
trazendo a alma em motim,
numa revolta disforme,
PERDIDO DENTRO DE MIM!
_______________________

COMO EU ME ENGANAVA...

Mote:

Mil promessas me fazias
e, incauta, eu acreditava,
pensando que me querias...
Meu Deus, como eu me enganava!

Glosa:

MIL PROMESSAS ME FAZIAS
que encantavam meu viver,
e as minhas horas vazias
transmutavam-se em prazer!

Mas tudo era falsidade
E, INCAUTA, EU ACREDITAVA,
não sabia que a verdade
dos teus lábios se afastava!

Vivia mil alegrias!
O meu sonho era sem fim,
PENSANDO QUE ME QUERIAS...
e que gostavas de mim!

Falsos momentos de amor
em que eu tanto me apegava,
agora são só de dor...
MEU DEUS, COMO EU ME ENGANAVA!
____________________

A VIDA ME FASCINA

Mote:

Se a alma não envelhece
e se o amor não termina,
a minha esperança cresce
e a vida mais me fascina!

Glosa:

SE A ALMA NÃO ENVELHECE
acalme-se, coração,
vá devagar, não se apresse,
que a vida é um mar de emoção!

Se o sonho, em nós, continua,
E SE O AMOR NÃO TERMINA,
será, lá no céu, a Lua,
minha inspiração - menina!

É um milagre que acontece!
Nesse milagre de amor,
A MINHA ESPERANÇA CRESCE
e faz-me esquecer a dor!

Vivendo, assim, de alegria
minha vida é uma vitrina
enfeitada de poesia...
E A VIDA MAIS ME FASCINA!
________________________

ADOLESCER...

Mote:

Minha alma convalescente,
que já cansou de sofrer,
quer viver intensamente,
quer amar e adolescer!

Glosa:

MINHA ALMA CONVALESCENTE,
devagar se recupera,
pois notou que ainda sou gente,
que é intensa a minha espera!

Esta minha alma tão triste,
QUE JÁ CANSOU DE SOFRER,
sente que a esperança existe
e não quer mais padecer!

E explode em desejo ardente,
e, ao mundo grita:Sorria!
QUER VIVER INTENSAMENTE,
quer vivenciar a poesia!

Num novo mar de emoção,
sentindo-se renascer,
o meu velho coração
QUER AMAR E ADOLESCER!
______________________

ALFABETO

MOTE:

Vejo as letras do alfabeto
quais tijolos da cultura,
edificando, em concreto,
a nossa literatura!

Glosa:

VEJO AS LETRAS DO ALFABETO
como se fossem soldados,
que marchando, vão direto,
rumo aos sonhos mais sonhados!

Outras vezes, eu as vejo,
QUAIS TIJOLOS DA CULTURA,
e nelas, leio o desejo
de clarear a noite escura!

É muito grande o projeto,
carregado de alegria,
EDIFICANDO, EM CONCRETO,
com letras, nossa poesia!

Nasce da imperiosa união
das letras, de forma pura,
com muito amor e emoção,
A NOSSA LITERATURA!

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Trova 276 - A. A. de Assis (Maringá/PR)


Mitologia Grega (A Caixa de Pandora)

O céu e a terra já estavam criados com o firmamento onde habitavam plantas e animais. Mas faltava a criatura onde pudesse habitar o espírito divino. Foi então que chegou à  terra o titã Prometeu (aquele que pensa antes) descendente da antiga raça de deuses destronada por Zeus. O gigante sabia que na terra estava "adormecida" a semente dos céus. Por isso, apanhou um bocado de argila e molhou-a com um pouco de água de um rio. Com essa matéria fez o homem à semelhança dos deuses para que este fosse o senhor da terra. Escolheu das almas dos animais as características boas e más, animando sua "criatura".

Atena, deusa da sabedoria, admirou a criação do filho dos titãs e insuflou naquela imagem de argila o espírito, o sopro divino. Foi assim que surgiram os primeiros seres humanos que de imediato povoaram a terra. Mas faltava-lhes o conhecimento sobre os assuntos da terra e do céu. Vagueavam sem conhecer a arte da construção, da agricultura, da filosofia. Não sabiam caçar ou pescar e nada sabiam da sua origem divina. Prometeu aproximou-se e ensinou-lhes todos esses segredos. Inventou o arado para que o homem plantasse, a cunhagem das moedas para que houvesse o comércio, a escrita e a mineração. Ensinou-lhes a arte da profecia e da astronomia; enfim, todas as artes necessárias ao desenvolvimento da humanidade. Ainda lhes faltava um último dom para que se pudessem manter vivos: o fogo. Este dom, entretanto, havia sido negado à humanidade pelo grande Zeus. Porém, Prometeu "amigo dos homens" roubou uma centelha do fogo celeste e trouxe-a para a terra, reanimando os homens. Este fogo dava à humanidade a possibilidade de dominar o mundo e os seus habitantes. Ao descobrir o roubo, Zeus irritou-se pois verificou que a sua vontade fora contrariada e decidiu punir tanto o ladrão quanto os beneficiados. Por isso, tramou no Olimpo a sua vingança. Mandou que Hefaístos fizesse uma estátua de uma linda donzela e, chamou-a de Pandora - "a que possui todos os dons", que seria enviada como presente a Epimeteu, irmão de Prometeu e, para a tornar perfeita fez com que cada um dos deuses oferecessem à donzela um dom. Afrodite deu-lhe a beleza, Hermes o dom da fala, Apolo, a música; outros deuses outros encantos acrescentaram na criatura. Zeus pediu ainda que cada imortal reservasse um malefício para a humanidade. Esses presentes maléficos foram guardados numa caixa, que a donzela levava nas mãos.

Zeus enviou então Pandora que desceu à terra conduzida por Hermes e aproximou-se de Epimeteu - "o que pensa depois", o irmão de Prometeu - o qual, esquecendo-se da recomendação do seu irmão de que nunca recebesse um presente de Zeus, aceitou-o e, quando Pandora abriu diante dele a tampa do presente a humanidade que até aquele momento habitava um mundo sem doenças ou sofrimentos viu-se assaltada por inúmeros malefícios que atormentam os homens até aos dias de hoje. Pandora tornou a fechar a caixa rapidamente antes que o único benefício que havia nela escapasse: a esperança. Zeus dirigiu então a sua fúria contra o próprio Prometeu, mandando que Hefaístos e os seus serviçais Crato e Bia (o poder e a violência) acorrentassem o titã a um despenhadeiro do monte Cáucaso. Mandou ainda uma águia para devorar diariamente o seu fígado que, por ser ele um titã, regenerava-se sempre. O seu sofrimento prolongou-se por inúmeras eras, até que Hércules passou por ali e viu o sofrimento do gigante. Abateu a gigantesca águia com uma flecha certeira e libertou o prisioneiro das suas correntes. Entretanto, para que Zeus tivesse a sua vontade cumprida, o gigante passou a usar um anel com uma pedra retirada do monte. Assim, Zeus poderia sempre afirmar que Prometeu mantinha-se preso ao Cáucaso.

Pandora é a deusa da ressurreição. Ela por não nascer como a divindade é conhecida como uma semi-deusa. Pandora era uma humana ligada a Hades. Sua ambição em tornar-se a deusa do Olimpo e esposa de Zeus fez com que ela abrisse a caixa divina. Zeus para castiga-la tirou-lhe a vida. Hades com interesse nas ambições de Pandora, procurou as pacas (dominadoras do tempo) e pediu para que o tempo voltasse, sem permissão de Zeus; elas nada puderam fazer. Hades convenceu o irmão a ressuscitar Pandora e devido aos seus argumentos Zeus ressuscitou-a, dando-lhe a divindade que ela sempre desejara. Assim, Pandora tornou-se a deusa da ressurreição.

Para um espírito ressuscitar Pandora entrega-lhe uma tarefa; Se o espírito a cumprir ele ressuscita. Pandora com ódio de Zeus por ele a ter tornado uma deusa sem importância, entrega aos espíritos somente tarefas impossíveis. Assim nenhum espírito conseguiu e nem conseguirá ressuscitar.

Fonte:
Contos de encantar

domingo, 16 de outubro de 2016

Trova 275 - A. A. de Assis


Lenda do Moçambique (Lenda do Rato e do Caçador)

Antigamente havia um caçador que usava armadilhas, abrindo covas no chão. Ele tinha uma mulher que era cega e fizera com ela três filhos. Um dia, quando visitava as suas armadilhas, encontrou-se com um leão:

"Bom dia, senhor! Que fazes por aqui no meu território?" (perguntou o leão)

"Ando a ver se as minhas armadilhas apanharam alguma coisa", respondeu o homem.

"Tu tens de pagar um tributo, pois esta região pertence-me. O primeiro animal que apanhares é teu e o segundo é meu e assim sucessivamente".

O homem concordou e convidou o leão a visitar as armadilhas, uma das quais tinha uma presa, uma gazela. Conforme o combinado, o animal ficou para o dono das armadilhas. Passado algum tempo, o caçador foi visitar os seus familiares e não voltou no mesmo dia. A mulher, necessitando de carne, resolveu ir ver se alguma das armadilhas tinha presa. Ao tentar encontrar as armadilhas, caiu numa delas com a criança que trazia ao colo. O leão que estava à espreita entre os arbustos, viu que a presa era uma pessoa, e ficou à espera que o caçador viesse para este lhe entregar o animal, conforme o contrato.

No dia seguinte, o homem chegou a sua casa e não encontrou nem a mulher nem o filho mais novo. Resolveu, então, seguir as pegadas que a sua mulher tinha deixado, que o guiaram até à zona das armadilhas. Quando aí chegou, viu que a presa do dia era a sua mulher e o filho. O leão, lá de longe, exclamou ao ver o homem a aproximar-se:

"Bom dia amigo! Hoje é a minha vez! A armadilha apanhou dois animais ao mesmo tempo. Já tenho os dentes afiados para os comer!"

"Amigo leão, conversemos sentados. A presa é a minha mulher e o meu filho."

"Não quero saber de nada. Hoje a caçada é minha, como rei da selva e conforme o combinado", protestou o leão.

De súbito, apareceu o rato.

"Bom dia titios! O que se passa?", disse o pequeno animal.

"Este homem está a recusar-se a pagar o seu tributo em carne, segundo o combinado." Respondeu o leão.

"Titio, se concordaram assim, porque não cumpres? Pode ser a tua mulher ou o teu filho, mas deves entregá-los. Deixa isso e vai-te embora", disse o rato ao homem.

Muito contrariado, o caçador retirou-se do local da conversa, ficando o rato, a mulher, o filho e o leão.

"Ouve, tio leão, nós já convencemos o homem a dar-te as presas. Agora deves-me explicar como é que a mulher foi apanhada. Temos que experimentar como é que esta mulher caiu na armadilha" (e levou o leão para perto de outra armadilha). Ao fazer a experiência, o leão caiu na armadilha. Então, o rato salvou a mulher e o filho, mandando-os para casa.

A mulher, vendo-se salva de perigo, convidou o rato a ir viver para a sua casa, comendo tudo o que ela e a sua família comiam. Foi a partir daqui que o rato passou a viver em casa do homem, roendo tudo quanto existe...

Fonte:
Contos de Encantar

Aparecido Raimundo de Souza (Sufoco)

   
Tibúrcio Carequinha, o mais novo louco do pedaço, havia chegado de outro sanatório não fazia uma semana. Viera transferido, pois aprontara além dos limites e o diretor não aguentava mais olhar para a cara dele. O sujeito não parecia um doido desses que se veem todos os dias, ao contrário, às vezes fazia coisas de gente normal, noutras perdia o controle e mordia os próprios olhos, arrancando da boca uma velha dentadura, e, com ela, dando a entender que mastigava os órgãos da visão como se tivesse saboreando um delicioso naco de carne. Tão logo se viu solto, no pátio, para o banho de sol, junto com os demais internos, achou, no chão, não se sabe como (talvez por descuido de algum funcionário), uma dessas facas enormes de cozinha, bem afiada, jogada num canto, perto do portão que acessava um imenso jardim. De posse dela, o primeiro que cruzou na frente resolveu correr atrás. O infeliz era o Benedito Torrado, um sujeitinho boa praça, que prestava serviços na enfermaria. Tibúrcio correu para cima dele, a arma na mão, atitude ameaçadora.

— Em guarda! Vou te pegar para fazer picadinho!


Benedito Torrado, ao se deparar com o sujeito vindo em sua direção jogou para o alto umas caixas de remédios que trazia e danou a correr e a gritar:— Socorro, pelo amor de Deus, alguém me ajude!

O alerta chamou a atenção dos demais. O pátio inteiro, repleto de doentes, se transformou numa plateia muda e indiferente, cheia de rostos desfigurados, a maioria com a boca aberta, alguns babando, outros dialogando como vento, mas, no geral, todos sem denotar um pingo de calor humano.

Na verdade Benedito estava desesperado, temeroso, as faces petrificadas, as pernas bambas. Tibúrcio não queria saber de nada. Com a faca na mão esquerda, dava a impressão, não de um louco varrido, mais se assemelhava a um animal sanguinário à cata da sua presa.

— Por tudo quanto é mais sagrado: alguém faça alguma coisa!

Os que trabalhavam em outros pavilhões, bem como os da administração, pararam com seus afazeres, levados pelo clamor dos berros de Tibúrcio, e, mais ainda, pelo sufoco do pobre do enfermeiro. Sem exceção, todos arregaçaram as mangas e se puseram a acudir, ou pelo menos tentar obstacular que o aloprado transformasse o desditoso numa vítima fatal.

De um minuto para outro, uma pequena multidão corria, estabanada, de um lado para outro, na esperança de deter o desmiolado do Tibúrcio. Todavia, a criatura, com a arma empunhada, se esquivava ligeira, arisca, ao tempo que desenhava golpes no ar, e, por essa razão, não havia quem ousasse chegar muito perto. O diretor geral foi acionado. Largou o café e voou para o hospital. Enquanto isso, nada parecia deter Tibúrcio e a sua faca de lâmina afiada.

— Vou te pegar! Vou te pegar!

A cena, não fosse por demais hilariante, poderia até ser filmada,e, certamente, daria uma boa vídeo– cacetada, num desses programas de televisão onde seus apresentadores fazem chacota e ganham ibope exibindo as mazelas de seus consanguíneos, tirando, claro, a agonia do enfermeiro com Tibúrcio grudado nas costas dele, rindo, gesticulando e fazendo caretas esquisitas. A galera tentava, em vão, botar as mãos no maluco, mas o desgraçado demonstrava uma agilidade com as pernas e um raciocínio muito rápido e acima de qualquer suspeita. Benedito Torrado, por seu turno, não aguentava mais lutar, ou melhor, correr em círculos, voltando sempre ao mesmo ponto de partida, sem achar uma saída segura. Sentia que a vida estava por um fio, que os seus trinta anos andavam prestes a ser arrancados pelo corte certeiro de uma faca de cozinha nas mãos de um débil mental completamente fora de si.

Atônito e sem saída, se debulhava em lágrimas copiosamente.Quase sem ar, urinara nas calças e não via como se livrar daquela figura hostil que, a cada minuto, mais e mais se aproximava, para lhe desfechar o golpe de misericórdia.Certo que não morreria só. A turma de amigos, o diretor, a secretária do diretor, os estagiários da seção de informática e até dois seguranças se puseram em auxílio, mas ninguém, na verdade, se atrevia a peitar Tibúrcio e lhe tomar a coragem que carregava na mão fortemente armada pela presença fatídica da faca assassina. Acionaram a polícia militar. Dezoito soldados fortemente armados partiram para o hospício.

— Nada de revólveres. Esse Zé Mané é apenas um louco. Não atirem, por favor…

O médico psiquiatra também deu as caras assim que telefonaram para o consultório dele:

— Doutor, o que fazemos?

— Tragam a camisa de força.

— Sem violência.

— Sem violência? E o que é que estamos assistindo aqui? Por acaso os dois mocinhos ali resolveram brincar de pega-pega?

Completamente baqueado e sem forças, finalmente o louco do Tibúrcio conseguiu encurralar o Benedito Torrado num canto em que não havia por onde escapar. Ou o cidadão morria de susto ou se deixava matar. Foi exatamente nessa hora que o enfermeiro perdeu o controle, a compostura, a vergonha. Vendo Tibúrcio, a dois passos dele, a faca reluzindo apontada em sua direção, caiu de joelhos e implorou:

— Não me mate, amigo. Não me mate. Não lhe fiz nada. Leve em conta que tenho mulher e uma filhinha com menos de uma semana de vida para criar.

Na cauda de Tibúrcio uma massa de amedrontados estancara, sem ação, parada, colada ao chão, estática, sem respirar. Nem a polícia que deveria entrar em ação teve o bom senso de fazer alguma coisa útil que colocasse um fim definitivo naquele martírio.

Aconteceu, então, o inesperado, o imprevisível. Tibúrcio entregou a faca na mão trêmula do enfermeiro, e, na maior cara de pau, disse para o desgraçado:

— Tome. Agora é a sua vez. Eu saio desembestado e você dispara nos meus calcanhares!

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Parada de Sucessos. SP: Ed. Sucesso, 2012.