quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

José Feldman (Textos & Trovas) O coração sonhador

Texto construído tendo por base a trova de Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Envergonhado e sem jeito,
meu coração sonhador
conserta o ninho desfeito
enquanto espera outro amor!

Em uma pequena cidade à beira do mar, onde as ondas sussurravam segredos e o sol se despedia em cores vibrantes, vivia um jovem chamado Rafael. Ele era conhecido por seu espírito sonhador e sua sensibilidade à flor da pele. Com seus cabelos bagunçados e um olhar que carregava a luz do horizonte, Rafael caminhava pelas ruas da cidade com um caderno sempre à mão, onde anotava pensamentos, poesias e fragmentos de suas esperanças.

Ele acreditava no amor como algo mágico, um laço que transcende a lógica e as barreiras do cotidiano. Desde pequeno, ele sonhara em encontrar sua alma gêmea, aquela pessoa que faria seu coração bater mais forte e transformaria sua vida em uma aventura. Porém, a realidade o havia ensinado que os amores nem sempre são eternos. Recentemente, ele havia passado por um término doloroso com Lúcia, uma jovem que iluminou sua vida como poucos. A separação foi abrupta, deixando um ninho desfeito em seu coração, repleto de memórias e promessas não cumpridas.

Sentado em seu quarto, cercado por livros e poemas, Rafael sentia-se envergonhado e sem jeito. A dor da perda ainda pulsava em seu peito, mas, ao mesmo tempo, havia uma chama de esperança que se recusava a se apagar. Ele sabia que precisava consertar o ninho que havia se desfeito, não apenas para curar suas feridas, mas também para se abrir a novas possibilidades. O amor poderia ser um ciclo, e ele estava determinado a não deixar que o medo do fracasso o impedisse de voar novamente.

Os dias passaram, e ele começou a se dedicar a si mesmo, a recuperar o que havia se perdido na relação anterior. Ele se permitiu sentir a dor, mas também se permitiu sonhar. Começou a frequentar uma nova cafeteria na cidade, um lugar aconchegante e repleto de pessoas criativas. Ali, entre risos e conversas, ele começou a se abrir para o mundo. O cheiro do café fresco e o som das xícaras se chocando criavam um ambiente acolhedor, onde ele podia se perder em pensamentos e anotações.

Em uma dessas manhãs ensolaradas, enquanto rabiscava algumas linhas de poesia, uma jovem entrou na cafeteria. Seu nome era Ana, e sua presença iluminou o ambiente. Ela tinha um sorriso contagiante e um olhar curioso, que imediatamente capturou a atenção de Rafael. Eles começaram a conversar, e, a cada trocadilho e risada, ele sentia seu coração despertar lentamente. Era como se ele estivesse consertando seu ninho desfeito, colocando de volta cada pedaço que havia se espalhado com a dor da separação.

Ana e Rafael começaram a se encontrar regularmente, trocando histórias sobre suas vidas, sonhos e desejos. A conexão entre eles cresceu de maneira orgânica, como uma planta que se adapta ao ambiente. Rafael se sentia mais vivo e mais inspirado do que nunca. Ele redescobriu a alegria de escrever, agora fluindo com versos que falavam sobre recomeços e a beleza de se abrir novamente para o amor.

No entanto, mesmo com a felicidade renascente, Rafael não conseguia esquecer completamente Lúcia. A saudade ainda o acompanhava em momentos de solidão, e ele se perguntava se estava sendo justo com Ana ao permitir que essa sombra ainda existisse em seu coração. Era um dilema que o deixava angustiado: como poderia amar plenamente outra pessoa se ainda havia espaços ocupados por memórias passadas?

Uma noite, enquanto caminhava pela praia com Ana, Rafael decidiu que era hora de ser honesto. Com o som das ondas como pano de fundo, ele compartilhou suas inseguranças. “Ana, eu estou tão feliz por estar aqui com você, mas preciso te contar que ainda sinto a falta de minha ex. É um sentimento que não sei como lidar, e temo que isso possa afetar o que estamos construindo juntos.” 

A brisa do mar trouxe um silêncio momentâneo, e Rafael sentiu seu coração apertar.

Ana olhou para ele com compreensão: “Rafael, é normal carregar algumas bagagens, mas o que importa é o que decidimos fazer com elas. O amor não é uma competição; é um espaço onde podemos crescer juntos. Se você está disposto a abrir seu coração para mim, estarei aqui, ao seu lado.” 

Suas palavras foram como um bálsamo para as feridas de Rafael. Ele percebeu que, embora as sombras do passado ainda estivessem presentes, a luz do novo amor poderia iluminá-las.

Com o passar do tempo, Rafael aprendeu a equilibrar seus sentimentos. Ele não precisava apagar Lúcia de sua memória, mas poderia permitir que Ana ocupasse um lugar especial em seu coração. A cada encontro, a cada conversa, seu ninho se tornava mais forte, mais acolhedor. Rafael dedicou-se a construir uma nova história, onde o amor não era uma substituição, mas uma continuidade.

O que começou como uma angústia se transformou em um aprendizado profundo sobre amor, perda e renovação. Rafael percebeu que a vida é feita de ciclos, e cada amor traz suas lições. Ele aprendeu a olhar para suas experiências não como fardos, mas como parte da bela tapeçaria que compõe sua existência.

E assim, enquanto o sol se desvanecia no ocaso em mais um dia, ele sentiu seu coração sonhador pulsar com uma nova esperança. Sabia que estava em um caminho de cura, e que, enquanto consertava seu ninho desfeito, estava também se preparando para voar mais alto. Afinal, o amor verdadeiro não se apaga; ele se transforma, se adapta e, na maioria das vezes, nos ensina a amar de uma maneira ainda mais profunda.

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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR, onde pertence a diversas entidades. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura,. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 196


Trova de
EDMILSON FERREIRA MACEDO 
Belo Horizonte/MG (1932 – 2008)

Oh, musa de mil encantos,
mulher divina e querida,
que sabe enxugar meus prantos
nas horas tristes da vida!
= = = = = =

Poema de
MARIA SABINA DE ALBUQUERQUE
Barbacena/MG (1898 – 1991) Rio de Janeiro/RJ

Cartas de amor

Quando recebo as minhas cartas cada dia,
tenho um lindo momento de alegria! 
São notícias diversas
das criaturas amigas que, dispersas
por este mundo, aos quatro ventos,
recordam-se de mim com amizade
e, para suavizar a distância e a saudade,
vêm conversar comigo alguns momentos.
E alguém me disse um dia:
“Se tens tamanho encanto
em receber cartas amigas simplesmente,
tu que te alegras tanto,
certamente
enlouquecias de alegria,
estremecias de fervor
se estas cartas comuns fossem Cartas de Amor!

E então me recordei que no lindo romance
que foi o meu amor,
tive tudo o que estava ao meu alcance,
todo o esplendor,
a beleza, a ternura, o encanto, a ânsia,
mas não tive a Distância
nem as Cartas de Amor.

E hoje que a Eterna Ausência nos separa
e que a Distância que ninguém transpôs,
como uma Via Láctea imensa e clara
se estende entre nós dois,
como seria bom se as estrelas cadentes,
riscando a noite com seu fulgor,
pequeninos correios refulgentes,
trouxessem lá do céu minhas Cartas de Amor!
= = = = = = = = =  

Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Uma foto amarelada
foi, no passado, importante.
Hoje, nem sequer notada,
é esquecida numa estante…
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Janela azul

Na pausa do olhar
A poesia, devagarzinha
Alisa e desliza
Na janela de madeira azul
De nós trabalhados pela
Passagem do tempo
São imóveis olhares...
Há uma rústica e desbotada
Interação entre os tons de azul
Que se mesclam à madeira-
Na pausa do olhar
A delicadeza
Das mãos, agora, invisíveis
Que tantas vezes
Entreabriram a janela...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

- Este bolso é meritório,
nunca viu nada roubado!
Perguntam lá do auditório:
- Terno novo, Deputado?
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Onde só haja espuma sal e vento
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Onde só haja espuma, sal e vento
Irei plantar o germe da Poesia
Deixando que ela cure essa anemia
Que mói lugar tão ermo e avarento.

Por efeito do lírico fermento
Que a pobreza do chão e ar vencia
O verso cometeu a ousadia
De florir onde não havia alento.

A frase tudo vence quando prima
Pela pujança forte dessa rima
Que é gerada na verve de um poeta.

E o poema faz-se arma de batalha
Que peleja no chão por onde espalha
O Belo que na alma se arquiteta.
= = = = = = = = = 

Triverso de
EDSON KENJI IURA
São Paulo/SP

Chuva de primavera —
O casal na correria
rindo sem parar.
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Rei destronado

O teu lugar vazio!... E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te dourava o seio!

Quando a camisa tépida despias,
- Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.

Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.

Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços...

Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:

Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

No instante da despedida, 
arquivei no pensamento 
a tristeza da partida
e a dor do meu sofrimento.
= = = = = = 

Poema de
EFIGÊNIA COUTINHO
Balneário Camboriú/SC

Cupido

Sendo eu mulher, muito mulher,
confesso (e me penitencio, se é mister),
que não nasci para ser pobre!
Está no meu feitio desejar que a existência
se desdobre na magnificência, jamais em privações.
.
Tenho gostos, requintes de caprichos,
ambições, e, sem razão, não nego aos meus
sentidos, os gozos com que a Vida me agracia,
enaltecendo a dor apenas em teoria!

Porem, nada possuo em realidade!
Nem fausto, nem poder...
Porque, para seguir um velho ditado,
do Grande Livro, Santo e Consagrado,
o meu despotismo deve ser restrito,
e pertence, inda assim, ao meu Amado!

Em meio ao destino que me impõe,
entretanto, eu duvido, haver outra
mulher a quem Cupido generoso ofertasse
um lindo trono, com mais magnificência do que
o meu, onde governo só, como a depositaria
de um tesouro de Amor, que tocou o apogeu!

E, por muito que conte e reconte,
meu Capital de multimilionária,
eu nunca chego ao fim, porquanto de
uma fonte fecunda e inexorável se origina.

Cresce dentro de mim esta riqueza ilimitada,
sólida e genuína, que me empresta atitudes de
Princesa! E, entre as Fortunas de que tomo
a nota, a minha é que mais vale e mais ressalta,
pois dos meus bens a renda não se esgota!
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Peixinho mais mascarado 
do que aquele eu nunca vi:
- só belisca anzol marcado, 
"minhoca com... pedigre"…
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Os parceiros

Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.

Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.

Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro... eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se

numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!
= = = = = = 

Trova de
CAMPOS SALES
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

Nosso amor foi tão verdade,
que mesmo tendo acabado,
há uma ponte de saudade,
ligando o nosso passado!
= = = = = = 

Hino de
INAJÁ/PE

Coroada esta bela cidade
Por teus filhos criados por ti
és amada e adorada por todos
esta terra de esperanças mil.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

És o coração deste mapa
És a estrela D'alva no céu
Esse torrão que irradia
nessa pátria imortal de harmonia.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

Os Raios do Sol que iluminam
os campos verdes desta terra
entre todas és a mais encantada
no Brasil Luz que brilha ao nascer.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.

Dois que data que marca
A vitória de uma liberdade
Auriverde nas margens do rio
Nova luz ao nascer do amanhã.

Inajá Palmeiras Pequenas
Na ribeira do Rio Moxotó
O teu nome, gravado na história
se enfeita ao clarão do luar.
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

A passagem

Quando já se passaram muitos anos,
Deus vai nos preparando este caminho.
Não somente as tristezas, desenganos,
Mas colocando a vida em desalinho.

Pouco a pouco as ações e atos humanos,
Vai tirando de nós, também carinho.
Uma febril tristeza e desenganos
Transforma nossa vida em torvelinho.

Já não faz falta mais nossa presença,
Somos transtornos sempre a qualquer hora,
É melhor a partida que a doença.

Mas, Deus que é nosso pai muito bondoso,
Vai nos mostrando aos poucos vida a fora,
Uma nova visão do eterno gozo.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Abro a porta e a janela 
do meu coração em festa 
quando a manhã tagarela 
põe voz na densa floresta.
= = = = = = = = = 

Geraldo Pereira (O Recife de Agora)

O Recife, como as metrópoles do mundo, vem experimentando nos últimos 50 anos o que tenho chamado de metamorfose do tudo, isto é, mudanças e transformações que ultrapassam o simplesmente físico e o apenas urbano, para ter também uma natureza sociológica ou antropológica. 

A paisagem da cidade contemporânea é diferente, inteiramente diferente daquela de meio século atrás, desde as periferias, nas quais proliferam favelas e palafitas ocupadas por migrantes e seus descendentes, tantas vezes desempregados e deseducados. Na selva de pedra e cal aglomeram-se os prédios de apartamentos, apertando as famílias em quatro paredes. O ser humano mudou também e hoje as relações de amizade ou de vizinhança não reconhecem mais a proximidade dos anos que ficaram encantados nas brumas do tempo. E quando há aproximação, nota-se o exagero e a ausência de limites. Prova disso está nos namoros e nos filhos de mães adolescentes.

Desapareceram as antigas moradias, tangidas pelos enormes edifícios, arranha-céus do presente. Com isso, levaram as cadeiras da calçada, postas em fins de tarde pelos netos, para que sentassem as avós e fiassem conversa com os parentes e os vizinhos. O mascate, que passava vendendo a matéria prima da costura, do crochê e do bordado, muito do agrado das senhoras idosas, afastou-se do cotidiano, do mesmo jeito e agora tudo está disponível nos shoppings e nas lojas que proliferam em galerias dos bairros finos, ao lado da verticalidade das residências. O vendedor de amendoim, torrado e cozinhado, mestre-cuca da deliciosa farinha do grão, encostou os balaios, deixou de gritar chamando a garotada para degustar aquela preciosidade artesanal. Foi substituído pelos meninos que nos bares da vida ofertam o produto sem gosto, faltando o tempero do bem-querer.

Nos bancos assusta, às vezes, a quantidade de máquinas que fazem o serviço do estabelecimento. Assim, é possível sacar, depositar e cumprir os compromissos do mês. Há uma luz que sabe ler, dispensando as antigas filas, de voltas e voltas no salão, as quais nem sempre fluíam com a desejada rapidez. Estão dispensadas as cenas que vi na infância, dos grandes livros sendo abertos no balcão, para o funcionário identificar o nome do correntista e fornecer o saldo do dia.

E foram demitidos os empregados considerados excedentes, com a estreia do computador e a automação das operações, dessa forma com outras empresas, na indústria e no comércio. De tal maneira que no tempo do hoje, quem não tem uma especialização, uma profissão, está fadado à perda, ao desemprego ou ao subemprego.

E o comércio do centro, tão movimentado no pretérito, com lojas e mais lojas à disposição da clientela: a Sloper, a Viana Leal, as Lojas Seta para homens, a Personal e muitas outras? Era na Viana Leal que íamos escolher os presentes de aniversário ou do Natal, adquiridos com todo o sacrifício por meu pai. Ali, também, visitávamos o Papai Noel e nos embalávamos nas fantasias do velhinho, absolutamente crentes em sua passagem na noite do nascimento de Jesus. Sumiram, da mesma forma, as vendas que abasteciam os bairros de classe média e vendiam fiado, usando uma caderneta, na qual se anotavam as despesas a serem cobradas no final do mês. Era um ponto de encontro dos passantes, onde se podia provar o bacalhau e o fígo de alemão, comidas não recomendáveis aos remediados da sorte. Os supermercados ganharam a concorrência!

Frequentava-se o cinema São Luiz ou o Moderno, o Trianon ou o Art Palácio, de seletos espectadores. Esperava-se a namorada à porta e assistia-se o filme do dia. La Violetera fez sucesso e era repetidamente visto pela rapaziada, uma outra película, cujo nome não me ocorre, na qual a trilha sonora incluía a música Relógio - “Por que não paras relógio/Não me faças padecer/...” -, abalou os corações da moçada. 

Depois das duas horas sentado, o sorvete no Gemba era indispensável e muitos amores nasceram assim, diante de um casquinho do gelado de ameixa ou de graviola. Agora, os cinemas estão embutidos no corre-corre dos shoppings, para que todos se protejam da violência.

Eis o Recife de agora ou eis aqui a metamorfose do tudo!

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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Sammis Reachers (A visitante)

Ela passou a tarde inteira medindo meu coração, desfazendo pequenas criptografias.

A noite chegara lá fora.

– O que a senhora quer, afinal?, perguntei.

– Sair da rotina. Nada. Obrigado pelo café. 

Foi à estante, olhou com desdém a profusão de livros. Uma parte insuspeita a atraiu: um trecho da estante onde eu guardava memorabilia, pequenos brinquedos, álbuns de figurinha. Tocou os brinquedos, sorriu ao manusear um boneco do Hulk. Puxou alguns álbuns. Apanhou o mais antigo, um álbum de cromos sobre dinossauros, da década de 60 do último século a morrer.

– O homem que pintou esses animais era um ser infeliz. Japonês de nome Agura Sayta, depois John Sayta, radicado em Cincinnati, nos EUA. Como você, praticava colecionismo: possuía escaravelhos. Escaravelhos embalsamados. Seu amor era a taxidermia, o reino de aço dos ínfimos e fortes insetos, mas ganhou a vida pintando dinossauros. Morreu de uma pneumonia. ...Segunda feira começa o verão em seu hemisfério... – ela concluiu, mudando completamente de assunto. 

Já havia percebido esse padrão, esse alheamento. Se fosse cabível, diria que ela está esclerosada. Mas algo em mim insiste (intui) que ela sempre foi assim. O alheamento é parte de seu ofício.

– Quando você nasceu? – rompi a casquinha do nonsense com minha primeira pergunta de verdade. 

Ela nada respondeu: olhava pela janela, contemplando talvez as roseiras podadas do jardim.

– Você consegue estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Como faz isso? Há muitas de você?

– Nascer não é a palavra. Nascer nem se aproxima da essência do conceito. Sou para o Universo como estas três paredes deste quarto de quatro. Sem elas não há quarto, não há morada: sou a coesão, a corrente de prata, o elo que liga o início deste Universo a seu fim, e seu fim será o meu. Mato para que um dia eu morra, enfim. 

Puxou uma biografia de Einstein da estante. Fez menção de abrir o livro, declinou. 

– A entropia que causa o caimento energético da matéria, entropia que a tudo corrói e mata e eu somos uma: o mesmo princípio, o mesmo... material criando formas diversas. 

Era a minha vez de saltar de assuntos, pisar num detalhe que me perturbara desde que lhe abri a porta: 

– Senhora, seus olhos são assustadoramente... impossivelmente melancólicos.  Congelados num perpétuo estado de pré-lágrima. Eu os suporia duros, se tal imaginação tivesse tido seu tempo. É um detalhe ínfimo, mas que se mereceria espantoso. E o pior não é esse espanto, mas sua quase ausência... Pois é como se eu já tivesse visto esta cena e seus olhos. Você já esteve aqui? Em algum momento de que não me recordo? 

– Se o Tempo é circular? Se você se sente girar, sim. Esse boneco sem braços... sim, lembrança de sua infância. O Tempo é uma explosão secundária ou de fundo, uma força-de-seguir-energias que, a partir do momento inicial, expandiu-se em todas as direções... mas não como o espaço, que vai sempre adiante, ou seguindo a placidez das linhas... o Tempo é inconcebível em linhas, elas avançam, entrechocam-se, ricocheteiam... Tempo, encantação domesticada, é a reificação mais mágica do Lumen, do Criador. Confuso? Ele não é para as palavras, como tanta coisa.

– Gostei daquilo que você escreveu – ela diz, noutro salto ou tombo demencial. E recita: “Vejo as pequenas mangas crescendo nos pés, a partir de setembro. Em dezembro estarão nas mesas e mãos. Um dia morrerei e as mangas, indiferentes, continuarão nascendo, crescendo açucaradas, sendo arrancadas ou caindo ao chão, diante de homens que não saberão de mim, seivas engordando uma outra manga, mesmerizados e indiferentes. Há um toque, um toque magistral de horror em todo esse processo de vida e morte.”

– Quer jogar xadrez? 

– Para quê? Rainha-negra-mata-peões-mata-cavalos-mata-bispo-mata-torre-mata-rei-e-rainha-brancos. Partidários da rainha negra morrem. Rainha negra morre. Morte sempre vence.

– Ha-ha-ha... Perdão, senhora. Não quis dizer que poderia vencê-la, não imaginei o jogo sob esse prisma. Mas agora que a senhora referiu a isso... se fosse possível, como vencê-la? 

– Sabe, certa feita um rei travestiu-se de peão e me venceu em meu próprio jogo. Mas tinha que ser, e o rei vestido em burla criara mesmo o tabuleiro-de-tudo em sua marcenaria. Era o mesmo que me criou, aos pés daquele Jardim onde teu pai foi criado e depois proscrito.

Mas vamos finalmente ao motivo deste dia. Você tem questionado e entristecido, mergulhado em café e aborrecimentos. Acredita, e com razão, na construção de sentido para a sua vida. Mas tem desesperado; já não pode mais construir, já atingiu a estação dos trens exaustos e ninguém lhe espera na estação.

Eu tenho uma oferta para você.

– Vai me levar? Só podia ser isso, afinal. E precisa desonrar-se ao propor a um peão o inescapável, o inacordável?

– No oceano, este oceano absurdo, cujo sentido verdadeiro, ou final se preferir, só pertence ao Um, você e, sei que inesperadamente eu também, sabemos que o maior tesouro é possuir sentido. É quase paradoxal, mas não temos escolha. Eu lhe ofereço o sentido sob minha jurisdição. Uma migalha bem maior que a sua.

“Tudo de que uma criatura, qualquer criatura, precisa: um mapa e uma missão. O bernardo-eremita possui seus instintos, seu mapa, e sua missão é cumprir o ciclo; um demônio possui seu mapa de ódio, e uma agenda que se renova a cada homem que nasce, e como nascem homens!

“Mas você, homenzinho amorável, desespera e pisoteia, em subidas e descidas, os andares do sobrado de sua própria angústia.”

– E que tipo de sentido a senhora me oferece? 

– O único que possuo, e como seria diferente? O meu.

– Não entendo.

– Mapa e missão, mapa e missão. É tudo de que toda criatura precisa. E sou feitura como você. Te darei minha missão e meu mapa. Não tema; não passará uma vida eterna sob meu manto; como missão, ela terá conclusão, e como mapa, há destino a alcançar.

– Calma, madame, calma aí. Quer que eu seja um... um tipo de seu ajudante?!? Um arauto, talvez?

– Quero que você seja eu.

Aturdido pelo insólito de tal diálogo, sentei-me no sofá. Afundei o rosto entre as mãos; chegara ao limite, tardiamente não conseguia conciliar os pensamentos. Escorri para o chão. Deitei-me, olhando fixo para o teto escurecido. Que tipo de pesadelo estava sendo aquele dia?

– E se eu aceitar sua oferta, que será de você?

– Abreviarei minha missão interior; acrescentarei ou expandirei sentido ao burlar o mapa; tomarei um atalho, e atalhos são raridades na metanarrativa universal. 

– E, suponho, estarei para sempre prisioneiro de tua sina?

– Não, não para sempre, já lhe disse; meu mapa é delimitado em exatidões. Virá o dia, o Dia magnífico, em que o Equalizador terminará com a sua fome. 

O sentimento de pesadelo ainda me dominava; a situação inteira não era crível, mas ao mesmo tempo a sensação de que jamais homem algum poderia ter sonho tão complexo e tão real como aquele era avassaladora. Eis o fantástico arrombando a portinhola de meu curral de tédio, eis a espada mística de Arthur ou Siegfried caindo do céu e enterrando-se no peito pálido de meu desconcerto. Que importa se sonho ou realidade?

– Aceito sua proposta.

– Oh. Finalmente. – disse, sentando-se. – Aquele que ulula entre terribilidade e misericórdia apiedou-se de mim. Pois há alguns séculos passei a clamar não no vazio, mas pelo nome de Seu Filho, o intermediário.

– ??? Oh. Fala de Deus? 

– Toda fala, fala de Deus, e não há escape, ó sucessor.

 Ela se levantou e aproximou-se do local em que me deitara. Levantei-me, leso de quaisquer sentimentos. Ao abrir seu manto, pude divisar, mesmo na penumbra, o interior de seu sinistro corpo, ou fosse o que fosse. Era um entretecido de feixes, como raízes escurecidas, mas que me aparentaram sinalizar um belo mosaico, uma apetecível estrutura. Enfiou sua mão direita no próprio peito de urdiduras, que se abriram ao toque. De dentro de si retirou uma pedra. Ou joia. Tinha o tamanho de um punho fechado, talvez de um coração. Era translúcida; em seu interior, feixes de luz negra pulsavam em diversas direções.

– Este é o roteiro de missões. Aqui você verá cada alma a tocar, e quando fazê-lo.

– Como você pode tocar a tantos ao mesmo tempo? – repeti a pergunta inicial, noutros termos, tornando a um de seus nós metafísicos que me fascinavam.

– O Tempo, principezinho das cismas, é passível de dobraduras. Posso, e você, no começo não sem assombro, o fará, dobrá-lo para frente e para trás: ele sempre volta à posição normal, mas me permite estar em muitos lugares, em muitos tempos que, para os prisioneiros de sua falsa linearidade, parecem um tempo só. 

Em seguida ela retirou seu manto. Inesperadamente, como se para deitar terror a um homem já além do medo – pois colapsado pelo absurdo –, a fraca luz de LED da sala tremulou. Vi seu corpo de feixes, de raízes entrelaçadas, sua nudez milenar. Ela estendeu-me sua mortalha.

– E se o Deus de que fala não me aceitar?

– Ele me permitiu escolher alguém. Não como fui escolhida, dentre a animália. Nem entre espíritos. Mas me permitiu escolher um dentre os de Adão. E eu escolhi você. E, se aconteceu, faz parte do sentido. O mais é contigo, e logo saberá.

Tomei seu manto. Deitei-o sobre meu corpo. Raízes começaram a cobrir minha pele; mas sentia também, em meu interior, seu avanço lento. A primeira sensação foi uma mudança no meu poder visual: podia ver a quilômetros de distância, estando dentro de minha casa. 

– Agora irei lhe inserir a pedra. Doerá. Sim, doerá como o pecado de Adão.

Tocou-me com a pedra. No pouco tempo de reflexão entre suas palavras e sua ação de estender a joia, imaginei-a gélida. Mas era ardente, e incendiou meu ser, agora feito de urdiduras e entrelaces. Minha visão turvou-se, e como que, em poucos segundos, apaguei e despertei. E já era a Morte.

A pedra pulsava dentro de mim; sem que me desse conta ou plena consciência, desdobrei-me ou dobrei o que antes chamava de Tempo, voando célere em direção, perdão, nas muitas direções em que apontavam os feixes febris dentro da joia, acelerado por seu impulso. E, no entanto, eu permanecia ali. E era terrível, e era magnífico. Havia sentido, possuía a firme presciência de que havia missão e dela haveria um término; de que um dia aquele que alistara minha predecessora e agora me aceitava, iria finalizar meu propósito, e traria a equalização. Equalização, rosa para onde todas as coisas rumam, linhas de sua mão cosmocrática.

A minha predecessora, agora o borbulhar de um vulto amorfo, se arrastara em direção à porta; sem olhar para trás, abriu-a. Eu não encontrei palavras a proferir, inebriado de meu novo e vasto estado.

Ao ser alcançada pela luz do dia, ela transmutou-se em uma reles doninha. Então realmente não fora criada ex-nihili (do nada); fora uma doninha transfeita neste ser que a Queda, ou melhor, a provisória Ascensão do Absurdo, fez necessário existir. Isso explica ter sido possível o repasse do manto, um câmbio da máxima escuridão de as mãos do pó para as mãos do pó.

Lá fora, o pequeno mustelídeo corria e saltitava, provavelmente já insciente (ignorante) de seu passado impossível. Atingira a equalização, ou ao menos retornara à possibilidade de brevidade, cura para o pó. Equalização que se completaria quando a joia do Deus Equalizador em meu peito sinalizasse sua direção, para que eu colhesse minha predecessora.

A não ser que Ele, o Deus Cosmocrator venha a me tocar antes, cerrando o voluptuoso túmulo do absurdo do qual me fiz porteiro. Ele de quem eu duvidava da existência, posso sentir agora, aterrado, sua presença e seu amor, tese da qual estou antítese, sentido por trás de todo sentido.

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Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fonte: Sammis Reachers. Fabulário índigo: contos. São Gonçalo/RJ: Ed. do Author, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Edy Soares (Fragata da Poesia) 70: Epitáfio

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Edy Soares (Edmardo Lourenço Rodrigues), nasceu na cidade de Ibatiba/ES, em 1964. Filho de pais agricultores. Viveu nos Estados Unidos entre 1991 e 2006. Regressando ao Brasil dedicou-se, além do seu trabalho de rotina, ao seu acervo de poemas e composições de canções. Classificado em vários concursos literários, nacionais e internacionais, de Sonetos, trovas e outros gêneros, identifica-se principalmente como sonetista clássico e trovador. Participação em várias feiras literárias e na Bienal Capixaba do Livro. Empresário no ramo hoteleiro, com o Fragata Hotel, em Guarapari/ES. Reside em Vila Velha/ES. Membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (ABRASSO), Academia Pan-Americana de Letras e Artes (APALA), Academia Ibatibense de Letras e Artes, Confraria Brasileira de Letras, entre outros. Livros publicados: “Poemas Canções e Sonetos”, “Flores no Deserto”,  “Sonetos Sonantes”, co-autor do livro “Três em Trovas”.
 

Aparecido Raimundo de Souza (O Stubby*)

O EPAMINONDAZINHO, um moleque de quinze anos, chegou notoriamente cediço na aula de matemática. Assim que o viu entrar, a professora abriu a correr se plantando no encalço dele. Ao pará-lo, antes que se sentasse, o interpelou:

— O que foi que houve Epaminondazinho que você chegou atrasado?

— A senhora nem vai acreditar, tia Camomila: fui atacado por um cachorro bravo justamente quando estava para pegar o caminho aqui da escola! 

A professora Camomila fazendo uma cara de assustada:

— Nossa, disse ela confusa! E está tudo bem?  — Ele mordeu você? — Acaso se machucou? 

Epaminondazinho sem perder a esportiva e rindo de um canto a outro da boca, explicou: 

— Olha, tia Camomila. Está tudo nos conformes: Morder ele não me mordeu, só fez latir. — Tampouco me machuquei... aconteceu, inclusive, um fato interessante. Seu Tião...

A mestra o interrompeu:

— Quem é seu Tião?

— O dono do cachorro. Ele chegou em tempo de ralhar com o animal e o prender numa coleira. — Aliás, um gesto desnecessário...

— Graças a Deus, Epaminondazinho. Porém, isso não explica quase quarenta minutos de atraso. Conta a verdade...

— Seu Tião me pediu que fosse até a casa dele. É perto lá da minha rua. E eu não perdi tempo. Aceitei o convite, até porque a Lilica...

A professora Camomila estava a ponto de perder a esportiva. Berrou:

— Quem é Lilica, Epaminondazinho? — Você está me enrolando... conta a verdade ou vou levar você agora e o entregarei de bandeja à tia Valquíria, da coordenadoria. E você sabe que ela é dura na queda: — Pedirei para chamarem seus pais. 

Epaminondazinho, não se fez de rogado. Respondeu sem pressa. A sala, em peso, observava atenciosamente e em silêncio, cada palavra dita pelo coleguinha:

— Tia, não há necessidade. Estou falando a verdade, Lilica é a filha dele. Um ano mais nova que eu, e não é de hoje que estou de olho nela... 

O moleque fez uma pausa e prosseguiu:

— Conversa vai, conversa vem, acertei dois passarinhos com uma estilingada só. Revi a Lilica, e descobri que o Stubby...

— Meu Pai Santíssimo, Epaminondazinho. — Quem é esse... como é mesmo o nome?

— Stubby, tia. Se escreve assim.  Esse, tê, u, dois bês e ípsilon... aliás, é o nome do cachorro. Ele jamais me morderia. Só fez latir e fazer festinha. Confesso, me assustei com outra coisa. Quando em casa de seu Tião, ele me mostrou as medalhas que o danado ganhou... nossa! Mais de vinte, só a senhora vendo...

— Medalhas?

— Sim, tia Camomila. Eu disse para a senhora que ele veio para cima de mim muito bravo... e como eu não o conhecia... 

A professora não se intimidou. Todavia, dava para se perceber, estava furiosa. Redarguiu:

— Cão bravo ataca, Epaminondazinho. Você deu foi sorte. Ponha as mãos para o céu.

— Tia, a senhora não entendeu. Não sabe diferenciar bravo de brabo? 

— Seja mais claro, mocinho... não estou aqui para perder tempo. 

— Stubby correu para meu lado latindo e querendo carinho, exatamente por ser bravo... ouvira falar dele, mas nunca o havia visto... 

Tia Camomila ainda tentou manter o controle:

— Desenhe. Enquanto desenha, pegue seu material escolar. Vamos para a sala da tia Valquíria.

Epaminondazinho estava começando a se irritar. Não era para menos:

— Calma, tia Camomila. Deixa eu explicar. A senhora vai dizer que não gosto de sua aula. Daí minha demora. Negativo. A senhorita é para mim como uma prova de matemática. Difícil, mas elegantemente compensadora. 

A tia Camomila diante desta revelação, sorriu, brejeira. Epaminondazinho voltou ao cachorro: 

— Stubby é bravo, de braveza e de bravura. Simplificando, um cachorro valente. 

Epaminondazinho fez uma breve pausa e seguiu em frente:

— Não tem medo de nada. Por sua característica destemida, ele ganhou medalhas em diversas competições caninas. É um atleta olímpico nato. Diferente de brabo, que seria o contrário, ou um cachorro perverso, feroz. Entre um cachorro brabo, e um cãozinho bravo, o que faz toda a diferença é a letra “B” substituída pela letra “V”.  

A tia Camomila finalmente sem munição para seguir discutindo, mandou o garoto se acomodar e continuou a aula. Se via, em seu semblante uma abespinhes desconcertante. Numa olhada geral da sala, meia dúzia de rostos pingados captou a conversa e intimamente aplaudiu a discussão. A outra banda caiu na gargalhada, — ou seja — ninguém entendeu bulhufas. Resumindo, em números de cabeças presentes: cinco ou seis alunos assimilaram o que Epaminondazinho discutia com a professora de matemática. O resto da galera, a bem da verdade não passava de um bando de mentes vazias. 
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(*) STUBBY: — O lendário bull terrier Stubby, citado como sendo o cão de estimação do senhor Tião, no presente conto, foi o cão mais condecorado da história militar dos Estados Unidos. Ele foi adotado pelo soldado J. Robert Conroy ainda filhote, em 1917. Conroy conseguiu embarcá-lo escondido em um navio para a França durante a Primeira Guerra Mundial. Lá, ele participou de 17 combates. Stubby realizou inúmeras façanhas durante a guerra. Entre elas salvou soldados de gases tóxicos no front de batalha, localizou feridos em combates e até mesmo capturou sozinho um espião alemão. Graças às suas façanhas, ele foi o primeiro cão a ser condecorado sargento do exército americano. O obituário da morte de Stubby foi publicado em três colunas no jornal “The New York Times” em 4 de abril de 1926.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes: Texto enviado pelo autor.
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