terça-feira, 15 de agosto de 2023

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 1


A PAZ

Viver com humanidade,
sem angústia nem paixão,
com toda serenidade,
é ter paz no coração.

Olhar pra sua consciência,
sem ter que chorar atrás,
é sentir doçura e ciência
do que seja estar em paz.

Quem habita bem a Terra
e age com tranquilidade,
quem condena sempre a guerra
promove a paz e a amizade.

Ainda que haja injustiça
com a traição perspicaz,
a minha grande cobiça
é sempre viver em paz.

Que a tristeza se dissipe,
que, pra todos, haja trigo,
que do amor se participe,
criando-se um mundo amigo.

Seja, pois, Ano de paz,
porém, que não se desfaça,
riqueza que o sonho traz
com vida plena de graça.
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APELO DA POESIA

Meus versos são ecos que soam,
que tangem quais vozes de um sino;
vêm d'alma desejos que entoam
compassos sagrados de um hino.

É a voz que o deserto sacode,
o orvalho que rega a aridez,
a mão carinhosa que acode,
o braço que dá altivez.

Poema que canta a esperança
e clama com fé pelo amor,
suplica que reine pujança
ao fraco, infeliz sofredor.

Meus versos agora são gritos
que amainam humildes plebeus;
quer paz, quer bonança aos aflitos,
— poesia é apelo de Deus.
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A TROVA DO CORAÇÃO

Minha trova tem poesia
colorida de paixão.
Tenho no rosto alegria
e trova no coração.

Todas as trovas que escrevo,
como se fossem missão,
dizer com gala me atrevo:
São trovas do coração.

A trova do coração
tem sempre sinceridade;
até mesmo sem razão,
no sentimento há verdade.

A essas trovas me apego,
pois são de fina emoção;
nelas, amor é que prego
por serem do coração.
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CARNAVAL 

São ricas as fantasias
dos meses de fevereiro.
Carnavais - que ironias!
- motivam o ano inteiro.

Arlequim faz palhaçadas
aos olhos das colombinas.
Dançam drogas nas calçadas
— oh, vis armas assassinas!

Tantos pierrôs delinquentes
nestes tempos tão carnais!
Assanham impertinentes
as colombinas sensuais.

Consequência indesejada
por imprudente cegueira,
a aids vem por um nada
e condena a vida inteira.

São lindas alegorias
que se vê passar ali.
Ficam, porém, agonias
no chão da Sapucaí.

Carnaval! Quanta ilusão
de um bloco de tanta asneira!
Eis o vazio coração
numa vida feiticeira!
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DESEJO MAIOR

Ao meu fim, quando eu chegar,
"Glória" infinda quero ter.
Por uma luta exemplar,
desejo o céu receber,

Sei que, de Deus, não mereço
o gozo da eternidade;
mas tenho o santo endereço
do seu perdão e piedade.

Frágil sopro é minha vida
nos vales, vezes sombrios.
Com fé, em luta renhida,
vencerei monstros bravios.

Quando partir deste mundo,
tenham todos a certeza:
Eu quis que o amor mais fecundo
constituísse-me a riqueza.

A velha Sabedoria
diz que a vida é passageira.
E vaidade e ninharia
a ganância rotineira.

Ao mundo cheguei desnudo,
que bens levarei comigo?!
Dê-me a chance, ó Deus, contudo,
de ter o Céu por abrigo.

Quero, com o Pregador,
dizer entre tanto embate;
Dê-me a coroa, Senhor,
"Combati o bom combate"!

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo poeta.

Machado de Assis (Questões de maridos)

— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através do subjetivo. — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.

Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.

— Coisa extraordinária! disse o professor à mulher um dia.

— Que é?

— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?

— Diga.

— Pedindo a Luísa...

— Os dois?

— E a Marcelina.

— Ah!

Este ah! traduzido literalmente, queria dizer: — já desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha. Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito delas.

As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.

Outra coisa que não digo, — mas é por não saber absolutamente — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles e, às vezes não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.

Casaram-se. O professor visitou-as no fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de Luísa:

Titia,

Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.

Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também.

Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho.

Luísa.

 Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze dias depois. A carta dizia assim:

 Titia,

Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.

 Marcelina.

— Vejam, comentava o professor; vejam a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e disse-lhe, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:

Titia,

Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.

Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre?

É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas, enfim, Deus é grande...

Marcelina.

— Naturalmente, a minha velha ficou desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o seguinte:

Titia,

Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.

É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento.

Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...

É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração.

Marcelina.

— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:

Titia,

Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena.

Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me.

Luísa.

E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada.

— Consultou-me se devia indagar mais alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.

Titia,

Ouvi dizer que tinham passado mal estes últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.

Marcelina.

A outra carta era longa; mas eis aqui o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia assim:

... Em suma, titia, foi uma noite cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até breve, para irmos ao teatro juntas.

Luísa.

— As cartas continuaram a subir, sem alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.

O professor leu ainda muitas cartas das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:

... O meu Candinho continua a fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá; digo isto porque é a verdade pura.

O de Marcelina era este:

... Paciência; o que me consola é que meu filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...

 — E então? perguntaram as pessoas que escutavam o professor.

 — Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...

 — Explique-se.

— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...

Fonte:
Publicado originalmente em A Estação, em 15/07/1883.
Disponível em Domínio Público 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 32

 

Humberto de Campos (A lição)

- Toma cuidado contigo, Enedina! – recomendava a bondosa D. Matilde, repreendendo a filha. - Essa mania de bailes, de festas, e passeios e esses vestidos muito curtos e muito decotados, podem prejudicar-te. É preciso um pouco mais de decoro, de zelo, de discrição. Isso, assim, não vai bem!

- Ora, mamãe! - respondia a linda moça, num muxoxo. - Mamãe não quer, então, que eu me case?

- Quero, sim! Mas não é assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até os joelhos, e o colo até o estômago, que encontrarás um bom casamento.

A resposta era, porém, a mesma, com o mesmo estouvamento gracioso:

- Ora, mamãe!...

Sábado último, desejando oferecer à filha uma joia custosa para as futuras festas ao Rei, veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa Adamo, na Avenida:

- Aquele não te agrada? - indagou, mostrando à moça um dos mais lindos colares da exposição.

- Não! Não quero aquele.

- E aquele?

- Também não quero.

E convidando D. Matilde:

- Vamos ver lá dentro?

Entraram.

- Colares de pérolas ou de brilhantes. - pediu a conhecida senhora.

O dono da casa abriu o cofre forte, pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de pedrarias.

- Quero este! - pediu a moça, batendo as mãozinhas, contente.

No automóvel, de caminho para casa, D. Matilde indagou da filha:

- Achaste mesmo esse colar muito bonito?

- Achei-o, sim!

- Mas havia outros mais bonitos, na vitrine.

- Havia.

- Por que não escolheste um deles?

E a moça:

- Mesmo. Porque estavam tão expostos, tão à mostra... Toda gente já os viu! Este, não e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais curiosidade! Não é?

A estas palavras, D. Matilde sorriu, carinhosa, e, tomando nas suas mãos enluvadas, as mãozinhas de neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:

- Minha filha, sirva-te isto, pela última vez, de lição. Os homens são pelas mulheres o que as mulheres são pelas joias: preferem as que se acham guardadas, recolhidas, às que vivem permanentemente no mostruário, expostas a todas as vistas! Aproveita, tu própria, minha filha, a tua experiência!

E beijando-lhe a testa, bondosa:

- Sê discreta e modesta para seres desejada. Ouviste?

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVI


A paz intensa e sensata
constelando à gratidão,
é luz que adentra na mata
em noites de escuridão.
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As pedras erguem barreiras
represam águas e lama,
traçam limites, fronteiras,
base firme pra quem ama.
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Distante, sobre o horizonte,
numa linha imaginária,
o sol atravessa a ponte,
surge a noite hereditária.
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É melhor fazer e errar
na busca da solução,
que acomodado e gerar
grave erro por omissão.
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Em qualquer lugar que vá
promova a literatura,
relendo os passos, está,
reconstruindo a cultura.
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Flor do campo, nobre enfeite,
feito pela mão divina,
mastro em cor onde o deleite
ao lado da "flor" germina.
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Grécia antiga, antiga Atenas,
berço da Filosofia,
não só da cultura apenas,
também da sabedoria...
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Homens fortes, protetores,
vanguardeiros nos caminhos!
Sede mais que plantadores
plantai flores, nunca espinhos!
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Liberdade não se exprime
com gestos de rebeldia,
nenhum conceito a define
sem bom-senso e isonomia.
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Luz, um sinal companheiro,
que com seu brilho nos guia,
se à noite tem o “Cruzeiro”
tem-se o Sol durante o dia.
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Nada tem com mais valor
que uma vida em plenitude,
até quem planta uma flor
colhe frutos de virtude.
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O mundo parece grande
porque nós somos pequenos,
quando nosso ser se expande
maiores nos parecemos.
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O planeta está doente
e precisa ser tratado,
requer tratamento urgente
além de ser respeitado,
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Os que só vivem matando,
num mundo de travessuras,
poderão estar cavando
suas próprias sepulturas.
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São Marcos celebra a vida
numa festa sobre as pistas,
da Senhora Aparecida
e dos bravos motoristas.
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São Marcos, povo feliz...
Tem no alto a cruz do Calvário,
no centro a Igreja Matriz
sendo a fé o vivo sacrário.
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Se a lei disser pra você
que algo deve ser cumprido,
nunca pergunte, por quê?
Somente cumpra o pedido.
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Se alguém te pedir um pão
dá-lhe mais, tira-o da rua,
porque a fome desse irmão
amanhã pode ser tua.
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Sempre que numa oração
o sujeito lhe faltar,
não será por omissão
mas oculto pode estar.
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Se um lacre for violado
nos faz levantar suspeitos,
de um produto adulterado
ou repleto de defeitos.
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Toda a humanidade fica
vulnerável na maldade,
porém nada a identifica,
mais que a solidariedade.
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Todo encontro inaugural
se reveste de harmonia,
enche de luz fraternal
sem a qual paz não teria.
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 8: Discórdia familiar

Dona Ana permaneceu por longos dias hospitalizada. E, nesse meio tempo, Isadora se preparava para a tal conversa com o pai. 

Ocupando o espaço da mãe à beira do fogão, ela preparava as refeições do senhor Antônio que, mesmo com a esposa correndo riscos de vida, seguia como de costume, sumindo de casa, sabe lá Deus por onde e com quem.

O velho chegou atrasado para a janta. Com as botas embarradas e um sorriso incomum estampado na face, que quase sempre se mantinha fechada e sombria.

Cara de homem que havia acabado de sair dos braços de alguma mulher.

Com raiva, Isadora arrumou a mesa e serviu o velho. Mas, tomada por preocupações, não conseguiu provar da refeição.

- Come, “fia”. - disse ele.  

- Pareces feliz. Alguma boa notícia sobre o estado de saúde da mãe? Ligaste ou foste vê-la? - perguntou Isa, controlando a irritabilidade.

-  Não. Passei o dia ocupado. Amanhã vou até o “hospitar".

- Desculpa, meu pai, não quero faltar com o respeito, mas o senhor parece muito feliz para quem está com a esposa hospitalizada. Da onde vens? Da casa de alguma amante, china, mulher da vida? Não sei qual o melhor termo a ser usado nesse tipo de situação.

As suspeitas da filha acenderam em seu Antônio uma raiva ardida que, em segundos, o deixou corado, pegando fogo.

Cheio de ira, imediatamente ele atirou o prato servido na parede e disparou: - Não te criei pra "falá” assim comigo. Só não puxo o rebenque porque ainda não tinha falado “arto” comigo. Que isso nunca mais se repita. Porque se isso acontecer de novo, te darei uma coça de criar bicho. Vai pro quarto! - gritou ele, com os olhos arregalados.  

-  Não lhe faltei com respeito, meu pai. E jamais faltarei. Fui muito bem educada por minha mãe. Já, o senhor, entende pouco de educação e respeito. Nunca tratou sua mulher com a devida deferência. A faz trabalhar como se ela fosse sua escrava. Por certo, a trai com outras mulheres. E o pior, mesmo perante uma situação que não muda, ela insiste em aceitar todas essas humilhações, submissa ao seu egoísmo desmedido.

Isadora não se calou, e o senhor Antônio, sem paciência, fez menção de puxar o cinto.

- Isso, pai, bate! Nenhuma surra pode  doer tanto em meu corpo ou em minha alma quanto a dor que fazes minha mãe sentir. - disse a guria, sem temores.

O velho recuou e repetiu a ordem:

- Vai pro quarto e te ajeita, guria! - disse, saindo porta afora.

Isadora obedeceu e, aos soluços, deixou o pranto fluir...    

No peito dos homens machistas, sentimentos como amor verdadeiro e fidelidade, passam longe. Eles pensam ser os donos do mundo, e vivem como se fossem superiores a todas as mulheres, sejam elas suas esposas ou filhas.

São xucros. Habituados a esses costumes,  não aceitam cabrestos. E preferem morrer a mudarem seus comportamentos. O modelo patriarcal ainda vigente na sociedade em que vivemos, está sempre a colocar a situação do ser feminino em desvantagem” - pensou ela, no escuro do seu quarto, mergulhada no breu de suas emoções. 
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora.

domingo, 13 de agosto de 2023

Versejando 120

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Desprendimento)

 Foi no tempo em que as moedas tinham grande valor. Muito maior que o dessas de agora. Alguém se lembra daquela de mil réis, que, na nossa infância, dava para comprar vinte balas toffee de leite condensado? Não balinhas mirradinhas, não; eram balas mastigáveis, grossas, bastas. Chegavam a dar dor nas mandíbulas de tanto que demoravam a acabar. Não vi nenhuma dessas moedas ainda dourada e brilhante, como deviam todas ter saído, com certeza, da Casa da Moeda, onde eram cunhadas. Mas logo eram encaminhadas para o comércio, seu destino. Passavam de mão em mão. Não é à toa que a gente considera o dinheiro uma coisa suja. As poucas moedas de mil réis nas quais conseguimos pôr as mãos traziam a data de fabricação, sempre um ano passado havia muito. Carregavam as marcas do seu longo tempo de uso. Eram encardidas de um jeito que nem um litro de Kaol conseguiria limpá-las. Mas eram as nossas moedas mais valiosas. Crianças dificilmente ganhavam uma.

Pois foram duas dessas que, lá num dia de outrora, um pai deu ao seu garotinho em manhã de domingo. Uma destinava-se à oferta na igreja, outra era para o sorvete, depois da missa. Lá se foi o menino, saltitante e descuidado, a brincar com sua pequena fortuna. Até que, de repente, aconteceu o previsível. Não deu outra: caiu-lhe da mão uma delas e rolou pela calçada. Antes que a pudesse apanhar, ela sumiu num bueiro. Ele virou-se para o pai com ar de decepção: “Ah, papai, que pena! A moeda da oferta caiu no buraco”.

Os simpáticos leitores devem conhecer a historieta. Não é mais do que uma anedota, mas encerra muitas lições de vida.

Demonstra quanto pesa em nós o barro de que fomos fabricados. Bobagem atribuir ao pobre Gérson, o canhotinha de ouro, a invenção da lei de levar vantagem em tudo. Ele só foi usado pela indústria tabagista para proclamá-la em voz alta. Levar vantagem é uma herança que trazemos desde o velho Adão. Vem lá das nossas origens. De quando nossos ancestrais ainda moravam em árvores.

Voltando ao garoto, há quem aplauda sua suposta esperteza. Por que chamamos esperteza ao que não passa de cupidez (cobiça)? Já sei; alguém dirá que qualquer criança faria o mesmo. Isso vem provar que não nascemos naturalmente orientados para o bem, como alguns pensam. Se os pais não interferirem, a coisa descamba. Daí a importância de educarem os filhos para que aprendam a praticar o que é correto, não o que é gostoso.

Outro ensinamento da historieta é que os pais devem orientar os filhos para a partilha dos bens que recebemos. A moeda da oferta é valioso reforço para a abertura do coração. Há quem erroneamente pense que na igreja se dá esmola. Pelo contrário; se reconhece que Deus nos dá os bens para que aprendamos a partilhar. Se Ele é Pai, não aceita de bom grado que a algum filho falte o necessário. Se nós somos irmãos, não podemos admitir que alguém sofra necessidade. A oferta na igreja é uma pequena, mas poderosa lição. Repetida, ao longo dos anos, ajuda a criar o hábito de lutar por uma sociedade mais fraterna e igual entre nós.

O lar é o ambiente próprio onde formar os filhos no desprendimento. Para orientá-los na prática dessa virtude que leva a apreciar o bem comum antes que o bem particular. Virtude que me leva a considerar tão importante e desejável para o outro aquilo que considero importante e desejável para mim.

Fonte:
Portal do Rigon. Em 21/06/2014.
https://angelorigon.com.br/2014/06/21/desprendimento/

Daniel Maurício (Poesias da Madrugada) I


Agora
não
“caio mais
na tua onda"
é que
com a vida
tive
que aprender
a surfar.
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Amanheço em você.

De mansinho
a noite escapa
pela fresta
da cortina
e o sonho inacabado
por você, menina,
deixei guardado
embrulhado na
florida fronha.
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Ao alcance
da língua
ou
a amizade
permanece
ou
num lance
se finda.
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Cessaram
as 
procuras
pois você
é
a versão
definitiva
do meu
amor
= = = = = = = = = 

Com as folhas
aprendi
a ler o tempo
das coisas.
Quando senti
que querias ir
disfarcei
um sorriso
e deixei
escapar
um até mais.
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Contemplação.
Embora
as palavras
queimem
minha língua,
ante a beleza
do amor
silencio
o meu olhar.
= = = = = = = = = 

Desejo

Mesmo
com o passar
do tempo
o teu olhar
cioso
ainda ronrona
em minha pele.
= = = = = = = = = 

Do
sapato
antigo
florescem
lembranças
dos caminhos
percorridos.
= = = = = = = = = 

Enquanto
as lembranças
amarelam
com o tempo
guardo o nosso amor
feito relicário
no meu peito
cumprindo
a promessa
que um dia
eu te fiz.
= = = = = = = = = 

E quando
ela caiu
em si
o amor
que sentia
por mim
já tinha se
enraizado
por dentro.
= = = = = = = = = 

Mais alto
do que a pipa
voam
os sonhos
de menino
recordo
com saudades
das lindas tardes de
domingo.
= = = = = = = = = 

Na
explosão
do 
amor
a flor
mostra
o seu
rosto.
= = = = = = = = = 

Não quero mais
devolver
o sorriso
que emprestastes
ao meu rosto
digas
que pra sempre
tu ficarás.
= = = = = = = = = 

No
banco
vazio
meus
olhos
enxergam
saudades.
= = = = = = = = = 

No mar de
hortênsias
a abelha feliz
mergulha
sem medo
e nas ondas azuis,
em paz
segue sua rota
em segredo.
= = = = = = = = = 

0 silêncio
do moribundo
doía na carne
mas os gritos
da sirene
sangravam
na alma.
= = = = = = = = = 

O tempo
enrijece
o cerne
dos homens
em
seus
desertos.
= = = = = = = = = 

Quando
te entreguei
meu coração
era pra que tu
morasses dentro
e não pra que
o levasses
no adeus
me deixando
um vazio imenso.
= = = = = = = = = 

Sem
meias palavras
prefiro as tuas
que vem nuas
e batem
em meu rosto
feito
um beijo
gelado.
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Fonte:
Daniel Maurício. Poesias da madrugada. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Contos das Mil e Uma Noites (A douta escrava Simpatia)

Conta-se que vivia certa vez em Bagdá um mercador muito rico e cumulado com honrarias e privilégios. Mas Alá o privara de uma felicidade: Não tinha filho - nem mesmo uma filha. Na medida em que envelhecia e o peso dos anos encurvava-lhe as costas, aumentava seu desespero por nada conseguir de suas numerosas esposas. Um dia, porém, após ter distribuído esmolas e visitado santos e rezado com fervor, deitou com sua mulher mais jovem e, pela graça de Alá, engravidou-a. No fim de nove meses, a mulher deu à luz um menino tão lindo quanto um pedaço de lua. A título de agradecimentos a Alá, o mercador alimentou os pobres, as viúvas e os órfãos durante sete dias, e chamou seu filho Abu-Husn. 

A criança foi alvo de todos os cuidados como uma joia rara. Quando atingiu a idade em que se começa a aprender, deram-lhe instrutores de todas as ciências e artes. Abu-Husn tornou-se assim ao mesmo tempo um adolescente instruído e de mágica beleza. 

Sua graça juvenil, o frescor de suas faces, as flores de seus lábios foram assim celebrados pelo poeta: “Embora a primavera já tenha passado sobre as roseiras, aqui há botões que ainda não abriram.  Neste agradável jardim que não conhece as mudanças, Abu-Husn reinará com dois cetros reunidos: a beleza e a graça.

Abu-Husn iluminou assim os últimos anos de seu velho pai. Quando o pai sentiu aproximar-se o termo inelutável, chamou a si Abu-Husn e disse-lhe: “Meu filho, a minha hora chegou. Lego-te grandes riquezas que devem durar por toda a tua vida e a de teus filhos e netos. Aproveita-as sem excesso, agradece ao Doador e sê moderado e bom para com todos.” E o santo homem morreu. 

Abu-Husn quis seguir os conselhos do pai, mas seus camaradas levaram-no para outros caminhos. Frequentou músicos e dançarinas, seguiu todos os caprichos, gastou imoderadamente - e, um dia, acordou para verificar que só lhe restava de todas as suas riquezas uma única jovem escrava.

Agora, parai, e admirai os caminhos do destino. Decretou ele que essa jovem seria a maravilha suprema das mulheres do Oriente e do Ocidente. Era chamada Simpatia. E nunca um nome foi mais apropriado a seu dono. Era ereta como a letra Alef. Sua boca parecia ter sido selada por Soleiman para nela guardar as pérolas mais preciosas. Seus seios eram como duas romãs separadas por um vale de sombras e luzes acima de um umbigo que parecia o centro de um planeta. Deixava impressa no divã a marca de curvas suaves. 

Disse dela um poeta: “Se ela aparecesse aos pagãos, largariam seus ídolos e a adorariam. E se tomasse banho de mar, ao contato de sua doçura, a água perderia seu sal e viraria doce.

Tendo verificado que estava arruinado, Abu-Husn caiu numa desolação que lhe roubou o apetite e o sono e pos-lhe a vida em perigo. Mas sua escrava Simpatia decidiu tudo fazer para salva-lo. Vestiu-se tão elegantemente quanto pode, usando o que lhe sobrava de joias, e procurou seu amo. 

“Para por à fim a tuas desgraças com minha ajuda,” disse-lhe. “Leva-me ao califa Harun Al-Rachid e oferece-me a ele por 10 mil dinares. Se ele achar o preço alto, pede-lhe que me examine para dar-se conta de que valho mais do que isso.” 

Na sua devassidão, Abu-Husn nunca reparara nas dádivas raras de sua bela escrava. Levou-a ao califa. O califa interessou-se por ela e perguntou-lhe: - Como te chamas? 

- Meu nome é Simpatia. 

– Ó Simpatia, és mesmo instruída e podes citar os ramos de saber nos quais te destacas? 

- Meu amo, estudei a sintaxe, a poesia, o direito, a música, a astronomia, a aritmética, a jurisprudência. Conheço de cor o Livro Sublime. Sei o número de suras, versículos, vocábulos, letras de que se compõe. Conheço as leis e o dogma. Conheço a lógica, a arquitetura, a filosofa. Sei compor poemas. Além disso, sei cantar, dançar e toco o alaúde e a flauta. Quando, vestida e perfumada, caminho balançando os quadris, posso matar. Quando toco em alguém dou-lhe a vida, e quando me afasto dele dou-lhe a morte. 

O califa ficou assombrado e disse a Abu-Husn: “Vou mandar os mestres da ciência porem à prova tua escrava. Se ela vencer, não apenas te darei 10 mil dinares como te cumularei de honrarias. Se ela fracassar, continuará a ser tua.” 

O califa mandou reunir os maiores sábios, poetas, gramáticos, médicos, astrônomos, filósofos, jurisconsultos e teólogos. À ordem do califa, sentaram-se todos em uma roda, enquanto Simpatia pôs-se no meio deles, sorridente e com o rosto coberto com um véu transparente. Dirigindo-se à assembleia, declarou Harun Al-Rachid: “Fiz-vos comparecer aqui, ó sumidades, para que examineis esta adolescente quanto à variedade e profundidade de seus conhecimentos. Não vos acanheis em exibir vossa própria A capacidade e erudição.” 

Todos os presentes inclinaram-se e, pondo as mãos sobre os olhos e as frontes, responderam: “Obediência a Alá e a vós, ó Comandante dos Fiéis.” 

As perguntas mais diversas choveram sobre Simpatia. A todos respondeu com infalível segurança e exatidão. Eis algumas das perguntas e respostas mais notáveis: 

– Quais são as principais obrigações de nossa religião? 

- As obrigações indispensáveis de nossa religião são cinco: a profissão de fé (“Não há Deus senão Alá, e Maomé é o mensageiro de Alá”), as orações, a caridade, o jejum de Ramadã e a peregrinação a Meca. 

- Quais os atos de fé mais meritórios? 

- São seis: recitar as orações, distribuir esmolas, jejuar, visitar Meca, combater os maus instintos e participar da guerra santa. 

- O que é guerra santa? 

- É a guerra sustentada contra os descrentes quando o islã está em perigo. Só pode ser uma guerra defensiva. Armado, o crente deve andar para a frente e nunca recuar. 

– Qual é o fruto ou a utilidade das orações? 

- A verdadeira oração não tem utilidade terrena. Deve ser considerada apenas como um laço espiritual entre a criatura e seu Criador. E suscetível de produzir dez resultados imateriais: ilumina o coração, alegra o compassivo, irrita o demônio, atrai a piedade, expulsa o mal, preserva da aflição, protege contra os inimigos, fortalece o espírito vacilante e aproxima o escravo de seu Mestre e Senhor. 

- Fala-nos do jejum. 

- O jejum consiste em abster-se de comer, beber e ter relações sexuais todos os dias do mês de Ramadã, do levantar ao por-do sol. É bom também evitar toda conversa fútil e ler exclusivamente o Alcorão. 

- Qual é o valor do quinhão do pobre que todo crente deve pagar? 

- Se o crente possui até vinte dirhams de ouro, nada deve. Acima dessa importância, a proporção devida é de três por cento. Assim, um carneiro é pago a cada cinco camelos, um camelo a cada vinte e cinco camelos, e assim por diante. 

– Podes dizer-nos o que é uma coisa, a metade de uma coisa e menos que uma coisa. 

-O crente é uma coisa; o hipócrita é a metade de uma coisa e o descrente é menos que uma coisa. 

- Podes contar-nos em que versículo o Profeta julga os descrentes? 

- No versículo que proclama: “Os judeus dizem que os cristãos estão no erro; e os cristãos dizem que os judeus estão no erro. Neste ponto, ambos estão certos.” 

- Qual é a causa de todas as doenças? 

- Nossos erros e excessos alimentares: comer antes que a refeição anterior tenha sido digerida; comer sem ter fome. A gula é causa da maioria das doenças que afligem a humanidade. 

- Podes dizer-nos que coisa vive sempre na prisão e morre quando respira o ar? 

- É o peixe. 

- Explica o seguinte: “arrasto longas caudas atrás de mim. tenho um olho, mas não me é dado ver; faço vestidos que não me é dado usar.” 

- É a agulha. 

Um astrônomo perguntou-lhe: “Achas que choverá este mês?” 

Respondeu, dirigindo-se a Harun Al-Rachid: “Ó Príncipe dos Crentes, peço-vos emprestar-me vossa espada por um momento para que corte a cabeça deste agnóstico sem fé.” 

Ouvindo essas palavras, o califa e todos os sábios deram gargalhadas. E Simpatia prosseguiu:

“Deverei ensinar-te, ó astrônomo, que há cinco coisas que somente Alá conhece: a hora da morte, o sexo do feto no útero materno, quando choverá, o que acontecerá amanhã e onde morreremos.” 

Naquela altura, o sábio Ibrahim Ibn Sirah levantou a mão direita e testemunhou publicamente que a escrava Simpatia o ultrapassava em conhecimentos e sabedoria e era a maravilha dos tempos. O califa levantou-se por sua vez e disse: “Possa Alá aumentar ainda mais tuas qualidades, ó Simpatia, e abençoar os que te trouxeram para este mundo e os que te ensinaram.” 

E mandou entregar a Abu-Husn 10 mil dinares de ouro, colocados em cem sacos. Depois virou-se novamente para Simpatia e perguntou-lhe: “Dize-me, ó adolescente maravilhosa , preferes entrar no meu harém e ter um palácio e uma comitiva próprias, ou voltar para a casa deste moço?” 

Simpatia beijou a terra entre as mãos do califa e respondeu: “Possa Alá continuar a abençoar o soberano do mundo. Vossa escrava prefere voltar para a casa de quem a trouxe para cá.” 

Em vez de sentir-se ofendido, o califa presenteou Simpatia com 5 mil dinares de ouro, dizendo-lhe: “Possas ser tão destra no amor quanto o és na dialética.” 

E  todos saíram felizes, abençoando o saber de Simpatia e a generosidade de Harun Al-Rachid.

Fonte:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX.
Disponível em Domínio Público.