segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 24 -

MUNICÍPIO DE CAMPO MAGRO
A lenda da lagoa feia

Na localidade de Campo Novo, município de Campo Magro, encontramos a Lagoa Feia, cuja lenda está repleta de “causos”, que povoam o imaginário popular da região. Contam os moradores locais que há mais ou menos 150 anos existia ali uma igreja e todos os que moravam nas suas proximidades reuniam-se quinzenalmente para os cultos religiosos.

Num belo dia, algumas pessoas resolveram fazer um baile nas dependências da igreja, já que não existia outro local na região para divertirem-se. Mas, coincidentemente, o baile foi realizado numa sexta-feira santa, dia de expiação da paixão e morte de Cristo. Para os costumes cristãos tal ato é considerado um verdadeiro sacrilégio.

Não tardou a intervenção divina, exatamente à meia-noite a igreja ruiu e afundou com todos os participantes do “baile profano”, matando a todos. Não ficou vestígio algum da existência da igreja e os corpos das pessoas nunca foram encontrados. 

No local formou-se a Lagoa Feia. Dizem os moradores que nunca se achou o fundo da lagoa, e que, muitas vezes, as suas águas turvas mudam de tonalidade, ficando ora avermelhadas, ora esverdeadas e em outros momentos amareladas. 

Ainda hoje, nas noites de sexta-feira santa, à meia-noite, ouve-se o choro de crianças e murmúrios de pessoas nas proximidades da lagoa feia.
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MUNICÍPIO DE ESPERANÇA NOVA
Sanga de Urutu 

Pirangueiros e pescadores falam de muitas histórias acontecidas no Paranazão. São inúmeros os casos de crimes hediondos praticados nas proximidades do grande rio, sendo alguns de conhecimento público, outros, no entanto, sem pistas até os dias atuais. É aí que as histórias viram causos e lendas.

Por volta de 1990, lá pelos lados da Sanga do Urutu, nas proximidades da Lagoa São João, o estimado Sansão foi brutalmente assassinado a facadas e jogado no rio. Mas o corpo nunca foi encontrado. Dizem que os acusados, Sidinei e seu comparsa Dirceu, praticaram o delito por causa de pinga e mulher. Os suspeitos até foram interrogados e presos, mas por falta de provas foram inocentados.

Moradores da região e pescadores que por lá andam, relatam que quem quiser pode ir lá para constatar um fato: na Sanga do Urutu, basta cair o silêncio costumeiro do lugar para se ouvir um assombro que assovia, mexe na água, geme; enfim, espanta os peixes e provoca arrepios até nos mais destemidos. 

Pescadores distraídos punham barcos à deriva; em vez de peixes, fisgavam nas águas profundas pedaços de roupas e pertences do lendário Sansão.

Talvez, por isso, hoje os mais avisados frequentadores do rio Paraná, no trecho Altônia, São Jorge do Patrocínio, Esperança Nova e Vila Alta, evitam permanecer naquelas paragens, em respeito à visagem comentada na Sanga do Urutu.
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MUNICÍPIO DE IVATÉ
A lenda da figueira

Surgiu há mais de 40 anos, próximo à cidade em uma área rural. Contada por quase todas as pessoas que ali habitavam naquela época. Relata-se que um certo pé de figueira, muito grande, era assombrado.

Viam-se luzes nele, ouvia-se barulho, outra hora ele gemia. Isso acontecia sempre à noite, quando as pessoas passavam por ali. A figueira era tão sombria e assustadora, que ninguém queria morar por perto. 

Contam que um certo dia, irritados com tanto medo que passavam, reuniu-se um grupo de homens, compraram uma bomba potente para soltar no tronco da árvore e ver o que acontecia.
Assim fizeram, acenderam a bomba e correram para ver a explosão. Um barulho de passos veio e pisou na bomba, ninguém viu nada e ela não explodiu. Depois desse dia, ninguém nunca mais desapontou a figueira.
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MUNICÍPIO DE PLANALTO
Tiracisma

Tudo começou na década de 1950, onde próximo da ponte do rio Capanema, a cerca de um quilômetro, no município de Planalto, havia uma estrada de chão que dava aceso a todos que vinham de Realeza a Planalto. Estes deveriam passar por um morro, o morro do Tiracisma.

A estrada foi aberta por volta do ano de 1955 e o morro foi batizado com esse nome porque tirava a “cisma” de qualquer motorista que se aventurasse a subir em dias de chuva. Qualquer motorista de caminhão que tentasse subir, ali ficava. Os moradores puxavam os caminhões com juntas de bois. A partir dos anos 1970 utilizavam tratores agrícolas até subir o morro, e a partir daí os motoristas podiam seguir as suas viagens.

Em 1965, foi batizado o riacho que atravessa a estrada no início do morro, com esse nome. Em 1979, a inauguração da estrada asfaltada PR-281 acabou com o drama dos motoristas nos dias de chuva, embora a estrada que corta o morro no seu lado oposto continue com forte declive.

Contam os populares que no morro houve um desastre. Um lenhador que por ali passava, com uma carga de madeira em seu carro de boi, ao descer o morro teve o azar de seu carro tombar, matando-o. Até hoje, as pessoas que passam pelo morro do Tiracisma dizem ouvir as madeiras rolando e fortes ruídos na mata que o circunda.
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MUNICÍPIO DE PLANALTO
Rio Siemens e suas lendas

Por volta do ano de 1974 na localidade de Santa Cecília pesquisadores encontraram ouro em moedas na margem do rio Siemens. Essas pessoas não eram da região e nunca mais se ouviu falar delas.

À altura do morro, perto do suposto pé de cactos onde foi tirado o ouro, existe uma grande área de flores de diversas cores, batizada na época pelos alemães de Palzamina. O curioso sobre as flores é que se uma pessoa colhe muda das flores, algo de diferente passa a acontecer na família, como a queima de uma casa, acidentes, assassinatos, separações. 

O local possui várias nascentes. Inclusive, foram feitos exames da água pela Paranapanema, empresa que asfaltou o trecho até Planalto. O laudo atestou que a água é de excelente qualidade.

Existem inúmeras outras lendas associadas ao rio Siemens. Contam que uma mulher de branco aparecia para os rapazes nas noites de sexta-feira, numa estrada próxima ao rio Siemens, aparecia e sumia repentinamente.

Conta-se que, certa vez, dois amigos estavam pescando à noite e foram surpreendidos por uma forte tormenta. O vento balançava fortemente a mata ao lado do rio. Os dois homens saíram correndo, com a finalidade de retornar para casa, quando chegaram próximo à pedreira perceberam que não havia vento algum, o céu estava estrelado, sem indício qualquer de tormenta.

Alguns dias depois, um caçador de pombas encontrava-se no mesmo local e, sem explicação alguma, os dois canos de sua espingarda dispararam, levando-os a cair dentro do rio. Uma outra noite, na mesma localização, um morador local estava pescando e avistou um animal estranho, que lhe pregou um grande susto. Ele estava um pouco distante, porém resolveu atirar no animal. Quando disparou na direção deste, ele duplicou de tamanho e correu em direção ao homem. No ataque, o homem perdeu anzóis e espingarda, sem contar seus apetrechos de pescaria.

Por volta do ano de 1980, na residência de Silvino Kipper, em Santa Cecília, moravam Silvino e esposa, a filha mais nova com seu esposo e seu primeiro filho. Ao jogar comida para os cães, dona Idalina Maria Kipper chamou o genro para ver o bonito cachorro branco, que estava em meio aos cães policiais. Era um lindo cachorrinho peludo branco luzente.

Sugeriram pegá-lo para que ficasse morando com eles. Porém, toda vez que tentavam pegar o cão ele sumia e aparecia alguns metros à frente. Alguém atiçou os cães, que eram ensinados, para que esses o pegassem, mas os cães não conseguiam, nem sequer pareciam ver o cachorrinho. A perseguição continuou até 800 metros do rio Siemens. Quando estava perto do rio o cão branco pulou na água e sumiu. Era uma noite de lua cheia. E o senhor Irineu se deu conta de que estava no meio do mato, perto do rio; o medo foi seu companheiro até chegar em casa, ofegante pelo susto. O pequeno cão peludo e luzente está presente na memória dele até hoje. Jamais encontrou alguma explicação pelo fato vivido.

Fonte: Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Por que cargas d’água?”

Com frequência, essa expressão aparece sob a forma interrogativa: “Por que cargas d’água  a criatura fez aquilo?”. Percebe-se no seu uso, quase sempre, o desconhecimento do motivo que levou alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Tal pergunta é habitualmente formulada com perplexidade, com a intenção de demonstrar a falta de lógica de certo ato, fato ou procedimento. É como se você perguntasse: “Por que motivo aconteceu aquilo?”.

Sua origem remonta ao final do século XIII, quando começaram as primeiras navegações portuguesas em águas do Atlântico Norte, região de mar aberto, portanto sujeita a severas tempestades, que desabavam em forma de forte pancadas ou cargas d’água. Fugindo delas, era comum os lentos navios da época se abrigarem no entorno dos Açores ou da Ilha da Madeira. Porém, escapavam às vezes do controle de seus hábeis timoneiros mercê da fúria da procela, fazendo com que as naus acabassem em destinos absolutamente imprevistos, quase sempre na costa africana.

Quando isso ocorria vinha a clássica pergunta, “por que cargas d’água a embarcação se extraviou?” Sua repetição na linguagem coloquial varou os anos, traduzindo-se num questionamento, sempre exprimindo perplexidade. Os portugueses, ainda hoje substituem “cargas d’água” por “raios”, sem que o sentido da indagação se altere: “Por que raios meu time perdeu o jogo?”.

Raul Seixas, o genial e irreverente “Maluco Beleza”, aproveitou a deixa para compor “Sapato 36”, em que ele indaga na música o porquê de usar um sapato menor que o próprio pé, que lhe foi dado pelo pai: “Eu calço 37. Meu pai me dá 36 // Dói, mas no dia seguinte // Aperto meu pé outra vez (…) // Por que cargas d’águas // Você acha que tem o direito // De afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito(…)”. Note-se que a expressão traduz uma indignação, uma incredulidade, um espanto, diante de uma situação inusitada.

De há muito essa curiosa expressão ganhou um sentido mais amplo, alcançando situações para além daquelas vividas pelos navegadores portugueses e definitivamente se incorporou na linguagem do povo brasileiro. Pode-se utilizá-la para aludir às ações de uma pessoa, que saíram por completo do seu próprio controle, ou tiveram um resultado totalmente inesperado ou extravagante.

Como exemplo de como se pode invocar tal expressão, veja-se o caso de um chefe de cozinha que resolveu preparar uma iguaria, mas por errar no tempero, a comida restou intragável, daquelas que de tão ruim acabam provocando revolta em presídio. Ele indagaria certamente, “por que cargas d’água” o alimento ficou com péssimo gosto, por não atinar em que ponto do preparo se deu o erro.

A surpresa, a indignação, a incredulidade e a perplexidade são inerentes às situações fáticas esdrúxulas, inconcebíveis ou patéticas que dão ensejo ao uso da antiga frase dos navegadores portugueses. Como nesse outro exemplo, em que um sujeito estava calmamente sentado à varanda do seu sítio, contemplativo, absorto em seus pensamentos, curtindo o ensolarado fim da tarde, quando lá passou um “espírito de porco”, desses muitos que existem por aí, soltando no ar, em sua direção, o grito de sobressalto:

– Seu José, corra que sua mulher está se afogando no lago!!!…

Desarvorado e sem hesitar, partiu ele em desabalada carreira e mais além, extenuado e ofegante, parou um pouco para recuperar o fôlego e nesse breve tempo, conjecturou de si para consigo:

– Mas por que cargas d’água eu estou correndo feito doido? Meu nome não é José, meu sítio não tem lago e nem casado eu sou…

O certo é que quase sempre a expressão “por que cargas d’água” é utilizada com elevada dose de incerteza, dúvida, trejeitos na voz e até com ímpeto de justa ira, principalmente quando o fato que a motivou, expõe quem a pronuncia a uma situação surreal, senão ridícula ou absurda, como sem dúvida ocorreu com seu José, no hipotético episódio acima revelado.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
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domingo, 22 de dezembro de 2024

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 12 *

 

Nilto Maciel (Quimera)

Visse o retrato dele por ela pintado

– Você tinha um aninho.

Destacou de entre os dedos o indicador e sorriu. Um riso de brilhantes olhos e rosadas faces, a se expandir por todo o seu corpo. E, tão depressa ele cresceu, na mesma proporção desapareceu. Murchou o dedo, caíram as pálpebras, esconderam-se os dentes após os lábios.

(Diante dela, o seu menino posava todo alegria. Ficasse assim, bem natural. Risse, se quisesse, mas não se mexesse. Para a pintura sair perfeita. Uma formosura. E mirava ela o seu modelo, atenta aos pincéis, mãos de madona. Inventava o mais mimoso dos infantes).

– Aprendi essa arte antes de conhecer seu pai.

Seu menino dela duvidou. Não das memórias, antes da identidade entre a figura e ele.

Não fosse dizer não saber ela desenhar ou não ter sabido. Talvez já tivesse mesmo perdido as noções de pintura aprendidas na infância. Fazia muito tempo, sim, mas ainda acreditava no seu bom aprendizado.

– Este é você e você é este.

Brincou com as mãos de um lado para outro, quase a cair em gargalhadas.

– Lindo!

E abraçou e beijou o seu menino, até fartar-se e novamente perder o ânimo da fala, dos movimentos, da vida.

– Seu pai está para voltar.

Calou-se, olhos fixos no chão, semblante entristecido. E o quadro a mirá-la amoroso e abandonado.

Súbito, assustou-se.

– O que foi, meu filho?

Desculpasse a mamãe, andava tão distraída. Pensava no paizinho. E forçou de tal modo o sorriso, até confundir em seu rosto um tanto de dor, uma porção de alegria, que mais pareceu uma santa. Não perguntasse o destino do pai. Havia partido em longa viagem.

– Para além de cinco anos isso vai. E em nosso esperar, quão triste miragem!

Não, não se tornasse tristinho assim. O dia de se conhecerem vinha.

– Ele vai voltar muito em breve, sim.

Porque prometido, jurado tinha. Não inquirisse a razão daquela partida, porque responder doía. Apesar de toda dor, respondia.

– Foi circular a terra, conhecê-la, para provar que o mundo é redondo. Ninguém nele acredita, no entanto.

E pouco a pouco se foi ela pondo mais lacrimosa e se fazendo em pranto.

– Por aqui ele partiu – e apontou a porta da frente escancarada – por ali há de voltar – e mostrou a porta do quintal destravancada.

À parede, junto à fotografia do marido, correu a suspender a pintura do menino, antes que a inundasse de seu choro.

E bateram à porta. A mulher perdeu o controle, largou o quadro e se voltou apressadamente. Não tivesse medo seu filhinho.

– Deve ser seu pai.

Ameigou mais a voz e caminhou na direção da porta. Seu amor havia voltado. Só podia ser ele. Tocou a maçaneta e por longo minuto pôs-se a rodá-la.

Tremia. Com que forças abrir aquela pesada porta? Mas fez-se dona de sua vontade e puxou a folha. Um dedinho só.

– Minha senhora, abra logo.

– Você!? Bem que eu pensei.

Toda a porta girou para dentro, e a mulher, a rir e chorar, saltou aos braços do homem, que, de só querer meter-se em casa, arrastou-a pendurada ao seu pescoço.

Desejava esconder-se. Só por um dia. Ajudasse-o. Sim, pelo resto da vida, entrasse, ficasse. Quantas saudades! Perseguiam-no, precisava de socorro.

Em seguida, ela o conduziu até onde dormitava seu menino.

– É o nosso filho. Veja como é lindo. A sua cara.

O homem sossegou, caiu sobre a cadeira, suado, olhos a saltar das órbitas.

– Você acordou, meu filho?

Abrisse bem os olhos, conhecesse o pai.

– Ele partiu antes de você nascer.

Abraçasse-o, com força. E não o deixasse mais sumir.

– Onde está o menino, minha senhora?

Na rua, sirenes alarmavam a quimera da pobre mulher.
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Nilto nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999). 

Fontes: Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.
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José Feldman ( A verdadeira face)

Texto construído tendo por base trova de Filemon Martins (São Paulo/SP)

Da vida não quero a glória
que tanto engana e seduz.
Prefiro não ter história
a renunciar minha cruz.

Na pequena vila de São Lázaro, onde as montanhas se erguiam majestosas e os rios cantavam em seu leito, vivia um homem chamado Elias. Ele era um camponês simples, conhecido por sua generosidade e pela serenidade que exalava. Enquanto os outros aldeões se deixavam levar pela busca incessante por fama e riqueza, Elias se dedicava a cultivar sua horta e cuidar de sua família. Para ele, a vida era uma jornada de aprendizado, e não uma corrida em busca de reconhecimento.

Certa vez, durante uma festa na aldeia, um viajante chegou, trazendo consigo histórias de grandes conquistas e glórias. Ele falava de palácios, tesouros e da admiração que recebia por onde passava. Os aldeões, fascinados, rodearam o homem e deixaram de lado suas atividades cotidianas. O viajante, percebendo a atenção que atraía, começou a incitar a ambição nas pessoas, sugerindo que a vida sem glória era uma vida sem valor.

Elias, que observava em silêncio, sentiu um desconforto crescente. Ele conhecia as armadilhas que a busca pela glória podia trazer. Não era a fama que deixava marcas na alma, mas a vivência honesta e autêntica de cada dia. Ao final do evento, ele se aproximou do viajante e, com um olhar calmo, disse: “Da vida não quero a glória que tanto engana e seduz. Prefiro não ter história a renunciar minha cruz.”

O viajante riu, achando que o camponês falava de maneira ingênua. 

“Como pode não querer ser lembrado? A história é o que nos torna imortais!” 

Elias, porém, não se deixou abalar. Ele sabia que a verdadeira imortalidade não estava em ser lembrado, mas em deixar uma marca no coração das pessoas ao seu redor, por meio de ações simples e significativas.

Com o passar dos dias, o viajante decidiu ficar na aldeia, convencendo alguns moradores a se juntarem a ele em sua busca por riqueza e fama. Prometeu que, juntos, poderiam conquistar o mundo e ser lembrados por gerações. Muitos se deixaram seduzir por suas promessas, abandonando suas terras e suas tradições em busca de um futuro glorioso.

Enquanto isso, Elias continuou sua vida simples, cuidando de sua horta e ajudando os vizinhos. Ele não se importava com o que os outros pensavam, pois sabia que a verdadeira felicidade residia nas pequenas coisas: o canto dos pássaros, o crescimento das plantas, o riso de uma criança. Ele carregava em seu coração o peso da cruz, mas essa cruz, longe de ser um fardo, era um símbolo de sua resiliência e de sua conexão com a vida.

O tempo passou e o viajante, junto com seus seguidores, partiu em busca de aventuras. Prometeu voltar com riquezas e histórias que deixariam todos deslumbrados. No entanto, meses se passaram sem notícias, e a vida na aldeia continuou seu curso. Aqueles que deixaram suas raízes começaram a sentir a falta do lar, da simplicidade e do calor humano que haviam abandonado.

Um dia, após um ano de ausência, o viajante voltou, mas não como um herói. Ele apareceu desolado, com roupas rasgadas e o olhar vazio. Os que estavam com ele o seguiam, mas seus rostos eram marcados pela fadiga e pela desilusão. O que havia prometido se revelou uma ilusão: a busca pela glória os levou a um caminho de frustração e solidão.

Elias, ao ver o viajante em tal estado, sentiu compaixão. Ele se aproximou e ofereceu-lhe água e comida. “A vida é um ciclo, e às vezes as escolhas que fazemos nos ensinam lições difíceis”, disse Elias. O viajante, agora sem palavras de bravura, apenas assentiu, compreendendo a profundidade do que o camponês havia tentado lhe ensinar desde o início.

Aqueles que retornaram com o viajante, ao observar a simplicidade da vida de Elias, começaram a perceber o valor que havia em suas ações cotidianas. Eles se sentaram ao seu redor e ouviram suas histórias sobre como, mesmo sem fama, ele tocava a vida das pessoas ao seu redor. Ele falava sobre a importância de estar presente para os outros, de cultivar relacionamentos e de encontrar beleza nas pequenas coisas.

Com o tempo, a aldeia se transformou. As pessoas começaram a valorizar o que realmente importava: a comunidade, a solidariedade e a autenticidade. A busca pela glória deu lugar a um desejo de ser útil e de viver com propósito. A vida de Elias se tornou um exemplo, não de fama, mas de integridade.

O viajante, que antes acreditava que a glória era tudo, começou a entender que a verdadeira riqueza estava nas conexões que se formam ao longo da vida. Ele se tornou um contador de histórias, mas agora suas histórias eram sobre humildade, aprendizado e a beleza de uma vida bem vivida.

Elias, por sua vez, continuou a viver de acordo com suas convicções. Ele nunca se preocupou em deixar uma grande história como legado. Para ele, o que realmente importava era o amor que compartilhava e o impacto que tinha nas vidas ao seu redor. Ao final de seus dias, ele partiu em paz, sabendo que havia vivido plenamente, sem renunciar à sua cruz, mas sim abraçando-a como parte essencial de sua jornada.

E assim, na pequena vila de São Lázaro, a verdadeira glória não estava nas histórias grandiosas, mas nas vidas que foram tocadas pela simplicidade, pela bondade e pela autenticidade de um homem que preferiu não se deixar seduzir pelas ilusões da fama.

Fonte:s 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Vereda da Poesia = 184


Trova Humorística de
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes/PR

Faz arruaça, tira sarro
e ao guarda, o bebum: ”Pô meu!”
- Faz bafômetro no carro...
Ele bebe bem mais que eu!!!
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Poema e Trova do Folclore Africano de
MARLY RONDAN
São Paulo/ SP

Ossanha

Ossanha. Orixá das Ervas…
Guarda as folhas na cabaça.
Muitos segredos preservas.
Pões sucos na minha taça…

Orixá das folhas, ervas:
Alecrim, Boldo e Cidrão.
Proteje nossas reservas.
Livra a Terra da agressão.

É o Orixá da cor verde.
Ossanha habita a floresta.
Quem não a conhece perde…
Da Natureza essa Festa!

Senhor - Senhora das folhas,
Comanda as ervas sagradas.
Tira com elixir as falhas…

Elixir que dá vigor.
Protege nossa saúde.
Ossanha cura esta dor!
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Trova de
ANTÔNIO SALES
Vila do Paracuru/CE, 1868 – 1940, Fortaleza/CE

Longe de ti, meu amor,
morro de tédio e de mágoa,
bem como morre uma flor
posta num vaso sem água.
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Poema de
SALOMÓN DE LA SELVA
Nicarágua (1893 – 1958)

A bala

A bala que me fira
será bala com alma.
A alma dessa bala
será como seria
a canção de uma rosa
se cantassem as flores
ou o olor de um topázio
se cheirassem as pedras
ou a pele de uma música
se nos fosse possível
as cantigas tocar
desnudas com as mãos.
Se o cérebro me fere
me dirá: Eu buscava
sondar teu pensamento.
E se me fere o peito
me dirá: Eu queria
dizer-te que te quer
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Trova de
CARMEN MARTIN PAZZANESE
São Paulo/SP

De longe, venho cansada.
Onde encostar meu bordão?
Quão penosa é a caminhada
carregando o coração!
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Soneto de
LUIS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal (1524/25 – 1580)

Soneto 5

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Esta distância tão triste,
entre nós dois, na verdade,
mede a distância que existe
entre o amor e a saudade!
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Poema de
AFONSO SCHMIDT
Cubatão/SP (1860 – 1964) São Paulo/SP

O Poema da Casa Que Não Existe

Onde a cidade acaba em chácaras quietas
e a campina se alarga em sulcados caminhos
achei a solidão amiga dos poetas
numa casa que é ninho, entre todos os ninhos.

Térrea, branquinha, com portadas muito largas,
desse azul português das antiquadas vilas
e uma decoração de laranjas amargas
que perfumam da tarde as aragens tranquilas.

Ergue-se no pendor suave da colina,
escondida por trás dos eucaliptos calmos;
tem jardim, tem pomar, tem horta pequenina,
solar de Liliput que a gente mede aos palmos ...

Neste ponto, a ilusão, a miragem, se some;
olho para você, eu triste, você triste.
Enganei uma boba! O bairro não tem nome,
a estrada não tem sombra, a casa não existe!
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Com certa preponderância 
eu impus esta verdade:
Quem inventou a distância 
não conhecia a saudade!...
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Poema de 
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Onde Estava Você?

Onde estava você quando eu andava
sem um norte pra guiar os meus caminhos
que acabaram em lugar nenhum?
Não tive com quem dividir o meu carinho,
que nas curvas da estrada ao chão deixava
como de traste inútil apenas um.
Onde estava você, que surge agora
com a luz e o esplendor de uma aurora
que promete vida, amor, bonança e sorte?
Você chegou quando eu estou indo embora,
e eu, que tanto esperei por essa hora,
sinto que junto também me chegue a morte.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Com seu valor aumentado, 
saudade é a restituição 
do que já nos foi cobrado 
pelos sonhos e a ilusão...
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Hino de
AFOGADOS DE INGAZEIRA/ PE

Terra de sol de encantos mil
Do Pajeú a nobre princesa
De Pernambuco e do Brasil
És do progresso a chama acesa.

O teu nome da lenda surgiu
De um casal que no rio sumiu
Hoje és tu, Afogados da Ingazeira
No Sertão o estandarte de glória
Os teus filhos fizeram história
Que enobrece a nação brasileira.

Brava terra de amor e de luz
Que nasceu sob a sombra da cruz
Grandioso será teu porvir
E abraçado ao símbolo da fé
A lutar sempre firme de pé
O progresso e a riqueza hão de vir.

Na esperança de um mundo melhor
Construindo uma pátria maior
Um teu filho não foge ao dever
Dedicado ao estudo e ao trabalho
Com o livro, o arado ou o malho
A certeza terá de vencer.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Escrevo, mas sou discreta, 
me anulo, libero a mente 
e deixo solto o poeta 
que só fala o que ele sente.
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Poema de 
SYLVIA PLATH
Boston/ EUA (1932 – 1963) Londres/ Inglaterra

Palavras

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
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Trova de
GERALDO PIMENTA DE MORAES
São Sebastião do Paraíso/MG (1913 – 1997) Passos/MG

Saudade é livro à distância,
que o tempo vive escrevendo,
enquanto a gente, com ânsia,
de olhos fechados, vai lendo…
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Coelho Neto (Romance Triste)

Poetas... Poetas são como as abelhas que buscam apenas na flor a substância com que fazem o mel. Que lhes importa que, depois da visita ao nectário, a flor murche e feneça? outras há pelo bosque perfumado e para essas outras vão elas aligeirando as asas.

Donzela, que dais ouvidos às canções do poeta, julgais ingenuamente que ele vos pertence, que nunca mais se apartará do juramento feito aos vossos pés, com os olhos nos vossos olhos, procurando, talvez, surpreender a vossa alma? engano vosso — para que ele vos abandone basta que uma outra apareça.

Foi Zeuxis, se me não trai a memória, que, para realizar na tela um tipo de beleza, reuniu na sua oficina várias donzelas, aproveitando de cada uma a linha ou a cor mais pura, o garbo ou a languidez, a esbelteza e a curva graciosa e, depois de rematada a figura, era um complexo maravilhoso e as moças, que se haviam prestado a ser modelos, deixaram no painel do artista um pouco do próprio corpo. Desta ficaram os olhos, daquela ficou a fronte, os cabelos de uma despenhavam-se ondulando sobre os alvíssimos e redondos ombros doutra, as mãos eram de tal, os pés duma outra, era a boca dum rosto, o nariz de outro e assim a obra perfeita era como o mel das abelhas — o conjunto do sabor de múltiplas corolas. Fazem assim os poetas.

Um conheço eu que, depois de me haver lido uma admirável composição em sonoros poemas alexandrinos, toda consagrada à glória de uma mulher ideal, dizendo-lhe eu o nome da criatura inspiradora, fez um momo dobrando lentamente o papel em que fulguravam os lindos versos:

— Estás louco. A boca, efetivamente, é dela, mas os olhos... Ah! se visses os olhos de... Duas violetas, meu amigo! Duas violetas! Nunca vi olhos daquela cor!

— Mas Fulana, objetei, tem uns pés de saloia (grossos). — Sim, os pés são hediondos mas eu, na poesia, refiro-me aos pés imperceptíveis da Cesira. Conheces Cesira? ah! meu caro...

— De sorte que na tua poesia há quatro mulheres!...

— Cinco, aliás: a graça é da Olímpia, ninguém anda como a Olímpia; é uma deusa.

— Mas isso é um gineceu em alexandrinos, homem.

— O poeta não ama a mulher, ama a beleza, concluiu o meu amigo com solenidade.

Não pensava assim o que morreu entre as árvores amigas. Foi um amoroso fiel e calado, não gemia o seu tormento, continha-o no coração e, de quando em quando, lá o exalava em estrofes. Enquanto a criatura amada viveu na mesma cidade em que ele morria abafou medrosamente o seu segredo, como Arvers (Félix Arvers, poeta francês); ela, porém, partiu para outros climas, para outros braços e o solitário, num derradeiro esforço, deixou o seu retiro e publicou a sua história dolorosa. No frontispício do livro, como a legenda sinistra, pôs ele uns versos do Cancioneiro de D. Diniz que resumem toda a sua agonia:

Quizo ben, amigos, e quero e querrey
Hunha mulher que me quis, e quer mal,
E querrá; mays non vos direy eu qual
A mulher; mays tanto vos direy,
Que quis ben, quero, e querrey tal mulher
Que me quis mal sempre, querrá, e quer.

Fomos companheiros em Lambari. Ela também lá estava. Uma vez, à tarde, conversávamos no cottage (cabana) do parque, ouvindo as cigarras, quando ele se pôs a falar no falecimento da sua velha mãe, uma boa e resignada velhinha, que era o seu amparo moral no mundo. Nunca pensara na morte enquanto ela vivera, mas na mesma tarde do enterro, voltando do cemitério, começou a ser perseguido por aquela ideia fatal. Sabia que estava perdido, era como um edifício que ia, aos poucos, caindo e, na sua qualidade de ruína, só acolhia tristezas. Enfim! e, resignado, encolheu os ombros.

— Mas tu tens aproveitado muito aqui, com as águas.

Voltou para o meu rosto os olhos tristes e, com um sorriso melancólico, disse com a sua voz rouca:

— Com as águas...

Súbito um riso cristalino rompeu alegremente o silêncio crepuscular. Ergueu-se o poeta de olhos cravados num caminho que se ia enchendo de festivo barulho. Um bando gárrulo de moças apareceu e, entre elas, esbelta e loura, com uns olhos que fulguravam, a boca mais vermelha que as rosas sanguíneas, onde um sorriso tinha residência, ela, a misteriosa criatura amada. Como se quisesse martirizar o desgraçado, chamou-o, a rir, tomou-lhe o braço e lá o foi levando por entre as flores, a inebriá-lo com o seu perfume de mancenilha (fruto como pequena maçã). Nessa noite, no salão do hotel, o poeta recitou um apólogo: O sapo e a estrela.

Era uma vez uma estrela...
E vai um sapo, o idiota,
Logo apaixonou-se ao vê-la.

O apólogo foi recebido com aplausos gerais, mas num vão de janela, houve quem murmurasse, disfarçando um sorriso: “O sapo... coitado! é ele...” E a estrela andava trefegamente (astutamente) pela sala reunindo pares para uma quadrilha.

E ele, triste, do fundo da sua melancolia de moribundo, ficava-se a contemplá-la, como o sapo contemplava Sirius. Não lhe falava do seu amor; e que lhe havia de dizer se ela era a própria imagem da Vida e ele... sempre a tossir, ouvindo as lástimas dos que auguravam a sua morte próxima. Que, ao menos, a deixassem ali, perto dele. “É a luz da minha última hora”, suspirou, uma vez, disfarçando a mágoa num sorriso.

À volta, no trem, ele queixou-se: “Vai recomeçar o meu sofrimento...” E voltou os olhos marejados para o banco em que ela estava — era o apartamento. No hotel viam-se a toda hora e ele estava sempre a ouvir-lhe a voz, mesmo quando adoeceu pediu que lhe conservassem a porta entreaberta e, como se alvoroçava quando, pelo corredor, vibrava o riso cristalino da formosa indiferente!

No Rio viu-a uma tarde, na rua do Ouvidor, toda vestida de azul:

Chapéu azul, vestido azul, de azul bordado,
Azuis o para-sol e as luvas, Senhorita,
Como um lótus azul por um deus animado,
Passa, toda de azul, por mil bocas bendita,

Vendo-a não se vê mais nada que o azul tonteia....
Como num sonho azul logo nos vem à ideia
Um pedaço de céu azul passeando a terra.

Um dia ela partiu para o campo e de lá a cruel, escrevendo à ama amiga, pedia-lhe que dissesse ao poeta que certamente ele ficaria curado com aqueles puros ares da serra, bebendo aquelas frias águas que emanavam das penhas e o leite gordo que uma boa mulher trazia, todas as manhãs, à porta do hotel. Ele que fosse, que a fosse ver para convencer-se: estava outra, ela mesma achava-se bonita.

E o mísero, sofrendo, lançou-se afoitamente ao trabalho: em oito dias concluiu uma peça, entregou-a ao empresário e partiu. Lá esteve e, enquanto a sentiu perto, louvou a terra e os ares, falando em ressurreição: “ Eu vivo aqui — sinto-me outro”. Ela, porém, desceu e, desde logo, todas as virtudes dos ares puros e das águas límpidas desapareceram. Voltaram os sofrimentos — a febre, a insônia, os suores noturnos até que, um dia, os jornais anunciaram a partida da bem amada para a Europa.

Esse amor era uma misericórdia, a presença da criatura era o amparo daquela vida, tanto que quando ela partiu começou a destruição. A Morte, encontrando o coração ferido, foi abalando as últimas resistências, uma, porém, reagia — era a esperança de que ela voltasse. Mas não, deixou-se ficar em outras terras, nos braços de outro. Bem que a sua Musa presaga soluçara:

“Ela nunca terás nem seu amor.”

Desequilibrado, sem esse ânimo forte, o poeta caiu. Tornou-se-lhe, então, a vida um rosário de dores e as que menos o torturavam eram as que lhe pungiam o corpo — a alma, essa sofria mais acerbamente. E começou o desfalecimento — o solitário achou-se sem o seu “ sonho “, tudo era deserto em torno; nem o seu faceiro sorriso, que era a alegria dos seus olhos, nem a sua voz que era a sua melodia predileta, nem o aroma que ela espargia como se deixasse no ar um sulco de perfume. Lá longe! Como chegar até lá!... Esses poetas, têm, às vezes, sonhos extravagantes... Quem sabe?!

Abatido, quis ainda voltar ao sítio que ela lhe recomendara como sendo um lugar de beleza e saúde. Foi, apeou à porta do mesmo hotel rústico que ela habitara, percorreu vagarosamente os caminhos que ela percorrera, agasalhou-se à sombra da sua árvore predileta e teve visões de amor, viu-a ao longe, sentiu-a entre as flores silvestres:

Tudo de luz se inunda e, dominando tudo
Cheio da própria luz, sobressai na paisagem
O correto perfil dessa que me não ama.

Esse perfil não estava na paisagem — estava no coração, era uma miragem passional, mas... Esses poetas, esses poetas! Quando amam são capazes de tudo e quem sabe se o desgraçado, sem esperança de tornar a vê-la, não fez como aquela escrava do conto que, para juntar-se ao filho morto, cravou um punhal no coração?

Ele não precisava lançar mão de uma arma para realizar esse desejo sinistro — a Morte estava dentro dele e bastou que deixasse a fera sair da jaula, onde a continham os cuidados, para que, em um momento, o martírio findasse. E agora?...

Talvez que, em breve (não vem longe a primavera) a ingrata, que habita um velho castelo de França, receba a visita da alma peregrina.

Uma noite, apoiada ao balcão, olhando o céu, ouvirá cantar um rouxinol nos roseirais em flor. Será tão lindo e tão sentido o canto que ela, apesar de indiferente, voltará o rosto para ouvi-lo e, ouvindo-o, não imaginará que, no pássaro dolente, palpita a alma saudosa do que viveu por ela, do que morreu de amor.

Ah! o soneto d'Arvers, o soneto d'Arvers...

É bem possível que, quando chegar à França a notícia da morte do poeta, seguida dos comentários sobre a sua paixão funesta, ela, deixando no colo a carta anunciadora, exclame, finalizada, na língua que adotou:

“Quelle est done celte fimme?” et na comprendra pas.
(Então quem é essa mulher? e não vai entender)
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Henrique Maximiano Coelho Netto nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes: 
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Aparecido Raimundo de Souza (O que é a inveja?)

A INVEJA é uma espécie de glutonaria generalizada. Uma ambição maldosa, ou como rotularam as pessoas boas, um “olho gordo” estupidamente ganancioso que nasceu por força da ignorância de cada um, que vicejou como ervas daninhas num jardim cheio de flores preciosas. É também um sentimento degradante e comum entre os seres tidos como “humanos.” Dependendo do grau que atinge cada criatura em particular, pode chegar e, de fato chega, a patamares insuportáveis. Grosso modo, a inveja é conhecida também como “COBIÇA.” 

Vem à tona quando se deseja ardentemente ter algo que a outra pessoa conquistou, como posses (casas, apartamentos, carros), ou status (um cargo numa empresa onde um amigo ou até mesmo um parente trabalha) e é satisfatoriamente remunerado com um polpudo salário. A inveja, em certas pessoas, pode destruir relacionamentos duradouros e inquebrantáveis.  A maldita aflora de um nada, ou seja, tanto pode vir à luz por conta de uma admiração, quanto de uma insatisfação por aquilo que o outro lutou de unhas e dentes. Dependendo do tamanho que o invejoso alimenta a sua inveja pelos desejos do alheio acaba virando uma doença incurável. 

Uma desgraça! No fim, a inveja se agiganta, predomina, cria raízes e se espalha como um câncer que se prolifera num corpo são e acaba atingindo até mesmo quem a sente. Tem gente que chega às raias do desespero e é capaz de matar, notadamente quando não consegue os objetivos almejados. Em doses pequenas, a inveja até serviria como motivação para qualquer ser pensante melhorar e alcançar seus propósitos. Porém, quando não controlada, leva quem a instiga dentro de si, a seguir por descaminhos escuros, ou pior, a encorajar sentimentos negativos, como ressentimentos e frustrações, e até prejudicar relacionamentos pessoais e profissionais. 

“A melhor maneira de lidar com a inveja é não ter inveja.”  Focar unicamente no desenvolvimento pessoal e apreciar o que possui, sem desejar abocanhar o que o próximo auspiciou com seus esforços. Cada pessoa tem a sua própria jornada e conquistas. A inveja poderia servir como motivação para se alcançar metas? Sim, Poderia. Quando canalizada de forma positiva, se transforma num impulso medonho para se galgar os píncaros e se chegar a eles. Existem mecanismos sem que a mente do invejoso assumido seja inteiramente dominada por suas teias implacáveis e malévolas.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes: Texto enviado pelo autor. 
Imagem:  https://mundopsicologos.com/quais-as-caracteristicas-de-uma-pessoa-invejosa