quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Sammis Reachers (A visitante)

Ela passou a tarde inteira medindo meu coração, desfazendo pequenas criptografias.

A noite chegara lá fora.

– O que a senhora quer, afinal?, perguntei.

– Sair da rotina. Nada. Obrigado pelo café. 

Foi à estante, olhou com desdém a profusão de livros. Uma parte insuspeita a atraiu: um trecho da estante onde eu guardava memorabilia, pequenos brinquedos, álbuns de figurinha. Tocou os brinquedos, sorriu ao manusear um boneco do Hulk. Puxou alguns álbuns. Apanhou o mais antigo, um álbum de cromos sobre dinossauros, da década de 60 do último século a morrer.

– O homem que pintou esses animais era um ser infeliz. Japonês de nome Agura Sayta, depois John Sayta, radicado em Cincinnati, nos EUA. Como você, praticava colecionismo: possuía escaravelhos. Escaravelhos embalsamados. Seu amor era a taxidermia, o reino de aço dos ínfimos e fortes insetos, mas ganhou a vida pintando dinossauros. Morreu de uma pneumonia. ...Segunda feira começa o verão em seu hemisfério... – ela concluiu, mudando completamente de assunto. 

Já havia percebido esse padrão, esse alheamento. Se fosse cabível, diria que ela está esclerosada. Mas algo em mim insiste (intui) que ela sempre foi assim. O alheamento é parte de seu ofício.

– Quando você nasceu? – rompi a casquinha do nonsense com minha primeira pergunta de verdade. 

Ela nada respondeu: olhava pela janela, contemplando talvez as roseiras podadas do jardim.

– Você consegue estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Como faz isso? Há muitas de você?

– Nascer não é a palavra. Nascer nem se aproxima da essência do conceito. Sou para o Universo como estas três paredes deste quarto de quatro. Sem elas não há quarto, não há morada: sou a coesão, a corrente de prata, o elo que liga o início deste Universo a seu fim, e seu fim será o meu. Mato para que um dia eu morra, enfim. 

Puxou uma biografia de Einstein da estante. Fez menção de abrir o livro, declinou. 

– A entropia que causa o caimento energético da matéria, entropia que a tudo corrói e mata e eu somos uma: o mesmo princípio, o mesmo... material criando formas diversas. 

Era a minha vez de saltar de assuntos, pisar num detalhe que me perturbara desde que lhe abri a porta: 

– Senhora, seus olhos são assustadoramente... impossivelmente melancólicos.  Congelados num perpétuo estado de pré-lágrima. Eu os suporia duros, se tal imaginação tivesse tido seu tempo. É um detalhe ínfimo, mas que se mereceria espantoso. E o pior não é esse espanto, mas sua quase ausência... Pois é como se eu já tivesse visto esta cena e seus olhos. Você já esteve aqui? Em algum momento de que não me recordo? 

– Se o Tempo é circular? Se você se sente girar, sim. Esse boneco sem braços... sim, lembrança de sua infância. O Tempo é uma explosão secundária ou de fundo, uma força-de-seguir-energias que, a partir do momento inicial, expandiu-se em todas as direções... mas não como o espaço, que vai sempre adiante, ou seguindo a placidez das linhas... o Tempo é inconcebível em linhas, elas avançam, entrechocam-se, ricocheteiam... Tempo, encantação domesticada, é a reificação mais mágica do Lumen, do Criador. Confuso? Ele não é para as palavras, como tanta coisa.

– Gostei daquilo que você escreveu – ela diz, noutro salto ou tombo demencial. E recita: “Vejo as pequenas mangas crescendo nos pés, a partir de setembro. Em dezembro estarão nas mesas e mãos. Um dia morrerei e as mangas, indiferentes, continuarão nascendo, crescendo açucaradas, sendo arrancadas ou caindo ao chão, diante de homens que não saberão de mim, seivas engordando uma outra manga, mesmerizados e indiferentes. Há um toque, um toque magistral de horror em todo esse processo de vida e morte.”

– Quer jogar xadrez? 

– Para quê? Rainha-negra-mata-peões-mata-cavalos-mata-bispo-mata-torre-mata-rei-e-rainha-brancos. Partidários da rainha negra morrem. Rainha negra morre. Morte sempre vence.

– Ha-ha-ha... Perdão, senhora. Não quis dizer que poderia vencê-la, não imaginei o jogo sob esse prisma. Mas agora que a senhora referiu a isso... se fosse possível, como vencê-la? 

– Sabe, certa feita um rei travestiu-se de peão e me venceu em meu próprio jogo. Mas tinha que ser, e o rei vestido em burla criara mesmo o tabuleiro-de-tudo em sua marcenaria. Era o mesmo que me criou, aos pés daquele Jardim onde teu pai foi criado e depois proscrito.

Mas vamos finalmente ao motivo deste dia. Você tem questionado e entristecido, mergulhado em café e aborrecimentos. Acredita, e com razão, na construção de sentido para a sua vida. Mas tem desesperado; já não pode mais construir, já atingiu a estação dos trens exaustos e ninguém lhe espera na estação.

Eu tenho uma oferta para você.

– Vai me levar? Só podia ser isso, afinal. E precisa desonrar-se ao propor a um peão o inescapável, o inacordável?

– No oceano, este oceano absurdo, cujo sentido verdadeiro, ou final se preferir, só pertence ao Um, você e, sei que inesperadamente eu também, sabemos que o maior tesouro é possuir sentido. É quase paradoxal, mas não temos escolha. Eu lhe ofereço o sentido sob minha jurisdição. Uma migalha bem maior que a sua.

“Tudo de que uma criatura, qualquer criatura, precisa: um mapa e uma missão. O bernardo-eremita possui seus instintos, seu mapa, e sua missão é cumprir o ciclo; um demônio possui seu mapa de ódio, e uma agenda que se renova a cada homem que nasce, e como nascem homens!

“Mas você, homenzinho amorável, desespera e pisoteia, em subidas e descidas, os andares do sobrado de sua própria angústia.”

– E que tipo de sentido a senhora me oferece? 

– O único que possuo, e como seria diferente? O meu.

– Não entendo.

– Mapa e missão, mapa e missão. É tudo de que toda criatura precisa. E sou feitura como você. Te darei minha missão e meu mapa. Não tema; não passará uma vida eterna sob meu manto; como missão, ela terá conclusão, e como mapa, há destino a alcançar.

– Calma, madame, calma aí. Quer que eu seja um... um tipo de seu ajudante?!? Um arauto, talvez?

– Quero que você seja eu.

Aturdido pelo insólito de tal diálogo, sentei-me no sofá. Afundei o rosto entre as mãos; chegara ao limite, tardiamente não conseguia conciliar os pensamentos. Escorri para o chão. Deitei-me, olhando fixo para o teto escurecido. Que tipo de pesadelo estava sendo aquele dia?

– E se eu aceitar sua oferta, que será de você?

– Abreviarei minha missão interior; acrescentarei ou expandirei sentido ao burlar o mapa; tomarei um atalho, e atalhos são raridades na metanarrativa universal. 

– E, suponho, estarei para sempre prisioneiro de tua sina?

– Não, não para sempre, já lhe disse; meu mapa é delimitado em exatidões. Virá o dia, o Dia magnífico, em que o Equalizador terminará com a sua fome. 

O sentimento de pesadelo ainda me dominava; a situação inteira não era crível, mas ao mesmo tempo a sensação de que jamais homem algum poderia ter sonho tão complexo e tão real como aquele era avassaladora. Eis o fantástico arrombando a portinhola de meu curral de tédio, eis a espada mística de Arthur ou Siegfried caindo do céu e enterrando-se no peito pálido de meu desconcerto. Que importa se sonho ou realidade?

– Aceito sua proposta.

– Oh. Finalmente. – disse, sentando-se. – Aquele que ulula entre terribilidade e misericórdia apiedou-se de mim. Pois há alguns séculos passei a clamar não no vazio, mas pelo nome de Seu Filho, o intermediário.

– ??? Oh. Fala de Deus? 

– Toda fala, fala de Deus, e não há escape, ó sucessor.

 Ela se levantou e aproximou-se do local em que me deitara. Levantei-me, leso de quaisquer sentimentos. Ao abrir seu manto, pude divisar, mesmo na penumbra, o interior de seu sinistro corpo, ou fosse o que fosse. Era um entretecido de feixes, como raízes escurecidas, mas que me aparentaram sinalizar um belo mosaico, uma apetecível estrutura. Enfiou sua mão direita no próprio peito de urdiduras, que se abriram ao toque. De dentro de si retirou uma pedra. Ou joia. Tinha o tamanho de um punho fechado, talvez de um coração. Era translúcida; em seu interior, feixes de luz negra pulsavam em diversas direções.

– Este é o roteiro de missões. Aqui você verá cada alma a tocar, e quando fazê-lo.

– Como você pode tocar a tantos ao mesmo tempo? – repeti a pergunta inicial, noutros termos, tornando a um de seus nós metafísicos que me fascinavam.

– O Tempo, principezinho das cismas, é passível de dobraduras. Posso, e você, no começo não sem assombro, o fará, dobrá-lo para frente e para trás: ele sempre volta à posição normal, mas me permite estar em muitos lugares, em muitos tempos que, para os prisioneiros de sua falsa linearidade, parecem um tempo só. 

Em seguida ela retirou seu manto. Inesperadamente, como se para deitar terror a um homem já além do medo – pois colapsado pelo absurdo –, a fraca luz de LED da sala tremulou. Vi seu corpo de feixes, de raízes entrelaçadas, sua nudez milenar. Ela estendeu-me sua mortalha.

– E se o Deus de que fala não me aceitar?

– Ele me permitiu escolher alguém. Não como fui escolhida, dentre a animália. Nem entre espíritos. Mas me permitiu escolher um dentre os de Adão. E eu escolhi você. E, se aconteceu, faz parte do sentido. O mais é contigo, e logo saberá.

Tomei seu manto. Deitei-o sobre meu corpo. Raízes começaram a cobrir minha pele; mas sentia também, em meu interior, seu avanço lento. A primeira sensação foi uma mudança no meu poder visual: podia ver a quilômetros de distância, estando dentro de minha casa. 

– Agora irei lhe inserir a pedra. Doerá. Sim, doerá como o pecado de Adão.

Tocou-me com a pedra. No pouco tempo de reflexão entre suas palavras e sua ação de estender a joia, imaginei-a gélida. Mas era ardente, e incendiou meu ser, agora feito de urdiduras e entrelaces. Minha visão turvou-se, e como que, em poucos segundos, apaguei e despertei. E já era a Morte.

A pedra pulsava dentro de mim; sem que me desse conta ou plena consciência, desdobrei-me ou dobrei o que antes chamava de Tempo, voando célere em direção, perdão, nas muitas direções em que apontavam os feixes febris dentro da joia, acelerado por seu impulso. E, no entanto, eu permanecia ali. E era terrível, e era magnífico. Havia sentido, possuía a firme presciência de que havia missão e dela haveria um término; de que um dia aquele que alistara minha predecessora e agora me aceitava, iria finalizar meu propósito, e traria a equalização. Equalização, rosa para onde todas as coisas rumam, linhas de sua mão cosmocrática.

A minha predecessora, agora o borbulhar de um vulto amorfo, se arrastara em direção à porta; sem olhar para trás, abriu-a. Eu não encontrei palavras a proferir, inebriado de meu novo e vasto estado.

Ao ser alcançada pela luz do dia, ela transmutou-se em uma reles doninha. Então realmente não fora criada ex-nihili (do nada); fora uma doninha transfeita neste ser que a Queda, ou melhor, a provisória Ascensão do Absurdo, fez necessário existir. Isso explica ter sido possível o repasse do manto, um câmbio da máxima escuridão de as mãos do pó para as mãos do pó.

Lá fora, o pequeno mustelídeo corria e saltitava, provavelmente já insciente (ignorante) de seu passado impossível. Atingira a equalização, ou ao menos retornara à possibilidade de brevidade, cura para o pó. Equalização que se completaria quando a joia do Deus Equalizador em meu peito sinalizasse sua direção, para que eu colhesse minha predecessora.

A não ser que Ele, o Deus Cosmocrator venha a me tocar antes, cerrando o voluptuoso túmulo do absurdo do qual me fiz porteiro. Ele de quem eu duvidava da existência, posso sentir agora, aterrado, sua presença e seu amor, tese da qual estou antítese, sentido por trás de todo sentido.

***********************************
Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fonte: Sammis Reachers. Fabulário índigo: contos. São Gonçalo/RJ: Ed. do Author, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Edy Soares (Fragata da Poesia) 70: Epitáfio

= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Edy Soares (Edmardo Lourenço Rodrigues), nasceu na cidade de Ibatiba/ES, em 1964. Filho de pais agricultores. Viveu nos Estados Unidos entre 1991 e 2006. Regressando ao Brasil dedicou-se, além do seu trabalho de rotina, ao seu acervo de poemas e composições de canções. Classificado em vários concursos literários, nacionais e internacionais, de Sonetos, trovas e outros gêneros, identifica-se principalmente como sonetista clássico e trovador. Participação em várias feiras literárias e na Bienal Capixaba do Livro. Empresário no ramo hoteleiro, com o Fragata Hotel, em Guarapari/ES. Reside em Vila Velha/ES. Membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (ABRASSO), Academia Pan-Americana de Letras e Artes (APALA), Academia Ibatibense de Letras e Artes, Confraria Brasileira de Letras, entre outros. Livros publicados: “Poemas Canções e Sonetos”, “Flores no Deserto”,  “Sonetos Sonantes”, co-autor do livro “Três em Trovas”.
 

Aparecido Raimundo de Souza (O Stubby*)

O EPAMINONDAZINHO, um moleque de quinze anos, chegou notoriamente cediço na aula de matemática. Assim que o viu entrar, a professora abriu a correr se plantando no encalço dele. Ao pará-lo, antes que se sentasse, o interpelou:

— O que foi que houve Epaminondazinho que você chegou atrasado?

— A senhora nem vai acreditar, tia Camomila: fui atacado por um cachorro bravo justamente quando estava para pegar o caminho aqui da escola! 

A professora Camomila fazendo uma cara de assustada:

— Nossa, disse ela confusa! E está tudo bem?  — Ele mordeu você? — Acaso se machucou? 

Epaminondazinho sem perder a esportiva e rindo de um canto a outro da boca, explicou: 

— Olha, tia Camomila. Está tudo nos conformes: Morder ele não me mordeu, só fez latir. — Tampouco me machuquei... aconteceu, inclusive, um fato interessante. Seu Tião...

A mestra o interrompeu:

— Quem é seu Tião?

— O dono do cachorro. Ele chegou em tempo de ralhar com o animal e o prender numa coleira. — Aliás, um gesto desnecessário...

— Graças a Deus, Epaminondazinho. Porém, isso não explica quase quarenta minutos de atraso. Conta a verdade...

— Seu Tião me pediu que fosse até a casa dele. É perto lá da minha rua. E eu não perdi tempo. Aceitei o convite, até porque a Lilica...

A professora Camomila estava a ponto de perder a esportiva. Berrou:

— Quem é Lilica, Epaminondazinho? — Você está me enrolando... conta a verdade ou vou levar você agora e o entregarei de bandeja à tia Valquíria, da coordenadoria. E você sabe que ela é dura na queda: — Pedirei para chamarem seus pais. 

Epaminondazinho, não se fez de rogado. Respondeu sem pressa. A sala, em peso, observava atenciosamente e em silêncio, cada palavra dita pelo coleguinha:

— Tia, não há necessidade. Estou falando a verdade, Lilica é a filha dele. Um ano mais nova que eu, e não é de hoje que estou de olho nela... 

O moleque fez uma pausa e prosseguiu:

— Conversa vai, conversa vem, acertei dois passarinhos com uma estilingada só. Revi a Lilica, e descobri que o Stubby...

— Meu Pai Santíssimo, Epaminondazinho. — Quem é esse... como é mesmo o nome?

— Stubby, tia. Se escreve assim.  Esse, tê, u, dois bês e ípsilon... aliás, é o nome do cachorro. Ele jamais me morderia. Só fez latir e fazer festinha. Confesso, me assustei com outra coisa. Quando em casa de seu Tião, ele me mostrou as medalhas que o danado ganhou... nossa! Mais de vinte, só a senhora vendo...

— Medalhas?

— Sim, tia Camomila. Eu disse para a senhora que ele veio para cima de mim muito bravo... e como eu não o conhecia... 

A professora não se intimidou. Todavia, dava para se perceber, estava furiosa. Redarguiu:

— Cão bravo ataca, Epaminondazinho. Você deu foi sorte. Ponha as mãos para o céu.

— Tia, a senhora não entendeu. Não sabe diferenciar bravo de brabo? 

— Seja mais claro, mocinho... não estou aqui para perder tempo. 

— Stubby correu para meu lado latindo e querendo carinho, exatamente por ser bravo... ouvira falar dele, mas nunca o havia visto... 

Tia Camomila ainda tentou manter o controle:

— Desenhe. Enquanto desenha, pegue seu material escolar. Vamos para a sala da tia Valquíria.

Epaminondazinho estava começando a se irritar. Não era para menos:

— Calma, tia Camomila. Deixa eu explicar. A senhora vai dizer que não gosto de sua aula. Daí minha demora. Negativo. A senhorita é para mim como uma prova de matemática. Difícil, mas elegantemente compensadora. 

A tia Camomila diante desta revelação, sorriu, brejeira. Epaminondazinho voltou ao cachorro: 

— Stubby é bravo, de braveza e de bravura. Simplificando, um cachorro valente. 

Epaminondazinho fez uma breve pausa e seguiu em frente:

— Não tem medo de nada. Por sua característica destemida, ele ganhou medalhas em diversas competições caninas. É um atleta olímpico nato. Diferente de brabo, que seria o contrário, ou um cachorro perverso, feroz. Entre um cachorro brabo, e um cãozinho bravo, o que faz toda a diferença é a letra “B” substituída pela letra “V”.  

A tia Camomila finalmente sem munição para seguir discutindo, mandou o garoto se acomodar e continuou a aula. Se via, em seu semblante uma abespinhes desconcertante. Numa olhada geral da sala, meia dúzia de rostos pingados captou a conversa e intimamente aplaudiu a discussão. A outra banda caiu na gargalhada, — ou seja — ninguém entendeu bulhufas. Resumindo, em números de cabeças presentes: cinco ou seis alunos assimilaram o que Epaminondazinho discutia com a professora de matemática. O resto da galera, a bem da verdade não passava de um bando de mentes vazias. 
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

(*) STUBBY: — O lendário bull terrier Stubby, citado como sendo o cão de estimação do senhor Tião, no presente conto, foi o cão mais condecorado da história militar dos Estados Unidos. Ele foi adotado pelo soldado J. Robert Conroy ainda filhote, em 1917. Conroy conseguiu embarcá-lo escondido em um navio para a França durante a Primeira Guerra Mundial. Lá, ele participou de 17 combates. Stubby realizou inúmeras façanhas durante a guerra. Entre elas salvou soldados de gases tóxicos no front de batalha, localizou feridos em combates e até mesmo capturou sozinho um espião alemão. Graças às suas façanhas, ele foi o primeiro cão a ser condecorado sargento do exército americano. O obituário da morte de Stubby foi publicado em três colunas no jornal “The New York Times” em 4 de abril de 1926.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes: Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 195



Trova de
WELLINGTON FREITAS
Caicó/RN

Há um relógio em cada esquina
marcando o tempo atual;
mas não marca quem destina,
nosso destino final.
= = = = = =

Poema de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

Agradecimento

Feldman é um vencedor 
um mestre da alegria, 
um Poeta Trovador, 
um fazedor de Poesia. 
Não há em todo universo 
melhor fazedor de verso 
pois é um dom que ele traz! 
Pra Feldmam, em nada eu ganho, 
ele é grande no tamanho 
e nas Poesias que Faz.
= = = = = = = = =  

Trova de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Feldman, amigo, eu desejo
tudo aquilo que te apraz...
viver a vida sem pejo, 
porém envolta na paz!
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Chave do tempo

Tarde de inverno,
Imóvel no arame
Ele continua
O prendedor de roupas
Silencia-se
Sem a companhia
Do lençol ou da camisa branca...
Em sua geometria
Ostenta as marcas
Do sol, da chuva
E das noites frias...
A ferrugem
Com seus tons cobriu seu metal,
E a boa parte de sua madeira
Foi tingida com a passagem
Do pôr do sol e do amanhecer
Prendendo com suas pontas
Lembranças de ontens -
Admirável sua resistência,
Quase, dobra-se à rotina
Das horas, dias e anos -
Mas, a essência permanece
Misteriosa
Chave do Tempo...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Do coveiro, a noiva, rente 
é tão magra o estrupício, 
que ele diz, literalmente: 
– Casei com os ossos do ofício. 
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Nunca a casa ficou só de tão vazia
(Rui Balsemâd da Silva in "Meu grito meu canto")

Nunca a casa ficou só de tão vazia
Como nesse dia trinta de Agosto
Quando os olhos te fechei, e o teu rosto
Ficou da mesma cor da cama fria.

A tua alma pura é que aquecia
Esta tua casa onde tinhas posto
Coisas poucas, pequenas, mas com gosto
Com esse amor que à vida te prendia.

Mas da vida, sem ódios, te esvaíste
E nesse dia negro tu partiste
Para onde pertencias; o Além.

Regressaste ao lugar de onde vieste
E já que aos outros tudo de ti deste
Daqui nada levaste, ó minha Mãe! 
= = = = = = = = = 

Triverso de
MILLOR FERNANDES
Rio de Janeiro/RJ, 1923- 2012

A palmeira e sua palma
Ondulam o ideal
Da calma.
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Pecador

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Ninguém calcula essa dor 
no coração dos mortais… 
Quando a saudade é de amor, 
a dor é cem vezes mais !
= = = = = = 

Setilha e Trovas de
NEMÉSIO PRATA 
(Fortaleza/CE) 
JOSÉ FELDMAN 
(Campo Mourão/PR)

Diálogo sem Pé nem Cabeça

Eu pensei por tanto tempo 
no tempo sem ter um tempo 
pra pensar no tanto tempo 
que pensei: passei do tempo... 
e pensar que o tempo tem 
tempo para quem não tem 
tempo de pensar no tempo!
Nemésio Prata

Amigo Nemésio 
Mas o tempo não para por aí... se tiver algum com pé quebrado me enforco num pé de alface...rsrsrs 

Passa o tempo, tanto tempo... 
passa o tempo por quem tem 
um tempo sem contratempo, 
sobre um tempo que não tem. 

Se para agora há mais tempo, 
qual o tempo você tem? 
Pois já se faz tanto tempo, 
que um tempo muitos não têm. 
José Feldman

Um tempo de pé quebrado 
não é tempo, é contratempo; 
gostei do refrão dobrado... 
igual não vi, faz é tempo! 

Quanto a morrer enforcado 
num pé de alface, essa é boa, 
ruim é ficar pendurado; 
assim você me magoa!
Nemésio Prata

Mas se eu ficar pendurado, 
a fome pode bater... 
com tanto alface do lado, 
não terei quando morrer... 

Daí eu terei mais tempo, 
para o tempo que se tem, 
então será um passatempo, 
que o tempo tem... e não tem.
José Feldman

Do Nemésio – A minha última trova estava com 8, corrigi a tempo.

Se não fosse a corrigenda 
feita, de imediato e a tempo, 
era "forca" na merenda, 
sem alface, ao meio-tempo!
Nemésio Prata
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Partir é quase morrer... 
É deixar na despedida 
um pouco do próprio ser 
e muito da própria vida…
= = = = = = 

Poema de
RENATO RUSSO
(Renato Manfredini Júnior)
Rio de Janeiro/RJ, 1960 – 1996

Tempo Perdido

Todos os dias quando acordo, 
Não tenho mais o tempo que passou 
Mas tenho muito tempo 
Temos todo o tempo do mundo. 

Todos os dias antes de dormir, 
Lembro e esqueço como foi o dia 
"Sempre em frente, 
Não temos tempo a perder". 

Nosso suor sagrado 
É bem mais belo que esse sangue amargo 
E tão sério 
E selvagem. 

Veja o sol dessa manhã tão cinza 
A tempestade que chega é da cor dos teus 
Olhos castanhos 
Então me abraça forte 
E diz mais uma vez 
Que já estamos distantes de tudo 
Temos nosso próprio tempo. 

Não tenho medo do escuro, 
Mas deixe as luzes acesas agora, 
O que foi escondido é o que se escondeu, 
E o que foi prometido, 
Ninguém prometeu. 

Nem foi tempo perdido; 
Somos tão jovens.
= = = = = = 

Trova de
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

O tempo vem desfazendo
a família dia a dia;
hoje vivemos fazendo
sala pra tecnologia.
= = = = = = 

Hino de
FLORES DA CUNHA/ RS

Envolvido por um sonho
Sua Itália deixou,
Enfrentando a dor nos mares,
O imigrante aqui chegou;

E da serra indomável,
A videira se adonou,
Sendo mastro da bandeira
De uma história que ficou.

Jorra vinho, giram taças
Espumantes de prazer,
A brindar Flores da Cunha,
Terra do Galo e do bem-viver.

A semente é lançada
Pela mão do agricultor,
Outra mão mais delicada
Faz a arte do sabor.

No trabalho da madeira
Nascem jóias de artesão;
As agulhas trançam malhas
Como pautas de canção.

Uma torre imponente
Representa o vigor
De um povo religioso
Alicerçado em seu labor.

As cascatas, que parecem
Espumantes naturais,
Também lembram tantas lágrimas
Dos bravos ancestrais.
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Sonho de beija-flor

Beija-flores são almas flutuando
em busca de um amor plasmado em flor.
Em volteios inquietos ao sabor,
um só, se afasta, se aproxima olhando...

No suave bailado ao seu amor,
em cuidados atentos vai levando
a ternura distribuída quando,
em doces toques vai colhendo olor.

O sonho que o fascina enche-o de graça
Nesse momento de ternura abraça
com plenitude, comunhão, calor.

E o beija-flor enamorado andeja
de selinho em selinho busca, almeja
o etéreo sonho de levar sua flor.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Desbravando o chão mineiro, 
com brio, amor e esperança, 
de um pai humilde e guerreiro 
me veio a maior herança!
= = = = = = = = = 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 126

Esta poderia ser a HISTÓRIA de um cachorrinho.  Poderia!  Seguidamente nas andanças pelo cantinho da barra passo em frente do hotel para um papo com o Joaquim, comandante do local.  

Curiosamente onde eu o encontro é na rua e não no trabalho interno, por isso não tinha ainda acessado alguma das dependências do hotel.  Na quarta-feira, porém, portão aberto, me dirigi à portaria à procura do Joaquim.  Novamente ele não estava. 

No local um cachorrinho dormia num canto a ele preparado, e uma senhorinha simpática me recebeu com um bom dia alegrinho. Disse a ela que noutro dia ali estivera e, não tendo visto ninguém, tentei uma conversa com o cachorrinho que dormia.  

A garota disse que não era um cachorrinho de verdade, por isso não tem reações e estímulos.  Dorme dias e noites, alheio ao mundo-cão. 

Então a crônica de um cãozinho não passou de ESTÓRIA de um não-cachorrinho, que assim mesmo segue impondo algum respeito a alguém no recinto.  Mesmo inerte tem alguma utilidade.  Silencioso, faz a sua parte, faz a gente calar.  E a voz do silêncio é tantas vezes poderosa.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Santinha do pau oco”

A língua portuguesa possui inúmeros dizeres interessantes, que permanecem imutáveis ao longo do tempo, representando um forte viés cultural para o idioma. Esses dizeres podem ser fundamentados na cultura do próprio país ou ainda, ter influência estrangeira, mitológica, religiosa, histórica, etc. 

Sabe-se que a partir dos cinco ou seis anos, as crianças começam a usar pelo menos algumas delas, que são repetidas com frequência em casa pelos pais e amigos, e esse procedimento de expressões populares repetitivas acaba por se incorporar ao acervo cultural de uma pessoa, contribuindo assim para o enriquecimento do dicionário mental de cada qual na vida adulta.

Existe uma justificativa histórica para a expressão “SANTINHA DO PAU OCO”, que utilizamos para designar uma pessoa de caráter duvidoso, mentirosa ou falsa, surgida ainda no tempo do Brasil Colônia, por volta do Século XVII em Minas Gerais, berço da mineração do ouro, na época pesadamente tributado em 20% a título do “quinto”, que constituía a parte imposta pela coroa portuguesa como condição básica para quem se dedicava à garimpagem, extração e comercialização de metais preciosos em solo brasileiro.

Vivíamos o apogeu do domínio do catolicismo nas cidades e no campo, pela forte influência da Igreja Católica num Estado não laico, pontificando o talento dos artesãos que esculpiam em madeiras previamente selecionadas, a imagem dos santos que mais tarde viraram cobiçadas relíquias do barroco brasileiro, confeccionados propositadamente ocos, para que pudessem ser recheados de ouro em pó, assim driblando a rígida fiscalização vigente, que impunha um escorchante tributo cobrado pelas “Casas de Fundição”, repartições incumbidas de arrecadar os impostos sobre a mineração no Brasil.

A partir de então, a dita expressão invariavelmente alude à pessoa conhecida como sonsa, que aparenta ter um temperamento cordial, agradável e inocente, mas na realidade é o oposto, pois age de modo sorrateiro, escondendo suas intenções, no mais das vezes malévolas e o que é mais grave, com o obscuro e inconfessável propósito pessoal de levar vantagem, de tirar proveito.

Cairon e Márcio Oliveira aproveitaram o tema para enriquecer o cancioneiro popular, com um texto poético que revela o sentido pejorativo da expressão:

Eu pensava que você era santinha
eu jurava que você era só minha
mas foi tudo ilusão
e o meu pobre coração
você fez de bobo
Sua santinha do pau oco...

Na esteira dessa composição musical, os cantores e compositores Jefferson Morais, Luís Marcelo e Gabriel, Márcio Dhuka e Marreta, também lançaram suas canções com a mesma denominação - “SANTINHA DO PAU ÔCO” - evidenciando que não constitui motivo de orgulho para ninguém ser assim rotulado, por exprimir um conceito negativo, rebarbativo, quase sempre de pessoa falsa ou dissimulada, na qual não se deve confiar, nem mesmo rimando: 

Com a santinha de pau oco
todo cuidado é pouco!
Confiou, ela te engana
e te deixa no sufoco...

E assim se consolidou essa expressão que atravessou gerações e até hoje surge quando no meio social em que vivemos aparece alguém - homem ou mulher, jovem ou idoso - que por razões insondáveis, lança mão da dissimulação e da esperteza, para ludibriar outrem. 

E basta olhar em volta, pois em qualquer aglomerado humano, dos mais modestos aos requintados, essa nefanda figura pode ser identificada com facilidade, bastando que se observe seu agir manhoso, astuto e disfarçado, visto pela psicologia como inerentes a quem oculta seus sentimentos reais, ludibriando quase todo mundo, para só depois mostrar suas verdadeiras e turvas intenções. 
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fonte: Enviado pelo autor

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 06



= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Jerson Lima de Brito, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.

Renato Frata (Il Maestro Dorfo)

À memória de meu pai
A casa da Mamma Luigia seria igual a tantas de imigrantes italianos nos fins do século dezenove, não fosse seu jeito de ser; alta, esguia, nariguda, magriça e mandona, a ponto de fazer seu marido Ângelo, coadjuvante no trato das coisas

A família ocupava uma residência com tarefas definidas: as noras e filhas - que não estivessem de resguardo cuidavam da cozinha, da ordenha, da roupa e da casa, enquanto os filhos e genros, da roça, da tarefa de pilar arroz, do moinho de fubá, dos animais. Aos bambini cabia o trato das galinhas e a obrigação de levar, aonde os homens estivessem, água fresca e café com broa por duas vezes ao dia. 

A vida seguia na aspereza dos dias e nas noites nos aconchegos dos enormes colchões de palhas e, de resto, a lentidão do tempo em que a natureza com suas cores, clarões e vozes, comungava com a simplicidade do povo tendo Deus e os santos por guardiões do amor que gestava, de permeio.

Nessa labuta passou o tempo, até que num momento Mamma Luigia despejou:

- O "Dorfo" vai pra escola, precisamo de alguém mais sabido que noi, que leia o que 'essa gente' põe na nossa frente.

Tratava-se de Rodolpho, o caçula, e do contrato de meação que o proprietário da terra os fazia assinar para garantir sua estada no trato do cafezal. Daí a preocupação em ser menos lesados nos preços das compras, da entrega, pesagem, das somas e subtrações.

Ninguém se opôs. Já haviam passado da idade para a escola, e às mulheres, não era dado esse direito. Ângelo fez a matrícula do menino, comprou os materiais e um saco branco, para o embornal. O bambino Dorfo foi levado na manhã seguinte. De carroça. Depois iria sozinho, a pé, com a obrigação de sendo sabido, aprender para conseguir resolver os problemas de conhecimento da família.

O moleque arruivado logo aprendeu a ligação das letras compondo palavras e a formação de frases, que um mais um dá dois e muita coisa mais, o que chamou à atenção da professora. Fora feito para a escola, especialmente quando os cadernos voltavam com frases como: "parabéns, vá em frente", "isso mesmo! Estou satisfeita." escritos na parte superior das folhas.

- Buonno, buonno, bambino mio -, sorria ela, embevecida enquanto lhe gadanhava os cabelos. O Dorfo fora feito para os conhecimentos de que tanto precisavam. E teria um horizonte inteiro a si descortinado com as oportunidades derriçadas aos seus pés como os grãos de café, na colheita, a leitura e o aprendizado faziam dos homens pessoas importantes, traziam-lhe as chances dos bons negócios e até o céu derramaria em suas mãos a abençoada chuva da prosperidade, tal como aquela que volta e meia escorria dos telhados, ganhava as lavouras e as faziam florescer.

Bastasse seguir as regras da humildade e da decência: o mundo das letras, das mãos macias, do ordenado certo, enquanto eles continuariam a depender da lavoura, do meeiro-proprietário, do atravessador que os fiava na entressafra e cobrava em dobro depois. Da lida inglória do homem da roça.

Quanta sabedoria naqueles sonhos!

Quando o moleque chegou mostrando resolvidas as contas mais complicadas de aritmética, todos se empolgaram. Era mesmo o mais sabido, e chegara a hora dele começar a pagar pelo benefício. Então, ela ordenou:

- Dorfo, tu sarai il maestro de noi tutti.

Foi o que bastou para que nos começos das noites, ao redor da grande mesa da cozinha iluminada com lamparinas, lápis começassem a riscar copiando nos cadernos, as primeiras letras desenhadas por Dorfo na lousa improvisada: A-E-I-O-U.

Mamma Luigia observava a segurança do bambino que, apesar do respeito que dedicava aos irmãos, mostrava destreza e paciência diante da dificuldade que tinham em desenhar nas entrelinhas, os complicados rabiscos.

Com o tempo, mais familiarizados com os instrumentos de escrita e com suas pontas finas e frágeis, as mãos calosas foram se adaptando a juntar as letras em carreirinha e a montar seus nomes, os sobrenomes, as frases curtas do dia a dia como; o sol está quente, a lua está clara; e mais tarde, pensamentos longos e enigmáticos, saídos do coração.

O mestre Dorfo havia alfabetizado seus irmãos e cunhados como num passe de mágica, tão capaz, tão dono de si com um pedaço de giz na mão. Era um verdadeiro professor. E só não o fez, ensinando a mamma e su padre Angelo, porque eles não quiseram: - estavam tropo vecchi  para pegar num lápis; era per i Giovani. 

O vento que leva o cisco, leva também palavras e, nesse soprar, a notícia correu pela colônia. Foi o que bastou para que a cozinha da grande casa, de hora para outra, ficasse pequena para o abrigo de vizinhos que chegavam com cadeiras e lamparinas, dispostos a aprender. Homens de mãos calosas, mulheres de toucas e xales puseram-se ali, sentados em união, às lições encantadoras da aprendizagem das coisas estupendas que o pequeno Dorfo tinha a oferecer.

Il mestre Dorfo, agora de calças compridas, contava histórias dos navios de Cabral, dos textos de Machado de Assis sobre a aurora de esperança do país a cada amanhecer, da terra que nunca negou frutos a quem plantasse a semente, e explicava sobre os astros do céu, sobre as constelações, as mudanças da lua com a sua importância à pesca e agricultura, os planetas do cosmo, as intrigas políticas do poder republicano que o jornal semanal trazia, as coisas intrincadas da Primeira Guerra, o amor ao Ser Supremo e, pacientemente, os ensinava ler e escrever seus nomes, as datas, os acontecimentos, a fazer contas de mais, de menos, de dividir e de multiplicar.

Era il maestro, che solo deto la verità, como vaticinara a mamma.
==============================

Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = Vanda Fagundes Queiroz