quinta-feira, 23 de julho de 2020

Dinah Silveira de Queiroz (A Moralista)


Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe - não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando - só nós três em casa - vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:

- Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...

Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural.

O moço e a senhora choravam juntos.

Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios.

Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós.

Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra:

- Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora?

Contaram a Mamãe. Ela não riu:

- Eu não gosto disso. - E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço.

Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:

– Já estão me chamando de "padra"... Imagine!

Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:

- Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos...

Todos acharam ótima a ideia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava:

- Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis?

Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:

- Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou.., contando a sua miséria. Ë um desgraçado!

Um sonho de glória a embalou:

- Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade!

O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai - foram avisá-lo:

- Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito!

- Ela quis - respondeu meu Pai. - Ela sempre sabe o que faz!

O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:

- Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então...

Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:

- Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos!

Animado, meu Pai garantia:

- Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso!

Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. à hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranquilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar:

- Você não acha que ela consertou... demais?

Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.

Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:

- Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido - chegou a querer que morresse! Eu falo - porque todos sabem - mas ele hoje é um moço de bem!

Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou:

- Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!

- Mas - disse Mamãe admirada. - Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência.

Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora- seu pescoço - naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:

- Você tem razão. É melhor que ele volte para casa.

À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:

- Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...

No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe:

- Saia!... - disse ela baixo, antes de começar a reza. Ele ouviu - e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos.

Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite.

- Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...

Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias.

Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade.

Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção - eu o sabia - a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.

Fonte:
Conto escrito em 1957. in Histórias do amor maldito (Gasparino Damara, org.)

Sammis Reachers (5 Cartas em Versos)


CARTA À ÁRVORE

Torre transterna,
                          Transuterina
Verde malha de açambarcar
Estaca que a vida finca
Patamarizado playground,
                                    Estação clorofila
Biopilar da paz

Terramáter véu
Usina alquímica
A nutrir o sistema-Terra

Obrigado eternamente obrigado
Por alimentar-nos
De proteção e pão
Por verdecer para que não
                                          Ressecássemos
Nós vorazes algozes agradecemos
Por nos servir
De berço,
                 Púlpito
     E esquife

Perdoa-nos a nós os desgalhados entes
Nós a raça kamikaze de sem plumas
E sem clorofila
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CARTA AO CAFÉ


Café aroma de lar
Ritual, despedida de quem vai,
Abraço a quem retorna
Coffea arábica, Coffea canephora,
Coffea liberica, Coffea dewevrei

E as raças secretas de café

Cremes, bolos, infusões
Drinks, balas, canapés
Reversa marihuana
De santos, céticos e sahibs

Aqueduto tônico odoropulsante
Odoropulsar:
Café cuspidor de estrelas,
Regurgitador de luzes
Festim fenomenológico
Reserva moral da literatura

Sol do leite, do creme, do rum
Sol para tantas pressurosas luas
Centro da galáxia

Inimigo do deus do sono Oneiros,
Adversário do deus de gelo Ymir
Multilíngue deus de ébano & trópico

Licor laboral
Elixir de trevas luminosas
Rubro fruto de a noroeste
Do Eufrates e do Tigre
Último pomo a escapar do Paraíso
Antes de seu traslado
De volta ao seio de Deus

Orfeu negro, liquefeita
Cítara
Poema em estado tênsil
Combustível dos Napoleões
Comburente dos Quixotes

Aumente a pressão sanguínea
De nossas ideias,
Aqueça nossa tumultuosa
Solidão campestre ou citadina
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CARTA AO LIVRO DE BOLSO


Adolescido tomo
lanterna dos afogados

paraninfo da literatura
rancho da tropa, democrática
classe econômica
talismã, lítero muiraquitã iniciático

sustentáculo dos sebos, colecionário
de ceitils, centavos e xelins

Ingresso de matinê
na nau de Stevenson, na floresta
de London
na faiscante Paris espachim e amante
dos Dumas

condensário das imensidões
de Moby Dick ao pai Quixote

dramas d’antanho em prosa e papel jornal
poemas seletos lidos com lenta pressa
enquanto sacoleja o bonde ou o busão

lâmpada de celulose que exulta
na cama de solteiro do quartinho dos fundos
tanto te devemos, fiador dos desamparados
bengala dos moços, livro de bolso
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CARTA AOS PEDAGOGOS


A você, doador de sangue.
Que acredita nos pequenos inícios.
E se esmera nos processos, e vê ao longe
E no agora a colheita.
E vê perenidade na intermitência.

Você, alma grávida:
Beija-flor levando água
Para apagar o incêndio
Que na floresta dos homens grassa;
Salmão contra a corredeira,
Remando movido duma pulsão
Maior que seu pequeno corpo, urdida chama,
Flama & frêmito da expansão que o Conhecimento
- Este agridoce tutor - exige daqueles
Que o portam não na tumba cerebral,
Mas na cardíaca fornalha.

Guardião do Palácio de Tudo,
Cidadão matricial, apaziguador das gerações:
Nós te celebramos.
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CARTA AOS ANTOLOGISTAS


Deus é o códice e a logosfera
Donde todo verbo emana:
A você, pequeno livro de DNA,
Cabe adentrar as bibliocatedrais,
Abrir os outros livros em sua fonte,
Esposar em luz a profusão de periódicos,
Os homens e(m) suas memórias;
Mergulhe, vá!, polígamo pária,
No Oceano de Papel do qual
Você é o mais propício nauta;
Execute seu trabalho
Como compilador.

Revista-se de anonimato
Para celebrar os Nomes luminosos;
Você é o cobrador de impostos
Da sabedoria humana,
E o seu mais fiel e abnegado tributário.

Sua psicanálise é clara:
Sofre da pulsão de abarcar.
Sua sociologia é a mais chã e nua:
Todo antologista é um civilizador,
Um amigo do Homem.

“Não há limites para o fazer livros”,
E você, muar cargueiro de Gutenberg,
Entendeu exato que, logo,
Não há força que lhe impeça.
O muito estudo, enfado da carne
Que a muitos bem-intencionados
Amolece, você pisoteia
Com as botas de seu pragmatismo,
Pois mortificar a carne
É a sua ascese.

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 02) Fuga Letal


O SUJEITO CHEGOU no trigésimo andar vindo pelas escadas. Por algum motivo, não usou nenhum dos elevadores.  Havia quatro cabines verticais à disposição, mas ele preferiu o anonimato dos corrimões e das luzes tênues das escadas empoeiradas. Ao se avolumar com a sua massa corporal no extenso do corredor, notei seu semblante ressabiado e o respirar fatigado. Num primeiro momento, olhou para todos os lados, inúmeras vezes, como se temesse a chegada inesperada de alguém.

Percebi, logo de cara, que as intenções dele não eram assaz benignas. Quem aparece assim, do nada, suando em bicas, elegendo as escadas, para galgar trinta pavimentos, ao invés das comodidades dos ascensores, e o mais importante, amedrontado, se esgueirando feito cobra, pelos cantos escondidos, certamente não vinha disposto a se ajoelhar e rezar para pedir clemência à Deus. Aquele homem tinha outras intenções e eu, com toda certeza, seria, ainda que a contragosto, a testemunha ocular de um possível futuro crime hediondo prestes a acontecer.  

De onde eu estava  (por incrível que pareça, metido no cubículo onde ficava disposta a lixeira que servia a todas as quatro suítes imensas daquele andar), ele não podia me ver, a menos que caminhasse até meu esconderijo e, de supetão, abrisse a porta por qualquer motivo não justificável. Ou, de outro modo, um morador retardatário que naquele horário resolvesse jogar seu lixo fora, surgisse sem prévio aviso e desse comigo clandestinado onde as pessoas apareciam somente para se livrarem de seus expurgos caseiros. Seria muito azar da minha parte. Bota azar nisto.

Fora isto, acrescentando mais dois motivos,  eu seria pego de calças curtas, se produzisse algum ruído estranho, tipo se deixasse cair uma agulha no chão, ou, em face do cheiro forte exalado dos detritos, espirrasse numa sequência de atchins incontroláveis. No pior dos mundos, meu Cristo Salvador, no pior dos mundos, eu seria igualmente surpreendido, no flagra, de saia justa (apesar de não usar saia), se ousasse abrir a boca e gritar pelo fato de ter sido estuprado, quem sabe, por uma barata afoita que surgisse sem motivos justificáveis. 

Depois de se abanar com um jornal enrolado que retirara do bolso esquerdo, tomar fôlego e prescrutar cuidadosamente todos os cantos, de espiar pela janela de vidro inteiriçada incrustada à parede de meia altura o movimento da avenida lá embaixo,  de sentir no rosto o brilho da lua resplandecente, puxou da cintura um chaveiro e, dele, uma lixa e se prestou a procurar  qual apartamento seria o seu destino final. Foi lá, veio cá, passou perto de mim, vagarosamente. Tremi na base. Me benzi, esparramando de qualquer jeito, o Sinal da Cruz. Se o desgraçado resolvesse abrir a lixeira.... Eu estava fe... Entretanto, o cidadão estancou a caminhada diante do 3004. Mandou vê. Em questão de segundos, com a ajuda da gazua, arreganhou a porta da unidade e entrou. Simplesmente abundou aquela residência, como se tudo ali fosse dele.

Dentro do apartamento, norteado apenas pela luz da lanterna do celular, não perdeu tempo. Abriu várias gavetas, vasculhou minuciosamente atrás das cortinas, levantou o tapete que se estendia por boa parte do chão, remexeu nos livros dispostos na estante. Deu a entender que o procurado não fora achado. Afinal, o que o sujeito tinha tanta pressa em colocar as suas garras afiadas?

Finalmente, se esparramou no sofá retrátil de doze lugares, acendeu um cigarro e se fixou a olhar para o teto, sem se preocupar com a porta principal que arrombara e deixara diametralmente aberta ao acaso de outras moradias. Me veio a cabeça que o suspeitoso não se tratava de um ladrãozinho qualquer. Longe disso. Pelo menos, não vestia a pele de um meliante comum. Embora tivesse revolvido e remexido em tudo, deixado no seu remelexo o ambiente em desordem, de nada que viu pela frente, se apoderou para si. Foi aí que entendi a charada.

Claro, que besta quadrada! Só eu mesmo para pensar besteira. O estrangeiro não  fazia parte dos  larápios e salteadores buscando quinquilharias. Sem sombra de dúvidas, eu estava diante (em termos) de um assassino. Um facínora frio e calculista. Esperava, pois, a dona do imóvel. E eu sabia de quem se tratava.  Marcela, uma loira de tirar o sossego de qualquer coração. Andava, a beldade, pela  casa dos vinte e oito anos. A jovem morava sozinha, e, com toda certeza, ele a esperaria para lhe dar o bote e, de roldão, cabo da vida. Fiquei imaginando, com meus botões:  por que o infeliz não encostara a porta que violara?

De repente, ele saltou do sofá. Apagou o cigarro. Foi até a janela. Abriu um pouco a cortina e despachou a guimba ao sabor da escuridão. Um dos elevadores, ou mais precisamente o social parou neste momento e alguém saltou. Sabia que apeara uma pessoa, pelo barulho da porta sendo empurrada. De fato, eu não errara. Marcela havia acabado de aportar. Meu Deus, eu precisava fazer alguma coisa, no mínimo, por descargo de consciência, avisar a coitada. Jesus Cristo, eu seria testemunha de um crime brutal, cometido à revelia de uma inocente e eu não poderia sequer sair de onde estava. Aquela altura, se me delatasse estaria dando um tiro no próprio pé.

Talvez, com  certeza, me enveredasse pelo mesmo destino trágico daquela doçura que acabara de chegar  da rua, ou do trabalho, sei lá, que diferença isto faria agora? Ouvi nitidamente seus passos no corredor. De fato, a moradora se achegava. Enquanto esperava e espiava, temeroso e tremendo, ela passou por mim. Quase a toquei. Senti seu calor. Capturei o cheiro forte do seu perfume, me coloquei dentro dos olhos dela, ambos direcionados para a porta de seu quadrado. Ela percebeu, então, que a sua habitação fora transgredida. Apesar disso, não parou. Caminhou devagar, quase parando, como se não tivesse pressa. Como se sentisse o perigo iminente que a espreitava, mas por alguma razão mais forte, não retrocedia, seguia em frente, os cabelos soltos, em ondas esvoaçantes descendo sedosos até a cintura fina.

Vista por trás, a espetaculosa, se transformara a meus instintos animalescos numa deusa encantada. O corpo perfeito. Seu conjunto escultural, lembrava uma princesa recém saída de um castelo encantado. Coitada! Tão nova, tão linda, tão... Seu fim se  aproximava. À alguns passos e tudo estaria acabado. Acovardado, preso ao chão, eu tremia pior que caniço em temporal. Ela parou no umbral. Acendeu a luz. Ao ver o homem, em pé, quis retroceder.  Tarde demais.

Ele se aproximou, como se voasse. Ligeiro, agarrou a formosa pelos cabelos e a puxou violentamente para si. Ela tentou se libertar. Emitiu uns “me solta, me deixa, pelo amor que você tem à sua mãe”, entre outros impropérios, que acabaram sendo abafados pela força bruta do desumano algoz. Ato contínuo, a arrastou para o sofá, como se fosse, a criatura,  uma pluma. Um beijo se fez ligeiro, depois outro, numa sofreguidão que arrepiou o mais profundo da minha alma. Apavorado, mais que apavorado, aterrorizado, espantado, terrificado, me questionei rezando o Pai Nosso. Que atitude tomar? Correr? Berrar? Buscar ajuda?  Virar homem e sair da toca e chamar a polícia ou pôr para fora o que tinha de fazer ali mesmo e não dava mais para segurar, ou meter o rabo entre as pernas e me escafeder?

Se ao menos eu tivesse trazido o celular... Eu não podia continuar estático, feito um cão assustado, acossado, perseguido e embaraçado... Precisava, carecia, necessitava  fazer algo o mais urgente possível. Tomei, então, uma atitude. Engoli o medo. Mastiguei o receio. Esmaguei meus temores. “Afinal, sou um homem ou um rato?”.  Isso não iria ficar assim. De forma alguma. Me enchi de razão. Resolvi sair do armário, digo, da lixeira. Peguei o controle e, ato continuo, desliguei a televisão. Droga de filme chato!  Apaguei a luz da sala e fui para o meu quarto dormir.

Fonte
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da vida na privada”.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Sinclair Pozza Casemiro (Maria e Maria)


Caminhoneiro feliz era o Tião. Não foi a vida que pedi pra Deus... mas já que ele me deu.... Um caminhão bem cuidado, as posses não lhe puderam conferir um novo, mas seu sonho por certo um dia viraria verdade e ele passearia pelas ruas de Campo Mourão com as Marias na boleia. Esse dia ia chegar, tão certo como o sol que me alumia, lhe agaranto, Maria. E Maria concordava, rindo. Era assim sempre aquela mulher. Sempre rindo, co'a filhinha ao colo. Mulher de caminhoneiro é também uma forte, Euclides. Não tem tempo ruim, sol, chuva, frio, calor, comida, fome, cobrador à porta, o silencio cumplicioso diante do credor indignado... e a vida vai-se indo...

Maria e Maria. Suas duas maiores fortunas que ele, sempre que podia, carregava junto. A filhinha não reclamava, gostava muito. Nem sabia se tinha outro jeito, é claro. A mãe não só não reclamava quanto gostava muito, também. Acompanhar Tião, seu homem. Valente, alegre, mal-humorado com quem não gostava e um doce, até estragado de tão doce, pra quem queria bem. Assim, a vida ia se indo.

Os botinas já tinham se acostumado de ver a família na boleia. Carona não pode, mas as Marias eram carona? Acho que não. Pelo sim, pelo não, uma cervejinha de vez em quando e o problema estava resolvido.

Assim a vida ia se indo, Maria sempre rindo. Tião, ia e voltava, frete não lhe faltava. A casinha, ali perto do 119, na saída pra Peabiru, era humilde. A cidade de Campo Mourão ainda não era assim asfaltada, com as comodidades de agora, mas já mostrava futuro. A vizinhança, pouca, muito rara mesmo, era pobre igual, ou melhor, mais pobre. Tião não era pobre. Era afortunado, tenho um caminhãozinho, uma família, vamo vivendo... Muita peça que quebra, pneu que estoura, recape que não aguenta, senão até que sobrava pra não dever nada. Mas... tá bom. A noite fazia esquecer os problemas junto do corpo quente e macio da Maria, sempre rindo...

A filhinha crescendo, já dando seus passinhos, entendia de um tudo. Gostava de passear no caminhão, parava pra isso qualquer birra ou tristeza, se é que havia.

A Maria era sua, só sua, a Maria, filhinha, era deles, só deles. Mas a fortuna eles dividiam com os amigos. A casinha, quando eles lá paravam, era sempre cheia de gente. E de causos, e de chimarrão, dava gosto. Maria, sempre rindo. Não gostava de ficar, queria ir com Tião, nem precisava chamar. Chegava, lavava, arrumava a casinha, preparava comida pras viagens, ajeitava as coisas. Ia de novo. Seu lar era mesmo a boleia.

Estavam todos na roda do chimarrão, naquela tarde meio chuvosa, quando chegou uma mudança. No barraco ao lado. Não para ninguém aí, esquisito. Já ouvi dizer que foi amaldiçoado, quando os pioneiros vinham pro lado do Santa Cruz, fazer as rezas na Gruta, uma mulher foi assassinada nesse rancho. Me contaram que foi de amor. O companheiro não aceitava que ela não lhe queria mais. E aquele filho, diziam, nem era dele, não. Então ele trouxe ela, mais o filhinho no rancho, e escondido de todo mundo, matou a infeliz. O filhinho, Tião? Ah, nem tinha como saber das coisas, era de colo. Cresceu, com parentes. Mas o ranchinho fica aí, assustando os outros. Diz que ela vem, de noite, procurar o filhinho,.. Diz que se escuta o choro dela e ela chamando o bebê. É... coração de homem é terra que ninguém pisa...

A roda, de repente, tem mais gente. Chega a dona nova da casa e o filho, rapaz de corpo bem feito, falador, bonito. Logo se enturma, aprecia o chimarrão. Muito bem feito, fazia tempo que não experimentava um igual, com essas ervas... Ervas daqui, do quintal, diz Maria. Pra gente usar. Quando quiser... A conversa se anima, vão terminar a mudança, vai que chove.,.

E choveu. Choveu tanto, que o ranchinho não serviu pra abrigo e os novos vizinhos foram procurar arrego no Tião. Como sempre, o caminhoneiro atendeu. Tratou o vizinho já como velho companheiro, o que só o caminhoneiro sabe fazer. As mulheres confabulavam, a Maria, filha, encantava com sua graça e esperteza. A noite chuvosa embalou a todos, até os desafortunados do novo lar, que não tinham mesmo o que fazer.

E assim a vida ia se indo. No outro dia, o moço arrumou o rancho, nem precisou mais de ajuda. Agradecido, só fez visita, na outra noite. Tião recebeu, Maria sempre rindo...

Os dias foram passando, Tião, Maria e Maria indo e voltando, os novos vizinhos se conversando... Tinha mesmo um barulho esquisito no rancho. Mas.,. arre! Tenho o corpo fechado, falava o moço, que achava bonito o jeito da Maria, sempre rindo...

Maria achava bonito aquele moço, sem medo, valente que nem o Tião.

Hoje não vou, Tião. Tenho que arrumar umas coisinhas. Tá bem, volto logo. E assim a vida ia se indo... Maria já nem sempre rindo... Já nem indo tanto mais, também, no caminhão com Tião.

Um dia, um amigo falou pro Tião que ele nunca que ia morar em casa perto de casa assombrada. Tragédia chama tragédia. Se fosse o Tião, mudava dali.  Ora! Pra mim, essas coisas? Desde quando, nunca me aconteceu nada! Eu, se fosse você, Tião, mudava dali. O ranchinho é coisa do tinhoso, nem é bom tá perto. Oras!!

Mas o amigo insistia... Reparando bem, era mesmo. Maria nem sempre ria mais, já não ia mais com ele como antes, andava aborrecida, doente. Doente? Mas tava mais bonita, cabelo sempre arrumado, batom, as unhas sempre pintadas... Não tinha que se preocupar, não. Que confusão, Meu Deus! Acho que o Pezão não é bem amigo, não. Deu pra me perturbar com coisas... Tião, você não merece. Tentei evitar, até te tirar de lá, mas... Você é muito bom, rapaz, não percebeu. Cuida da Maria e do moço bonitão.

Bastou. O coração bom de Tião se anuviou, ele mais nada viu. Depois, bem depois que a tonteira e o ódio amainaram, ele achou que não era verdade, era engano, era mentira, era pesadelo. E nessa ilusão conseguiu chegar. Estava igual seu cantinho, mas já não era o mesmo mais. Também Maria, já não sorria. Mas um fio de esperança contava pra ele que não, que era tudo ilusão, pesadelo. Tião despediu, da Maria e da Maria, vou viajar. Tinha um plano.

Chegou a Peabiru, como nunca antes, nem viu passar o tempo, a estrada. E, de lá, encostou o caminhão, voltou a pé. A peixeira na cinta, não ia ser preciso usar. Era tudo ilusão, pesadelo. Os passos iam fazendo ele se achar tolo, perda de tempo. A Maria era só dele, era, sim, como era quando ela sempre ria.

Na porta do seu cantinho, ele viu umas chinelas que não eram dele. No azul escuro da noite sem lua, Tião viu tudo claro, de repente. E, brusca, irrompidamente saltou ao leito onde dormiam os corpos descansados dos pecadores ingratos. Tião só viu massas de corpos nus, braços, pernas, gritos, molhados, em meio ao prateado fio. Depois, no tribunal, soube que foram muitas, perto de cinquenta. A Maria, filha, tadinha, estava muda. Os olhos sempre abertos, fugidios, corriam do Tião. A vida pra eles também se acabara. Não foi preso, que a Lei, naquele tempo, não condenava quem matava pra defender a honra. A pequena Maria, ficou sabendo que morrera também. Como os olhos não queriam mais ver, a boca não quis mais comer, o coração não quis mais viver. E naquele tempo, também era mais difícil remédio pra essas dores.

Até hoje, quem passa por aquela estrada, escuta no rancho e no cantinho do Tião, um choro e mais uns gritos. Conforme a hora, escuta também uma voz, principalmente quando se anuvia e o vento assobia, chamando longe... longe... "Mariinha, filhiiinha!..." O pai, esse vagueia, pelo rio 119, pela estrada pra Peabiru, como vagueou em vida até ser reconhecido, ainda quente, sob as rodas de um caminhão.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Nuno Júdice (Poemas Escolhidos)


PRESENTE

Queria neste poema a cor dos teus olhos
e queria em cada verso o som da tua voz:
depois, queria que o poema tivesse a forma
do teu corpo, e que ao contar cada sílaba
os meus dedos encontrassem os teus,
fazendo a soma que acaba no amor.

Queria juntar as palavras como os corpos
se juntam, e obedecer à única sintaxe
que dá um sentido à vida; depois,
repetiria todas as palavras que juntei
até perderem o sentido, nesse confuso
murmúrio em que termina o amor.

E queria que a cor dos teus olhos e o som
da tua voz saíssem dos meus versos,
dando-me a forma do teu corpo; depois,
dir-te-ia que já não é preciso contar
as sílabas nem repetir as palavras do poema,
para saber o que significa o amor.

Então, dar-te-ia o poema de onde saíste,
como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia
pela mão, contando os passos do amor.
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ROSA COM ESPINHOS


Abro a rosa com as pétalas viradas para dentro
de mim, sugando-me o ser com os seus lábios
de veludo. E quando estou dentro da rosa, ouvindo
a música que corre ao longo do caule, num êxtase
de seiva, troco em versos o que a rosa me diz,
sentindo que a rosa se fecha, em botão, para
que o meu ser não saia de dentro dela. Então,
sei que habito o próprio centro do efêmero,
enquanto as pétalas vão caindo, uma a uma,
à medida que a rosa se abre, e o sol que entra
para dentro da rosa, empurrando o meu ser
para fora do seu centro, corre nas suas veias,
como seiva de fogo, até fazer com que outros
botões nasçam, para que me suguem o ser,
até entre mim e a rosa não haver senão a frágil
fronteira de um espinho, em que me pico,
sentindo que a gota de sangue do meu dedo
podia ser a seiva em que a rosa nasce do ser
que a deseja, no instante efêmero do amor.
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PRINCÍPIOS


Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exatamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
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COMO SE O TEU AMOR…


Como se o teu amor tivesse outro nome no teu nome,
chamo por ti; e o som do que digo é o amor
que ao teu corpo substitui a doçura de um pronome
– tu, a sílaba única de uma eclosão de flor.

Diz-me, então, por que vens ter comigo
no puro despertar da minha solidão?
E que murmúrio lento de uma cantiga de amigo
nos repete o amor numa insistência de refrão?

É como se nada tivesse para te dizer
quando tu és tudo o que me habita os lábios:
linguagem breve de gestos sábios
que os teus olhos me dão para beber.
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PRIMAVERA


Nesta primavera, a chuva tem caído como se fosse
Uma primavera de Londres, úmida e mole,
E não a primavera meridional, amena e doce,
Com nuvens e vento, mas sempre com luz e com sol.
Os gatos não saem de ao pé da janela, detrás
Dos vidros, vendo as gotas escorrerem por fora,
Como se suspirassem pelo fim dessa paz
doméstica, ansiosos por saírem a qualquer hora.
No entanto, as grandes nuvens estendem-se pelo céu;
Por vezes, um trovão interrompe o pensamento.
O cinzento derrama-se como um espesso véu,
Ajudado pelo tédio que empurra este vento.
Assim, de manhã, nem abro a janela:
tão escuro é o dia lá fora como cá dentro;
E só o espírito, por inércia, o tempo revela
Se alguém pergunta onde fica o centro?

Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.
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A VIDA


A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, retângulos, nas linhas
retas e paralelas que se cruzam
com as linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube
que se iriam dar,
mesmo que nunca se soubesse
com quem e onde, nem quando;
essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas úmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

Fonte:
Estúdio Raposa

Nuno Júdice (1949)

Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória nasceu em Mexilhoeira Grande/Portugal, a 29 de abril de 1949.

Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com uma dissertação sobre Literatura Medieval.

Professor do ensino secundário, desde 1992 até 1997, foi professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, até à sua aposentadoria, como professor associado, em 2015.

Foi diretor da revista literária Tabacaria (1996-2009), editada pela Casa Fernando Pessoa e Comissário para a área da Literatura da representação portuguesa à 49ª Feira do Livro de Frankfurt. Foi também Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal (1997-2004) e diretor do Instituto Camões em Paris. Organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa '94 - Capital Europeia da Cultura. É atualmente diretor da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.

Poeta e ficcionista, a sua estreia literária deu-se com A Noção de Poema (1972). Em 1985 receberia o Prêmio Pen Clube, o Prêmio D. Dinis da Casa de Mateus, em 1990. Em 1994 a Associação Portuguesa de Escritores, distinguiu-o pela publicação de Meditação sobre Ruínas, finalista do Prêmio Europeu de Literatura Aristeion. Assinou ainda obras para teatro e traduziu autores como Corneille e Emily Dickinson.

A sua obra inclui antologias, edições de crítica literária, estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. Mantém uma colaboração regular na imprensa. Lançou, em 1993, a antologia sobre literatura portuguesa do século XX, Voyage dans un siècle de Littérature Portugaise. Tem obras traduzidas em diversos países da Europa, Ásia e África.

Fonte:
Wikipedia

Luís da Câmara Cascudo (O Compadre da Morte)


Diz que era uma vez um homem que tinha tantos filhos que não achava mais quem fosse seu compadre. Nascendo mais um filhinho, saiu para procurar quem o apadrinhasse e depois de muito andar encontrou a Morte a quem convidou. A Morte aceitou e foi a madrinha da criança. Quando acabou o batizado voltaram para casa e a madrinha disse ao compadre:

- Compadre! Quero fazer um presente ao meu afilhado e penso que é melhor enriquecer o pai. Você vai ser médico de hoje em diante e nunca errará no que disser. Quando for visitar um doente me verá sempre. Se eu estiver na cabeceira do enfermo, receite até água pura que ele ficará bom. Se eu estiver nos pés, não faça nada porque é um caso perdido.

O homem assim fez. Botou aviso que era médico e ficou rico do dia para a noite porque não errava. Olhava o doente e ia logo dizendo:

- Este escapa!

Ou então:

- Tratem do caixão dele!

Quem ele tratava, ficava bom. O homem nadava em dinheiro.

Vai um dia adoeceu o filho do rei e este mandou buscar o médico, oferecendo uma riqueza pela vida do príncipe. O homem foi e viu a Morte sentada nos pés da cama. Como não queria perder a fama, resolveu enganar a comadre, e mandou que os criados virassem a cama, os pés passaram para a cabeceira e a cabeceira para os pés. A Morte, muito contrariada, foi-se embora, resmungando.

O médico estava em casa um dia quando apareceu sua comadre e o convidou para visitá-la.

- Eu vou, disse o médico - se você jurar que voltarei!

- Prometo! - disse a Morte.

Levou o homem num relâmpago até sua casa.

Tratou muito bem e mostrou a casa toda. O médico viu um salão cheio de velas acesas, de todos os tamanhos, uma já se apagando, outras viva, outras esmorecendo. Perguntou o que era.

– É a vida do homem. Cada homem tem uma vela acesa. Quando a vela acaba, o homem morre.

O médico foi perguntando pela vida dos amigos e conhecidos e vendo o estado das vidas. Até que lhe palpitou perguntar pela sua. A Morte mostrou um cotoquinho no fim.

- Virgem Maria! Essa é que é a minha? Então eu estou, morre-não-morre!

A Morte disse:

- Está com horas de vida e por isso eu trouxe você para aqui como amigo mas você me fez jurar que voltaria e eu vou levá-lo para você morrer em casa.

O médico quando deu acordo de si estava na sua cama rodeado pela família. Chamou a comadre e pediu:

- Comadre, me faça o último favor. Deixe eu rezar um Padre-Nosso. Não me leves antes. Jura?

- Juro -, prometeu a Morte.

O homem começou a rezar o Padre-Nosso que estás no céu... E calou-se. Vai a Morte e diz:

- Vamos, compadre, reze o resto da oração!

- Nem pense nisso, comadre! Você jurou que me dava tempo de rezar o Padre-Nosso mas eu não expliquei quanto tempo vai durar minha reza. Vai durar anos e anos...

A Morte foi-se embora, zangada pela sabedoria do compadre.

Anos e anos depois, o médico, velhinho e engelhado, ia passeando nas suas grandes propriedades quando reparou que os animais tinham furado a cerca e estragado o jardim, cheio de flores. O homem, bem contrariado disse:

- Só queria morrer para não ver uma miséria destas!...

Não fechou a boca e a Morte bateu em cima, carregando-o. A gente pode enganar a Morte duas vezes mas na terceira é enganado por ela.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Osman Lins (O Vitral)


Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.

- Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!

A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.

- Está bem. Você não quer...

(A voz anasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)

- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?

Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:

- Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...

- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.

Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.

Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.

- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.

- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.

- Não. Vou assim mesmo.

Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.

Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.

- Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina.

- Você é.

A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?

Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.

- Aproveite - aconselhou ele. Isso passa.

- Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.

As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.

- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.

Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.

Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo."

Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
 
Fonte:
Osman Lins. Os Gestos.

Ana Rolão Preto (Baú de Trovas)


A esperança é voz do Além
  que nesta vida nos guia.
Sem este amparo ninguém
às mágoas sobrevivia.
- - - - - –

Ai de quem diz o que pensa,
ai de quem diz o que sente!
Neste mundo de mentiras
mais agrada quem mais mente.
- - - - - –

Amo a dor que Deus me deu,
lembrando a dor de Jesus.
— Fico mais perto do Céu
abraçada à minha cruz!
- - - - - –

Amor! Não podem dizer
os versos mais inspirados
o que dizem a tremer
nossos dedos enlaçados.
- - - - - –

Bondade — Justiça — Amor!
— Trindade que, realmente,
podia tornar melhor
a vida de toda gente!
- - - - - –

Dignidade não é ouro,
nem é tampouco poder.
Dignidade é um tesouro
que o mais pobre pode ter!
- - - - - –

Em troca de folhas velhas
a terra dá flores e pão.
Dá tu em troca de ofensas,
bondade, amor e perdão.
- - - - - –

Importa saber falar,
mas também saber ouvir.
Nada pode aproveitar
quem não sabe discernir.
- - - - - –

Julgo que a alma será
esta chama fugidia,
que, ao fitar outros olhos,
o nosso olhar irradia.
- - - - - –

Mal por mal, antes ser escravo
do coração e errar,
que ser escravo da razão
e sem amor acertar.
- - - - - –

Não digas mal de ninguém
ainda que tenhas razão:
Pois quem te ouvir logo tem
de ti má opinião.
- - - - - –

Não digas toda a verdade,
se for triste e for grosseira.
É melhor ter caridade
que ser muito verdadeira.
- - - - - –

Ninguém entende a saudade,
ninguém a pode entender,
pobre de quem não a sente,
triste de quem a sofrer!
- - - - - –

Ninguém pode ser juiz
nas contendas do amor:
O coração nunca diz
o que tem no interior!
- - - - - –

O amor é como o sol,
mesmo encoberto alumia.
Nunca disse que te amava,
e toda gente o sabia…
- - - - - –

Olhando as folhas caídas
que o vento arrasta no chão,
fico a pensar nessas vidas
a que ninguém deu a mão.
- - - - - –

Quem aconselha aborrece,
sempre no mundo se ouviu.
Ninguém quer ou agradece
conselho que não pediu.
- - - - - –

Quem sabe não há um tesouro
sob a terra que pisamos?
Podem valer mais que nós
aqueles que desprezamos.
- - - - - –

Quem tem a sorte de amar
a quem o ama também,
a Deus graças deve dar
por ter a sorte que tem.
- - - - - –

Saudade... Divina essência!
É tudo quanto ficou
do bem que á nossa existência
o tempo trouxe e levou.
- - - - - –

Sei que os meus versos são velhos
de séculos – deixai-os ser.
O sol é bem mais antigo
e não deixa de nascer…
- - - - - –

Só o amor tem poder
de dois corações juntar,
contudo, sempre hão de ter
de um ao outro perdoar.
- - - - - –

Ter saudade é ter presente
um bem que nos pertenceu.
E, embora de nós ausente,
de todo não se perdeu.
- - - - - –

Toda casa deve ser
um santuário de amor:
Sagrada para quem lá vive,
exemplo de quem lá for.
- - - - - –

Todos se queixam do mundo,
aflitos, erguendo a voz!
Mas a culpa é de nós todos,
porque o mundo somos nós.

Fontes:
Ana Rolão Preto. Caruma. Lisboa, 1958.
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

Rachel de Queiroz (Joga, Cunhado!)

    

Quem sobe de navio o rio Amazonas, a umas seis horas de Belém, depara com uma das maravilhas daquela espantosa natureza, ao cruzar os chamados estreitos. No começo do seu delta, o rio-mar caprichosamente se deixa semear de ilhas, ramifica o seu caudal em infinitos braços, como para variar da imensidão vazia. Os dois principais estreitos, nesses capilares do gigante, são o de Breves e o do Boiaçu (Cobra Grande), e é pelo último que navega o nosso Ana Nery. O navio é grande, contudo chega a passar tão perto da margem que dá para se avistar lá dentro das casas de jirau dos caboclos, na barranca. A marola que o vapor faz se encachoeira nas margens como querendo arrancar os paus de beira d’água. Há momentos em que até parece que o navio está vogando no meio da floresta — o que não deixa de ser verdade; quase que se estendendo a mão se tocaria na folhagem das árvores.

Apesar disso, a feição mais inesquecível dos estreitos é o seu elemento humano: os “cunhados”. A medida que o navio avança cauteloso pelas águas apertadas, vai lhe aparecendo ao redor um formigueiro de canoas — ou montarias, ou pirogas, ou aatás, não sei como as chame —; parecem moscas em redor de um prato. Longas de dois a três metros, estreitas, são manobradas por uma só pessoa, raramente duas. E eu digo pessoa no sentido de que menino de quatro anos seja pessoa, e velho corcunda, e adolescentes de canela fina, e mulher barriguda, e mãe de dois ou três curumins pequeninos que lhe sentam entre as pernas, e moços fortes, moças de vestido vermelho, e velhinhas de cachimbo; todos manobram as canoas com espantosa destreza e segurança, cavalgando a onda larga que o navio levanta, cortando-a de lado, ao rápido movimento dos remos em formato de folha de aguapé, pintados de cor viva, E lá de baixo, erguendo os olhos para os cinco andares do navio, eles soltam um grito chorado que é quase um canto e lembra muito um aboio de vaqueiro:

— Joga, cunhado! Joga, cunhado!

(Isso de chamarem os passantes de cunhados, eles o herdaram dos índios, que chamam “cunhado” ao estrangeiro que querem honrar, adotando-o simbolicamente na família; “Entre, cunhado; coma, cunhado!”).

A bordo, a passagem pelos estreitos e a chegada dos “cunhados” é um dos itens do programa turístico; antecipadamente, passageiros e tripulantes preparam um monte de sacos de plástico contendo pão, biscoitos, cigarros, fósforos, agulhas, linha, roupas. Os pacotes são jogados n’água, boiam e, com incrível habilidade, contornando ou aproveitando a correnteza, os cunhados os apanham; menininhos incrivelmente pequenos colhem na água os embrulhos com uma elegância de toureiros e logo acenam para o navio, agradecendo. Os passageiros, lá do alto, se compadecem e choram: “Que pobreza! Que pobreza!’’ Sim, a pobreza ali é grande e os presentes do navio são duramente disputados. Mas há também, naquela pescaria dos cunhados, um elemento de jogo, uma competição de destreza, que deve representar parte importante na operação. Na vida deles, tão rude e paupérrima, os pacotes no rio devem exercer uma função dupla de utilidade e diversão; e calculo que, entre os cunhados, valha tanto o precioso conteúdo dos presentes, como o título esportivo de campeão apanhador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Nossa Amiga)


Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha. O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.

- Foi a garota que pediu para chamar...

Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua requisição. Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam de dentro:

- Quem está aí? É de paz ou de guerra?

De fora respondem:

- É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.

Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das meninas de três anos. À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para os dicionários do futuro.

- Qual é a sua casa?

- Esta.

- E a outra de onde você veio?

- Também.

- Quantas casas você tem?

- Esta e aquela.

- De qual você gosta mais?

- Que é que você vai me dar?

- Nada.

- Gosto da outra.

- Tem aqui esta pessegada, esta bananinha...

- Gosto desta casa! Gosto de você!

Não é gulodice nem interesse mesquinho... Será antes prazer de sentir-se cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os cabelos.

Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino. Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente. Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam.

Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.

- Não mexa nos bichinhos.

Mexia.

- Não mexa, já disse...

Em vão.

- Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.

- Que Catarina?

- Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.

A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?) existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.

Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua - a rua é o espaço entre as duas quadras, repleto de surpresas - geralmente à tarde. Vem bêbado, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.

- Vou embora para minha casa. Você vai me levar.

- Mas você mora tão pertinho...

- E Pepino?

- Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.

- Pega, sim. Eu sei.

- Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver se ele pega.

- Eu não vou na festa.

- Você é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena, Lourdes, Bárbara, Edison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.

- Até logo!

Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto desgrenhado.

- Espere aí, você não tem medo do Pepino?

- Não. Estou zangada com você.

Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:

- Espia quem me trouxe.

Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.

- Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.

- Mas que beleza! Onde você vai?

- Vou na festa.

Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia - um carretel, a galinha que salta do carrinho de feira - fazem esquecer a festa, se não a constituem. E resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de formas - será a verdade?

Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.

- Comadre, seu filhinho como vai?

- Tá bom, comadre, e o seu?

- Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.

- Então vou dar no meu também.

Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade. A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos de Aprendiz. (texto publicado em 1951).

domingo, 19 de julho de 2020

Rubem Braga (O Afogado)


Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar braçadas, mas está exausto.

A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim, sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.

Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças, tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na pedra, procura tirar algum espeto do pé.

A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe violentamente e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque  naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma.

Não apenas para salvar-se, ao menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora, do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.

Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas, apesar de tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça; não se deixará enlouquecer pelo medo.

Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.

Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha para trás. Muda de ideia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco. Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do que antes o medo do perigo que passou.

“Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada.” Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo, um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá no corpo inteiro um infinito prazer.

(Crônica publicada em 1953)

sábado, 18 de julho de 2020

Stanislaw Ponte Preta (O Leitão de Santo Antônio)


O vigário rosado, gordo e satisfeito, queridíssimo dos paroquianos daquela cidadezinha, não teria maiores problemas para pastorar suas ovelhas, não fora o mistério do cofre de Santo Antônio. Era um povo quieto, sem vícios, cidade sem fofocas, salvo as pequeninas, entre comadres. E o bom padre controlava a coisa, ouvindo uma, perdoando outra, em nome de Deus.

Mas havia o mistério do cofre de Santo Antônio!

Tudo começou no dia em que o padre resolveu colocar, ele mesmo, uma notinha de vinte cruzeiros, novinha em folha, dessas que saem logo depois de uma revolução, em emissão especial para pagar as despesas democráticas. O padre notou que seus paroquianos não contribuíam muito para o cofre que ficava ao pé da imagem de Santo Antônio e então tratou de colocar ali a nota de vinte cruzeiros, na base do chamariz. Admitia a possibilidade de os fiéis, ao verem a contribuição "espontânea", contribuírem também.

E qual não foi a sua preocupação no dia seguinte, ao recolher as contribuições nos diversos cofres da igreja, notar que os vinte cruzeiros tinham ido pra cucuia? Alguém (e não fora Santo Antônio, evidentemente) passara no cofre antes do padre.

Aquilo era grave. Desde que fora designado para aquela paróquia, nunca soubera de um caso de roubo, em toda a cidade. Pelo contrário, a população orgulhava-se de dormir sem trancas. E agora surgia aquele problema. O cofre de Santo Antônio era o que ficava mais perto da porta e devia ser esta a causa de estar sempre vazio. O ladrão se viciara em roubá-lo. Devia estar fazendo isto há muito tempo, o que explicava a falta de óbolos, que o padre não sabia roubados até o dia em que resolveu incentivar os fiéis com a sua própria notinha de vinte.

Naquele domingo, preocupado com as consequências de seu sermão, o padre andava de um lado para outro, na sacristia. Tinha de arranjar um jeito de avisar ao ladrão de que já era senhor de suas atividades, mas não devia magoar o povo com a notícia de que, na comunidade, havia um gatuno, isto poderia indignar de tal maneira a todos, que a vida pacata da cidadezinha ficaria comprometida pela indignação dos "sherlocks", pois é sabido que de médico e louco (e detetive) todos nós temos um pouco.

O padre fez o sinal-da-cruz e atravessou o átrio para dizer sua missa. Já tinha tudo planejado. Na hora do sermão, pigarreou e contou que Santo Antônio lhe aparecera em sonho, para agradecer a preferência de certo cristão daquela cidade, que sempre que podia deixava uma esmola gorda para os pobres e ainda "limpava" o cofre, possivelmente em sinal de contrição.

O sermão acabou e ninguém notou que o verbo "limpar" tinha sido usado com segundas intenções, mas o padre tinha certeza de que o ladrão se mancara. Mais cedo ou mais tarde viria contrito confessar-se. E — para reforçar sua tese — naquela tarde o cofre de Santo Antônio estava cheio de moedinhas.

Passaram-se alguns dias. Certa manhã o padre viu chegar o velho que tomava conta da estação. Era um negro forte, de cabelo grisalho, muito tranquilo até a hora de largar o serviço, ocasião em que entrava na tendinha e enchia a cara.

O negro chegou amparando uma bruta bandeja. Parou na frente do padre e explicou:

— Seu padre, eu também andei sonhando com Santo Antônio.

— Não me diga! — exclamou o padre, fingindo estranheza, mas já certo que aquele era o ladrão, com remorsos.

— Mas é verdade. Sonhei com Santo Antônio e soube que o santo anda com vontade de comer um leitãozinho. Eu estava engordando este aqui para o meu aniversário. Ele já está gordo e eu já tenho idade bastante para não comemorar mais nada.

Dito o quê, descobriu a bandeja e apareceu o mais apetitoso dos leitõezinhos, assado em forno de lenha. O padre sentiu o cheiro gostoso do seu prato preferido. Mas aguentou firme e disse pro preto:

— Deixa a bandeja aí na sacristia que eu entrego o leitão pro santo.

O bom ladrão obedeceu. Deixou a bandeja e voltou para casa de alma leve. Mas o padre também era um excelente sujeito. Minutos depois, o menino que fazia às vezes do sacristão na igreja chegava à porta com um recado do padre:

— Seu vigário mandou dizer — falou o moleque — que Santo Antônio está de dieta e que é pro sinhô ir comer o leitãozinho com ele, logo mais.

Foi um santo jantar.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Hilda Persiani (Poemas Avulsos) 2


A MOCIDADE

Que beleza é a mocidade!
Ser jovem é estar de bem com a vida,
É não saber ainda o que saudade
E desfrutar a estrada escolhida ...

É como a luz rompendo a madrugada,
Eu a comparo ao alvorecer,
Ter pela frente toda uma caminhada,
Tudo é novidade para conhecer.

O caminho de cada um é desconhecido,
Não são iguais os destinos da jornada,
Cada qual segue em frente convencido

Que se preparou para o que vier depois
E procura encontrar a pessoa amada,
Para a caminhada percorrer a dois .
****************************************

AMOR-PERFEITO


Este amor-perfeito, murcho, descorado
Pelo tempo e pelos beijos que lhe dei,
Num dia chuvoso e frio me foi dado
Pelas mãos de quem eu muito amei.

O dia era cinzento, o chão molhado,
Fitando-me com ternura ele me ofereceu,
Envolto em celofane e fio dourado,
Um amor-perfeito e o carinho seu.

Beijei a flor e guardei-a docemente
Com ternura e carinho de quem ama
E a vida foi decorrendo normalmente ...

Mas o tempo que caminha acelerado,
Do nosso amor foi apagando a chama
E só restou o amor-perfeito desbotado!…
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DESPEDIDA


Ao meu marido,Clênio
* 12-03-1923 - 14-10-2007


Foi muito triste a nossa despedida,
A nossa vida decorria alegre e feliz.
Não sei porque, são coisas da vida
Ou certamente Deus assim o quis;

Aconteceu tudo tão rápido, tão ligeiro,
Você me precedeu da vida na partida,
Foi de surpresa, perdi meu companheiro,
Agora, fiquei só e para sempre entristecida.

Você levou consigo o meu coração.
Ficarei um pouco mais, depois irei também...
Meus lábios estarão sempre em oração,

Meu dia chegará , então juntos novamente,
De mãos dadas, alegres e felizes no além,
Ao seu lado estarei sorrindo de contente!...
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ENVELHECER CONSCIENTEMENTE


Mesmo depois de tantos anos ter vivido,
De haver perdido os traços, talvez belos,
No espelho os procuro, não consigo vê-los,
Sou feliz por eles terem existido...

O tempo, nosso semblante desfigura,
Recompensa-nos com traços de ternura.
A alma torna-se mais bela, mais pura
E nos deixa mais firmes, mais seguras.

A tolerância toma lugar da presunção,
O interior é mais tranquilo, temos doçura,
A empáfia deu lugar à brandura.

Nossos comentários vêm do coração.
Quando sorrimos, nosso sorriso é franco,
Não nos aflige nosso cabelo branco.
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LEMBRANÇAS


Quando à tardinha me ponho a cismar,
Vêm-me á cabeça muita lembrança.
Sentada na rede a me embalar,
Recordo o meu tempo de criança...

Minhas bonecas, meus brinquedos,
Pular amarelinha na calçada,
As brincadeiras de roda, os folguedos,
Esconde, esconde, com a meninada.

De repente, voltando ao presente,
O coração arfando de saudade,
Ao em vez de ficar triste, fico contente

Por chegar à longevidade
E ter ainda dentro em mim,
Tantas alegrias para recordar assim…
****************************************

MARINA


Para minha sobrinha neta

Menina-moça, olhar de candura,
Tão delicada e tão feminina,
O seu sorriso emana doçura,
Invejo sua formosura, MARINA!

É ainda o botão de uma rosa,
Meiga, delicada, franzina,
Quando a vejo bela e carinhosa,
Como a invejo, MARINA!

Quando minha alma às vezes chora
Vendo que minha vida termina,
Ao ver sua deslumbrante aurora

Bendigo sua juventude, menina;
Estou aos poucos indo embora
Mas ai! Como a invejo, MARINA!…
****************************************

MOMENTOS


Como é bom passear na carruagem
Alada do pensamento,
Recordando cada momento
Que marcou como tatuagem...

Momentos que foram vividos,
Que guardados ficaram
E que nunca serão esquecidos,
Nos corações dos que amaram.

Momentos que farão mais sentido,
Quando a velhice chegar,
Felizes dos que nos tempos ido

Guardaram no coração
Doces momentos para recordar
Os anos que jamais voltarão.

Fontes:
Carlos Leite Ribeiro. Portal CEN.
Denise Barros (org.). Sonetos Eternos: Antologia de Sonetos / Celeiro de Escritores. Santos/SP: Ed. Sucesso, 2009.

Figueiredo Pimentel (O Papagaio Encantado)


Longe, muito longe daqui, lá para as bandas onde o sol nasce, dizem que existia maravilhoso país, diferente em tudo e por tudo do nosso. Governava-o um soberano, um rei, que fez a felicidade dos seus súditos, pelos generosos dotes de coração que abrigava; pelo seu amor e respeito à Justiça, ao Direito, à Liberdade, à Igualdade e à Fraternidade; e, sobretudo pela sua grande sabedoria. Chamava-se Marval, e tinha três filhas, qual delas a mais bonita: a primeira tinha por nome Alice, – a do meio – Rosa, e a terceira, – Amanda.

Um dia ordenou-lhes o pai que elas lhe contassem todos os dias, pela manhã, o sonho que por acaso, cada uma tivesse durante a noite. As meninas receberam essa ordem com certa estranheza. Contudo, como eram muito obedientes, prometeram cumprir o que lhes era mandado.

À noite, antes de se deitarem, em conversa, começaram a discutir aquela ordem absurda e tão fora de propósito.

Dizia Alice, a mais velha:

– Estou admirada da ordem que o nosso pai nos deu, manas, tão esquisita é ela; e nem sei que farei amanhã, se acaso sonhar uma tolice, como às vezes sucede a gente sonhar. Com certeza terei pejo em narrá-la.

– Eu não, disse Rosa, não tenho vergonha alguma de meu pai, e contarei tudo, se tiver algum sonho.

– E eu, falou Amanda, a caçula, já que, é a vontade do meu pai, dir-lhe-ei tudo nem que saiba zangar-se ele depois comigo.

No dia seguinte, pela manhã, Marval mandou, dizer às moças que já estava à espera, para elas lhe contarem os seus sonhos.

As duas primeiras nada tinham sonhado, por isso nada disseram. Amanda, porém, sonhara que por aqueles dias havia de se casar com um príncipe muito lindo e muito rico, senhor de um país onde as casas eram de ouro e pedras preciosas, e que cinco reis haviam de lhe beijar a mão, achando-se entre eles seu pai.

O monarca, zangadíssimo com a filha, declarou que se ela sonhasse outra vez semelhante coisa, e tivesse coragem de lhe relatar outro sonho, assim tão soberbo, mandaria matá-la.

As duas irmãs ficaram tristes, quando souberam do sonho de Amanda e foram lhe pedir para não contar outro, que por ventura tivesse, no mesmo sentido, sendo nesse caso preferível mentir.

– Papai disse que te mandaria matar. Ora, bem sabes que palavra de rei não volta atrás. Por isso acho bom nada mais lhe narrares.

No dia seguinte a menina quis enganá-lo. Mas como não sabia mentir, chegou-se para ele chorando muito, e lhe contou entre lágrimas, o sonho da véspera, que se repetira naquela noite.

Marval enfureceu-se com a desobediência da filha, pensando, que ela estava procedendo propositadamente. Mandou, pois, que os criados a levassem para uma floresta distante, e a matassem; trazendo-lhe o dedo mindinho, como prova de sua morte.

As irmãs, tendo notícia da sentença, de joelhos, pediram ao rei que a perdoasse, pois se Amanda havia contado o sonho, foi porque lhe tinha sido ordenado; que elas duas lhe haviam aconselhado não repetir a narração, mas, como era muito verdadeira, não quis mentir, e confiara na bondade do pai para absolvê-la.

– Antes papai a mande presa para a torre do castelo, opinou Rosa, sem poder sair, senão uma vez por ano.

Continuando a suplicar o perdão da irmã, ou, pelo menos, a comutação da pena, Rosa e Alice inventaram mil castigos. O rei, todavia, foi inflexível; não revogou a ordem, e as meninas saíram dali com o coração cheio de dor, pela próxima perda da irmãzinha que tanto estimavam.

No outro dia, assim que rompeu a madrugada, a princesa Amanda partiu para a Floresta Negra, toda de luto, com um véu preto, que lhe cobria completamente o rosto, a ponto de torná-la desconhecida.

Ordenara-lhe Marval o uso desse véu, para que a corte ignorasse o fato, e não começasse a propalar a sua maldade. Os próprios criados de confiança, que foram designados para matar a princesa, não sabiam quem era aquela moça toda de preto, com um véu tão espesso, que não deixava ver sequer a sua fisionomia.

Antes de chegarem à Floresta Negra, os emissários reais encontraram uma velhinha, uma mendiga, que todos os dias ia receber esmolas que Amanda lhe dava. Essa velhinha, que era adivinha, ao ver passar aquela gente tão cedo, ainda de madrugada, conheceu logo a princesa, e gritou:

– Adeus, princesa Amanda, minha benfeitora, filha do muito poderoso rei Marval! Desejo-lhe muitas venturas. Vá depressa, que seu noivo está à sua espera!...

A moça, que ia muito triste, pensando na sua sorte desgraçada, mais triste ficou, por se lembrar que a pobrezinha ia passar sem esmolas.

Não obstante não poder parar, nem um segundo, sob hipótese alguma, a carruagem que ia, teve ela ainda tempo de atirar uma moedinha, que se achava acaso no bolso do vestido.

A velha, compreendendo o bom coração da menina, exclamou:

– Deus nunca desampara os bons, princesa Amanda! Nossa Senhora há de acompanhá-la e protegê-la!

Ora, entre os criados que haviam ido levar a princesa, para matá-la na Floresta Negra, achava-se um, de nome João, já velho, que a tinha criado. Sabendo, pelas palavras da mendiga, que a moça a quem levavam para assassinar tão cruelmente, ser a sua querida, a sua extremosa, sua dileta filhinha, – como ele chamava e considerava a princesa, – protestou logo no não cumprimento da ordem real, sucedesse o que sucedesse.

Firme nesse propósito, logo que o cortejo chegou à entrada da Floresta Negra, João disse aos seus companheiros que fora ele o encarregado de matar a moça; e por isso que o esperassem ali, pois não precisava de ajudante para tal serviço. Levou a menina para longe, no meio da mata, e como estimava muito a princesinha teve pena de matá-la. Trouxe, todavia, para o rei não desconfiar, o dedo mínimo de Amanda como, prova de sua morte, e em cumprimento à ordem que recebera.

Assim que a jovem Amanda se viu só, principiou a chorar de medo, porque ouvira dizer que aquela floresta era mal-assombrada. Começou a andar; e, andando muito, já bastante fatigada, chegou a um buraco.

Aproximou-se dele, e assim que transpôs a entrada, percebeu que quanto mais caminhava, tanto mais largo se tornava ele, do mesmo modo que o terreno mais pedregoso e cheio de raízes, se cobria de relva fina e macia, que seus pés cansados pisavam.

Prosseguindo sempre, deparou-se-lhe deslumbrante palácio todo de mármore cor-de-rosa, e janelas e portas de ouro. Sentindo-se bem, ficou residindo aí, satisfeita, almoçando, jantando e ceando, sem no entanto ver pessoa alguma, o que de algum modo a impressionava.

A única coisa que quebrava o silêncio desse palácio, era um papagaio, que falava dentro de um quarto fechado e cujas portas jamais se abriam.
***

Havia algum tempo já que Amanda ali se achava, vivendo, cada vez mais serena e feliz, apenas muitíssimo triste, quando um dia, lhe apareceu um moço, formoso, ricamente vestido. Entregou-lhe ele a chave do quarto, dizendo que podia abri-lo, o que fez sem mais demora.

Foi um deslumbramento. Ficou maravilhada de ver papagaio tão grande, tão bonito, de asas tão douradas que parecia o sol, e tendo na cabeça um diamante de inexcedível preço, e lindo, lindíssimo, sem igual no mundo.

Ao ver aproximar-se a moça, a ave sacudiu as penas, contentíssima, e disse:

– Bons-dias, princesa Amanda, filha do rei Marval! Como vem tão bonita, tão formosa!

– Mais formoso do que eu, és tu, meu lindo papagaio dourado...

Ainda bem não havia terminado a última palavra, e o papagaio transformou-se no lindo moço que lhe tinha aparecido para lhe dar a chave do quarto. Esse moço era sua alteza o príncipe imperial Calcim, filho e herdeiro de Manarés XI, imperador da região das Pedras Raras. Fora transformado num papagaio, e deveria permanecer nesse estado até encontrar uma princesa que descobrisse o palácio subterrâneo e o desencantasse.

Assim, meses após, celebrou-se o seu casamento com Amanda, comparecendo cinco reis tributários do imperador Manarés XI, entre os quais se achava o rei Marval para beijarem a mão da noiva.

Todos os outros beijaram a mão da princesa, mas, quando chegou a vez de Marval, a nova imperatriz recusou-a.

Escandalizado com tão grave injúria, à vista dos outros reis, Marval perguntou o motivo do procedimento da princesa.

Calcim, querendo dar uma satisfação da recusa, perguntou a Amanda por que assim procedia com um rei tão ilustre e senhor de uma nação poderosa e amiga.

A moça narrou, então, a sua história, que foi ouvida por todos com a máxima atenção. Marval foi muito censurado, mas, mostrando-se arrependido, obteve o seu perdão, e viveu feliz ainda muitos anos.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) As Fontes do Américo


Américo Dias Ferraz, eleito em 1956, foi o segundo prefeito de Maringá. Deixou para as gerações futuras uma imagem um tanto folclórica e a fama de valentão. Prefiro, porém, lembrá-lo como um homem de modesta cultura escolar mas de inteligência acima da média e ideias bastante avançadas em relação à época em que aqui viveu.

Veio de Minas quando Maringá respirava ainda o aroma da mata. Competente negociante, fez fortuna no ramo de beneficiamento de café. Graças à sua simpatia pessoal, foi chamado a disputar a prefeitura. Entrou na campanha 45 dias antes do pleito, comprou uma motoniveladora e saiu de bairro em bairro endireitando as ruas então superesburacadas. Com uma viola em punho, subia aos palanques e atraía multidões. Derrotou sem dificuldade os dois candidatos tidos antes como favoritos: O advogado Haroldo Leon Peres e o médico Gerardo Braga.

Sua administração foi bastante tumultuada. Brigou com a Companhia Melhoramentos, com a Câmara de Vereadores, fez uma série de outras estripulias e acabou perdendo o mandato antes do prazo. Mas o que desejo destacar não é nada disso.

Penso que o que de fato marcou a passagem do Américo pela prefeitura foi sua visão de futuro. A cidade era ainda pouco mais que um vilarejo, sem rua calçada, sem redes de água e esgoto, mas com todo o jeito de lugar destinado a prosperar rapidamente.

O novo prefeito tinha certeza disso e decidiu que era preciso providenciar de imediato um trabalho de embelezamento da urbe. Começou pela construção de uma fonte luminosa na Praça Raposo Tavares. Alguns criticavam, mas vinha gente de longe admirar a novidade.

“Maringá nasceu pra ser uma cabocla bonita”, dizia. E explicava: “Estamos numa localização estratégica, prontos para ser um grande polo. Isto aqui vai ser a grande loja da região. Toda a vizinhança, até as barrancas do Paranazão, virá aqui fazer suas compras, suas operações bancárias, consultar médicos, além de estudar e se divertir. Então temos que enfeitar a ‘loja’, embonitar as ruas e praças e criar o máximo possível de atrações”.

Dizia mais: “Se a cidade é bela, atrai mais gente. Se atrai mais gente, vende mais. Se vende mais, a prefeitura arrecada mais impostos e assim tem mais recursos para atender melhor a população, fazer mais pelos bairros etc. etc.” Sabia das coisas o homem.

Com esse mesmo espírito, Américo investiu seu próprio dinheiro na montagem de um estabelecimento arrojadamente moderno, o Bar Colúmbia, na Avenida Getúlio Vargas, com tudo “nos trinques do chique”, sem perder em nada para lugares que ele estava acostumado a frequentar em suas viagens ao Rio e São Paulo.

Maringá nasceu mesmo para ser uma “cabocla bonita”. Américo estava certo. Por ser bonita, chique, bem servida de atrativos modernos, ela é hoje a metrópole que a todos encanta. Precisa agora apenas manter a cosmética em dia.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-4-2020)
Fonte:
Texto enviado pelo autor
Desenho digital sobre foto do autor.

Cláudio de Cápua (Meu Vizinho)


Nasci na década de quarenta, tempo em que se nascia em casa. Entrei neste mundo num dia glorioso, oito de março, Dia Internacional da Mulher, no bairro de Indianópolis, na av. Inajá, hoje Lavandisca. O bairro agora tem outro nome, o do seu antigo ponto de bonde, Moema.

Lá morava gente famosa como seu Hugo Gemignani, amansador de onça das expedições do sertanista Orlando Villas--Bôas, Henrique Novak, futuro editor da Página do Livro, do Diário Popular, o locutor esportivo José Geraldo Almeida, a humorista Nhá Barbina, Narciso Vemise (O homem do tempo), o casal de artistas Rosa Maria Murtinho e Mauro Mendonça, Helene Elfride (Geórgia Gomide), Hélio Ansaldo, Alvarenga, da famosa dupla caipira, e até o gordo Jô Soares morou lá na Al. Jauaperi. Tivemos até uma rainha, a menina Sílvia, hoje soberana da Suécia, mas também tivemos um rei que era meu vizinho, "O Rei das Rosas".

Romeu Edwiges e Francelina, sua esposa, mineiros de Jacutinga. Ela, a bondade em forma de gente, ele, sempre alegre, bom papo e, talvez por não terem filhos, davam muita atenção a mim e ao meu irmão Beto.

Embora Romeu e Francelina fossem funcionários do estado de Minas, lotados num departamento na Pauliceia, tinha ele alma de artista, tocava violino, tecia tapeçaria, e, numa técnica toda sua, esculpia tipos populares de sua infância em cimento, que hoje estão ornando recantos de sua terra natal.

Seu forte, porém, era o cultivo de roseiras com dezenas de pés plantados. O jardim central tinha formoso pé de oliveira, que dava frutos, rodeada de roseiras "príncipe negro", e os canteiros laterais explodiam em rosas de cores variadas.

Um dia, Francelina, já com idade avançada, partiu para outra dimensão, deixando triste o alegre Romeu. O tempo passa e consola e ele continuou a cuidar de suas rosas. Por contingências da vida, hoje Romeu, a caminho dos noventa e sete anos, mora em Arujá entre gente amiga, que o faz muito feliz. Por solidariedade, cedeu o sobrado a uma parente, insensível, que acabou por extirpar todas as suas roseiras. E o alegre Romeu, por certo, mais uma vez, deve ter ficado tão triste como quando perdeu sua amada Francelina.

Numa viagem de navio, foi ele, certa vez, reconhecido em pleno Mare Nostro, por passageiros, como sendo o "Rei das Rosas".

Passei de táxi, num dia destes, em frente ao antigo sobrado. Fechei os olhos. O perfume das rosas, ainda na minha imaginação, impregnava o ar. Tenho certeza de que todas as gerações que viveram naquela época, como eu, quando por lá passam, sentem ainda o perfume das rosas, do "Rei das Rosas", o alegre Romeu, o meu vizinho,

(Artigo publicado em janeiro de 2007 - edição 1, republicado na Revista Santos Arte e Cultura - maio 2012, edição 33, em homenagem aos 101 anos do Rei das Rosas)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.
Desenho digital sobre foto do autor por José Feldman