sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Amilton Maciel Monteiro (Poemas Recolhidos) II




TROVADOR

Não sei se trovador já nasce feito, 
ou se ele é feito apenas por amor; 
sei que ele lembra muito o amor-perfeito,
se nos encanta, assim como essa flor.

Qualquer das duas formas, com efeito,
talvez nem interfira em seu valor,
pois na flor ou poesia vale é o jeito
encantador que o deu seu criador.

No amor-perfeito o belo é sempre assim,
quer ele nasça num nobre jardim, 
ou num  quintal bem rude e desprezado.

E o trovador em sua poesia,
tem que insuflar amor, com estesia,
para exaltar alguém apaixonado!

IDOSO   
(01 de Outubro – Dia Internacional do Idoso)

Fui chegando aos sessenta, devagar;
bem depois aos setenta, incrivelmente.
Sem saber até aonde ia chegar
alcancei os oitenta, bem contente.

Com meu Deus continuo a caminhar,
mas com olhos voltados ao presente,
que vem tomando um rumo singular,
que ao idoso é bastante diferente...

Bem próximo da casa dos noventa,
peço ao Senhor deveras  humildade
para aceitar o que inda está por vir...

Que toque o coração de quem inventa,
para que façam o bem à humanidade...
E eu só semeie amor até partir…

CARTAS DE DEUS

Meus filhos são as cartas carinhosas
que Deus constantemente me encaminha,
com advertências por demais valiosas,
tendo por intuito me manter na linha...

Seus conselhos são lindos como as rosas;
e é raro haver algum que me apezinha;
no  geral são só frases amorosas
por meio de carícia comezinha...

Os afagos e beijos dos meus filhos, 
tomando a forma até de trocadilhos
e aforismos, alegram o meu humor...

E ainda estou aos poucos entendendo
que as cartinhas de Deus que eu ando lendo,
sugerem é que eu aumente o meu amor!

JARDIM SECRETO

Eu também tenho o meu jardim secreto,
tal qual o mundo inteiro, com certeza...
Mas só porque não sou nada discreto,
o meu “secreto” some na esperteza...

Quem lê meus versos tudo sabe, exceto,
talvez o que eu não disse por lerdeza,
porque o que escrevo eu mesmo interpreto     
no meu viver de inteira singeleza.

Se eu disse que te amei, também te disse 
que tudo o mais que eu fiz foi só tolice,
pois nunca mais eu tive um outro amor .

O que faltou dizer, eu digo agora:
eu sonho com teus beijos toda hora;
és a razão de eu ser um sonhador!

DIA DA ÁRVORE
(21 de Setembro – Dia da Árvore)

Árvore, quanta beleza 
tu pões em nosso ambiente,
por isto dele és princesa
para mim e toda gente! 

És sombra na Natureza,
se faz calor inclemente, 
e às aves tu és defesa
das trevas ao sol nascente.

Com tuas flores e frutos
dás imensos contributos
para suprir nossa veia...

Por isto sempre me lembro
deste Vinte e Um de Setembro,
Data que te homenageia!

SONHOS

Não ponha, não, limites nos teus sonhos,
se queres ser feliz a vida inteira!
Não falo nos maus sonhos enfadonhos,
dos pesadelos que não há quem queira.

Refiro-me a ter sonhos tão risonhos,
que enriqueçam de ideia alvissareira... 
E por mais que sejamos inda bisonhos,
nos elevam na vida e na carreira.

Mas sonhemos,  dormindo ou acordados,  
se estivermos ou não enamorados;
nesta vida o que importa é bem sonhar...

Com um mundo melhor, com mais justiça,
muita bondade...,  e com menor cobiça,
para que Deus nos possa abençoar!

HOMEM

Um homem de verdade não despreza
o filho que gerou e pôs na terra;
pelo contrário, é genitor que preza
a bênção que essa graça em si encerra.

O homem como tal, ajoelha e reza,
pedindo a Deus, que é bom e nunca erra,
para jamais ser pai que menospreza
o filho que a família até descerra!

Um homem de verdade tem que honrar
a integridade com a qual nasceu
e dar o exemplo para o filho seu.

Não pode ser assim, por conseguinte, 
um pai que represente até um acinte,
gerando um filho e não o querer criar!

Fonte:
Poemas enviados pelo autor

Vinicius de Moraes (A Casa Materna)


Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste. 

É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar. 

A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso. 

Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia. 

A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Luiz Damo (São Francisco de Assis em Trovas)

4 de Outubro - Dia de São Francisco de Assis


Neste mundo aonde os valores
se concentram sobre o ter,
sejam fontes de esplendores
as luzes que vêm do ser.

No caminho sempre andemos
sem pedras a nos ferir,
ou, nós dele as afastemos,
ou, não vamos prosseguir.

São Francisco, padroeiro,
dos poetas, trovadores,
deixaste no mundo inteiro
legiões de seguidores.

Grande mestre me permita
fazer sempre esta oração,
enquanto meu ser medita
vem guiar minha missão.

Ó Senhor! Fazei de mim,
um instrumento de paz,
nele o mundo sinta, enfim,
que sois Vós quem vida traz.

Aonde houver o desespero,
seja a esperança levada
e na dúvida, co’esmero,
a fé seja praticada.

Aonde apenas tem tristeza
possa levar a alegria
e na discórdia e frieza
o amor sempre aqueça o dia.

Aonde só trevas prosperam
que eu leve a luz e o calor
e aonde os erros preponderam
leve a verdade, Senhor!

Aonde houver ódio que eu leve
o amor puro e verdadeiro
e o perdão para quem deve,
sendo eterno mensageiro.

Ó Mestre, Deus e Senhor!
Fazei que eu procure mais,
consolar quem vive à dor
que buscar consolos tais.

Entender as diferenças
que vibrar nas semelhanças,
amar quem nas desavenças
me usurpar as esperanças.

Porque é dando, que se alcança,
pelo gesto, a recompensa,
quando posto na balança
e obtivermos a sentença.

É perdoando que vemos
crescer sob a luz fraterna
a vida e morrendo a temos
renovada, plena e eterna.

Fonte:
Luiz Damo. Celebrando com trovas. 
Caxias do Sul/RS: L.D., 2018.

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Malba Tahan (Os Pastéis de Alcassim)


O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastéis:

— Aqui tens, nesta cesta, tão bem arrumada, trinta e dois pastéis de leite e canela. Estão saborosos. Seriam dignos da esposa do Sultão. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que tão amável e correto tem sido para mim.

— Escuto e obedeço, meu pai — respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no chão, olhou demoradamente para os pastéis e disse de si para consigo:

— Logo que entregar estes trinta e dois belíssimos pastéis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, fará questão absoluta de me dar a metade. Sim, é isso mesmo, a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois é dezesseis! É certo, portanto, que, destes trinta e dois pastéis, dezesseis serão forçosamente meus. Não há mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastéis, deixando os outros no fundo da cesta.

Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedaço de muro em ruínas e assim refletiu:

— Levo agora dezesseis magníficos pastéis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontáveis benefícios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele próprio, obrigado a aceitar a metade do conteúdo. O cadi, sendo um homem de bem, não deixará de cumprir com essa velha praxe. E qual é a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto não o ignora) é oito! Logo, destes dezesseis belos pastéis, oito serão forçosamente meus. Não vejo inconveniente em comê-los desde já.

E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insaciável Elias, mais oito dos pastéis destinados ao cadi.

Logo adiante, graças a um raciocínio aritmeticamente idêntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastéis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastéis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou à casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnífico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

—  Que é isso? — perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedaço de pastel.

—  É um presente de meu pai! — respondeu o pândego com a maior naturalidade. — É um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia, o raciocínio que várias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastéis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da façanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

— Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graças a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou saboreá-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria às minhas mãos.

E já ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

— Perdão, ó honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito à metade. Não é assim?

— Iallah! — concordou, prontamente, o juiz — A tua observação é muito justa. Que distração a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito à metade desta mísera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinhão que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silêncio, aquela minúscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito séria:

—  Esse caso dos trinta e dois pastéis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

— Muito triste? Como assim?

— É fácil explicar — volveu o cadi, num tom vitorioso. — Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que não merecia confiança. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

— O honrado cadi vai castigar meu pai? — perguntou o birbante com ares de abstração palerma.

— Sim — confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. — Vou castigá-lo, como já disse. E castigá-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

— E serás tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, é claro, é evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocínio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastéis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), terás direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, terás, ainda, a metade da metade! Não é assim? Mas como, na Aritmética das Punições, não é possível calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justiça, enviar, por teu intermédio, a teu pai!

E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu serviço) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.

Bem diz o provérbio que os beduínos repetem todos os dias:
“O castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”. Uassalam
_________________
Nota:
Cadi - Juiz. Magistrado.

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do cheique e outras lendas.

Antonio Brás Constante (Aprisionados, ou melhor... casados)


O casamento é a prisão perfeita, pois faz com que o próprio apenado decida se entregar, construindo sua cela em um terreno financiado por ele mesmo, providenciando o seu sustento e de sua carcereira. Tudo feito por atos espontâneos, motivados pela sociedade, que convence o candidato a prisioneiro com promessas de
felicidade eterna.

A pena para quem casa é de prisão perpétua, pois o juiz, ou melhor, o padre sempre finaliza a sentença dizendo: “até que a morte os separe”. A única forma conhecida de se libertar dessa prisão é por mau comportamento. O casamento é um regime onde
o prisioneiro cumpre sua pena em regime semiaberto. Saindo durante o dia para trabalhar como qualquer homem livre e solteiro, e voltando ao seu cárcere ao anoitecer.

Para que o homem não se sinta tentado a “pular o muro” em busca de alguma louca aventura fora de sua cela, existem dispositivos extremamente eficientes para monitorá-lo, intitulados de “vizinhos” e “parentes”, que conseguem rastrear suas atividades, impedindo qualquer desvio de sua conduta.

Uma das curiosidades sobre o casamento é que o homem (por se achar muito esperto) resolve em um dado momento que pode roubar a sua noiva dos pais dela, mas esquece que fazendo isto é ele quem acabará preso. Aliás, o casamento é o único sistema penal onde o prisioneiro pode abertamente ter relações íntimas com sua carcereira, tendo inclusive filhos com ela, que podem ser futuros prisioneiros ou futuras carcereiras. Como o aprisionado dispõe dessa liberdade com a carcereira, fica proibido de ter outras visitas íntimas.

As punições por seus erros de conduta vão desde a falta de um jantar até algumas noites dormindo no “solitário” (também conhecido como sofá), que é uma versão doméstica da solitária. É nesse lugar que o pobre marido tem de se sujeitar a ficar em eventuais brigas conjugais. Ao invés de algemas, o apenado recebe uma aliança, que deve permanecer em seu dedo enquanto viver. A retirada ou perda dessa joia é recebida com sessões de tortura, que começam nos ouvidos e terminam com a ameaça da vinda de sua sogra para morar com eles em sua cela.

Nos finais de semana, os prisioneiros têm direito a banhos de sol, desde que façam os mesmos segurando uma enxada, que será utilizada para capinar o pátio. O prédio da prisão onde o apenado reside serve para duas situações: garantir o conforto de sua carcereira e prole, bem como facilitar a localização do mesmo para o recebimento dos impostos vindos pelo correio, onde é cobrado pelo governo por estar preso.

O homem, quando se deixa enfeitiçar pelos encantos de uma mulher, fica cego de amor e logo vai entregando a chave de seu coração, esquecendo-se de que o resto do corpo também faz parte do pacote. Em algumas dessas prisões chamadas de lares, as carcereiras efetuam revistas nos prisioneiros quando estes retornam do trabalho, procurando em seus corpos e bolsos marcas ou bilhetes que sirvam de prova contra os réus.

Algumas normas devem ser obedecidas na prisão: Não “roubar” doces da geladeira. Não ficar atirado no sofá da sala “matando” tempo. E principalmente não “desviar” olhares para outras mulheres.

Enfim, o casamento é uma prisão dentro de outra prisão chamada vida, e, apesar de todas as reclamações que possam surgir, ainda é um lugar maravilhoso, seguro e aconchegante, pelo qual vale a pena cumprir integralmente a sua pena. Case-se, e saberá se estou dizendo a verdade ou apenas lhe pregando uma peça.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.