quarta-feira, 10 de maio de 2023

Vasco de Castro Lima (A Estrutura Primitiva do Soneto)

Chegou o momento em que devemos falar sobre a estrutura e os primeiros passos do soneto. 
Além do que, em seguida, apresentamos, não deve existir muita coisa a pesquisar, a analisar. Nosso trabalho lembra, por assim dizer, uma colcha de retalhos, elaborada por uma costureira paciente e caprichosa que fosse, após a confecção de cada peça de roupa, guardando o pedacinho mais bonito, para depois unir, num conjunto variegado, os minúsculos retângulos e triângulos de tecido. Retângulos que poderiam ser comparados aos quartetos, e triângulos que recordariam os tercetos de um soneto.

Encontramos, no limiar de nossas pesquisas, algumas divergências em torno da maneira pela qual se conseguiu a formação do soneto. Mas, vimos logo, não foi necessário sairmos à procura de um denominador comum que resultasse de cálculos matemáticos de difícil manejo, uma vez que, lá mesmo, nas torres enluaradas do castelo da escola siciliana, a evidência cristalina se impôs, com naturalidade e precisão. Prevaleceram a conscientização lógica e a coerência de raciocínio que inspiraram aquele, ou aqueles, a quem coube o privilégio de alcançar um ideal tão elevado.

Os poetas da corte de Frederico II conheciam e produziam a canção, melhor dizendo, o "strambotto", ou "canzuna", o feitio de canto lírico popular mais antigo e mais disseminado em toda a Itália. Principalmente na Sicília e em Toscana: Sicília, o seu berço; Toscana, sua terra de adoção. O "strambotto" mais comum era composto de oito hendecassílabos (decassílabos para nós, porque não contamos a sílaba que se segue à décima, a mais forte do verso, em qualquer circunstância).

Tinha rimas alternadas, assim:

AB AB AB AB

Eram, portanto, quatro dísticos, que também podiam ser escritos seguidamente, sem qualquer alteração na ordem das rimas, formando um canto monostrófico:

ABABABAB

Mas, nem tudo eram rosas... Os poetas da corte siciliana, evidentemente mais instruídos que os trovadores populares, achavam-se insatisfeitos com a repetição tediosa do mesmo tipo de poesia musicada. Afinal de contas, era uma canção breve, limitada, fútil, que contava, no mínimo, dois séculos de existência. Tornava-se cansativa e, pior, era um poeminha considerado imperfeito, quase medíocre.

Sentiram-se, então, encorajados para criar algo diferente, mais completo, mais profundo, que pudesse aperfeiçoar a poesia, dando-lhe cores mais fortes, ou uma qualidade literária mais expressiva.
Estabelecidas as premissas (obter uma composição poéiica mais extensa e mais significativa), partiram para a conclusão.

Os poetas cultos aceitavam o "strambotto", que poderia formar a primeira parte do projeto. Faltava a segunda. Não seria o caso de se fazer, simplesmente, a união de dois "strambottos", sicilianos, mesmo empregando, como complemento, digamos, o de seis versos, que também se usava, pois, no fundo, permaneceria o mesmo defeito, isto é, a soma de duas canções populares.

Em consequência, veio a ideia de se adicionar, ao strambotto" de oito versos, alguns outros, de rimas diferentes e também decassílabos, em nível mais alto, visando, para o novo modelo de poema, à conquista de um conjunto, ao mesmo tempo, intenso, altissonante, aparatoso e comovedor. Teria de ser, necessariamente, a fusão da poesia popular com a poesia de arte maior.

O meio de superar a dificuldade viria com a justaposição de uma estância independente da canção em voga.

Assim foi feito, e surgiu a segunda parte, mais requintada, que não era senão o acréscimo de dois tercetos decassílabos. Os tercetos já existiam, não só na Sicília, como no sul e no centro da Itália, com o nome antigo de "mute". Assim, CDC DCD, ou CDCDCD.

Neste último caso, unificados, para a formação, preferida por muitos, de um canto monostrófico de seis versos.

Percebe-se, com isto, o mesmo cuidado de disposição das rimas alternadas, na segunda parte, a exemplo do que acontecia na primeira. A novidade consistia em serem diferentes as rimas das duas partes.

A Enciclopédia Italiana atribui a Giacomo da Lentini a escolha da seguinte forma originária, muito provável, do novo poema:

AB AB AB AB CDC DCD, ou  ABABABAB CDCDCD

Estava inventado o "sonetto", diminutivo italiano de "suono" (som, breve melodia), do latim "sonus".

Naquela indecisão primitiva, surgiram, na época, variações como:

AB AB AB AB CDE CDE
ABABABAB CDECDE

De qualquer modo, entretanto, era sempre obedecida a sua estrutura interna, no que se referia às rimas: na primeira parte (quatro dísticos ou uma oitava) havia apenas duas rimas; e na segunda parte (dois tercetos ou um sexteto) duas e até três rimas.

Mario Praz, crítico e ensaísta literário italiano (Roma, 1896), assim se exprime, muito acertadamente: "O soneto originário tinha um princípio par, o da oitava, na qual se reconhecia uma forma siciliana popular, o "strambotto", seguido por um princípio ímpar, o dos tercetos. A causa dessa variação era que a melodia mudava na segunda parte".

O soneto teve imediata e larga repercussão em todo o país.

Nos primeiros tempos, foram compostos, sob o signo da escola nascente, na Sicília e na Itália centro-meridional, cerca de mil sonetos.

Dentre eles, são atribuídos aos poetas da ilha 27, dos quais 25 teriam sido escritos por Giacomo da Lentini, segundo a Enciclopédia Italiana. Além dos poetas da corte de Palermo, cultivaram, pois, o soneto, naquela época anterior a Dante e Petrarca, inúmeros outros italianos, distinguindo-se o bolonhês Guido Guinizelli, e os toscanos Chiaro Davanzeti, Rustico de Filippo, Cecco Angiolieri, Guido Cavalcanti, Buonaggiunta degli Orbiccíani, Folcacchiero dei Folcacchieri, Dante de Maiano e Guittone d'Arezzo, este o mais famoso de todos.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça IX


É ofício de lavadeira mais do que muita gente lhe parece. Precisa-se de uma grande memória, saber mentir e saber furtar. Não cuidem vossas mercês que é aí qualquer oficiozinho de droga! Não digo que seja um ofício que para o servir dê água pela barba; mas, pelos joelhos, quase sempre. Passei nesta cabeça uma vida de Capote. Só duas ou três vezes por ano tirava a coifa da cabeça e assim mesmo rapei frios de bom lote com a história das madrugadas. A tal era casada com um saloio que de quando em quando lhe dava bons socos, no meio dos quais eu me achava muitas vezes, porque o seu forte era atirar-lhe à cabeça.

A tal lavadeira era muito governada. Havia vinte anos que era casada e tinha casa e nem uma só única vez a tinham visto no Fanqueiro a comprar fazenda branca. Apesar disso andava sempre muito lavada e mais o seu homem. O que é o aninho! Ela lavava muito bem e tinha muita freguesia. E então o modo com que ela tinha repartido a roupa dos fregueses! Sempre lhe ficava uma ou duas cargas dela lavada, em casa, para se ir servindo. E assim dava volta por todos e todos se serviam. Mas ela não era de tudo, era de algumas coisas como lençóis, camisas, anáguas, ceroulas, meias, lenços de assoar, de pescoço, alguma saia, alguma coberta, toalhas, panos, guardanapos,  & cia., e assim começava o ano e fechava o ano.

Mas era muito desgraçada. Nunca lhe furtaram camisa velha, sempre era nova. O que a ela lhe sucedia era se a obrigavam a pagar (o que poucas vezes acontecia) sempre a pagava por velha. Era tão governada que, tendo o marido alporcas (intumescência das glândulas do pescoço) e sendo-lhe preciso fios, sabem o que ela fazia? Cortava uma tira ao comprimento das toalhas de mãos, tornava-as a embainhar e daqui tirava fios e ataduras. Também, se não fora a sua agência, era uma pobre de Cristo. O marido ao Domingo sempre trazia camisa de punhos, véstia (casaco curto) e meias lavadas, tudo fino. Graças à mulher que cuidava no seu asseio. Ela amassava em casa e já tinha adquirido os seus três moios de sacos sem fazer maior peso aos seus fregueses porque não tinha senão furtado um a cada um. Parece que lhe crescia a roupa nas mãos. Trazia a roupa aos fregueses, e ficava-lhe roupa. Verdadeiramente, era como diz o ditado: Roupa de franceses. Tinha lenços de assoar que, ainda que ela e o marido viessem a ser os mais ranhosos da sua Freguesia, nunca se haviam de assoar à mão.

Também em algum dia de função alugava o seu camisote a um vizinho que não tinha lavadeira em casa. Numa palavra, era roupa que lhe caía em casa que também lhe não caísse no corpo. E outra coisa que ela tinha! Todos os dias vestia camisa lavada. Função que ela teve boa foi uma cheia que houve na sua terra. Veio abaixo aos fregueses como uma Madalena dizendo que se lhe tinha ido embora muita roupa, que o resto lá estava junta, que a fossem seus donos buscar. Que uma houve freguesa que chorava com ela. Todos lhe perdoaram o perdido. Ganhou na cheia em que muitos perderam mais de cem mil réis. E louvava a Deus por a ter ajudado para dar o dote a uma filha que estava para casar. E dizia, muito satisfeita: — Quando as coisas são para bom fim, tudo vai direito.

Tinha muita felicidade no seu oficio. No fiado, que lhe davam para curar, tinha ela uma advertência que poucos têm: sacava de cada meada um novelinho para a poder curar melhor. E no fim da cura, tinha de dízima as suas duas arrobas de fiado que inculcava a uma das freguesas mais abastadas dizendo que outra, cheia de precisão, a vendia. E desta forma lucrava muito, não furtando quase nada. E tinha a cautela, antes de trazer a teia, de prevenir as freguesas, dizendo-lhes: — Não sei que linhos são estes de agora que quebram tanto.

Nunca enjeitou roupa. Quando era muita e não a podia lavar, deixava-a em casa de um Pasteleiro onde era o seu rendez-vous. E o dono ficava muito contente por lhe ter levado a lavadeira a roupa, quando ela ficava de empate até à volta da dita, que assim mesmo suja muitas vezes servia aonde a deixavam. Tinha tão boa consciência que, perdendo uma vez uma camisa já velha e rota, teimou em pagá-la à dona que, por lhe fazer equidade lhe disse que bastavam seis vinténs! Pois não quis a minha lavadeira. Teimou e deu um cruzado-novo, dizendo: — Ainda que era velha, servia corno nova e então busquemos o meio termo do valor de uma camisa.

Todos lhe louvaram a ação e a verdade. Mas daí a três meses perdeu duas de holanda (tecido de linho) que valiam bem uma moeda cada uma. E deu a mesma razão e o mesmo cruzado-novo, que assim como tinha pago a outra por mais, esta devia ser pelo mesmo pois que era casualidade o ser melhor. E que já agora ficava aquele preço estabelecido a respeito do artigo camisas. Então isto não é igualdade? A respeito de meias, não só as lavava mas também as palmilhava levando por tudo cinco réis. E mais chegou muitas vezes a palmilhar com meias alheias, da terra para Lisboa e de Lisboa para a terra.

Sim, senhores, isto não é graça, é a pura verdade. Por casa nunca usava de sapatos, sempre andava só com meias e dizia ela que lhe saía muito mais barato. Todas as portas do interior da casa tinham lençóis por cortinas. Nunca usou de rodilhas na chaminé, ou guardanapos, ou toalhas. No seu tanto, tratava-se com muita decência. Mas eu, cansado de andar entaipado debaixo de uma coifa, buscava todos os meios de me pôr ao fresco. Até que a sorte me deparou. Foi que um dia que veio à cidade, indo a uma loja de bebidas tomar um copo de café, tirou a carapuça para a qual eu tinha a cautela de passar à espera de qualquer ocasião. Deixei-me ficar em cima da banca donde passei para o tabuleiro dos bolos e, daí, para o armário em que pouco me demorei. Porque metendo o dono da loja, à noite, o lenço do pescoço no dito, passei a ele e no outro dia ao pescoço do tal tratante e no mesmo instante à cabeça, à qual fiz a Carapuça X.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 28: Quando eu partir

 

Lima Barreto (Lourenço, o magnífico)

I

Quem conheceu, antes de 1914, o corretor Lourenço Caruru, hoje não o conhecerá mais. Lembram-se todos que ele ia ali, ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois coquetéis e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não pagar mais. Tinha horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta escola que aprendem com os modestos pilhérias e ditos.

Lourenço Caruru, só no ano de 1917, ganhou líquido oitocentos contos. Nos seus belos tempos dos dois coquetéis por tarde de Colombo, Caruru era um homem morigerado (bem-educado) que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por acaso, uma delas lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a cara-metade lhe aparecesse.

Era homem da família. Depois dos dois coquetéis saía a bongar (buscar) frutas, bombons e quejandos (semelhantes), para levar para os filhos e netos.

Ganhando tanto dinheiro no curto espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado e julgou-se um príncipe magnífico.

A primeira coisa que arranjou foi uma princesa — coisa que não lhe foi difícil nos mercados do Flamengo e do Catete.

Correu a um estofador e disse-lhe:

— Preciso mobiliar um apartamento com gosto. É para uma senhora estrangeira de fino trato. Essa “senhora estrangeira de fino trato” começara modestamente como caixeira de botequim em Estrasburgo, passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí, tentara fazer a “América do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.

O tapeceiro, depois de ouvir o homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o custo do apartamento.

— Vinte contos.

O homenzinho indignou-se:

— Mas, então, o senhor pensa que eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum funcionário público?!

— Meu caro senhor — disse-lhe o negociante —, eu fiz o orçamento médio. Havia nele todo o mobiliário para os quartos de dormir, boudoir (quarto de vestir), sala de visitas etc. etc. Mas se o senhor quer  coisa melhor...

— Por certo! — exclamou o corretor.

— Vou, então, organizar coisa mais requintada.

— Faça e mande a conta. A senhora virá examinar e combinar com o senhor tudo.

Dito e feito: o tapeceiro fez a mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia custar-lhe vinte contos, cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte por cento na transação.

Mas Lourenço não estava satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto da “madama”. Queria quadros, estátuas... arte! De vista, ele conhecia vários rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os julgava capazes de fazerem qualquer trabalho de préstimo.

“Então, aquele tipo que vive na porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que preste? Qual!” Nesse meio tempo, desembarca um afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari, cujos méritos os jornais gabam com os mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele ano de 1918, ganhara, num negócio de cereais e praça de navios, cerca de mil contos, compra-lhe o carregamento todo de quadros, ainda encaixotados na alfândega.

O tal pintor da terra dos faraós mosca-se (desaparece) logo; e, quando Lourenço manda desencaixotar os quadros, fica admirado de só encontrar neles, apesar de ser quase uma centena, a reprodução das pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.

“Madama”, que não tinha levado nada na transação, passa-lhe uma grande descompostura e refuga-lhe os quadros. Lourenço os distribui com os amigos, parentes e, até, leva alguns para a casa da família.

Meses depois, os jornais anunciam que o sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor uma grande coleção de mármores artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no armazém de uma casa da avenida Central.

O magnífico Lourenço lê a notícia e a “madama” também. Dias depois, resolvem ir ver os mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício de atravessar tantos mares bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até eles, não só para receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não suportavam outro, como também para adquirirem alguns.

Essa última parte foi logo alvitrada por “madama”, que, a sós, já tinha examinado a exposição. No automóvel de príncipes, vão arrulhando, ele e “madama”. Chegam, “madama” quer este, Lourenço quer aquele; e ambos querem aquele outro.

Resultado: gastam duzentos contos em estátuas.

Lourenço, o Magnífico, sai radiante com a revelação inesperada da sua cultura artística; mas, subitamente, ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e volta-se de repente, para reentrar.

“Madama” assusta-se.

— Que é Lourenço?

— É preciso pôr o meu cartão em cada um daqueles “calungas” (objetos).

II

Quando Lourenço Caruru, o corretor nouveau-riche, deu balanço dos seus lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou gastar o mais que pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas rodas. Vimos como ele gastou duzentos contos em mármores suecos, a que ele, pitorescamente, denominou — “calungas”. Embora fizesse outros gastos tão avultados, a sua fortuna em nada ressentiu deles, pois os ganhos em especulações da “praça” de navios, de compra e venda de cereais, de carnes e, até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram tais que cobriram todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie (restaurante descontraído), para quem montara uma luxuosa moradia.

Verificando tão extraordinários lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia gastar dinheiro. Ele estava na situação daquele sujeito a quem o diabo dera uma carteira, contendo certa avultada quantia que ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda manhã, ela amanhecia cheia. O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto. Jogava, bebia, viajava, galanteava etc. etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas coisas todas, e, numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto todo o dinheiro da carteira.

O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:

— Então? A tua alma é minha... Não soubeste gastar o dinheiro...

— É que... estou doente.

— Qual, doente! Qual nada! — objeta o demônio. — Se o soubesses gastar, terias escapado do inferno por toda a eternidade.

— Como?

— Fazendo o bem.

Naqueles começos do ano de 1919, Lourenço, o Magnífico, estava em situação semelhante. Ele não sabia como gastar a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo do mobiliário da casa;  e fazia as maiores extravagâncias.

“Madama” não tinha também grande força de fantasia. No fundo, ela era uma pequena burguesa, de gostos simples, que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira alto coturno, de Lady Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos cheia de selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice, pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os parentes e fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu dos justos, apesar de tudo.

Ambos sem fantasia, não atinavam como gastar a melgueira (dinheiro acumulado), cujo ganho na algibeira de Caruru representava a morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.

A história de mudança do mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá; eram andorinhas pra lá. A vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama” gostava, porque sempre “refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal, teve medo do ridículo e parou com a coisa.

Lourenço, o Magnífico, muito menos fértil de imaginação fantasista, estava atarantado, mesmo porque, como o tal sujeito da lenda, não sabia fazer o bem.

Os seus princípios de economia e subordinação a um ganho restrito junto ao seu natural visceralmente seco tinham-no feito viver à parte da Caridade. Sempre embirrara com os mendigos:

— É uma vergonha — dizia ele — que, numa cidade como esta, um homem não possa andar, sem que não encontre dez pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O governo não cria asilos?

Há pessoas que têm medo de defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera ojeriza aos pobres e miseráveis. Eram-lhe como espectros...

Não sabia, portanto, como aplicar os seus desmedidos lucros; e tão enleado estava nessa atroz cogitação que até pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele sabia gastar... Mas... teve medo. “Madama” n. 1 era uma fera de ciúmes (ela é quem sabia de quem os tinha); e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não quis levar o propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.

Uma tarde, em que ele chegara ao seu apartamento, antes de “madama”, esta veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais vespertinos. Falou-lhe “madama” com o seu português bordelengo em que ela queria, na ocasião, pôr muita meiguice:

— Sabes, Lourenço, de uma coisa?

— Que é?

— Acabo de vir de uma exposição de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que foi de uma grande casa russa, cujos membros conseguiram salvar do saque dos sanguinários socialistas que tomaram conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino (gênero de tapeçaria francesa do séc. XV); mas não foi deste que eu gostei. O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”. Queres comprá-lo?

— Quanto custa?

— Vinte contos.

— Estás doida, filha! Ainda se fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para se pôr os pés... Nessa não vou eu!...

“Madama” pôs-se de pé e disse com todo desprezo:

— Burro! Selvagem! Sale singe (macaco sujo)! Pois você pensa que é um tapete qualquer? Ora, bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede. Aprenda, macaquito!

— Não sabia — acudiu o corretor humildemente — mas, se é assim, amanhã terá você o tapete.

Não só comprou esse, como mais outros; e a “madama” ganhou dezoito contos de comissão.

III

Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados (I Guerra Mundial) lhe fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador de belas coisas.

Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não contei ainda foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua biblioteca. 

Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurante mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões — meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico” para as suas algibeiras.

Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros do Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa.

Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho da princesa, “madama”, só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da sepultura do lar burguês e honesto. 

Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos almoços.

Havia morrido um manipanso (homem baixo e barrigudo) célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Commercio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.

Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.

— Não sabes, Caruru, que livros raros há na biblioteca do conselheiro Encerrabodes!

— Estrangeiros?

— Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.

— Por quê?

— Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas, triplicatas e mais.

— Então tens verdadeiras preciosidades?

— Tenho.

— Quando é o leilão?

— Amanhã.

— Vou lá — disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha”.

Despediram-se, e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.

No dia seguinte, o corretor lá estava; Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:

— Dois contos de réis.

Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:

— Quem dá mais?

O “Magnífico” berrou:

— Dois contos e quinhentos.

O comparsa do leiloeiro berrou:

— Três contos!

O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável compra.

Dessa forma, comprou muitos outros.

Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:

— O senhor deve ganhar muito dinheiro na advocacia não é?

— Absolutamente não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.

Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.

Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras soporíferas.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente na revista Careta, Rio de Janeiro, ano xiv, n. 663, 5 de março de 1921.

Artur de Azevedo (O fantasma branco)


I

Não havia no mundo senhorita
Mais romanesca do que Filomena.
Das três filhas do Arruda a mais bonita.

O honrado pai dizia-lhe: — Pequena,
Se este sistema de viver não mudas,
Tu para tia hás de ficar, e é pena!

Graças a Deus, porém, são mais sisudas
Tuas irmãs; não leem livros franceses;
Perpetuarão a raça dos Arrudas!

E, de fato, passados poucos meses,
O velho pai casou as outras duas,
E em dois anos avô foi quatro vezes!

— Que intenções, Filomena, são as tuas?
Julgas tu, minha filha, que os maridos
Andam a três por dois por essas ruas? —

Assim falava o velho entre gemidos,
Vendo que a moça, fria e desdenhosa,
Recusava magníficos partidos.

Em todo o pretendente achava prosa,
Prosa vil, prosa chata; nenhum era
O noivo ideal que ela sonhava ansiosa.

E, assim, correndo atrás de uma quimera,
A formosa romântica da vida
Passava a fugitiva primavera.

Sempre de uma alva túnica vestida,
Solto o cabelo que lhe aos pés chegava,
E em longa cisma histérica perdida,
Se, ao luar, no jardim, notivagava,
Se se sentava estática num banco,
Uma visão fantástica lembrava.

Certo gaiato irreverente e franco,
Que em toda a gente honrada nomes punha,
Um dia lhe chamou Fantasma branco,
E pegou essa alcunha.

II

Desesperava Arruda, a toda a hora,
De ver um dia a moça enfim casada,
Principalmente agora
Que era a um fantasma branco equiparada,
Quando em noite de luar foi despertado
Pela voz de um tenor desocupado,

Que, por baixo do quarto da donzela,
Cantava, acompanhado
Por um choroso violão. Arruda,
De face carrancuda,
Espreitou com cautela:
Filomena, à janela,
No peitoril fincado o cotovelo,
A cabeça apoiada
Na mão, solto o cabelo,
E do clarão da lua iluminada,
Escutava este canto,
Que lhe causava singular encanto:

“Dos belos olhos afasta
Do sono agora o torpor,
E vem ver, donzela casta,
O teu Messias de amor!

Se, reservado, até hoje
Teu coração não falou,
Vê se um suspiro lhe foge...
Aqui me tens, aqui estou!

O trovador do teu sonho,
O noivo do sonho teu,
Soltando um canto tristonho,
Ei-lo, meu anjo, sou eu!

Tu dir-me-ás: — Não te conheço!
Vai-te embora, trovador! —
Mas há muito que padeço,
Que morro por ti de amor!

Sou pobre, sou muito pobre;
Não tenho nada, meu bem;
Mas o manto que me cobre
Há de cobrir-te também.

É o meu sonho mais sonhado,
Donzela casta e louçã,
Ser hoje teu namorado,
Ser teu esposo amanhã.”

Calou-se o trovador. Silenciosa
Estava a noite amena;
Só se ouvia, amorosa,
Soluçar Filomena.

O namorado perguntou-lhe... em prosa:
— Tu não me respondes?... que silêncio é esse?...
Porém, antes que a moça respondesse,
Gritou o Arruda velho: — Vai-te embora,
Grandíssimo patife,
Se não queres que eu saia lá pra fora,
E co’um cacete os ossos te espatife! —

Como que por magia,
Do trovador sumiu-se a sombra esguia,
De chapéu desabado,
Capa traçada, violão ao lado.
Como que por magia, Filomena
A janela fechou. — Aquela cena
Continuou no quarto da donzela,
Onde o zangado pai ralhou com ela.

Mas a moça fez frente
À cólera paterna, e, formalmente,
Lhe declarou que aquele suspiroso
Menestrel medievo,
Que parecia de Amadis coevo,
Era o seu ideal misterioso,
E daquela guitarra apaixonada
O meigo som lhe parecera um hino.
— Qual guitarra qual nada!
Era um reles violão! Mas eu ensino
Àquele capadócio, se se atreve
Outra vez... — Mas, meu pai... — Que o diabo o leve!
Aquilo é sujeitinho sem ofício!
’Stás aqui, ’stás no Hospício! —

III

Tinha Arruda uma loja de calçado.
Foi no dia seguinte procurado,
Logo depois do almoço,
Na loja, por um moço
Que lhe falou assim: — Brito me chamo;
Sou muito rico. Eu sua filha amo;
Ser seu esposo é meu desejo ardente.
Sei que ela é romanesca, e certamente
Não quererá marido
Como eu, com toda a gente parecido.
De um ardil lancei mão, e agora espero
Que o senhor me perdoe, sou sincero.

O homem do violão, o namorado,
Num capote embuçado,
Que esta noite cantou pífias quadrinhas
Que aliás não são minhas,
Era eu! — O senhor? — Eu, em pessoa!
— Então aquilo era fingido? É boa!
— Outro meio não há de conquista-la...
— Pois, meu caro, arriscou-se a uma bengala!
— É por isso que venho preveni-lo,
Pois pretendo tranquilo
Levar por diante o plano astucioso.
O trovador há de voltar; furioso,
O senhor fica... — Ficarei, descanse.

— Haverá tudo como num romance:
Prisão... correspondência interceptada...
Paterna maldição... lágrimas... pranto...
Sua filha por mim será raptada,
E em casa honesta ficará, enquanto
Não se fizer o nosso casamento.
Mal se realize este acontecimento,
Iremos, eu e ela,
Morar numa casinha muito pobre,
Das de porta e janela,
Onde tudo nos falte e nada sobre,
A não serem misérias e arrelias.
Afianço-lhe que ao cabo de alguns dias
Ela estará curada
De tanto romantismo. — Isso me agrada,
O velho respondeu, porque duvido
Que de outra forma encontre um bom marido.

IV

Tudo se fez conforme o plano. A bela,
Depois de presa e de maldiçoada,
Saiu de casa e foi depositada,
Até que o Brito se casou com ela.
Vieram, logo depois, dias de fome,
E o menestrel dizia
Que quem ama não come:
Vive de amor e vive de poesia.
Filomena já estava resolvida
A procurar de novo o lar paterno,
Quando o marido, carinhoso e terno,
Lhe disse: — Meu amor, foste iludida...
Agora, que o romance te abandona,
Saberás que sou rico e tu és dona
De um palacete onde não falta nada! —
E revelou-lhe toda a farsalhada,
Co’a participação do pai furioso.
— Que tolice! Por que não foste franco?
— Oh! Se o fosse, o marido venturoso
Jamais seria do Fantasma branco!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Arthur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1909.

Aparecido Raimundo de Souza (Buraco sem curva)

EXISTE UM VELHO ditado popular que mais que expressar uma vontade do ser humano, mostra a sua frieza em relação à dor alheia no tocante à presença inescrutável da morte. “Não vou a velório de ninguém para jamais alguém se dar ao luxo em vir ao meu”. Penso o contrário. Sempre que posso, dou uma paradinha básica em alguma capela espalhada pela cidade e faço isso, na maioria das vezes, sem conhecer o morto, ou alguém do seu estreito relacionamento. Qual a razão para agir assim? Simples! 

É nesse momento de inconfundível e profunda tristeza e infelicidade que as pessoas descem do pedestal em que se acham aprisionadas. Tiram a máscara. Mostram o verdadeiro rosto onde se esconde a pecha da imbecilidade em sua melhor forma de expressão. Então vemos o fundo bem nítido da sua real personalidade. É nessa emergência de agonia imensurável que elas se despem das suas armaduras e se tornam pequenas, humildes, abertas a todos os portos. É nesse instante também que a gente toma conhecimento da nossa fragilidade e da astenia de quem está em desespero consigo mesmo.

Ficamos indefesos, à mercê de um gesto de amparo, de uma palavra de conforto. Não sei se o amigo leitor alguma vez chegou a notar que nesses fúnebres encontros as pessoas se cumprimentam e se abraçam, sem ao menos saberem quem são os interlocutores.  Não me aproximo do extinto. Jamais! Limito a tão somente distribuir pêsames, receber e dar abraços, dar condolências, como se em cada gesto eu repartisse um pouco da minha própria dor adormecida. Da minha distância escudada pelo ar pesado do ambiente, e envolto no perfume das flores e pela claridade das luzes balouçantes dos castiçais, me quedo a observar o falecido em seu leito póstumo de derradeira e longa viagem.  

O coitado ali está, solitário, sério, o rosto sem a cor da vida plena, sem o sorriso que o acompanhava nos momentos de pura e sentida felicidade. Sem poder dizer nada, se detém pacientemente ao instante de ser conduzido à sua postrema (derradeira) morada. Haverá a repetição daquele insuportável e doloroso “guia prático para defuntos com passagens só de ida”; de mais choros incontidos; de gritos e berros renovados nas gargantas; desmaios; saudades; dores, lembranças... e, depois, a solidão imutável e perversa, que se incumbirá de chegar pesada, cair melancólica e indiferente tornando maior a comoção de cada um em seu âmago particular. 

A esse quadro meio que proditório (falso) e fementido (enganoso), se juntarão os familiares em orações, seguido da jogada do punhado de terra sobre o esquife e, finalmente, a descida do corpo inerte ao chão indiferente que consumirá as suas carnes numa fome de voragem impiedosa. E indago consigo mesmo: Será que o falecido conseguiu (antes de se ver frente a frente com o barqueiro) dar aquele abraço apertado no filho, no amigo, no desafeto, no vizinho chato? Sobrou tempo para brincar com o cachorro, ou para levar o temporão na escola? Restou um segundo, para assistir à partida de futebol onde ele participaria jogando contra um time de alunos visitantes?  Será que conseguiu realizar todos os sonhos? 

Lembrou alguma vez de dizer “Meu pai, eu te amo, mamãe, como sinto falta da sua comidinha caseira, dos nossos encontros nos finais de semana!”. Conseguiu, acaso, sentar com o filho adolescente com suas ideias tresloucadas à mesa e jantar, ou a tomar com a avó paralítica um rápido dejejum? Teve, acaso, a ventura de pegar nos braços o recém-nascido, a raspa de tacho e cochichar em seu ouvido “filho, papai te ama!”. Houve tempo para um tempo mínimo de se reconciliar da briga com a esposa? Esqueceu a raiva que passou ao ser fechado no trânsito quando seguia em direção ao trabalho? Perdoou o “amigo entre aspas”, que pegou um dinheiro emprestado prometendo pagar em três dias, mas, em razão disso, desapareceu do convívio dos encontros com a galera na birosca de dona Candinha? 

Costumo comparar as cerimônias dos velórios aos casamentos. Procure observar, você leitor, que me acompanha, que nesses eventos auspiciosos, todos se concentram em olhar à noiva. Ninguém se preocupa com o cidadão que está casando. A noiva é o xis da questão, o ponto nevrálgico da pompa alvoroçada. A multidão só tem olhos e admirações para ela. A figura do “prometido” permanece esquecida, jogada, abandonada, como se não fizesse parte do elo que acabou de se formar. Nesse momento de luzes e holofotes, a mulher, (a noiva), pensa somente na realização do seu ego interior. 

O sonho de subir ao altar, ser notada, desejada, querida, endeusada. O nubente (o homem), ao contrário, vê diante de si a figura negra da razão em caminho divergente. É a partir daí, que ele se dará conta da fria em que se meteu. “Meu Deus, e agora? Mulher, filhos, gastos, brigas, família para sustentar, desavenças. Ah! Que saudade da minha vidinha de solteiro! Bons tempos, aqueles...”. O extinto, certamente, é o noivo num patamar às avessas enfrentado a sua razão desconhecida. “Meu Deus e agora? Não terei mais tempo para ligar para meus amigos, tomar uma geladinha, comer uma porção de batatas fritas, ver meus filhos, noras, genros... 

Meu patrão deverá sentir muito a minha falta? Eu era o braço direito dele. O que faço agora? Será que, ao menos meus familiares se lembrarão de me endereçarem preces além-túmulo?”. A noiva, soberba, intocável em sua altanaria continuará sendo a realização, agora sediada na figura da viúva, que recebe os amigos. Qual o quê! Em trilho paralelo, será constrangida, se verá importunada, rodeada e, em breve, terá alguém de olho gordo no seu corpinho escultural. Por distante, ou por apartado, meu caro amigo leitor, procure, vez ou outra, dar uma passadinha onde alguém cultua a memória de um distinto que está indo para o andar de cima. Perto de você, sempre existirá um esquife simplório ou luxuoso, à hora amarga de descer o féretro à sepultura. 

Talvez, num desses, você seja a única pessoa a cumprimentar os consanguíneos. Já estive em funerais onde somente as esposas e os filhos se faziam presentes. Em outros mais, estranhos passavam de olhos cumpridos tentando digerir o incompreensível. Aproveite esse momento de reflexão e faça uma introspecção. Se ponha no lugar do “de cujus”.  Coloque os pensamentos em ordem. O que poderia fazer exatamente nesse momento que por algum momento ficou relegado à segundo plano? A quem o prezado deixou de dar um “olá”, de retribuir um sorriso, ou de dizer, “que bom que você está aqui ao meu lado! 

Tal como o morto, você sentirá na pele, a razão viva e pulsante na sua melhor forma de integridade e retidão, e verá que a sua realização poderá estar bem aí, ou bem ali, como sempre esteve, debaixo do seu nariz, camuflado, quem sabe, na figura esperta de um Ricardão encapotado, que nem por um segundo (ainda que para disfarçar), se deu ao luxo de desviar os olhos dos fundilhos fartos da sua companheira e não vê, em razão disso, a hora de ocupar o seu lugar, na cama onde você, na antiga figura de Rei, mandava em tudo, como se fosse o dono único e soberano de um reinado que só se fazia deslumbrante à sua sanha de “Mané-otário”. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VIII

Todos, neste mundo, têm o seu pedaço de mau caminho. Que cruz que eu tive com este Avarento! Não lhe escapava fôlego vivo, tudo era vítima da sua ambição. O caso estava em que não custasse dinheiro em cujas circunstâncias eu me achava. Ele não comia quase nada. Não tinha síria, andava caindo em pé. E então, tão pressentido, que qualquer leve mordedura que eu lhe desse estava em cima de mim. O único refúgio que tinha, para lhe sacar algum sangue desse pouco que tinha, era quando contava o dinheiro, que então não sentia. Todo o seu cuidado era que o não sentissem e gastava nisto horas e horas. A vida deste desgraçado era tristíssima. Nunca na vida fez coisa boa à exceção de morrer que todos lhe louvaram e agradeceram. Tinha somitigarias (mesquinharias) inteiramente novas e podia compor neste gênero, apesar dos bons autores que tem havido. Teve a habilidade de ter uns sapatos dezenove anos sempre com as mesmas caras. Tudo tiveram novo à exceção dos rostos. Sempre cuspia nos calções e dizia ele que era modo de durarem porquanto criavam uma codeazinha que, além de amaciar, conservava o tripé. Tinha um colete que vestia sobre a carne que, creio, era da fazenda com que Dejanira vestiu Hércules, porque apenas o envergava no corpo metia também o diabo pois entrava logo num frenesi e num comichão que lhe durava as suas três horas. De forma que a mulher e os filhos andavam sempre à espreita se ele já o tinha vestido. E não havia tradição que ele desse um real a ninguém, depois de o ter no corpo.

Quando queria arrotar fechava a boca e dizia que aquele ar era substância que saía e não tornava. Uma das filhas esteve doente, no meu tempo, e um Cirurgião conhecido receitou-lhe um vomitório que custou trinta réis e que a rapariga devia tomar no outro dia. Mas tendo a felicidade de ter uma cólica na véspera se pôs no estado de o escusar. Mas o bom Pai não esteve pelos autos, arrumou os pés à parede gritando que o dinheiro não se havia de perder e destruir, e que ao Boticário o não querer tomar outra vez que havia de ter paciência e mamá-lo. O que assim lhe sucedeu, e esteve de cama mais de um mês, hoje vai, amanhã vai.

Nunca comprava couve que não fosse espigada, só porque era mais comprida. Sebo, que as velas derretiam, ia para a panela e chamava a isto descobertas econômicas. Alface, para ele, nunca teve folha velha. Arroz nunca precisou escolhido. Peixe, nunca lhe tirou escama, nem guelra. Dizia: Como Deus o criou. Caroço de cereja e de ginja sempre foi abaixo. Cacho que trazia uva podre, chamava-lhe passada. Peixe podre nunca lhe cheirou mal e sempre respondia: Podres tenho eu os meus pecados. Era traste de toda a conta. Jamais teve indigestão pessoa que ele sustentasse.

Defumava-se em carqueja e dizia que a alfazema era nociva, que o cheiro mau era como os amargos que faziam melhor estômago. Durava-lhe um barril de água vinte horas. Bebia da mesma forma que os galegos tomam tabaco por cheirador, chupava por sovina. A água com que se lavava tinha seiscentas serventias primeiro; ao que depois lavava a boca, a cara, as mãos, o cachaço, os peitos, o lenço do tabaco, os pés, e botava-a por fim num craveiro e muitas vezes coava-a e servia-lhe no outro dia.

Tinha um criado universal, era uma Enciclopédia. Logo pela manhã, era comprador, depois copeiro, daí mordomo e passava a cozinheiro. De tarde, servia de engomadeira, à noite, de escudeiro e seguia, no outro dia, a mesma derrota. Tinha dois dias livres na semana, segundas e quintas, que pedia esmola para ajuda do seu vestuário porquanto o ordenado era pouco e nunca lhe pagavam. Até era somítico (sovina) com isto, porque, ao menos, podia prometer-lhe muito visto não lhe dar nada. Mas era tão escrupuloso que nem assim. Disseram-lhe uma vez que era bom para calos cera-bela. Sabem o que ele fez? Ajuntou a cera dos ouvidos para pôr nos calos e o mais e que se achou bom e, daí por diante, nunca mais consentiu que pessoa de sua casa lavasse as orelhas. Andava-lhes todos os dias tirando a cera dos ouvidos para fazer velas e, quando eu saí da sua cabeça, já tinha meia oitava.

Na cama punha lona em cima do lençol para lhe durar mais o lavado. De uma vez, pôs uma filha na rua porque lhe quebrou um copo. Quando fazia a barba, em lugar de sabão punha-lhe greda (barro) para amaciar. Tinha um barrete branco tão sujo que tinha criado, por fora, uma espécie de cortiça. Podia dar qualquer cabeçada com ele que não entrava dentro. O seu divertimento era fazer alcofas (cestos de vime) e torcer linhas e ganhava muitos bons vinténs. Fiar é para que nunca teve jeito; não se fiava nem em si. E outra coisa que ele tinha: aos Domingos, chamava os filhos e punha-se com eles a apanhar moscas para comer e dizia-lhes que era o mesmo que tremoços. E estavam tão mestres todos que, por fim, já as apanhavam com a boca.

Teve uma desordem com um vizinho que era outro sovina e de todos os quatro costados (quatro avós). De palavras foram às mãos. Fez-lhe uma arranhadura na cara. Querelou (queixou-se) dele mas acomodou-se com quatro moedas que lhe deu, depois do que ninguém o podia aturar. Andava-se mesmo metendo para que lhe dessem, para assim ganhar a sua vida. Mas durou-lhe pouco o ganho, que lhe deram uma estocada que esteve à morte. Gastou na cura mais de oito moedas e ficou-lhe um reportório para toda a vida. Um ratinho feito de molho de alho era para ele um dos melhores acepipes (petiscos). Comprava carne de vaca a dez réis. Passados alguns meses é que descobriu que era de cavalo, porque prenderam o preto que lhe vendia, cuja prisão ele lamentava. No tempo dos melões era o seu regabofe por amor das tripas que, dizia ele, eram muito melhores que as de carneiro. Gostava muito de gaivotas e, de pena, era só o que comia. No tempo dos marmelos era a sua ceia. Dois marmelos chegavam para toda a família.

A sua ocupação era emprestar dinheiro sobre trastes. Mas era muito cheio de caridade a esse respeito. Não emprestava senão a quem tinha fome para assim socorrer o seu próximo e juntamente porque lhe dava quanto ele queria de usura. O seu fato e de sua família era todo comprado na feira da ladra e já um filhinho pequeno começava a estar tísico.

Um dia que jantava (que eram poucas vezes) não ceava e andava a gritar por chá de macela que não queria morrer de indigestão. Um caso que lhe aconteceu com um destes amola-tesouras. Chama-o um dia a rogos da mulher, para lhe amolar uma tesoura, que além de muita ferrugem e pouco aço lhe faltava um bico. O pobre homem foi-lhe preciso, fazendo a ponta a uma, encurtar a outra para ficarem iguais, além de que gastou muito os ferros para lhe tirar a ferrugem. Apenas o meu amigo Avaro vê a tesoura naqueles termos, entra a gritar que lhe tinha destruído a tesoura, e isto uma tesoura de Guimarães! O mais antigo traste e o melhor que tinha em casa! Que a tinha deixado curta e magra! E foi tal a gritaria que não deixou dar ao homem a sua razão. Pôs o ofício às costas e foi dando às trancas e ele ficou à porta da rua com a tesoura na mão, fazendo uma tal declamação sobre a danificação da dita que se juntaram quantos rapazes tinha o bairro a dar-lhe surra, do que ele fez pouco caso porque apenas tinha tempo de chorar a sua perda.

Mas, sobre todos os casos que lhe sucederam, o mais decantado foi o que lhe aconteceu com um Dentista. Doía-lhe muito um dente que lhe tirava só o dormir. Porque o comer isso tirava ele mesmo a si. Resolveu-se a sacá-lo e, já se sabe, um dente para ele eram dois porque, ter que dar dinheiro, era tirarem-lhe um dente da boca. Enfim, depois de muitas dores, muitas consultas, muitas resoluções, foi a casa do Barbeiro. Senhor Mestre, quer-me tirar um dente? —Todos, meu senhor, com todo o gosto. É de baixo ou de cima? — Do meio, senhor Mestre. — Quer descarnado ou de uma vez? — Como é ele mais barato? — O preço é o mesmo. — Então que diferença faz vossemecê dessas duas perguntas? - É que descarnado tem mais dores, mas menos perigo. — Pois, assim como tem mais dores, devia levar menos dinheiro! Enfim, quanto é o último porque vossemecê me tira? — São seis vinténs a tarifa e o brio de cada um... — Quem pode ter brios, cheio de dores? Pois senhor, eu sou um pobre homem, é o primeiro dente que tiro. Faça-me vossemecê o favor de tirar este a contento e, se eu gostar, pagarei os mais pelo preço que vossemecê me diz. O Barbeiro riu-se. Manda sentar o freguês, salta-lhe nas costas e arranca-lhe um dente queixoso. Ele, que se vê com o dente são fora, ficando-lhe o podre, começa num berreiro, blasfemando contra o mestre. Ao que este respondeu muito sossegado: — Vossemecê não queria o dente fora a seu contento? — Sim senhor. — Pois eu tirei um também ao meu. Se lhe não serve, não volte cá mais que eu não perco muito no freguês. Acomodou-se porque lhe disse um que ali estava que podia querelar por ter havido sangue, e esta era a sua balda (mania) para ver se ganhava o seu vintém. Mas não teve efeito desta vez por não ser prática haver querela por dente fora não sendo tirado com pedrada. Foi então a outro que lhe sacou o podre por um tostão tomando-lhe em desconto uns botões da camisa. E estando cansado de estar numa cabeça tão insignificante, além das fomes que também passava e sem ter meios alguns de ir a outra cabeça, resolvi-me expor a vida para me salvar, passando a um pescocinho que ele tinha e trazia muito sujo na ação de ele o dar à lavadeira. A qual metendo-o na roupa e pondo-a à cabeça, eu lhe passei para ela, que apesar de trazer carapuça lhe fiz de sobressalente a Carapuça IX.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

domingo, 7 de maio de 2023

Adega de Versos 105: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 82


Belas tardes de outono. Céus azuizinhos, nuvens ralinhas, rabos-de-galo distantes. A vida em seu esplendor. Tempo de folhas no chão, tempo de sombras nos caminhos. A inconstância dos ventos.

Nestes dias de negritudes entendemos que a vida é reciprocidade, cada um protegendo cada um, todos protegidos. Somos parte da orquestra da natureza - busquemos assim a perfeição que ela nos mostra. E oferece. SANTA MÃE-NATUREZA.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Olavo Bilac (Os anjos)


No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet renaissance, sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de porcelana chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rhum da Jamaica.

Agora, parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Rafael.

Júlio, falando baixo, inclina-se mais, ainda mais:

— Então, viscondessa, então?

Ela, para desviar a conversa, pergunta uma banalidade:

— Diga-me, senhor Álvaro, o senhor que é pintor, deve saber isso... Porque é que, em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas?

De canto a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde:

— Nada mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito; damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o símbolo da imaterialidade...

Mas o poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, adianta-se até o meio da sala:

— Não é só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação do caso...

Tomou um gole de rum, e continuou:

— Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade....

— Depois do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — Porque?

— Já vão ver!

E Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu:

— IX. Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselhar-lhes que se deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles..."

Houve um silêncio constrangedor no atelier...

— Aí está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só tivessem cabeças e asas...

A viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou:

Shocking! (chocante)

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.
(Quando publicado, o autor utilizou o pseudônimo "Bob")