domingo, 12 de janeiro de 2025

Aluísio de Azevedo (No Maranhão)

Quando eu tinha treze anos, lá na província, uma das famílias que mais intimamente se dava com a minha era a do velho Cunha, um bom homem, já afastado do comércio de retalhos, onde fizera o seu pecúlio, e casado com uma senhora brasileira, Dona Mariana.

Tinham um casal de filhos: Luís e Rosa, ou Rosinha, como lhe chamávamos. Luís era mais velho que a irmã apenas um ano e mais moço do que eu apenas meses. 

Fomos, por bem dizer, criados juntos, porque quando não era eu que ia visitá-los, eram eles dois que vinham passar o dia comigo.

Moravam na praia de Santo Antônio, num grande e belo sobrado, cujos fundos, como o de todas as casas do litoral da ilha do Maranhão, davam diretamente para o mar. 

O Cunha, além desta casa, que era de sua propriedade, tinha um sítio onde ia frequentemente passear com a família.

Quase sempre levavam-me também. O sítio chamava-se “Boa-Vinda” e ficava à margem do rio Anil, para além de Vinhais. Embarcava-se no próprio quintal da casa. 

Estes passeios à Boa-Vinda constituíam um dos maiores encantos da minha infância. Criado à beira mar na minha ilha, eu adorava a água; aos doze anos era já valente nadador, sabia governar um escaler ou uma canoa, amainar com destreza a vela num temporal, e meu remo não se deixava abater facilmente pelo remo de pá de qualquer jacumaúba* pescador de piabas.

Saíamos quase sempre no segredo da primeira madrugada e chegávamos ao sítio ao despontar do sol.

Ah! que deliciosos passeios! Que belas manhãs, frescas, deslizadas por entre os mangais, sentindo-se rescender forte o odor salgado das maresias!

E depois, lá no sítio, instalados na varanda de telha vã, que prazer não era devorar o almoço, assentados todos em bancos de pau, em volta de uma mesa coberta de linho claro, a beber-se o vinho novo do caju por grandes canecas de terra vermelha! E depois — toca a brincar! Toca a correr por aí afora, em pleno mato, cabelos ao vento, corpo e coração à larga! 

E, à tarde, depois do jantar, quando a natureza principiava a cair nos desfalecimentos chorosos do crepúsculo, vínhamos todos assentar-nos na eira, defronte da casa, ouvindo o pio mavioso e plangente das sururinas que se açoitavam para dormir nas matas próximas. Então, Luís ia buscar a sua flauta, Rosinha o seu violão, e eu, acompanhado por eles, punha-me a cantar as modas mais bonitas de minha terra.

Dona Mariana e o Cunha gostavam de ouvir-me cantar. Nesse tempo a minha voz tinha ainda, como minha alma, toda a frescura da inocência.

À noite, enfim, metiam-se de novo no balaio as vasilhas do farnel, carregava-se com tudo para bordo da canoa, estendia-se por cima uma vela de lona, em que nós assentávamos os três, Luís, a irmã e eu; o Cunha tomava conta do leme, com a mulher ao lado; três escravos encarregavam-se dos remos, e rebatíamos para a cidade.

Tanto era risonha e viva a ida pela manhã, quanto era arrastada e quase triste a volta pela noite. Dona Mariana começava a cabecear de sono; o Cunha punha-se a falar conosco sobre as nossas obrigações de aula no dia seguinte. Luís em geral deitava-se com a cabeça no regaço da irmã, e eu esticava-me sobre a lona, de rosto para o céu, a olhar as estrelas.

Uma noite voltávamos do sítio nessas condições. Mas havia luar.

E que luar! Desse que parece feito para quem anda embarcado; desse que vai espalhando pelo caminho adiante brancos fantasmas que soluçam correndo pelas águas, surgindo e desaparecendo com as suas mortalhas de prata, numa agonia de morte, como se fossem as almas aflitas dos afogados.

Tínhamos, já passado Vinhais havia muito e íamos agora deixando atrás de nós, uma por uma, todas as velhas quintas do Caminho-Grande, que dão um lado para o Anil. Dona Mariana toscanejava como de costume, recostada numa almofada, o rosto pousado na palma da mão; Rosinha, com um braço fora da canoa, brincava pensativa, com as pontas dos dedos na orla fosforescente que se fazia nas águas a cada rumorosa braceagem dos reinos; Luís cantarolava distraído; e o velho Cunha, vergado sobre o braço do leme, como seu grande chapéu de carnaúba derreado para a nuca, a camisa e o casaco de brim pardo abertos sobre o peito, fitava as praias que íamos percorrendo, como se a beleza daquela noite do Norte e a solidão aquele formoso rio azul lhe enleassem traiçoeiramente o espírito burguês, fazendo o milagre de arrebatá-lo para um devaneio contemplativo e poético.

Qual! No fim de longo recolhimento, quando passávamos em certa altura do rio, disse-me ele com um suspiro de lástima: 

— Que desperdício de dinheiro e quanta incúria vai por aqui!... Vês aquelas ruínas cobertas de mato? Aquilo foi principiado há bem quarenta anos para um grande armazém de alfândega... nunca passou do começo! Teve a mesma sorte do cais da Sagração e do dique das Mercês! Que gente!

E eu pus-me a considerar as ruínas, que pareciam crescer à luz do luar; e o Cunha, possuído de uma febre de censura, continuava a derramar pelas tristes águas do Anil a sua cansada indignação contra os malditos presidentes de província, que tão mal cuidavam da nossa pobre e querida capital.

E, à marcha monótona e vagarosa da canoa, ia-se desdobrando lentamente ao lado de nós todo o flanco alcantilado da cidade.

Surgiu à distância o largo dos Remédios, elevando-se da praia como um velho baluarte dos tempos guerreiros.

Ouvia-se já um rumor tristonho de casuarinas. 

— Está ali! exclamou o Cunha, estendendo o braço para o lado de terra. Para que esbanjar dinheiro com uma estátua daquela ordem, quando há por aí tanta coisa de necessidade séria de que se não cuida?... 

Olhei na direção que o Cunha indicava e vi a estátua de Gonçalves Dias, erguida no meio do largo dos Remédios, toda branca, muito alta, riste ao luar como a solitária coluna de um túmulo.

Não achei ânimo nem palavras para protestar contra o que dizia o velho Cunha. De Gonçalves Dias sabia apenas que fora um poeta infeliz e nada mais.

— É!  rosnou o pobre homem. Para o luxo de encarapitar aquele grande boneco no tope daquele imenso canudo de mármore — houve dinheiro! E dinheiro grosso! Todo o povo do Maranhão concorreu! Ao passo que para concluir o trapiche de Campos Melo, que é uma necessidade reclamada todos os dias pelo comércio não apareceu ainda quem se mexesse? Súcia de doidos! Isto é uma coisa tão revoltante que eu confesso, chego quase a arrepender-me de me ter naturalizado!

Tornei a olhar para a estátua e, não sei porque, as palavras do velho Cunha não me produziram desta vez a impressão de respeito que costumavam exercer sobre o meu espírito de criança. Pungia-me aquilo até como uma blasfêmia cuspida sobre uma imagem sagrada. Lá em casa de minha família todos veneravam a memória do nosso poeta, e na escola onde eu aprendia a escrever a língua portuguesa o meu próprio mestre chamava a ele mestre.

No entanto não opus uma palavra de defesa; mas, fitando agora de mais perto, a branca figura de pedra, que na sua mudez gloriosa encara aquele mesmo mar que serviu de sepultura ao cantor das palmeiras de minha terra, achei-lhe o ar tão tranquilo, tão superior, tão distante de mim e do Cunha, que balbuciei para este, timidamente:

— Mas, seu Cunha, se o povo lhe fez aquela estátua, é porque ele naturalmente a mereceu, coitado!

— Mereceu?! Por quê?! O que foi que ele fez?... "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá" ?! Está aí o que ele fez! Fez versos!

E o Cunha, no auge da sua indignação, redobrou de fúria contra a loucura dos homens, que levantavam estátuas a poetas em vez de cuidar dos trapiches que o comércio a retalho reclamava.

Nesse instante a canoa desusava justamente por defronte do largo dos Remédios.

A lua, perdida e só no meio do céu luminoso, banhava no seu misterioso eflúvio a imóvel e branca figura de mármore.

É Rosinha, que não prestara atenção à nossa conversa, abriu a cantar, com a sua voz cristalina de donzela, uma das cantigas mais populares do Brasil:

Se queres saber os meios
Porque às vezes me arrebata
Nas asas do pensamento
A poesia tão grata;
Porque vejo nos meus sonhos
Tantos anjinhos dos céus,
Vem comigo, oh doce amada!
Que eu te direi os caminhos
Donde se enxergam os anjinhos,
Donde se trata com Deus.

E aquela menina, na sua virginal singeleza, estava desafrontando Gonçalves Dias, porque são dele os versos que ela ia cantando aos pés da sua estátua, inocentemente; rendendo, sem saber, enquanto o pai o amaldiçoava, o maior preito que se pode render a um poeta: repetir-lhe os versos, sem indagar quem os fez. 

Não sou supersticioso, nem o era nesse tempo, apesar dos meus treze anos, mas quis parecer-me que naquele momento a estátua sorriu. 

Efeitos do luar, naturalmente.
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* jacumaúba = piloto de canoa em navegação arriscada
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Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís/MA, em 1857 e faleceu em 1913, em Buenos Aires/Argentina. Caricaturista, jornalista, escritor e cônsul brasileiro. Sua trajetória literária inaugurou a estética naturalista no Brasil. Demonstrou, desde muito jovem, grande interesse por desenho e pintura, o que o levou a mudar-se para o Rio de Janeiro em 1876, a fim de matricular-se na Imperial Academia de Belas Artes. Para manter-se na capital, desenhava caricaturas para os jornais O Fígaro, A Semana Ilustrada, O Mequetrefe, e Zig-Zag. Também rascunhava cenas de romances. Em 1878, retorna a São Luís, onde dá início à sua carreira de escritor no ano seguinte, com o romance “Uma lágrima de mulher”, ainda aos moldes da estética romântica. Trabalha também para a fundação do jornal O Pensador, publicação anticlerical e abolicionista. Em 1881, lança seu primeiro romance naturalista, “O mulato”, abordando o assunto do preconceito racial. Bem recebido na corte, apesar da temática da obra ter sido considerada escandalosa, Aluísio embarca de volta para o Rio de Janeiro, decidido a ganhar a vida como escritor. Produz diversos folhetins, que garantiam sua sobrevivência. Nos intervalos dessas publicações, geralmente melodramáticas e românticas, dedicava-se à pesquisa e à escrita naturalista, que o consagrou como grande autor brasileiro. Foi nessa época que lançou suas principais obras, Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). Aprovado em concurso para o cargo de cônsul em 1895, abandona a carreira literária. Reside na Espanha, no Japão, na Inglaterra, na Itália, na França, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina, onde falece, em Buenos Aires, em 1913.

Fontes: 
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.
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sábado, 11 de janeiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 14 *

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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Flavius Avianus (O lobo e a aldeã)

 Constrito pela fome, o lobo desceu a montanha em busca de comida para si e para a sua família. O mais sorrateiramente que pôde, aproximou-se de uma casa, na esperança de encontrar alguma comida. De onde estava, ouviu o choro dolente de uma criança e a voz da mãe a dizer-lhe:
  
— Se não calares essa boca, jogo-te ao lobo furioso, que há de te comer!

Acreditando naquelas palavras, o lobo aguardou a noite inteira, esperançoso de que a mulher lhe atirasse à devora o filho, como prometido. Mas o menino, depois de muito chorar, acabou dormindo, tal era o seu cansaço. 

O lobo, então, perdeu toda a esperança. Faminto, voltou para a montanha, onde aguardava-o a sua família.

Prontamente, a loba percebeu que ele voltava débil e esfaimado. Disse-lhe, então:

— O que houve contigo? Porque não trouxeste alguma caça, como de costume, mas voltaste bem tristonho, com ar de desalento, e com a boca vazia?

— Não te espantes se não trago presa alguma entre os dentes. Uma promessa feita por uma mulher me deteve a noite inteira. Enquanto eu esperava que a aldeã a cumprisse, a luz do dia me alcançou. Os aldeões, com os seus cães, perceberam a minha presença, mas, a duras penas, e com grande esforço, consegui escapar da ferrenha perseguição. Assim, enquanto eu buscava alimento para a nossa família, uma mãe prometeu-me lançar o filhinho às minhas presas, mas não cumpriu com o prometido. Portanto, por causa de tal esperança, tardei-me perigosamente.

Moral:
Quem não quer ser enganado — conclui-se — não deve confiar em meras e inconstantes promessas alheias.
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Flavius Avianus nasceu em Roma, c. 400 d.C. foi um poeta romano tardio, que escreveu fábulas em latim e provavelmente viveu no final do século IV e início do século V. As 42 fábulas que levam o seu nome são dedicadas a um determinado Teodósio, cuja erudição é enaltecida com os termos mais elogiosos. Ele pode ser Ambrósio Teodósio, o autor de as Saturnais; alguns pensam que ele pode ser o imperador de mesmo nome. Quase todas as fábulas podem ser encontradas em Bábrio, que foi, provavelmente, fonte de inspiração de Avianus, mas como Bábrio escreveu em grego, e Avianus fala ter feito uma versão elegíaca composta a partir de uma cópia em latim deselegante, provavelmente, uma prosa parafraseada, ele não estava em débito com o original. A linguagem e a métrica estão em geral corretas, apesar de desvios do uso clássico, principalmente na gestão do pentâmetro. As Fábulas constituíram o livro mais difundido nas escolas medievais de gramática. Promythia e epimythia (introduções e moralidades), paráfrases e imitações eram frequentes, como o Novus Avianus de Alexander Neckam (século XII).

Fontes: 
Flavius Avianus. Fábulas. século V. versão em português de Paulo Soriano, a partir de tradução anônima espanhola de 1489.
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Vereda da Poesia = 198 - Renato Alves


Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) O meu cinto de couro de anta

Coisas fortes... coisas fortes ... Não, certos objetos não devem ser tão fortes que possam por isso vir a ser prejudiciais.

Eu me explico. Tive um cinto de couro de anta. Como se sabe, o couro de anta é um couro quase impossível de quebrar-se: é de uma resistência espantosa, rival do aço estirado.

Meu pai, durante cinquenta anos, usou umas rédeas de couro de anta, couro por ele esfolado, e já as havia herdado de meu avô, que foi quem caçou o dito bicho, sozinho, e até sem cachorro; e eu usei-as ainda por muitos anos, pelo prazer de serem feitas do couro de um animal que eu mesmo havia morto; foi mesmo com uma dessas rédeas que amarrei o meu baio Gemada à cauda de um tatu-rosqueira, o que custou a vida ao meu estimado cavalo... Parece-me que já falei nisso.

Pois o meu cinto, tirado do couro daquela mesma anta, e companheiro das rédeas, o meu cinto, digo, por forte, certa vez fez-me passar agonias... Andava em trabalho de campo, lidando com uma tourada de conta, cada bicho bem-criado, forte e bravo, que metia medo! Havia então um certo touro brasino (cor de brasa) que era uma verdadeira fera, e foi justamente esse que tomou-me embirrância especial, creio que por causa do pelo do cavalo que eu montava, que era vermelho. Por várias vezes ele atropelou-me de rijo; não andasse eu tão bem montado e seria colhido.

O tal era de raça franqueira, e tinha umas aspas abertas, quase de braça, cada uma, e grossas, na proporção.

Pois não lhes digo nada!

A última carga foi tão repentina, que eu só senti o perigo quando os companheiros gritaram, assustados. Mal tive tempo de cravar as esporas no baio, que deu dois saltos pra diante, mas - fatalidade! - para tropeçar e cair…

Com a minha calma habitual, saí perfeitamente, de pé; mas o touro vinha.., e no ímpeto em que vinha, com a chifrada armada, mal pude dar um passo à frente...

Ele baixou a cabeça, dando a tremenda marrada, e quando levantou a chifrada, esta resvalou por cima do cavalo e veio colher-me a mim, ainda de costas, certo, perfeitamente certo, entre o cinto e o corpo, nem mais nem menos; e, assim, fiquei dependurado no chifre do touro, tal qual um par de calças, suspenso pela presilha, num cabide... Que situação!

Por causa do peso do corpo, eu não podia desafivelar o cinto, e soltar-me; na posição em que estava, de costas, não podia fazer finca-pé e alçar-me acima do chifre e desengatar-me ...

E o touro disparou para o banhado levando-me dependurado, a dar com as pernas e os braços, como um boneco de cata-vento...

Os companheiros, que estavam de cavalos cansados, não puderam socorrer-me e perderam-me de vista...

O touro meteu-se banhado adentro, para a sua querência. Curti sofrimentos!

Fiquei sabendo falar de cadeira sobre o micuim, mosquito ruivo e mutuca parda... sobre espinho de gravatá e serrilha de tiririca... sobre camoatim e formiga vermelha!

À custa de muito esforço consegui, movendo-me, torcendo-me, ajeitando-me, consegui firmar um pé no cachaço (cangote) do touro e melhorar a posição, sentado naquele estranho banco.., sem encosto... Mas sempre foi um meio alívio.

Escureceu; como é fácil de imaginar, tive insônia. Amanheceu; e eu, como é fácil de imaginar, contrariado, por não poder ao menos lavar o rosto e pentear-me, como de costume...

touro, parece que nem sentia o meu peso; andava, pastava, remoia, mugia, farejava as vacas e acariciava os terneiros - seus filhos, provavelmente - sem mostrar que eu pesasse mais que uma palha seca...

Lá pelas tantas da segunda tarde, encontrou-se ele com outro touro. Berraram, ambos; escarvaram, rodearam um pelo outro, em desafio, e, de repente... - questão de ciumada - de repente, atiraram-se, em briga de morte, como duas feras, que eram.

E eu, de testemunha obrigada!

Ah! meu amigo! Me vi morto, esmagado, esborrachado entre aquelas duas cabeças duras ... esborrachado, estripado, entre aqueles quatro chifres pontudos! ...

Morto! ... Morto! ... Morto! ...

Pois ... não, senhor: justo, justo, quando se chocaram as duas brutas testas numa marrada formidável, capaz de esfarinhar urna pedra.., justo, justo, aí... quando, brrr! ... eu ia morrer, aplainado, chato, quebrou-se o dente da fivela do cinto, que, pois, desprendeu-se, e eu caí ao chão, solto, livre enfim, e disparei rua fora, e quebrei a primeira esquina, sem olhar pra trás! ...
Esquecia-me de dizer que durante esses dias de fome sustentei-me de araçás, que havia muito, no tal banhado.

Pois é... se não fosse o dente da fivela quebrar-se, o meu cinto de couro de anta, por bom demais, matava-me, olé, se matava!…
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João Simões Lopes Neto nasceu e morreu em Pelotas/RS, 1865 — 1916. Foi um escritor e empresário sul-rio-grandense e brasileiro. Segundo estudiosos e críticos de literatura, foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Era membro de uma tradicional família pelotense, e possuía ancestrais portugueses, de origem tanto açoriana como continental, tendo ambos os seus antepassados emigrado para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Começa a escrever em 1888. No jornal “A Pátria”, depois no “Diário Popular” (no qual escreveu Balas de Estalo, comentários satíricos sobre a sociedade pelotense em forma de versos) e, posteriormente, no Correio Mercantil. Sob o nome de "Serafim Bemol" se lança como dramaturgo: O Boato (1893/1894), Os Bacharéis (1894), Mixórdia (1894/1895), O Bicho (1896), A Viúva Pitorra (versões de 1896 e 1898) e A Fifina (1899). Devido a uma úlcera duodenal morre em 1916, aos 51 anos. Considera-se que publicou apenas quatro livros em vida: Cancioneiro Guasca (1910); Contos Gauchescos (1912); Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914).

Fontes:
Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado originalmente em 1914. Disponível em Domínio Público.
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Arthur Thomaz (O quarto aposento)

Filomena era uma costureira muito requisitada no bairro, levava uma vida tranquila, tendo optado por não se casar e morando sozinha, conseguia se organizar financeiramente.

Ao completar quarenta anos foi chamada por Dona Henriqueta sua centenária bisavó e matriarca da família.

Ela entregou-lhe as chaves e o documento de propriedade, já em seu nome, de uma casa.

Contou que era um casarão repleto de “poderes mágicos” e que Filó só deveria ir morar lá quando completasse sessenta anos e que nada mais poderia esclarecer. Saiu intrigada com o acontecimento, imaginando que era uma possível senilidade da bisavó.

A vida seguiu seu curso normal, às vezes até esquecendo da tal casa, só recordando quando tinha que pagar os impostos do imóvel.

Alguns dias antes de completar sessenta anos começou a sentir-se ansiosa e pensar muito no que poderia significar a tal magia da casa.

Mesmo já tendo passado algumas vezes em frente ao casarão, foi lá para fazer uma avaliação mais detalhada do imóvel.

Era um casarão antigo situado no final de uma rua tranquila e com pouca vizinhança. Construído com excelente material, não aparentava sinais de deterioração pelo tempo.

No dia do aniversário recebeu a visita de alguns familiares e de amigas da paróquia, companheiras nas noites de bingo, organizadas pelo padre Anselmo, com a finalidade de arrecadar fundos para seus gastos pessoais, nada condizentes a sua opção pelo sacerdócio.

Após a confraternização, dirigiu-se apressadamente ao casarão para, enfim, cumprir os desejos da bisavó.

Logo ao entrar, ouviu uma risada muito parecida com a de dona Henriqueta, mas atribuiu o fato à sua ansiedade. Deparou-se com uma grande sala que apresentava quatro portas com chaves nas fechaduras.

Notou que o recinto estava arrumado e limpo, sem nenhum vestígio de pó ou manchas nos tapetes.

Trêmula foi até a primeira porta.

Era um cassino que, entre tantas mesas, incluía uma de bingo, seu jogo predileto. O segundo aposento era um ateliê completo de costura com equipamentos moderníssimos, o que a deixou encantada. O terceiro, apresentava uma estranha decoração e ao entrar sentiu-se tomada por poderes mediúnicos que nunca havia imaginado possuir. Imediatamente pensou em como capitalizar esse estranho fenômeno. Ao sair do quarto, notou o letreiro na porta com os dizeres "Mãe Filó médium, quiromante e cartomante". Quando foi abrir a quarta porta, ela, misteriosamente, transformou-se em uma parede, impedindo, assim, que adentrasse ao local. Através dessa parede ouviu novamente, a estridente risada da bisavó. Relevou mais uma vez esse fato e começou a fazer planos para desfrutar da nova moradia.

Nas manhãs, continuou seus trabalhos de costura, agora com maquinário moderno, o que aumentou substancialmente a sua freguesia .

Nas tardes, atendia pessoas que vinham procurar os trabalhos mediúnicos de Mãe Filó.

O aposento era composto por três mesas, cada qual propícia a determinada finalidade. No centro da primeira havia uma faiscante bola de cristal. A segunda mesa era revestida de feltro, adequada ao manuseio do baralho de tarô, e a última, era acolchoada, servindo para a quiromancia.

Ao entrar neste quarto Filomena transformava-se automaticamente, em Mãe Filó - portadora destes estranhos poderes.

Ganhou muito dinheiro nessa atividade. Nas noites, ela gerenciava o salão de jogos, dando atenção maior às rodadas de bingo, sempre repleta de jogadores.

Obteve altos rendimentos nesta função. Padre Anselmo observou que suas paroquianas, frequentadoras do bingo não compareciam mais. Sem dinheiro para custear suas nada religiosas ocupações paralelas, resolveu averiguar o que estava acontecendo. Descobriu, então, que elas estavam indo a um determinado endereço. Avisou seu amigo de noitadas, o delegado Montedonio, que prontamente organizou uma operação para interditar a tal casa de jogos ilícitos.

Quando a polícia chegou as portas dos quartos transformaram-se em paredes, deixando à vista somente o ateliê de costura.

Desconcertados realizaram buscas na casa e nada encontrando pediram desculpas à Dona Filomena e foram tomar satisfações do pároco pelas denúncias infundadas. Filomena depois deste acontecimento e já com uma quantia substancial na sua conta bancária, resolveu ultimar os preparativos para deixar o casarão.

Foi a Portugal, onde adquiriu uma Quinta no Além Tejo. Retornando ao Brasil para reunir seus pertences e dar uma destinação ao casarão, procurou Mafalda, sua sobrinha em quem depositava confiança.

Foram ao cartório e passaram a propriedade para o nome da sobrinha.

Explicou, detalhadamente, as condições para que Mafalda pudesse entrar na casa. Realçou o fato de somente poder entrar lá quando completasse sessenta anos, exatamente como ela havia feito.

Disse também que o casarão era mágico, notícia que foi recebida com ceticismo pela sobrinha. Entregou as chaves, fez as malas e nunca mais retornou ao Brasil, vivendo confortavelmente seus últimos anos. Mafalda, ao ver sua tia embarcar, não titubeou e foi até o endereço da sua nova residência.

Sem cumprir as determinações de sua tia, aproximou-se da porta e quando ia colocar a chave na fechadura ouviu uma gargalhada vinda do interior da casa.

Sem se impressionar com o fato, introduziu a chave.

Escutou então um forte estrondo, o que a fez recuar ao meio da rua, e presenciar o desabamento da construção que ficou reduzida a escombros.

Do meio das ruínas continuou a ouvir-se sonoras gargalhadas.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor.
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sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Daniel Maurício (Poética) 84


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O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros. Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc. Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Antonio Juraci Siqueira (Metamorfose)

A noite envolve a floresta em seu sudário. Pouco a pouco a lua liberta-se das copas das árvores para espiar o rio deslizar em silêncio entre jarandubas. De repente um punhal de fogo rasga a mortalha da noite e o estampido de um foguete quebra o silêncio. Em poucos segundos novos fachos de luz varrem o céu e o troar ecoa nas lonjuras insondáveis assustando a vida notívaga das redondezas e, ao mesmo tempo, avisando os moradores das cercanias que no velho barracão de madeira e palha, debruçado sobre o rio, a festa do santo padroeiro está começando. Após a ladainha, haverá arrasta-pé no salão de paxiúba-batida à luz de velhos candeeiros a querosene.

A Lua vai alta quando cessam os últimos “ora pro nóbis” nas bocas dos rezadores. A parte profana vai começar. A cuíra é geral. Num canto da sala, à ilharga do oratório enfeitado de fitas onde alguns cotos de velas ainda ardem nos castiçais de bronze, Dico Pimenta arranca as primeiras notas da velha clarineta herdada do avô, com quem aprendera os primeiros acordes. Presença garantida nas festas do lugarejo, sempre acompanhado da viola fiel do Neco Libório.

Mas nessa noite há um certo quê de intranquilidade rondando o ambiente. Se no rosto de cada caboclo a preocupação transparece, no semblante de cada ribeirinha há um furtivo ar de ânsia e de espera. Mas, afinal, o que será que semeia tanta preocupação nas almas dos homens e inunda de ansiedade os corações das mulheres? Ninguém sabe explicar com segurança. Tudo começou quando um rapaz passou a frequentar as festas, saído sabe Deus de que brenhas. Ninguém o conhecia na localidade ou, pelo menos, cruzara seu caminho durante o dia. 

A verdade é que todas as vezes que havia festas por aquelas bandas lá estava ele envergando elegante terno de linho branco a rodopiar no salão, arrancando suspiros inconfessáveis das moças interioranas e crivando de inveja e ódio os espíritos dos jovens caboclos. E não era para menos: o garboso mancebo, além do alinhado fato branco e do inseparável chapéu de abas largas a sombrear-lhe a face enigmática, ostentava, ainda, um belo relógio de pulso folheado a ouro, um reluzente par de negros sapatos e um vistoso cinturão de pele de cobra com dois rubis encravados na fivela. Jamais alguém o ouvira pronunciar uma só palavra. Um olhar sedutor acompanhado de um leve gesto com a cabeça na direção de uma dama era o bastante para que ela, alma em fogo e o coração em brasa, se lançasse perdidamente em seus braços. E como dançava!... Onde aprendera a dançar daquela maneira ninguém sabia. Nem mesmo a superfície irregular do soalho de paxiúba era capaz de obstruir a elegância de seus passos. Quando menos se esperava, desaparecia sem deixar vestígios, levando consigo, sabe Deus como, a moça com quem dançava minutos antes, deixando, em seu lugar, o medo e a tristeza plantada nos rostos dos amigos e parentes da infeliz. A festa findava ali. No dia seguinte, após fatigável busca, a vítima era localizada num trecho qualquer das margens do rio, olhar mortiço a fitar o vazio, trazendo, agora, a germinar no ventre, a semente indesejável de um amor maldito.

Os mais velhos aceitavam o fato como obra do destino, algo terrível e fatal contra o qual não tinham como lutar. Já os mais jovens não se conformavam ante a situação de terem suas irmãs, namoradas e até noivas infelicitadas por esse ente maligno do qual nem sequer o nome sabiam.

O grão da revolta há muito tempo semeado e regado na alma dos nativos, germinou e ganhou corpo com tanta intensidade que nessa noite um grupo deles planejou acabar com aquele estado de coisas, caso o diabólico rapaz de branco ousasse aparecer na festa.

Indiferente ao destino da humanidade, a Lua singra os mares celeste derramando sua luz sobre seres brutos e mortais. É preamar. O rio interrompe seu fluxo por uns instantes como a recobrar forças para reiniciar sua perene jornada em direção ao mar. De repente, como se fora o próprio luar materializado, uma figura humana em trajes resplandecentes surge no terreiro. Passos lentos e firmes transpõem o batente da porta do barracão. Não há surpresa. Apenas indignação e raiva no olhar dos homens contrastando com a indissimulável alegria bordada no olhar das moças.

Após o impacto emocional do primeiro instante a festa prossegue embalada ao som da velha clarineta do Dico Pimenta, acrescida, agora, de mais um cavalheiro que, indiferente a tudo, volteia pelo salão mal iluminado, ora com uma, ora com outra dama que completamente mundiadas disputam-lhe a posse.

A festa vai rasgando a madrugada quando o estalido seco de uma bofetada dá início à briga premeditada pelo grupo de rapazes com o intuito de nela envolver o intruso dançarino. O furdunço é total. As mulheres, apavoradas, correm em busca de abrigo. O cerco se fecha em volta do misterioso rapaz de branco que num salto felino livra-se da dama e, com movimentos incrivelmente ágeis, vai escapando das peixeiras ávidas de sangue. A cena insólita tende ao sobrenatural. Facas relampeiam em busca do corpo do fantástico ser e nada encontram. O cansaço e o medo apoderam-se dos ribeirinhos. Em dado momento o moço mergulha no mar de facas em direção ao soalho para recuperar o chapéu perdido na contenda. Ao levantar-se uma mancha vermelha macula a lapela esquerda do terno branco. Mortalmente ferido, consegue, num derradeiro esforço, lançar-se porta a fora em direção ao rio. Novas e violentas facadas o prostram, definitivamente, a poucos passos da ribanceira.

O barracão, outrora festivo, se veste de silêncio. Somente o rio murmura entre barrancos sob o jugo da maré vazante. O povo, ainda sem entender direito o que aconteceu, vai formando um circo ao redor do corpo agonizante que, em dado momento, com um pavoroso grunhido, estremece devolvendo à fria atmosfera seu último suspiro. Nesse instante, com o terror desenhado nos rostos, os presentes testemunham uma estranha e aterradora metamorfose: aquilo que antes parecera, aos olhos de todos, um par de negros sapatos a deslizar faceiros pelo salão, retoma a forma original de dois acaris; do belo relógio de pulso, que tanta inveja despertava nos corações dos jovens caboclos, nada mais resta além de um pequeno caranguejo e o cinturão de pele de cobra com rubis na fivela, revela-se, agora, uma temível jararaca-do-barranco. Finalmente, rostos banhados de luar e pânico, aquela gente simples do interior da Amazônia vê o inseparável chapéu de abas largas do rapaz de branco transformar-se, ante seus olhos, numa arraia a debater-se, indefesa, ao lado do corpo inerte e exangue de um formidável boto tucuxi.
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Antônio Juraci Almeida Siqueira, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes: 
https://blogdobotojuraci.blogspot.com/2008/08/metamorfose.html
Imagem = https://br.pinterest.com/pin/98586679343712210/

José Feldman (Fábula do Burro, o Cavalo, o Cão, a Vaca e o Homem)

Havia um tempo em que os animais falavam entre si e com os homens.

Era uma vez, em uma pequena fazenda, um burro chamado Tobias, que era conhecido por sua força, mas também por sua falta de esperteza. Ele trabalhava duro, carregando sacos de ração e ajudando no transporte de mercadorias. No entanto, seus amigos, um cavalo chamado Estrela, um cão chamado Rex e uma vaca chamada Margarida, sempre riam de suas confusões.

Um dia, o dono da fazenda, Paulo, decidiu organizar uma competição para ver quem era o mais útil entre os animais. 

“Vou premiar o que me ajudar mais”, disse ele, com um sorriso no rosto. 

Todos os animais ficaram animados com a ideia, exceto o burro Tobias, que já tinha uma ideia de que as coisas poderiam não sair bem para ele.

Na manhã da competição, Estrela, o cavalo, começou a correr em círculos, puxando um carro cheio de fardos. “Olhem como sou rápido e forte!” exclamou ele, enquanto todos o aplaudiam. 

Rex, o cão, decidiu mostrar sua agilidade. Ele correu atrás de uma bola que o Paulo lançou, pegando-a rapidamente e trazendo-a de volta. “Eu sou o melhor amigo do homem!” latia Rex, orgulhoso.

Margarida, a vaca, por sua vez, decidiu impressionar o homem com seu leite fresco. Ela se posicionou ao lado do balde e, com um movimento elegante, produziu um litro do melhor leite da região. “Olhem, eu sou essencial para a alimentação!”, disse ela, enquanto todos a elogiavam.

Tobias, o burro, observava seus amigos com um olhar triste. “O que eu posso fazer para ajudar o Sr. Paulo?”, pensou ele. 

De repente, uma ideia lhe ocorreu. Ele se aproximou do homem e disse: “Posso carregar todos os fardos que você precisar, senhor!”

Paulo, surpreso com a oferta, aceitou. O burro Tobias começou a carregar os fardos, mas logo se distraiu com uma borboleta colorida que passou voando. Ele começou a persegui-la, esquecendo completamente do que estava fazendo. Os fardos começaram a cair e a bagunçar o lugar. 

O homem, irritado, gritou: “Tobias, você é o burro mais burro que conheço! Olhe o que está fazendo!”

Os outros animais riram e zombaram de Tobias. 

“Viu? O burro não serve para nada!”, disse o cavalo Estrela. 

“Nem para carregar fardos direito!”, completou o cão Rex. 

A vaca Margarida, mesmo rindo, sentiu um pouco de pena do amigo.

No entanto, enquanto os animais se divertiam, Paulo começou a perceber que, apesar de sua força, ele mesmo estava cometendo um erro. Ao se distrair com a confusão dos animais, ele deixou o portão da fazenda aberto. Um grupo de ovelhas decidiu aproveitar a oportunidade e saiu correndo pelo campo.

Quando o homem percebeu o que havia acontecido, ficou desesperado. 

“Minhas ovelhas! Voltem aqui!”, gritou ele, correndo atrás delas. 

Tobias, o burro, vendo o caos, teve uma ideia. Ele se apressou e começou a conduzir as ovelhas de volta para a fazenda, usando sua força e agilidade. Com determinação, conseguiu reunir todas as ovelhas e guiá-las de volta.

Quando o homem viu o que Tobias havia feito, ficou em choque. 

“Eu estava tão preocupado em avaliar a utilidade dos outros que não percebi que o verdadeiro burro aqui sou eu!”, disse Paulo, envergonhado. “Tobias, você é mais sábio do que pensei! Obrigado por me salvar!”

Os outros animais, que antes riam de Tobias, agora o viam com respeito. 

“Às vezes, a força não é tudo. A sabedoria pode vir de onde menos se espera”, refletiu Margarida, a vaca.

Moral da Fábula:
A verdadeira sabedoria e utilidade não estão apenas na aparência ou nas habilidades, mas também na humildade e na capacidade de agir em momentos de necessidade.
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Fontes: 
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Coelho Neto (Divagando)

Entrando, de manhã, no meu escritório, vi o velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na parede fronteira à minha mesa de trabalho — só lhe restava uma folha... Para que arrancá-la se nada mais havia atrás daquele número que representava apenas uma recordação? Que o mísero levasse aquela última folha para o lixo.

Outro calendário, novo e gordo, carregado de folhas, como uma árvore na primavera, foi substituir o velho bloco lentamente consumido e foi somente essa substituição que me fez sentir o tempo, porque não notei diferença alguma na manhã — nem mais moça, nem mais velha. No alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as mesmas andorinhas; na terra às mesmas árvores, as mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante a noite, o mundo silenciosamente vencerá outro marco. E porque só o calendário acusava a passagem destruidora do tempo?

Indiferentemente, todas as manhãs, eu lhe arrancava uma folha e a lançava à cesta dos papéis. E que representava aquela folha morta?

Quem lhe escrevesse o inventário teria de encher resmas e resmas de páginas largas registrando a campanha dos homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e enterramentos, marchas de exércitos e convênios pacíficos, cerimônias rituais e conciliábulos covardes, inventos e desilusões, sonhos desfeitos e utopias realizadas, travessias de águas e de areais estéreis, ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra à cata do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos, ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e, superiormente, a marcha tranquila dos astros luminosos.

Tudo isso continha a miserável folha morta que eu atirava, com desprezo, à cesta dos papéis inúteis; cada uma delas representava um dia.

Ai de mim! Cada uma delas era como um recibo que eu dava de um dia que vivera e como eles são avaramente contados, como o dinheiro de Shylock (1), era o meu capital de alento que assim se esgotava. Era, pois, de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o calendário era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo era o meu próprio ser.

E fiquei a olhar o papelão onde estava estampado aquele número que era tudo quanto restava do velho calendário. Ocorreram-me, então, as palavras do filósofo: “a vida é como um rio que corre sobre um leito eterno — o tempo”.

Nós somos as águas que passam, águas, como as do Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? Para a eternidade, que é um oceano sem praias. As margens são de vários aspectos — aqui frondosas, ali estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.

Há gotas de água que descem desde a nascente, pelo meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol e as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e inúteis; que bem fazem? Que destino cumprem? Correm, engrossam apenas a caudal e passam.

Outras, como se houvessem petrificado para conservar em carcérula (2) uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes imperecíveis e refulgem no seio das águas — a luz é a inspiração perene, o gênio cristaliza o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto à raiz de uma árvore e transformam-se em seiva e, subindo, desabrocham em flor e metamorfoseiam-se em fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas, transbordam com as cheias, são repelidas pelo fluxo do rio e alastram alagando as margens, formam nateiros (3) pingues (férteis) onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas generosas, são o enxurdeiro (lamaçal) da fecundação, o tremedal da abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e discorre cantando, o lodo é negro e parado.

Que nasce no rio? A ninfeia; o centro é estéril, só as margens tranquilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é todo linho, é todo azeite.

Queres tu ser a gota que vai na derrama fertilizante? Não, por certo — preferes, sem dúvida, ser a gota ligeira e despreocupada que desce na correnteza para o oceano do eterno silêncio. O ideal é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz ainda é a bolha efêmera de espuma que vive apenas o tempo necessário para refletir o azul do céu e o verde formoso da paisagem.

Como são desiguais os desejos! Vede como variam nas almas os ideais. Cada qual trata com mais empenho de iludir o tempo. O menino imagina-se um homem — é guerreiro e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta inimigos imaginários, ou é artífice e trabalha ajustando a ferramenta: aplaina, serra, prega e pule; ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser mãe — ei-la tartamudeando carícias à boneca e nina-a, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe os cabelos, fecha-lhe as pálpebras e, à noite, cabeceando de sono, não há convencê-la a deixar a filha: leva-a nos braços e dorme com ela chegada ao coração.

O menino julga-se capaz de realizar a conquista do mundo e orgulha-se da sua força e da sua agilidade levantando pesos, lutando ou subindo lentamente às árvores como um esquilo. A menina já se imagina sedutora e dengosamente ensaia a faceirice — um corre aos ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? Sonham com o amanhã, é o instinto que os impele através do tempo ao destino prescrito.

Para complemento da ilusão o menino põe-se a repuxar o lábio, a retorcer as guias de um bigode imaginário, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano, e a menina reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o cabelo, adelgaça a cintura, toma atitudes lânguidas e, quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a família: são compadrios, crianças que nascem, projetos de batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na vizinhança, as rugas no casal e até (horresco referens! (4)) alusões ao divórcio por incompatibilidade entre os cônjuges — é uma comédia da vida por marionetes animadas. Esses querem avançar. Agora vede mais adiante — outra face da ilusão: os que procuram retroceder: É o homem que se encalamistra (5), é a dama que se maquilha (6); que fazem? Procuram reparar “des ans l’irreparable outrage” (7): são os regressivos.

Há aqui um cabelo branco indiscreto, há ali uma ruga denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a frescura, vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão róseos, que fazer? Pedir socorro ao artifício — e são tintas, pomadas, pastas, lápis, ferros de feitios complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no toucador.

O homem recorda, então, o tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte — ah! Dançava toda uma noite sem sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as consequências. Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo!

A dama relembra os seus quinze anos viçosos, o seu primeiro namoro, os dias do seu noivado... como era feliz! Tudo lhe sorria e os espelhos eram mais puros... Porque não havia de tornar esse tempo amável?

E os velhos, os que já não podem esconder as injúrias do tempo? Esses tornam à infantilidade. O próprio tempo como que os transforma — tornam-se tartamudos, ficam desdentados, caminham à custa de apoios, alimentam-se como os petizes e até vão engelhando: — a velhice é a caricatura da infância, os extremos tocam-se.

Certos povos entendiam que era uma caridade matar os velhos — que ficavam eles fazendo na vida? Pobres ruínas, antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de uso o sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os fenos, ouvindo pela derradeira vez as vozes alegres dos pássaros, lá iam para o cutelo, desejando a paz aos que ficavam e abençoando os pequenitos.

Que nos importa mais um ano? Isso de idade é grave para os velhinhos — quando o copo está cheio basta uma gota de água para que transborde. Para nós outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos importa essa gota que caiu da clepsidra (8)?

A vida é como aquela colina encantada do conto maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em frente.

Ai! Dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam, como viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e ilusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no além! E que o novo caminho nos seja suave.
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NOTAS
(1) Shylock = personagem de o Mercador de Veneza, de William Shakespeare.

(2) carcérula =[ Botânica] Nome dado às cavidades de alguns frutos indeiscentes, como a romã.

(3) nateiro = Camada de lodo formada pela poeira, detritos orgânicos e água da chuva.

(4) horresco referens! =  locução latina “tremo ao contá-lo”.  Exclamação de Eneias (de Virgílio), referindo a morte de Laocoonte, nas roscas das serpentes, e que se emprega quase sempre em tom jocoso.

(5) encalamistra = torna crespo o cabelo.

(6) maquilha = se enfeita com cosméticos, se maquia.

(7) des ans l’irreparable outrage = dos anos de indignação irreparável.

(8) clepsidra = antigo instrumento constituído por dois cones que se comunicavam pelo ápice (sendo um deles cheio de água) e que era utilizado para medir o tempo com base na velocidade de escoamento da água do cone superior para o inferior; relógio de água.
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Henrique Maximiano Coelho Netto nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes: 
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 07

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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

José Feldman (O coração sonhador)

Texto construído tendo por base trova de Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Envergonhado e sem jeito,
meu coração sonhador
conserta o ninho desfeito
enquanto espera outro amor!

Em uma pequena cidade à beira do mar, onde as ondas sussurravam segredos e o sol se despedia em cores vibrantes, vivia um jovem chamado Rafael. Ele era conhecido por seu espírito sonhador e sua sensibilidade à flor da pele. Com seus cabelos bagunçados e um olhar que carregava a luz do horizonte, Rafael caminhava pelas ruas da cidade com um caderno sempre à mão, onde anotava pensamentos, poesias e fragmentos de suas esperanças.

Ele acreditava no amor como algo mágico, um laço que transcende a lógica e as barreiras do cotidiano. Desde pequeno, ele sonhara em encontrar sua alma gêmea, aquela pessoa que faria seu coração bater mais forte e transformaria sua vida em uma aventura. Porém, a realidade o havia ensinado que os amores nem sempre são eternos. Recentemente, ele havia passado por um término doloroso com Lúcia, uma jovem que iluminou sua vida como poucos. A separação foi abrupta, deixando um ninho desfeito em seu coração, repleto de memórias e promessas não cumpridas.

Sentado em seu quarto, cercado por livros e poemas, Rafael sentia-se envergonhado e sem jeito. A dor da perda ainda pulsava em seu peito, mas, ao mesmo tempo, havia uma chama de esperança que se recusava a se apagar. Ele sabia que precisava consertar o ninho que havia se desfeito, não apenas para curar suas feridas, mas também para se abrir a novas possibilidades. O amor poderia ser um ciclo, e ele estava determinado a não deixar que o medo do fracasso o impedisse de voar novamente.

Os dias passaram, e ele começou a se dedicar a si mesmo, a recuperar o que havia se perdido na relação anterior. Ele se permitiu sentir a dor, mas também se permitiu sonhar. Começou a frequentar uma nova cafeteria na cidade, um lugar aconchegante e repleto de pessoas criativas. Ali, entre risos e conversas, ele começou a se abrir para o mundo. O cheiro do café fresco e o som das xícaras se chocando criavam um ambiente acolhedor, onde ele podia se perder em pensamentos e anotações.

Em uma dessas manhãs ensolaradas, enquanto rabiscava algumas linhas de poesia, uma jovem entrou na cafeteria. Seu nome era Ana, e sua presença iluminou o ambiente. Ela tinha um sorriso contagiante e um olhar curioso, que imediatamente capturou a atenção de Rafael. Eles começaram a conversar, e, a cada trocadilho e risada, ele sentia seu coração despertar lentamente. Era como se ele estivesse consertando seu ninho desfeito, colocando de volta cada pedaço que havia se espalhado com a dor da separação.

Ana e Rafael começaram a se encontrar regularmente, trocando histórias sobre suas vidas, sonhos e desejos. A conexão entre eles cresceu de maneira orgânica, como uma planta que se adapta ao ambiente. Rafael se sentia mais vivo e mais inspirado do que nunca. Ele redescobriu a alegria de escrever, agora fluindo com versos que falavam sobre recomeços e a beleza de se abrir novamente para o amor.

No entanto, mesmo com a felicidade renascente, Rafael não conseguia esquecer completamente Lúcia. A saudade ainda o acompanhava em momentos de solidão, e ele se perguntava se estava sendo justo com Ana ao permitir que essa sombra ainda existisse em seu coração. Era um dilema que o deixava angustiado: como poderia amar plenamente outra pessoa se ainda havia espaços ocupados por memórias passadas?

Uma noite, enquanto caminhava pela praia com Ana, Rafael decidiu que era hora de ser honesto. Com o som das ondas como pano de fundo, ele compartilhou suas inseguranças. “Ana, eu estou tão feliz por estar aqui com você, mas preciso te contar que ainda sinto a falta de minha ex. É um sentimento que não sei como lidar, e temo que isso possa afetar o que estamos construindo juntos.” 

A brisa do mar trouxe um silêncio momentâneo, e Rafael sentiu seu coração apertar.

Ana olhou para ele com compreensão: “Rafael, é normal carregar algumas bagagens, mas o que importa é o que decidimos fazer com elas. O amor não é uma competição; é um espaço onde podemos crescer juntos. Se você está disposto a abrir seu coração para mim, estarei aqui, ao seu lado.” 

Suas palavras foram como um bálsamo para as feridas de Rafael. Ele percebeu que, embora as sombras do passado ainda estivessem presentes, a luz do novo amor poderia iluminá-las.

Com o passar do tempo, Rafael aprendeu a equilibrar seus sentimentos. Ele não precisava apagar Lúcia de sua memória, mas poderia permitir que Ana ocupasse um lugar especial em seu coração. A cada encontro, a cada conversa, seu ninho se tornava mais forte, mais acolhedor. Rafael dedicou-se a construir uma nova história, onde o amor não era uma substituição, mas uma continuidade.

O que começou como uma angústia se transformou em um aprendizado profundo sobre amor, perda e renovação. Rafael percebeu que a vida é feita de ciclos, e cada amor traz suas lições. Ele aprendeu a olhar para suas experiências não como fardos, mas como parte da bela tapeçaria que compõe sua existência.

E assim, enquanto o sol se desvanecia no ocaso em mais um dia, ele sentiu seu coração sonhador pulsar com uma nova esperança. Sabia que estava em um caminho de cura, e que, enquanto consertava seu ninho desfeito, estava também se preparando para voar mais alto. Afinal, o amor verdadeiro não se apaga; ele se transforma, se adapta e, na maioria das vezes, nos ensina a amar de uma maneira ainda mais profunda.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Geraldo Pereira (O Recife de Agora)

O Recife, como as metrópoles do mundo, vem experimentando nos últimos 50 anos o que tenho chamado de metamorfose do tudo, isto é, mudanças e transformações que ultrapassam o simplesmente físico e o apenas urbano, para ter também uma natureza sociológica ou antropológica. 

A paisagem da cidade contemporânea é diferente, inteiramente diferente daquela de meio século atrás, desde as periferias, nas quais proliferam favelas e palafitas ocupadas por migrantes e seus descendentes, tantas vezes desempregados e deseducados. Na selva de pedra e cal aglomeram-se os prédios de apartamentos, apertando as famílias em quatro paredes. O ser humano mudou também e hoje as relações de amizade ou de vizinhança não reconhecem mais a proximidade dos anos que ficaram encantados nas brumas do tempo. E quando há aproximação, nota-se o exagero e a ausência de limites. Prova disso está nos namoros e nos filhos de mães adolescentes.

Desapareceram as antigas moradias, tangidas pelos enormes edifícios, arranha-céus do presente. Com isso, levaram as cadeiras da calçada, postas em fins de tarde pelos netos, para que sentassem as avós e fiassem conversa com os parentes e os vizinhos. O mascate, que passava vendendo a matéria prima da costura, do crochê e do bordado, muito do agrado das senhoras idosas, afastou-se do cotidiano, do mesmo jeito e agora tudo está disponível nos shoppings e nas lojas que proliferam em galerias dos bairros finos, ao lado da verticalidade das residências. O vendedor de amendoim, torrado e cozinhado, mestre-cuca da deliciosa farinha do grão, encostou os balaios, deixou de gritar chamando a garotada para degustar aquela preciosidade artesanal. Foi substituído pelos meninos que nos bares da vida ofertam o produto sem gosto, faltando o tempero do bem-querer.

Nos bancos assusta, às vezes, a quantidade de máquinas que fazem o serviço do estabelecimento. Assim, é possível sacar, depositar e cumprir os compromissos do mês. Há uma luz que sabe ler, dispensando as antigas filas, de voltas e voltas no salão, as quais nem sempre fluíam com a desejada rapidez. Estão dispensadas as cenas que vi na infância, dos grandes livros sendo abertos no balcão, para o funcionário identificar o nome do correntista e fornecer o saldo do dia.

E foram demitidos os empregados considerados excedentes, com a estreia do computador e a automação das operações, dessa forma com outras empresas, na indústria e no comércio. De tal maneira que no tempo do hoje, quem não tem uma especialização, uma profissão, está fadado à perda, ao desemprego ou ao subemprego.

E o comércio do centro, tão movimentado no pretérito, com lojas e mais lojas à disposição da clientela: a Sloper, a Viana Leal, as Lojas Seta para homens, a Personal e muitas outras? Era na Viana Leal que íamos escolher os presentes de aniversário ou do Natal, adquiridos com todo o sacrifício por meu pai. Ali, também, visitávamos o Papai Noel e nos embalávamos nas fantasias do velhinho, absolutamente crentes em sua passagem na noite do nascimento de Jesus. Sumiram, da mesma forma, as vendas que abasteciam os bairros de classe média e vendiam fiado, usando uma caderneta, na qual se anotavam as despesas a serem cobradas no final do mês. Era um ponto de encontro dos passantes, onde se podia provar o bacalhau e o fígo de alemão, comidas não recomendáveis aos remediados da sorte. Os supermercados ganharam a concorrência!

Frequentava-se o cinema São Luiz ou o Moderno, o Trianon ou o Art Palácio, de seletos espectadores. Esperava-se a namorada à porta e assistia-se o filme do dia. La Violetera fez sucesso e era repetidamente visto pela rapaziada, uma outra película, cujo nome não me ocorre, na qual a trilha sonora incluía a música Relógio - “Por que não paras relógio/Não me faças padecer/...” -, abalou os corações da moçada. 

Depois das duas horas sentado, o sorvete no Gemba era indispensável e muitos amores nasceram assim, diante de um casquinho do gelado de ameixa ou de graviola. Agora, os cinemas estão embutidos no corre-corre dos shoppings, para que todos se protejam da violência.

Eis o Recife de agora ou eis aqui a metamorfose do tudo!

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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público
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