terça-feira, 25 de julho de 2023

Graciliano Ramos (Uma canoa furada)

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. 

— Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

— Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança (lorota) de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção (intento) de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens.

“Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome.

“Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. 

"A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. 

“Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco  minutos deixa lá o esqueleto. 

“Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado (entupido), soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada: — “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” 

“Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos (preveníamos), o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia (barulhada), numa choradeira dos pecados. — “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.” — “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado. — “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” 

“A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo. — “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços (bofetões), que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: — “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça."

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 16 -


ARTILHEIROS DA CULTURA

A cada vez que comprimimos o gatilho
da emoção, a nossa arte se projeta,
não temos alvo, pois na mira de um poeta
Está o amor que a emoção chama de filho.

As nossas fardas se confundem, os paisanos
e os militares se diluem na vontade
de abençoar a sua sensibilidade,
com os mesmos sonhos de aprendizes e decanos.

O Forte é sempre um coração dentro da história,
a inspiração é uma sutil onda de mar
que acaricia a solidão de cada olhar,
criando imagens que borbulham na memória...

Nossos canhões não silenciam... o festim
dos seus disparos sobre nossa antologia
são ecos soltos que declamam poesia,
de todo amor que vive em ti e existe em mim.

Nossas palavras são registros de ternura,
somos iguais com rara sensibilidade,
e por criarmos a poesia em liberdade
é que nos chamam de Artilheiros da Cultura.
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CINEMA MUDO

Meu coração está no porto, a despedida
É iminente... o adeus não marca hora,
E eu só sei que, se a tristeza for embora,
A minha dor esquecerá cada partida.

Minha razão nem sempre aponta uma saída,
Mesmo escondida, eu percebo que ela chora...
E quando minha solidão a apavora,
Ela dilui-se em minha dor mais... dolorida.

Um pleonasmo é necessário, quando a falta
De uma palavra não conserta uma ferida,
Por isso, a dor mais insistente e atrevida
Apaga as luzes que enfeitam a ribalta.

Sou o Carlitos de um velho cinema mudo,
Fazendo mímica de cada sentimento,
E quando o pano cai no último momento,
É que um piano silencia... ao fim de tudo.
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NO INSTANTE EM QUE TU VENS ME VISITAR

Multiplico tua face se te penso...
São milhares de olhares me percorrendo,
Fico louco, entorpecido, quente...tenso
Mas me lembro que sequer tu estás me vendo.

Tua imagem poliforma-se em meus sonhos
Atraente, envolvente, glamorosa...
Dissolvendo-se em meus olhos tão... tristonhos...
Tua imagem excitante e... vã... teimosa.

Eu procuro evitar teus olhos, tento
Dissolvê-los em mudanças de atitudes,
Mas teu corpo não me sai do pensamento,
Como eu tento... tu me tentas e...me iludes!

Sem poder raciocinar... inebriado
Com teus olhos percorrendo o meu olhar,
Fecho os olhos e te beijo...extasiado
Mas... coitado...eu nem posso te tocar.

A paixão é uma espécie de licor
Que embriaga a razão com a fantasia,
Mas depois que essa razão torna-se dor,
O amor é essa dor que se extasia...

Minha lágrima embaça a imagem
Sensual que o meu olhar pensa que vê,
Minha angústia só disfarça a maquiagem
E a razão nem sabe mais no que ela crê...

Um sorriso melancólico se instala
Nos meus lábios, parecendo aceitar
Uma eterna solidão que a dor embala
No instante em que tu vens... me visitar.
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POR QUE POR QUÊ?

Por que é que tudo tem que ter sempre um porquê?
... o amor, amada, não precisa de respostas
e o desamor e a solidão nos dão as costas,
...se eu expresso o amor que sinto por você.

Bom é amar, sem ter que dar explicações...
as emoções libertam todo o nosso encanto
e a cada pranto, sempre há novas sensações
de ouvir a voz dos mais sublimes acalantos.

O nosso amor, tão preocupado com sonhar
nunca dá tempo à indagação inconveniente...
... porque o amor mais sedutor que a gente sente,
responde sempre com o brilho do nosso olhar

Portanto, amada... se alguém lhe perguntar
- com esse "porquê" que interroga e não responde,
diga: - Não sei, o nosso amor só vai aonde
a emoção faz a razão brincar... de amar.
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SINTAXE

Precisava impressioná-la.
Estudou,
com afinco,
as colocações pronominais.

Optou pela mesóclise:

Amar-te-ei
- quase declamou -
emocionado.

- Não enche! - Ela gritou.
Empurrou-o irritada
e foi embora.

Se iniciasse a frase
- coloquialmente -
com um pronome oblíquo,
contrariando
propositalmente
a gramática,
a discordância - apenas sintática -
seria perfeita

... e não mataria
a concordância...
... amorosa.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Contos e Lendas da África (O que os matou?)

(por Robert Hamill Nassau)

Personagens
Mbwa (cachorro)
Kudu (jabuti)
Mbala (esquilo)

PREFÁCIO
O cachorro e o esquilo tinham a mesma idade e ambos tiveram o mesmo fim. A obsessão de cada um foi a causa de sua morte.
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O cachorro Mbwa, o esquilo Mbala, o jabuti Kudu e outros animais viviam todos em uma mesma aldeia. Na época, todos se alimentavam com o mesmo tipo de comida. De repente, a paz que reinava no local acabou, então Mbala e Mbwa propuseram a Kudu:

— Vamos nos separar e viver em paz cada um em sua própria aldeia. Se você quiser, Kudu, pode continuar morando aqui com os outros.

O esquilo anunciou que se mudaria para um lugar a cerca de cinco quilômetros ao norte. O cachorro escolheu um local cinco quilômetros na direção oposta. Assim, todos se instalaram em seus pequenos povoados. 

Certo dia Mbala avisou sua esposa:

— Vou visitar meu amigo Mbwa.

E viajou, acompanhado de uma de suas esposas, até chegar à casa do cachorro. Lá, foram recebidos e entretidos por Mbwa, que matou uma ave para o jantar.

Mbwa e Mbala ficaram conversando na sala de estar enquanto as mulheres cozinhavam. Passado algum tempo, o cachorro pediu licença para ver como estava o preparo do jantar. Deixou o esquilo sozinho e foi para os fundos da casa, onde deitou-se em frente à lareira.

Lá ficou até que o jantar ficasse pronto. Então voltou para onde estava seu amigo e arrumou a mesa. Em seguida as mulheres chegaram com os pratos e sentaram-se todos para a refeição.

Durante o jantar, Mbala perguntou:

— Meu amigo! Aonde você foi enquanto as mulheres cozinhavam? Fiquei sozinho na sala.

— Ah, você sabe o quanto eu gosto de fogo. Quando estávamos conversando, o frio me incomodou.

— Você gosta de fogo até demais. Um dia ele será sua morte.

Após a refeição, o esquilo preparou-se para voltar à sua aldeia.

— Meu amigo Mbwa, devo esperar sua visita para daqui a quantos dias? — perguntou ao cachorro.

— Irei em dois dias. — respondeu Mbwa.

Ao chegar em casa, as esposas e filhos de Mbala lhe contaram o que havia se passado em sua ausência. Por sua vez, o esquilo contou o que havia visto na casa do cachorro.

— E notei uma coisa. Meu amigo Mbwa é obcecado por fogo. — acrescentou.

Dali a dois dias, Mbwa foi visitá-lo. Mbala matou uma ave e pediu para sua esposa prepará-la para o jantar. Enquanto esperavam, os dois amigos sentaram-se na sala de estar para conversar.

— Com licença, já volto. — disse o esquilo.

Então saiu para o quintal e subiu em uma bananeira para comer as bananas que já estavam maduras. Depois de algum tempo, desceu e voltou à casa para arrumar a mesa. Em seguida sentaram-se todos para a refeição, o esquilo, o cachorro e suas respectivas esposas.

— Meu amigo, aonde foi quando me deixou sozinho? — indagou Mbwa.

— Você sabe o quanto eu gosto de bananas, meu caro. Por isso, subi na bananeira para comer algumas.

— Você gosta de bananas até demais. Um dia morrerá por causa delas.

Terminado o jantar, Mbwa anunciou:

— Agora voltarei à minha aldeia. — e assim fez.

Apenas dois dias após seu retorno, o cachorro acidentalmente caiu na lareira e morreu queimado. Ao saber sobre sua morte, o esquilo comentou:

— Eu avisei. Ele gostava demais de fogo.

Certo dia, na Cidade dos Homens, um dos habitantes notou que todos os cachos de sua bananeira haviam sido comidos por algum animal. Então colocou uma armadilha na árvore.

No dia seguinte, Mbala pensou: “Estou com tanta vontade de comer bananas que vou subir na primeira bananeira que encontrar.”

Chegou até a Cidade dos Homens e, ao subir na bananeira, foi capturado e morto pela armadilha. O Homem o encontrou e ficou satisfeito por ter apanhado o ladrão de frutas.

As notícias da morte do esquilo chegaram até sua aldeia natal. Seus filhos, ao saberem que havia sido morto comendo bananas, disseram:

— Pois é, nosso pai gostava muito de bananas. Sempre dizia que Mbwa morreria queimado, de tanto que gostava de fogo. Ele, no entanto, amava bananas.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

Dicas de Escrita (Como Descrever a Aparência de um Personagem) – 2, final –


I
ncorporando as características do personagem na descrição

1. Pense na movimentação do personagem. 

A movimentação e as escolhas dele dizem muita coisa a quem lê, assim como fornecem detalhes importantes! Coloque a movimentação na descrição para que o leitor veja mais coisas sobre o personagem.

Exemplo: um personagem que tem o passo arrastado parecerá e agirá diferente de um personagem que perambula ou anda a passos largos.

Talvez o personagem não pare de se mexer ou envie muitas mensagens de texto; ele pode andar de um lado para o outro enquanto conversa com as pessoas ou andar de cabeça baixa para não ser notado. Coloque esses tipos de movimentos que o efeito será positivo.

2. Use o penteado do personagem para caracterizá-lo. 

Muitas vezes, as pessoas escolhem um penteado que creem representá-las. O corte, a cor de cabelo do personagem e a maneira como ele usa o penteado transmitirão uma mensagem ao leitor.

Exemplos: um moicano espetado cor-de-rosa pode mostrar que o personagem é rebelde, já um alisamento de salão pode indicar que ele é do tipo “metrossexual”.

Você também pode usar o penteado para mostrar que o personagem tem diferentes tipos de personalidade. Exemplo: o personagem principal pode ser um empresário bem-sucedido com um cabelo curto mais sofisticado, mas também pode ter uma mecha roxa escondida entre os fios ou um lado do cabelo raspado que permite a ele mudar do estilo engomadinho para o modo “garoto moderninho”.

3. Mostre a personalidade do personagem com as roupas. 

As pessoas também se expressam através das roupas. Seguindo o modelo do passo anterior, use as roupas do personagem para mostrar aspectos da personalidade dele. Lembre-se de que o leitor, para entender bem o papel do personagem na trama, precisa conhecê-lo e o figurino também facilita a caracterização de personagens secundários. Veja alguns exemplos:

Um personagem sério pode usar roupas executivas.

Um artista pode usar roupas com salpicos de tinta.

Uma estrela do rock pode usar uma jaqueta de couro.

Um personagem secundário atleta pode usar roupas esportivas.

Escrevendo a descrição

1. Decida quantas descrições deseja incluir. 

Não sobrecarregue o leitor com muitos detalhes. Ao mesmo tempo, o que interessa é fazê-lo imaginar como o personagem é.

Tenha em mente quem é o seu leitor, assim como o gênero que está escrevendo, para decidir se trará uma descrição completa e detalhada de um personagem ou só alguns detalhes para dar uma ideia do todo.

Exemplo: os escritores literários normalmente preferem descrever minimamente os personagens, dando ao leitor apenas informações suficientes para que tenham uma ideia de como é o personagem. 

Exemplo: “Uma voz rouca surgiu de algum lugar dentro daquela barba grande”.

Por outro lado, os escritores de ficção costumam ser mais detalhistas. 

Exemplo: um escritor de fantasia ou ficção científica provavelmente daria uma descrição completa de um personagem que não é humano, como um ciborgue ou um elfo.

Você pode escrever: "Uma placa de metal cobria metade da cabeça dela e mostrava os fios por baixo dele sempre que a mandíbula se movia; um olho azul olhava normalmente pelo encaixe direito, mas o olho esquerdo dela se expandia e dava zoom como uma lente de câmera; um nariz comprido apontava para baixo, como uma flecha, sobre os lábios finos e robóticos."

2. Concentre-se nos grandes detalhes, que caracterizam, em vez dos pequenos detalhes. 

Só é necessário trazer informações que os leitores precisam saber, uma vez que é impossível dizer tudo sobre um personagem. Uma boa descrição mostra muito mais do que a aparência em si.

Observe alguns exemplos legais:

As raízes morenas mais grossas contrastam com o tom loiro platinado de seus cachos”. Essa informação diz ao leitor que o personagem pinta o cabelo, mas também que ele não consegue se adequar ao estilo.

“Ele usava uma blusa que fazia propaganda de uma pizzaria que fechou há três anos. A blusa no corpo magro dele parecia um casaco pendurado em um cabideiro”.

- Nesse caso, percebemos que o personagem está usando roupas ultrapassadas que não cabem mais, provavelmente porque não tem dinheiro para comprar roupas novas.

3. Use o sentido figurado para deixar as descrições mais envolventes. 

As figuras de linguagem (metáforas, símiles, hipérboles, personificações, etc.) servem para ajudar o leitor a imaginar as pessoas e os eventos da história. Dito de outra forma, elas permitem descrever o personagem de forma criativa em vez de ficar empilhando os detalhes básicos.

Exemplo: não diga "Clara tem longos cabelos castanhos e olhos castanhos", diga "Cachos escuros caíram sobre o rosto de Clara, escondendo seus olhos cor de âmbar".

As metáforas e símiles comparam duas coisas aparentemente diferentes, mas a símile usa o “como” para deixar as comparações mais óbvias.

A personificação dá características humanas a um animal ou objeto inanimado. Exemplo: “os olhos dela desviavam de suas perguntas”.

4. Evite a prosa púrpura. 

Esta técnica é um tipo de escrita que contém muita descrição e palavras extravagantes, deixando pouco substancial o trecho da história em que é usada — é algo que frustra muito os leitores. Nesse caso, apenas use as descrições quando elas realmente servirem para contar a história. 

Você pode evitar essa técnica detalhando apenas o necessário, mantendo curtas as descrições.

Use o mínimo possível de palavras.

Exemplo: escreva “Ela tingiu o cabelo com aquela cor porque a deixava com cara de artista". 

Não é necessário se explicar demais, como na frase “Os cabelos escuros sombreavam sua pele pálida como uma mancha de óleo na água. Sempre que se olhava no espelho, ela via um poeta romântico preso em uma época diferente, deixando-a com a sensação de ser a artista que ela sempre quis ser”.

5. Use a sinédoque quando uma única característica consegue representar o personagem por inteiro. 

A sinédoque é uma estratégia literária onde o escritor usa uma parcela de algo para representar uma pessoa, lugar ou coisa no todo. Em outras palavras, significa que não é necessário descrever um personagem por inteiro: em vez disso, usa-se apenas uma característica que se destaca. É uma boa maneira de você descrever rápida e significativamente um personagem sem falar muita coisa.

A sinédoque é muito útil para descrever personagens secundários.

Pense nos traços fortes que identificam facilmente o personagem, como um moicano cor-de-rosa, um queixo pontiagudo, uma corcunda, um andar diferenciado, um cheiro único, etc. A característica pode ser positiva ou negativa, dependendo do personagem, e a use quando estiver se referindo especificamente a ele.

Exemplo: “Quando vi o moicano cor-de-rosa passando pela minha janela, percebi que meu vizinho estava chegando em casa”.

6. Coloque detalhes sensoriais para dar vida aos personagens. 

Não coloque apenas as características físicas: apele para os cinco sentidos dos leitores! Talvez não dê para incluir todos os sentidos, mas coloque o máximo que puder — e fizer sentido.

Olfato: mencione o cheiro do personagem. 
Exemplo: “O seu Carlos sempre tinha um cheiro de biscoitos que acabaram de sair do forno”.

Tato: mencione a textura da cicatriz do personagem ou a maciez da pele, que parece seda.

Audição: relacione o som da voz do personagem a um pássaro que está cantando ou ao barulho de um motor.

Visão: descreva a roupa e o penteado do personagem.

Sempre que puder, apele ao sentido preferido do leitor. 
Exemplo: quando dois personagens se beijam.

7. Descreva de uma forma bem-feita em vez de colocar muitos detalhes. 

Visto que é necessário não encher o texto com descrições, concentre-se nos detalhes que apresentam, ao leitor, mais de uma característica do personagem. Dessa forma, o personagem ficará melhor descrito e não sobrecarregará o leitor com o excesso de informações.

Exemplo: “A palavra que melhor descreve Laura é ‘árvore’, porque ela tem rosto e braços longos, assim como pernas compridas que parecem pernas de pau”.

8. Escreva os detalhes durante o progresso da história em vez de desperdiçar as informações em um único momento.

Não é legal sobrecarregar o leitor com um monte de detalhes aleatórios e extensos, técnica essa conhecida como infodumping (enxurrada de informações). A forma mais comum de evitar esse problema, dependendo do tamanho do trabalho ou obra, é distribuir os detalhes em vários parágrafos ou páginas.

Exemplo: descreva o personagem durante uma cena em vez de falar tudo de uma vez só.

Dicas

Uma forma de decidir como descrever o personagem é usar as características de amigos, familiares e celebridades. Basta encontrar características que façam sentido para você e misturá-las no seu personagem.

Esboce o personagem antes de descrevê-lo para ajudá-lo a descobrir o melhor jeito de fazer a descrição.

Não descreva demais os personagens ou coloques os detalhes todos de uma vez. É melhor espalhar esses detalhes em vários parágrafos.

Seja criativo, pois a imaginação é essencial para se ter uma boa história e detalhes interessantes. Faça do jeito que quiser, sempre usando a criatividade.

Você pode usar um dicionário de sinônimos para achar uma palavra mais adequada para dizer algo em certos momentos, mas use-o com moderação. É recomendado, ou mais fácil, descrever algo usando as palavras que você costuma usar.
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Fonte:

segunda-feira, 24 de julho de 2023

José Feldman (Versejando) 29

 


Aparecido Raimundo de Souza (Como a forja e a matriz)

TERRA É COMO O BARRO e o barro é morro e nuvem é céu. Tudo provém lá do mais alto e longínquo firmamento. Ou diretamente do Altíssimo, uma vez que o Altíssimo, indubitavelmente, é Deus. Deus é espírito, como, no mesmo sentido, é amor e amor é algo como O Senhor de nossas vidas. Ele não morre nunca. É eterno, sagrado e luculento. Sobre todas as coisas, resplandece e celebra em nosso âmago uma concretude inter-relacionada que nada mais é que a alma e o espírito fundidos, grudados, amalgamados num só corpo e inseridos harmoniosamente no planeta em que vivemos.

Deveríamos todos estar “lincados” ou direcionados na rota da Paz. A Paz é direção, comando e lenidade. Mesmo modo, a serventia, a gerência, ou a gestão de vivermos cotidianamente em sintonia meridiana com a natureza. De roldão, jamais nos esquecermos de cultivar a graça da serenidade e da complacência. Em senda idêntica, não sermos prolixos, entediantes e difusos, nem nos deixarmos vencer pelos muitos vícios que nos fazem descambar para o buraco negro da derrota. Carecemos de acreditar num porvindouro melhor, onde todas as coisas são possíveis e alcançáveis, bastando apenas que lutemos com perseverança, força de vontade irrestrita e afinco incondicional. 

O amor é por excelência a ponte sobre um rio amplo, longo e de águas límpidas. Uma torrente que nos levará através dessa ponte, ao sucesso, que nos unirá ao futuro, que afastará de nossos corações as horas ásperas e repletas de melancolias amarescentes. Termos em conta, sempre, haja o que houver, e absorvermos e afiançarmos, a ideia de que não existe nada rotulado de “ruim” ou “péssimo” para o nosso corpo, se não quisermos. Assim como inexiste a perniciosidade, se estivermos abertos somente para as coisas boas e carismáticas que a vida nos oferece.

As coisas excelentes que a vida nos oferece, de graça, é de alvitre necessário alinharmos, agem em nós como fluídos renovadores que vêem do espaço, bastando, unicamente, que saibamos abrir as portas e as janelas do nosso universo pessoal, ou espaço sideral, como melhor entenderem, na hora precisa. Todas as vantagens e as benesses as mais dadivosas e caridosas estarão latentes e presentes em cada um de nós. Por assim, se concordarmos que os fluídos da infinita grandeza entrem e se espalhem em nosso “eu interior”, e, da mesma forma, permitirmos, sem restrições, preencham todos as reentrâncias que se acharem vazias e ociosas, seremos prósperos, felizes, afortunados e realizados. 

Mesmo tom (nenhum dos cinquenta tons de cinza, logicamente), mas o branco ebúrneo e alvacento, o casto e o lácteo, sempre tendo na mente que o Criador de todas as coisas nos dá, a cada novo amanhecer (sem nada pedir em troca, repetindo, de graça e sem custos), chuvas abundantes e infinitas de bênçãos as mais poderosas... em outras palavras, Ele derrama sobre as nossas cabeças, benfazejas ações multiplicadoras de incomensuráveis prosperidades... basta, todavia, que saibamos a hora exata, o minuto propício de sairmos em campo e mostrarmos as nossas caras e os propósitos de sermos felizes e jubilados. 

E não só o ato de sairmos de nossos esconderijos. Igualmente de agirmos seguindo de espírito erguido a linha pontilhada do amor sem fronteiras.  Logicamente, sabermos discernir (e isto é a coisa mais importante) e sem meios termos, notadamente entendermos e diferenciarmos uma chuva comum e destrutiva, de uma enxurrada de feições maviosas e fagueiras. Estas chuvas corteses e amenas, sem sombras de dúvidas, vêm diretamente dos desígnios Santos do Pai Maior. Dito de forma mais direita: Deus é aquele ser mágico e Onipotente que nos modela em sua Onisciência, para sermos, vida afora, à sua Semelhança mais Justa e Perfeita. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) VIII


COADJUVANTES

Qual nuvem dançante ao vento;
Criança pobre mulamba;
Palhaço gritante, alegre;
Malabarista na corda bamba.

Qual vespa que beija a flor
Ou lua que o céu prateia;
Amantes que dão amor;
Pássaro triste que gorjeia.

Festeiro poeta ou ator,
Levo a vida segurando as rédeas,
Mesmo em momentos de dor,
Faço dos dramas minhas comédias.

Somos todos atores em cena,
Responsáveis pela decupagem*,
Não há ator principal;
Somos coadjuvantes em um longa metragem.
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Decupagem - do francês décotipage, derivado do verbo découper, recortar - no cinema
e na comunicação, a divisão do planejamento de uma filmagem em planos e cortes.
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EPITÁFIO

O texto pode até ser grande,
Histórias diversas e esparsas,
Encontros, desencontros,
Flores, amores, mordaças.

A vida se escreve lentamente,
Com derrotas e vitórias,
Fracassos e glórias,
Com o tempo que passa.

Há vidas que,
Imaturas se acabam,
Outras perduram,
Insistem na permanência.

Alguns exaltados
Vagueiam no abstrato.
Embasado em crenças.

Outros preferem o concreto,
Não trocam o incerto
Pela lucidez do que pensa.

Há quem se perde
E quem se adapta,
Mas com a mesma sentença:
UM BREVE EPITÁFIO NA LÁPIDE.

Todos em uma viagem sem volta,
Escrevendo a história a partir da partida,
Lapidando, com tropeços, as pedras
Encontradas na estrada da vida.
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O REI BÊBADO

Há quem diga que má companhia faz o viciado.
A sobriedade do "bêbado" é o que mais me assombra.
Vejo-o sóbrio, velhaco e o povo enganado.
Na "lucidez" desse ébrio, o perigo nos ronda.

Quem pensa que o homem do gole não é um velhaco,
Quem não se preocupa com o que o ébrio apronta,
Há de ver no fim da festa, as garrafas aos cacos
E o garçom exigindo que paguemos a conta.

Beberrão que, de esperto, embola o que fala,
Nunca perde o equilíbrio e se preciso, se cala,
Jamais deixa pegadas nos botequins onde passa.

Nunca fica perdido ou caído nos cantos.
Não cambaleia e sabe escolher os seus bancos.
Usa terno e gravatas e é o rei da manguaça.
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POR ONDE ANDEI

Por onde andei
Não falei de você
Nem do meu coração
Pra não lembrar meu passado.

E todas as outras coisas que vivi
Em cada uma delas, aprendi.
Cada minuto é novo,
Nada É igual ao que se foi.

Quero pensar que amanhã,
Junto com o sol, vai renascer
Um novo dia e a esperança
é motivo pra eu querer continuar.

E se eu voltei
Sem falar como estou,
É Porque nem eu sei
Se recolhi meus pedaços.

Se um dia errei, foi sem querer,
Preciso mais um tempo pra entender.
Nada de recomeço!

Se um novo dia vai chegar,
Vamos deixá-lo responder.
Carrego em mim as cicatrizes
E cada uma faz lembrar você.
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RELATO DE UM MENDIGO

Vagando na noite, pobre vagabundo,
Mulambo faminto, intruso no mundo,
Não é dono de nada, nem tem endereço
E é sempre excluído, avesso do avesso.

É fruto caído que o fruteiro não colhe.
É quase indigente que ninguém acolhe.
Enjeitado na igreja e nos bares na vida,
Recolhe o que sobra, adormece onde pisa,

Da vida que traz,
De tudo que faz,
Melhor ser esquecido,
Se a outra vida viver,
Se puder escolher,
Talvez seja:
Eu declino!

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 5: Doces lembranças

 
Isadora gostava da vida na fazenda. Sentia-se parte daquele ambiente sincero e perfumado, mas tinha curiosidades sobre a vida na cidade.  Só foi à capital, Porto Alegre, junto dos seus pais, uma única vez. Foram bailar no mais famoso CTG (Centro de Tradições Gaúchas), o "35”. Seus olhos brilhavam de felicidade. Mas só pode dançar com o seu pai...        

Isso foi logo após os seus quinze anos. Depois nunca mais teve oportunidade de viajar. O único Centro de Tradições Gaúchas que podia visitar de vez em quando, era o Bonifácio Gomes, que ficava localizado na cidade de Cachoeira do Sul, bem próximo ao distrito onde morava.  

Suas atividades se resumiam em auxiliar a mãe nos afazeres da casa, registrar no papel os seus próprios desabafos, conversar com a amiga Enila, cavalgar e, por vezes, ajudar os peões na lida com a terra. 

O pai de Isadora não aprovava a sua atitude de misturar-se aos peões. Não gostava de ver a filha tão próxima de todos aqueles homens que não podiam ver um rabo de saia que logo já cobiçavam. Mas Isadora não dava importância ao que as pessoas pensavam ou deixavam de pensar a seu respeito. Seguia somente as diretrizes do seu coração. Desejava apenas ser feliz e um dia viver um lindo amor. Porém, enquanto esse amor não chegava, buscava se refugiar em tudo de bom que podia fazer e usufruir na fazenda.

- Oi, mãezinha! Passaste bem à tarde? - perguntou ela ao retornar do passeio.  

- Passei bem. Fiz salgados para a venda do seu Feliciano. Descansei um pouco. E agora estou a saborear o meu chimarrão. 

Quando sobrava tempo, nos finais de tarde, sentada numa cadeira de balanço na varanda de casa,  Ana costumava matear (tomar mate) na companhia da sua Isa e do cãozinho Costelinha. 

A sacada era ornada por vasos de folhagens variadas. E ficava de frente para dois lindos Ipês de flores amarelas. Por certo, ali era o seu cantinho favorito. 

- Vou lhe acompanhar no mate.

- Pareces muito animada, filha. Pensando no baile do próximo sábado?

- Sim. Mas não é por isso que estou feliz. Cavalguei, conversei, fui até o jardim, refleti, escrevi... Todas essas coisas fazem com que me sinta renovada.

- E eu aqui, à espera do teu pai...

- Suas viagens estão cada vez mais longas. Mas daqui a pouco ele aparece. 

- Pensar no pai me deixa aborrecida. Vamos mudar de assunto. Fale sobre a senhora. Normalmente és tão calada. 

- O que desejas saber, minha guria? 

- O amor que sinto pelos versos vem da senhora. Como descobriste a poesia?

Dona Ana busca no baú das suas saudades uma bonita lembrança para relembrar e satisfazer a curiosidade da filha.          

- Seu avô Sebastião, como bem sabes, era professor de história. Ele foi um pai linha dura e, ao mesmo tempo, delicado, carinhoso e inteligente. Ele tinha uma biblioteca com centenas de livros. Sua avó, dona Clara, também gostava de ler. Eu e minha irmã adotiva, Leandra, não tínhamos muita liberdade. Mas éramos autorizadas a ler os livros que nossos pais consideravam bons e educativos. Aquela biblioteca era o nosso paraíso. Lá, mergulhei no universo do Érico Veríssimo e na sua obra O Tempo e o Vento. Uma epopeia dividida em três romances: “O Continente”, “O Retrato” e “O Arquipélago”. A trilogia narra o processo de formação do Estado do Rio Grande do Sul, misturado ao elemento ficcional, preponderante em quase toda literatura, mais os dados e personalidades históricas. 

Os romances acabam por recriar 200 anos da história gaúcha, de 1745 a 1945, tempos marcados pelo poder das oligarquias, por guerras internas e guerras de fronteira. Nem todos os livros nos eram permitidos ler, mas eu e minha irmã dávamos o nosso jeitinho...

Certa vez ouvimos nossos pais falarem sobre um romance do século XIX, que por ter sido considerado indecente, havia sido censurado, e o autor francês, Gustave Flaubert, teve até que responder a um processo por afrontar à moral e os bons costumes da época, em uma corte francesa, por causa do conteúdo da obra. 

Claro que ficamos ouriçadas querendo saber o que continha de tão errado nessa obra, e todas as vezes que nossos pais saíam, íamos até a biblioteca: às vezes eu, às vezes Leandra. Subíamos a escada para alcançar a prateleira onde ficava o livro, e dividíamos a leitura. 

Tratava-se de um calhamaço. Levamos um bom tempo para ler a obra por completa, já que só podíamos ler quando estávamos sozinhas.  

- Com que idade vocês resolveram fazer coisas às escondidas? - perguntou Isadora, surpresa. 

- Coisas, não. Esse foi o nosso único delito.

 - A obra era mesmo indecente?

 - É... Pode-se dizer que sim. Contava a história de uma mulher que tinha casos extraconjugais...

- Mãe, entrega as idades, estou curiosa. 

- Já vi que falei demais, mas acho que eu tinha uns treze e Leandra já contava com seus quinze anos. 

- Ah, com essa idade a senhora já fazia esse tipo de leitura...  Mas eu, já uma mulher feita no alvorecer dos meus dezoito anos, não posso sequer dar opiniões sobre liberdade feminina. 

- Sempre te dei liberdade, filha, tanto para ler quanto para poetizar. Só não gosto quando te envolves em assuntos relacionados entre mim e teu pai. Do meu casamento, cuido eu. Naquele cenário mágico também descobri a trova medieval. Estilo poético que me inspirou a escrever versos num simples caderno que acabou se tornando o meu pequeno tesouro. Naquele caderninho que agora é teu – disse Ana, com ternura. 

- Deverias voltar a escrever. Tens talento para a poesia. 

- Não, filha, meu tempo de sonhar acabou. 

“Belos dias eram aqueles, pensa dona Ana”.

- E o que fizeram dessa tal biblioteca mágica? Nunca me falaste dela. 

- Pois agora falei. Outra hora conto mais. E chega de nostalgia. Tenho que preparar o jantar. Me ajuda, filha? - diz Ana interrompendo os próprios pensamentos ao lembrar da assombrosa imagem do dia em que viu a biblioteca ser comida pelo fogo, graças a ignorância do seu marido.

- Claro, minha mãe.

“Instruída, bondosa, bonita... Como pode casar-se com alguém tão rude quanto o meu pai?”

Será que aqueles livros escondidos na dispensa já fizeram parte dessa mesma coleção literária? “Se perguntava Isadora, intimamente, enquanto acariciava o focinho do Costelinha.

Fonte:
Capítulo enviado pela autora.