domingo, 7 de janeiro de 2024

Coelho Neto (O Fauno)

Nascido na Veiga, entre outeiros de relva aveludada e claros, sonoros fios d'agua, criado no meio de ovelhas brancas, em companhia de pastores e zagalas
(pastoras), adorando o sol de ouro puro e as estrelas rutilas de prata, fazendo canções à lua, contando queixas de amor às fontes vivas, era feliz o pastorzinho.

Só pensava em Aleina e no seu rebanho, dando-se por venturoso se a pastora lhe sorria, correndo ao templo rústico com ofertas aos deuses se ouvia balar um novo anho.

À noitinha, em tempo de luar, deixava as folhas cheirosas do seu leito pastrano (rústico) e, à porta da cabaninha, contemplando o céu, ouvia o rouxinol. 

Que lindos os seus pensamentos!

Um dia, alongando-se no caminho, penetrou a floresta, guiado pelas borboletas, e, no recesso sombrio em que se apinhavam as árvores mais velhas, ficou ouvindo o sereno murmúrio das águas apenas nascidas.

Gozava aquele tartareio das fontes, berços das ribeiras, quando descobriu um fauno que ia e vinha de arvore a árvore, tocando ligeiramente as flores desabrochadas.

Empalideceu receoso, quis esconder-se às vistas do deus silvestre, mas a figura do fauno — cornífero, capripede, veludo — fê-lo rir e, como o morador e protetor da selva não se perturbasse com a sua presença, o pastorzinho adiantou-se.

— Que fazes, fauno? perguntou.

Voltou-se o deus e, fitando no pastor os grandes olhos profundos, respondeu:

— Caso as flores, pastor. Sou eu quem leva recados de uma a outra corola. É verdade que a brisa e as abelhas auxiliam-me, mas sou eu quem lhes diz onde há flores púberes, flores que podem celebrar noivado. Sou eu que, à noite, pelo clarão nupcial da lua, visito os ramos sentindo o perfume! É pelo perfume que chego a conhecer a puberdade dessas donzelas cativas que nem por viverem presas às hastes em que nasceram deixam de se entender com os seus namorados, não fossem elas femininas!

O pastorzinho desatou a rir e o fauno, encostando-se a um velho e rugoso tronco, suspirou:

— Eis! Se conhecesses, como eu, os segredos da natureza, não ririas, por certo. Dizes cá, pastorzinho: queres ser sábio como um deus?

— Sim, quero. A que preço? Dou-te a ovelha mais gorda do meu rebanho e uma taleiga (saco pequeno e largo) nova que ainda não serviu.

— Guarda a tua ovelha e a taleiga. Dar-te-ei toda a ciência dos deuses se me quiseres ceder as tuas ilusões. Troquemos as nossas almas: levarás, com a minha, a eternidade e a sabedoria. Eviterno e onisciente, que fortuna! pastor! Eu ficarei com as ilusões da tua e sujeito à vida efêmera que as almas humanas vivem no corpo em que transitam. Conhecerás todos os segredos da terra, todos os mistérios do céu; verás tão claro no futuro como no presente e a tua mocidade será perpetua como a cor azul do eliseu e a cor verde do mar. Queres?

— Sim, quero, disse o pastor contente.

— Vem comigo. Habito uma caverna a dois passos daqui e no tempo que baste a uma abelha para sugar o mel de um nectário farei a troca das almas. Levarás a riqueza e eu ficarei com as ilusões que valem menos que o fumo que sobe da lenha verde. 

Pôs-se a rir, de contente, o pastorzinho e, rindo, acompanhou o fauno à caverna.

Era uma furna sombria, merencória e humilde: parecia que ali se agasalhava o inverno. Contínua, com triste som, uma gota d'água pingava e os passos, ainda os mais leves, retumbavam no côncavo rochoso com um soturno ressoo longo e amedrontador. E disse o fauno:

— Senta-te, vou fazer lume.

E, puxando folhas secas, fez fogo e, em volta da chama, sentaram-se os dois.

Pôs-se o fauno a murmurar palavras encantadas e os olhos do pastorzinho logo se fecharam, pendendo-lhe a cabeça loura e, dormindo, quedou no leito de ramos.

Então o deus silvestre, colando a sua boca à do pastor, sorveu-lhe a alma cheia de ilusões e transmitiu-lhe, com a eternidade, o seu espírito onisciente.

Logo despertou o pastorzinho e, olhando, um momento, em torno, ergueu-se e, tristonhamente, partiu. Ficou o fauno a fitar o lume alegre, pôs-se a cantar contente e, levantando-se num pincho (salto), entrou a bailar em redor da fogueira.

E assim cantava o que fora imortal:

“Estrelas são gotas de luar. Ó cântaro da lua, cheio de leite, que desastrada zagala andou contigo aos boléos (boleando) para que assim derramasses tanto leite na eira?

Bem hajas, zagala — não fosses tu e não haveria estrelas. A luz do sol é sangue, a luz da lua é leite”. 

E cantava ainda:

“Quão lindo é o olhar da virgem! Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar. Pode o mergulhador descer à pesca da perola, nos penetrais mais íntimos das águas... quem é capaz de descobrir o segredo dos olhos verdes, abismos de sedução onde cantam sereias?

Um beijo é um germe, é o pólen que vai de lábio a lábio. O amor... que importa a morte?!”.

Assim cantava o fauno e ria perseguindo, a correr, as borboletas e toda a brenha parecia rir com o alegre fauno. Mas, de vez em vez, gritos rolantes atroavam.

— Fauno do bosque, dá-me as minhas ilusões, toma a tua alma com a eternidade, a onisciência e todo o seu poder divino. Restitui-me as ilusões que me roubaste. Conhecer toda a verdade é viver no vazio, é ver o fim de todo o Bem, o fim de todo o Amor; é jazer, vivo, num sepulcro porque o nada é a expressão da vida. E as minhas ilusões eram o azul desse vazio, o horizonte feliz desse infinito lúgubre. Dá-me as ilusões, toma a tua alma.

E o fauno, ouvindo o pastor, abalsava-se (embrenhava-se), fugindo, a cantar, pelo bosque verde:

“Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar”.

E o pastorzinho? Pobre pastor deserdado! E vós, que andais pelos bosques, não vos fieis em faunos.

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Itararé/SP)


Letra: Dorothy Jansson Moretti
Música: Maestro Gerson Gorski Damaceno

Itararé das campinas
e mil recantos amados 
das verdejantes colinas  
e dos vales ondulados...

Das araucárias e pinus,
envolvidos na fragrância, 
os ventos te cantam hinos, 
ó terra de nossa infância!

Do Rio Verde e Caiçara, 
da Gruta das Andorinhas, 
quem dera eu te alcançara 
nessa trilha que caminhas!

Das araucárias e pinus 
envolvidos na fragrância, 
os ventos te cantam hinos 
ó terra de nossa infância!

De tua gente expansiva  
brilhantes realizações 
 te fazem sempre mais viva 
 junto aos nossos corações!

Das araucárias e pinus 
envolvidos na fragrância,
os ventos te cantam hinos, 
ó terra de nossa infância!

Artur de Azevedo (Contos em versos) As Vizinhas

I
O Felizardo tinha,
Havia um mês apenas,
Uma formosa e lânguida vizinha,
Flor da flor das morenas,
Por quem se apaixonara
Desde o momento em que lhe viu a cara.
À janela sozinha,
Nunca a pilhou, mas sempre acompanhada
Por uma quarentona
Rechonchuda e anafada (adiposa).

Quem seria a matrona
Ele ignorava, mas, na vizinhança,
Tendo indagado, soube, sem tardança,
Que das duas vizinhas
Uma era a filha e outra a mulher do Prado,
Velhote apatacado,
Que a vender galos, a vender galinhas,
E outros bichos domésticos, vivia
Durante todo o dia
Na praça do Mercado.

Felizardo ficou muito contente
Ao saber que a matrona
Da morena era mãe, porque a tal dona
Indubitavelmente
Mostrava ter por ele simpatia;
Quando a cumprimentava, ela sorria
Com um sorriso de sogra em perspectiva.

A morena adorada
Era mais reservada,
Menos demonstrativa;
Sorria-lhe igualmente,
Mas disfarçadamente
E de um modo indeciso,
Como se fora um crime o seu sorriso.

II
Um dia Felizardo, que era esperto,
Tendo a jeito apanhado um molecote
Da casa das vizinhas, deu-lhe um bote
E o efeito foi certo,
Porque não há moleque
Que por uns cinco ou dez mil réis não peque.
— Como se chama a filha do teu amo?
— Mercedes. — E a senhora? — Julieta.
— Pois ouve cá: dona Mercedes amo.
Toma esta nota. Dobro-te a gorjeta
Se acaso te encarregas
De lhe entregar uma cartinha... Entregas?
— Entrego, sim senhor. — Quando trouxeres
A resposta, terás quanto quiseres!

A secreta cartinha
Uma declaração de amor continha,
E terminava assim: «Se me autoriza
A pedi-la a seu pai em casamento,
Três letras bastam... nada mais precisa...
Sim ou não... minha vida ou meu tormento.»
Veio em breve a resposta
Pela tal mala-posta,
E exultou Felizardo,
Lendo, escrito em bastardo,
O grato monossílabo ditoso
Com que sonhava um coração ansioso.

No mesmo dia foi o namorado
Ter com o pai da morena
À praça do Mercado.
Não preparou a cena:
Refletiu que modesto
Devia o velho ser, por conseguinte,
Dispensava etiquetas. Deu no vinte,
Como o leitor verá, se ler o resto.

III
Em mangas de camisa estava o Prado.
Na barraca sentado,
Entre galos, galinhas, galinholas
Das raças mais comuns e das mais caras, —
Frangos, patos, perus, coelhos, araras,
Passarinhos saltando nas gaiolas,
Saguis mimosos, trêmulos, surpresos,
Acorrentados cães, macacos presos,
E no ambiente um cheiro
De entontecer o próprio galinheiro,
Quando foi procurado
Por Felizardo. — Felizardo Pinho
É o meu nome; conhece-me, seu Prado?
— De vista, sim, senhor, que é meu vizinho.
— Eu amo ardentemente sua filha,
E não sou para aí um farroupilha.
Não quero agora expor-lhe as minhas prendas;
Apenas digo-lhe isto:
Vivo das próprias rendas,
Tenho boa família e sou bem visto.
Venho, por sua filha autorizado,
Dizer-lhe que domingo irei pedi-la.
Até lá pode ser bem informado,
Afim de que me aceite ou me repila.
O pai, que estava atônito e pasmado,
Interrogou: — É sério? É decidido?
O senhor gosta da Mercedes? — Gosto,
E tudo, tudo arrosto,
Para ser seu marido!
— Bom; domingo lá estou, e é crença minha
Que ficaremos do melhor acordo;
Mas vá jantar, que sábado, à tardinha,
Mando pra casa o meu perú mais gordo.

No domingo aprazado
O Felizardo, todo encasacado,
Inveja das catitas mais catitas,
Foi recebido pelo velho Prado
Na sala de visitas.
— Vou chamar a Mercedes, disse o velho,
Enquanto o namorado, num relance
Mirando-se no espelho,
Achava-se um bom tipo de romance.

Voltou à sala o Prado,
Trazendo pela mão... a quarentona.
— Aqui tem minha filha! Embatucado,
Felizardo caiu numa poltrona.

O mísero protesta:
— Perdão, mas não é esta!
— Eu não tenho outra filha! sobranceiro
Exclama o galinheiro.
Felizardo, fazendo uma careta,
— Mas a outra?... — pergunta. — A Julieta?
Essa é minha mulher! — Minha madrasta,
Acrescenta Mercedes. — Basta! basta
Perdão, minha senhora!
Murmurou Felizardo, e foi se embora,
Correndo pelas ruas.
Não houve nunca mais noticias suas

Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman

sábado, 6 de janeiro de 2024

Versejando 130

 

Mensagem na Garrafa – 73 –

Natali Cristiane dos Santos Silva
Sorocaba/SP

TROCADOS

Esqueça de me perguntar se ainda há amor em mim!

Não é justo depois de tanto tempo você forçar os meus olhos a te verem aqui! Sentado na chuva esperando meu SIM!

Não, Não, repito Não, o meu amor já chegou ao limite e você nem notou, aliás, nada nunca notou.

Quantas vezes você se perguntou como eu estava nestes últimos 3 anos?

Como eu estaria depois daquele maldito dia?

Como estariam minhas feridas que por anos lambi na escuridão do meu quarto, rindo da minha ignorância, afinal eu me enganei e deixei que você me enganasse.

Não tenho mágoas, nem isto você merece!

Ainda não tenho rumo, mas NUNCA, NUNCA mais permitirei que os meus pés confusos, mas hoje sóbrios, caminhem em ruas onde eu possa encontrar os teus dedos finos e longos, mas encardidos de desamor.

Vá, tome seu rumo, nunca houve um abrigo para mim no teu peito, e hoje eu me recuso a te dar o meu.

Tenho hoje um farol, não igual ao teu, por que este sim me ilumina.

Não, Não, nunca te troquei, não me chame de infiel.

Apenas não houve amor, houve dependência, como uma droga que só vicia, mas no meu caso foi imoral e com o tempo descobri que foi fatal.

Fatal para as mais puras raízes da minha alma, da minha história, mas como diz aquela música, "Valeu, valeu, valeu demais".

Me levantei em meio ao pó sob os aplausos da minha dor.

Foi a minha vez de caminhar e não olhar pra trás.

Jurei, jurei para mim e para o meu espírito que nunca mais OLHARIA PRA TRÁS.

E não seria nesta madrugada tão triste em que vejo seu corpo magro e maltratado pelo tempo que falharia com a minha promessa, nem comigo.

Aceite estes trocados, aceite minhas migalhas, isto eu posso te dar, afinal foi isto que recebi de ti, e embarque no próximo trem.

Isto não é um conselho por que nem eu mesma aceito isto de ninguém, mas volte para sua terra, talvez exista alguém ainda lá ansiando a tua volta.

Eu repito, não estava lhe esperando.

Vá, junte seus trapos e embarque, a minha vida continua e tenho a impressão que cheguei atrasada para a festa.

Um dia lhe mandarei flores, não como um sinal de homenagem, mas de luto, como sinal da minha morte, na tua vida.

"O amor é claro, mas também sombrio, a escolha é sua"

Aparecido Raimundo de Souza (Habilidades de camuflagem)


LOLITA DA CUCA FRESCA entra na loja exatamente no intervalo do seu almoço. Tinha uma hora para engolir a marmita e voltar às pressas para o serviço. Trabalhava na faxina de uma empresa de telefonia e o serviço não poderia, de forma alguma, lerdear. Por seu turno, não se arrimavam, em seus planos, perder tempo. A duração dele, em seu relógio, se fazia preciosa e austera.  Com esse pensamento deixou o almoço para depois e saiu em busca do que demandava levar à termo. Naquele dia, impreterivelmente apertado, e em face da rapidez estonteante com a qual os ponteiros fustigavam os segundos (deixando os à beira de um ataque inesperado), a qualquer momento a coisa toda poderia se degringolar, e, o pior de tudo, se fazer fatal. 

A hora de mandar a “boia” para o vazio da barriga se consubstanciava no único espaço que lhe permitia dar um giro em busca do pretendido. Como trabalhava próximo à várias lojas de comércio, concluiu, se fosse à passos ligeiros, voltaria em tempo, não de engolir o almoço. Simplesmente para comprar o que carecia dar de recordação para uma pessoinha muito especial em sua vida. Com essa fixação borbulhando o seu afogadilho, submergiu as batidas do coração em várias lojas. Todas, por azar, superlotadas. Na que lhe pareceu ser a mais cômoda e com poucos personagens em ebulição, se dirigiu à área masculina a varejar uma prenda que encantasse a quem homenagearia. 

Escolheu uma camisa elegante e dentro do orçamento que saldaria sem atropelos. O “mimo” se destinava a seu pai, que completaria noventa e cinco anos. O longevo, apesar da idade, se fazia esperto. Todos finais de semana passava a mão na sua esposa e a levava para um clube próximo de onde moravam. Ali bebiam refrigerantes, comiam algumas besteiras, dançavam até não aguentarem mais, e, em seguida, retornavam para o aconchego do lar. Dona Palmira, sua mãe, como nos anos anteriores, anunciou que faria uma festinha surpresa para seu companheiro de quase setenta anos. 

Lolita da Cuca Fresca jamais chegaria de mãos abanando, tendo em conta que apesar de pobre e humilde, seu pai sempre se fizera benemerente e magnânimo. Construíra casas espaçosas nos fundos do quintal imenso, onde, aliás, mais dois irmãos com suas respetivas famílias, dividiam o espaço, cada um no seu próprio quadrado, obviamente, agrupados ao lado dos autores de suas existências. Presente comprado, Lolita da Cuca Fresca se encalçou em busca de uma caixa que fosse rápida. Havia um público proceloso entrelaçado em filas quilométricas. Foi aí que deu de sorte com uma pequena. Nela, três pessoas. Olhou para o relógio de pulso. Daria tempo, se a coisa fluísse ligeira. 

Correu e embicou na traseira de um rapazola vestido com uma camisa do Flamengo. Na frente dele, uma moça toda de preto. À boca do guichê, um distinto de costas lembrava Jason Statham (ator e lutador de artes marciais). A funcionária, naquele momento, se fazia estressada com um monte de papéis nas mãos (possivelmente carnês). Apesar disso, manejava tudo com destreza. Contudo, um fato estranho ocorria sem explicação. O sujeito que encabeçava a “bola da vez,” ou seja, o assemelhado ao “infiltrado Jason,” não saia do lugar. Igualmente a moça toda de preto e o sujeito com a camisa do seu time predileto. Lolita da Cuca Fresca resmungou com seus botões: “Essa lesma do recebimento, deveria ser rápida, parece uma tartaruga empacada.” 

Cinco minutos quase, e nada de deslanche. “Meu Deus! Preciso voltar.” Ao seu cangote, uma senhora com uma menina de uns treze anos, ambas grudadas em seus respectivos celulares, espreitavam pela chegada da vez. E o tempo se esvaia. Nas outras caixas, modo igual, se aglomeravam mais pagantes. A demanda, entretanto, fluía. Golfava sem delongas. Lolita da Cuca Fresca, ao contrário, se remexia presa a um incômodo cada vez mais enervante. Dez minutos e nada. A sua carreira de seres viventes, parecia morta. Mais dez minutos e teria que abandonar o presente e correr para o trabalho. A senhora, atrás dela, indignada, deu sinais de vida. Grunhiu: “Final de ano, natal e virada de 2024 às portas, gente saindo pelo ladrão, um monte de caixas, e as esperas não evoluem.” 

Lolita da Cuca Fresca sorriu para a criatura e informou: “Estou em horário de serviço e tudo indica, não serei recepcionada. Esperarei mais cinco minutos... se a droga continuar desse jeito, engasgada, vou me embora sem o que vim fazer aqui.” Os cinco minutos voaram e nada. Nesse instante, um segurança se aproximou. Risadinha marota no rosto cheio de espinhas. Antes que falasse alguma coisa, Lolita da Cuca Fresca tomou a dianteira e reclamou:
— Moço, estou em horário de almoço. Vim comprar um presente para meu pai. Entrei nessa espelunca e a droga da molengona do caixa parece não ter pressa... 

Ajuntando as palavras, se desfigurou numa feição de poucos amigos e continuou:
— Vou ter que ir embora sem levar o que adquiri para dar a meu velho. Essa senhora aqui, como pode perceber, se faz deveras aperreada... 
O segurança se abriu numa fala que lembrava o som de uma taquara rachada:
— Senhorita, pelo que presumo, acredito não tenha prestado a devida atenção.
Lolita da Cuca Fresca, o rosto ainda mais enfurecido, se abrasou:
— No que não “prestei a devida atenção,” cavalheiro?

— No rapaz a sua frente.
— Reparei sim. O que tem ele?
Refez a indagação à senhora com a adolescente no celular. A mulher olhou longamente para o rapaz e concluiu:
— Um espécime normal... meio paradão, mas hoje em dia...
O segurança, em resposta, e rindo de ambas as compradoras, mandou bala:
— Senhoras, o rapaz vestido com a camisa do Flamengo... e os demais...

A senhora desviou os olhos do celular e se adiantou:
— Fala logo, moço. O que está acontecendo com o flamenguista?  Acaso se prostrou arrependido? Quer mudar de time? 
Lolita da Cuca Fresca engrossou o papo. Observou, braba:
— A engraçadinha do caixa, Deus que me perdoe, parece não ter mais ninguém para atender...
O segurança, sem deixar de manter a fuça debochada:
— Essas “pessoas,” não são “pessoas,” sé é que me entendem, caríssimas senhoras...

As duas cercam o segurança e indagam a uma só voz: 
— O que o senhor quer nos dizer com essa conversa de que os que estão a nossa frente “não são pessoas”?
O Segurança insiste fazendo charme numa repetição odiosa:  
— Essas “pessoas” como mencionei, não são “pessoas,” Olhem com atenção... 
O fardado se afasta alguns passos e, aos gargalhos estridentes, como se fosse um retardado, obstina:
— Por favor, olhem com atenção. Só peço isso: botem reparo com atenção...
— Diabos, moço. Estamos fazendo isso... fala, por Deus. O que esses três aqui na nossa aba são?
O subalterno desfere a pancada final. Se retira, precipitado, chacoteando esgoelado: 
— Manequins.     

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Caldeirão Poético LXXV


Luiz Pistarini
Resende/RJ, 1877 – 1918

À MINHA MÃE

Morta sublime! Ó minha Santa Morta!
Há quanto tempo já que te pranteio!
Que o teu carinho me não mais conforta,
nem mais me abrigas no teu casto seio!

Ah! lembro-me ainda bem! segundo creio,
pequenino, eu brincava ao pé da porta;
e, ao ver-te no caixão de flores cheio,
mãe! nem sonhava que estivesses morta!

Mas um dia passou... um mês... um ano...
e dois... e três... e mais... e, ó desengano!
nunca mais me beijou teu lábio amigo!

Não te vi nunca mais! E, na orfandade,
clamo, agora, nas trevas, com saudade:
— Mãe! por que foi que não morri contigo?...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Mariná Valentim de Moraes Sarmento
Santa Maria Madalena/RJ, 1908 – 2003

IMPOSSÍVEL

Passaste como passa uma aventura,
ficaste como fica uma saudade;
irás como quem busca a eternidade,
guardei-te como sonho de ternura!

E que dizer do quanto de doçura
deixaste em mim com tal sinceridade?!
E que dizer de ti, se é só verdade
o quanto que me deste de candura?

Não te perdi, porque tu não viveste
o mundo de ilusão, que em mim prendeste,
e perderia se jamais guardasse

o que jamais de ti esqueceria;
e assim passando, nunca chega o dia,
que te esquecendo, teu amor voltasse!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Nabor Fernandes
Valença/RJ, 1910 – ?

RECORDAÇÃO DA INFÂNCIA

Saí pela manhã... O sol se erguia
no píncaro do monte descalvado:
a brisa matutina sacudia
levemente o capim do verde prado.

Parei junto a uma casa: parecia
do tempo de menino descuidado,
ouvindo a juriti que desferia
seu canto doloroso e compassado.

Não posso definir o sentimento
que da alma se apossou, nesse momento!
Vi minha mãe, lembrei de seus carinhos,

vi meus irmãos, a casa, a relva, o monte,
o mesmo sol se erguendo no horizonte,
cantando no arvoredo os passarinhos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Othon Costa
Rio de Janeiro/RJ, 1905 – ?

SE O RETRATO FALASSE...

Talvez, já não te lembres, mas um dia
eu te encontrei beijando ardentemente
aquele meu retrato, confidente
dos teus raros momentos de alegria.

Comovido, vaidoso, compreendia,
nesse episódio simples e inocente,
que por certo eu vivia assim presente
no retratinho meu que te seguia.

Então, aproximei-me e, em galanteio,
disse, enquanto o retrato no teu seio
escondias, sorrindo jovial:

— Se esse retrato, meu amor, falasse,
ainda há pouco talvez te aconselhasse
a beijar neste instante o original...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Pedro de Alcântara Worms
Rio de Janeiro/RJ,   ? – ? 

ALMOÇO DE NOIVADO...

"Bom partido", daí dona Consuelo
dar banquete ao noivado de Tereza,
usando essa conversa já modelo:
— ... “a noivinha é quem fez a sobremesa...”

E que celebração!... Quanto desvelo!...
Foi tudo do melhor e com largueza,
não houve um só senão... um atropelo,
até aquele instante — que beleza!...

A hora do brinde, o noivo, empanturrado,
elogia, gentil, o lauto almoço:
— ... "mas eu nunca comi com tal agrado,

mesa assim nunca vi!...” E, num endosso,
diz o filho caçula ao convidado:
— ... "nós também nunca viu, assim, seu moço!...”

Fonte> Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Benedita Azevedo (A Seresta)

Sentada à mesa, na seresta, ao lado de meu marido, observo as pessoas. Alguns casais, mas, a maioria é de mulheres sozinhas, alguns homens e duas garçonetes.  O conjunto formado pela bateria, dois violões e um trompete, faz jus ao nome “Manda Vê”. Tanto os músicos quanto os participantes são pessoas com idade superior a cinquenta anos.

Uma senhora comanda o show. Cada convidado pode cantar até duas músicas. Uns tocam, outros cantam e alguns dançam. Percebe-se que todos estão ali em busca de compartilhar seus dotes e dar importância às suas vidas. Parece que todos se conhecem.

O salão amplo, com mesas nas laterais, deixa toda a extensão central para os dançarinos. Ao lado esquerdo de quem entra, há o bar de onde servem bebidas e algumas iguarias,  para tira-gosto, dando ao proprietário o lucro necessário, já que não são cobradas,  entrada nem consumação.

Os seresteiros cantam suas músicas como se vivessem à época que foram lançadas, nos anos 50, 60 ou mais antigas. Poucos arriscam um repertório mais atualizado. Quando alguém canta um samba, a pista de dança enche. Alguns casais, e as mulheres na falta de um parceiro, dançam sozinhas ou com outras, extravasando sua solidão. Mas, parecem felizes.

A dirigente com sua lista chama os cantores, elogiando os dotes de cada um. Alguns cavalheiros vão alternando de par e dançam com várias senhoras. Assim o baile que começou às 22 horas vai se estendendo...

Logo após a meia noite, entra um grupo com um grande bolo, cantando parabéns. Colocam sobre uma mesa onde está uma das cantoras. Todos se aproximam e engrossam o coro. A senhora apaga as 78 velinhas e é abraçada por todos. A nora explica, que, a aniversariante fizera questão, de festejar seu aniversário, ao lado de seus amigos de seresta. O bolo foi distribuído para todos os presentes.

Antes do final, as pessoas começaram a se despedir. Então fiquei imaginando aquelas senhoras chegando sozinhas a casa, de madrugada,  sem ninguém para contar o que aconteceu, durante a festa ou depois dela. Dormem e acordam sozinhas. Quantas terão Filhos, netos, sobrinhos, afilhados para lhes dar atenção e carinho?

Hinos de Cidades Brasileiras (Curitiba/PR)

Letra: Ciro Silva

I

Cidade linda e amorosa 
da terra de Guairacá.
Jardim luz, cheio de rosa 
Capital do Paraná.

Pela ridente paisagem
Pela riqueza que encerra,
Curitiba tem a imagem
Dum paraíso na terra.

II

Viver nela é um privilégio
Que goza quem n’ela está.
Jardim luz, cheio de rosa.
Capital do Paraná.

Pérola deste planalto
Toda faceira e bonita.
Na riqueza e na opulência
Vive, resplande, palpita

III

Subindo pela colina
Altiva sempre será.
Jardim luz cheio de rosa
Coração do Paraná.

Salve! cidade querida
Glória de heróis fundadores.
Curitiba, linda joia
Feita de luz e de flores.

O nosso português de cada dia ("Falamos desde Paris")

As transmissões esportivas continuam fornecendo material para discutir a língua. Sei muito bem o que é fazer rádio e TV ao vivo. Não é nada fácil. Muitas das bobagens que ouvimos são 
resultado da pressão natural imposta pela circunstância, e não fruto de ignorância ou despreparo,

Por falar em "ao vivo", você já notou que no canto da "telinha" sempre aparece a palavra "vivo"? As desculpas são várias. A mais comum é o velho problema do espaço ("ao vivo" não cabe no canto da tela). Mas nada me tira da cabeça que isso é resultado do advento das antenas parabólicas e da TV a cabo.

Com a chegada da CNN - americana em cuja imagem, se vê a palavra live, as emissoras brasileiras acharam que, se a expressão inglesa tem apenas uma palavra, a portuguesa pode muito bem ter também uma palavra só. É bom ser justo e dizer que a TV Cultura, que também usava o bendito "vivo" — fato vergonhoso para uma emissora educativa —, corrigiu o problema, a partir de sugestão que fiz à então diretora de programação, Beth Carmona, que imediatamente ordenou o emprego da forma correta.

Assim como se diz que se faz algo "aos poucos", "aos trancos e barrancos", "às pressas", "às vezes", só se pode dizer que se transmite algo "ao vivo". Em português, as expressões adverbiais costumam ser introduzidas por preposição {ao = a + o; à = a + a).

Mas a pérola de hoje é um caso de espanholismo. Trata-se do bendito "desde". É comum locutores esportivos abrirem a transmissão com algo como "Falamos desde Paris", "Transmitimos desde o autódromo de Monza". Para falar desde Paris, o locutor, que, quando diz isso, não está em Paris, precisa ter superpulmões para começar a falar em Paris e, depois de sabe Deus quantos quilômetros, continuar matraqueando,

Em espanhol, desde pode indicar procedência, origem. Em português, não. A preposição cabível é "de": "Falamos de Paris", "Transmitimos do autódromo de Monza". Alguém pode dizer que a frase "Falamos de Paris" é ambígua. Paris pode ser o lugar em que se está ou o assunto. O contexto certamente desfaria a ambiguidade.

Uma fábrica de telefones celulares está fazendo uma propaganda, cujo texto diz: "O mundo inteiro só fala nele". Talvez tenha havido a intenção de criar a ambiguidade, Como se pode falar de algo ou em algo, um dos sentidos da frase é que o telefone é o único assunto das pessoas. Mas o outro sentido pretendido esbarra num problema de regência: as gramáticas dizem que se fala ao telefone, e não no telefone. Para a gramática normativa, a frase tem apenas um sentido. É isso.

Fonte> Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “08”

 

Mensagem na Garrafa – 72 –

Manuel Bandeira
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

A DAMA BRANCA

A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?
Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! de tísicos?
Por história… quem sabe lá?…
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga*.

Ela era o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má,

– A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio
A Dama Branca levou meu pai.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Vulgívaga = que se vulgariza, se prostitui.

Newton Sampaio (Zico)

(contos do sertão paranaense)

Ao sentir entre os dentes o freio puxado por vigorosos punhos, o cavalo estacou súbito diante da porteira, espumando nas ventas escancaradas pelo cansaço da corrida. Em seguida, prestamente pulou dos arreios um guapo rapaz de chapéu largo a proteger do sol o rosto esbraseado, onde dois olhinhos vivos se moviam de contínuo. Trazia nas mãos, além do chicote de couro, um minúsculo embrulho de papéis. De estatura avantajada, músculos rígidos e coradas faces, via-se bem que era uma potência de energia para qualquer trabalho. O traje era simples: botas de montar, que acusavam não muito má situação, esporas com largas rosetas, camisa de brim amarelo, própria para dispensar o paletó, aberta no peito, e sobretudo, aquele chapéu largo, complemento indispensável, e que lhe dava a nota mais característica de elegância sertaneja.

Apenas apeara, e já um luzidio cachorrinho, abanando a cauda, lhe vinha roçar as pernas, a dar ladridos de alegria. O moço, complacente, abaixou-se para lhe acariciar o dorso e disse:

— Saudades de mim, meu caro. Pudera! Desta vez eu não o deixei ir na minha companhia, hein?

E logo amarrou mal e mal o cabresto no palanque, atravessando com passo firme o terreiro, que preguiçosa mulatinha dificultosamente varria. Antes de poder alcançar a casa, veio-lhe ao encontro uma graciosa moçoila, que de longe já gritava:

— Então, Zico? Alguma carta para mim, hoje?

— Certamente, dona. Até duas, creio eu.

E, dizendo isto, entregou-lhe o pacote que tinha nas mãos.

— Muito obrigada, Zico. Você é um anjo. Hum! Que carta perfumada! Será que... 

Não pôde terminar. Viva curiosidade, mesclada de intenso júbilo, fê-la voltar correndo e logo desaparecer no interior de um quarto. Cumprida a obrigação, Zico deteve-se quedo e, para se distrair, começou a tilintar devagarinho com o chicote o lombo do cachorro, que, rosnando, continuava a lhe fazer festas.

Pouco depois, empertigado o corpo, dirigiu-se ao paiol, cantarolando uma trova sertaneja. Ao voltar, trazia nas mãos calejadas algumas espigas de milho e, sentado finalmente no único degrau da escada, dispôs-se a debulhá-las, atraindo para si uma multidão de galinhas em interessantes conluios. Enquanto isso, o sol que, na sua frente, ameaçava enterrar-se dentro em pouco na grota longínqua, induzia-o a meditar em silêncio.

Recordava quando, muitos anos antes, da direção do nascente, num domingo bonito como aquele, e também à tardinha, ele, simples garoto com um pequeno saco de roupas a tiracolo, viera bater à porta da fazenda pedindo serviço. E depois, pelo passar do tempo, e mercê de sua atividade e de zelo no trabalho, fora pouco a pouco captando a confiança e a amizade de seus protetores, até que, já homem feito, e homem correto e valoroso, era uma espécie de ajudante de ordens do patrão, que nele depositava os encargos de maior responsabilidade, considerando-o mais como pessoa de casa que empregado.

Por tudo isso, Zico julgava-se muito feliz, e nada tinha para queixar-se da sorte. Mas, coisa inexplicável, enquanto os revérberos solares gradativamente se iam enfraquecendo, o guapo rapaz, que tinha as mãos dadas e alegres com o destino, começou a sentir um esquisito mal-estar interior. O coração parecia pulsar de outro modo naquela tarde. Lá por dentro uma coisa diferente estava a remover-se daqui e dali. E ele, que nunca ficara assim entregue, mesmo depois dos mais árduos trabalhos, num fim de domingo haveria de sentir-se cansado?

— Oh! Não. — monologou, sorrindo. — Não pode ser, ‘seu’ Zico. Força a essa carcaça.

E sem mais demora foi buscar o “pinho”, companheiro de sempre, amigo de confiança e confidente fiel, uma das coisas de que mais gostava. O violão, o douradilho, o cachorrinho negriço, a amizade dos patrões, e, principalmente, a independência e retidão no proceder, constituíam o melhor de sua vida. Com isso tudo, o mundo podia vir abaixo que o não incomodaria. Trazia um mundo consigo. 

De novo abancado no degrau da escada, começou o Zico a ferir as cordas do instrumento, e à meia voz ia entoando umas improvisadas quadrinhas, com o sentimentalismo tão profundamente característico do sertanejo brasileiro. Não sei por que, mas naquele dia elas saíam tão espontâneas e com tal tom de tristeza...

O dia desaparecera, e a luz viera clarear o corpo de Zico (que na calada da noite continuava a improvisar versinhos), projetando oblonga sombra, muito oblonga mesmo, no terreiro varrido, onde as galinhas não mais bicavam milho em interessantes conluios.

— Que é isso, Zico? Até que horas quer você ficar aí? A titia há pouco esteve a observar o cavalo arreado, o paiol aberto, e a casa toda a fechar. Vamos. Deixe essa tristeza e venha dar uma prosinha conosco, aqui na varanda — disse, assomando à porta a moçoila graciosa que recebera as cartas.

Obediente a todos os pedidos, Zico tratou de executar os serviços. Quando, porém, se foi deitar, não conseguiu conciliar o sono. A todo momento lhe vinha à memória aquela vozinha de meiguice: “Que é isso, Zico?”. E sem querer, começou a pensar na sobrinha do patrão, que de São Paulo viera passar uma temporada na fazenda. Ela era tão boazinha... Tratava com tanta amabilidade todos os empregados, até os mais rudes... E, além disso, os seus olhos eram bonitos... bonitos...

E logo sacudiu a cabeça com energia, refletindo: “Que tem você com isso, ‘seu’ moço? Que ela seja ou não boa e bonita, não é da sua conta. Não meta o nariz onde não é chamado”.

Mas qual! Por mais que tentasse varrer da cachola esse pensamento, não o conseguia. Era inútil. Ele teimava em aparecer. E teimava cada vez com maior veemência. Assim passou parte da noite. De madrugadinha já, resolveu dar um fim àquilo. E perguntou a si mesmo: “Por que pensas assim, Zico?”

Insensivelmente, teve de tirar a conclusão: gostava da sobrinha do fazendeiro, com todo o vigor, com toda a sinceridade que só os nossos sertanejos sabem ter. Gostava da sobrinha do fazendeiro... ele, um quase nada. Ela, moça instruída, educada no grande centro, e além do mais, como, sem o querer, pudera perceber pelas conversas, prestes a noivar na capital. Faltava só o consentimento do pai.

Ao ter certeza dessas conclusões, o pobre rapaz sentiu um calafrio no corpo todo. Não, não era possível! Que loucura!

Era no outro domingo. Como sempre, em traje domingueiro, fora à cidade buscar a correspondência. Ao voltar, cavalgando o douradilho de ventas escancaradas, cheias de espuma, e acompanhado pelo cachorro de língua à mostra, estacou diante da porteira, desceu presto do cavalo, e, com passo firme, dispôs-se a atravessar o terreiro, que ainda desta vez preguiçosa mulatinha varria. Pouco depois, ali de fora, ouviu uns gritos de mal contido júbilo. É que, à graciosa moçoila, chegara finalmente a esperada notícia.

O sertanejo deteve-se quedo. Como na semana anterior, foi buscar umas espigas de milho, debulhando-as no chão. Na sua frente o sol, mais vermelho que nunca, ameaçava submergir-se na grota longínqua. E continuava Zico a meditar em silêncio.

De repente, com a fisionomia contraída num decisivo, num supremo esforço de domínio e de energia, os olhos faiscantes e um enigmático sorriso nos lábios, levanta-se e olha em derredor. Sonda alguma coisa. Ali perto da escada estava uma cordinha. Toma-a. Amarra uma ponta na correia do cachorrinho e outra no palanque chantado próximo. Depois examina com desconfiança o ambiente. E quando, no longe do horizonte, o sol já escondera a metade do disco, salta destramente para cima dos arreios, dá um adeus abafado àquelas terras que lhe eram tão caras e chicoteia o animal com ardor.

Anoitecera. As galinhas haviam abandonado as espigas nuas, e a lua, bonita como os olhos da moçoila graciosa, não mais projetava no terreiro varrido uma alongada sombra do rapaz. Junto ao palanque, o cachorrinho luzidio deixara de abanar a cauda em sinal de alegria e, compreendendo talvez aquilo tudo, encaramonara-se com as orelhas caídas e o corpo pegado ao chão. Apenas, no grotão longínquo onde o sol se escondera, reboava o ronco de algum bugio perdido. No mesmo lado do poente, um cavaleiro, em desenfreado galope, pouco a pouco desaparecia para nunca mais voltar, anatematizando aquele sentimento que, pela primeira vez, tivera a força de lhe abater o ânimo sertanejo.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.