quarta-feira, 21 de maio de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Os cegos e o eterno caos urbano)


DOIS AMIGOS completamente cegos Zeca e Toninho, chegam à beira de uma avenida movimentada no centro de São Paulo.

Zeca:  — Beleza, Toninho. Galgamos a parte mais crítica da nossa missão. 

Toninho: — Que missão? 

Zeca: — Atravessar essa avenida sem virar mais um número na estatística! 

Toninho: — Perfeito. Como vamos fazer isso da próxima vez? 

Zeca: — Eu pensei num plano infalível. 

Toninho: — Tomara que seja melhor que aquele do elevador. 

Zeca: —  O elevador não foi minha culpa. Quem mandou colocarem dois botões iguais no painel que acessam os andares? 

Toninho: — Certo, qual o plano aqui? 

Zeca: — Vamos ouvir as buzinas! 

Toninho: — E como isso nos ajudará? 

Zeca: — Se ouvirmos buzinas muito perto, ficamos parados. Se estiverem mais longe, aí sim, andamos. 

Toninho: — Isso não é um plano. Isso é um pedido de atropelamento em tempo real.

 Zeca: — Confia em mim, Toninho! Eu sou um mestre da leitura sonora urbana!

Nesse momento, ao redor deles, sons de buzinas ensurdecedoras.

Toninho: — Zeca, eu acho que ouvi uma nova leva de trombetas sem noção. Isso foi perto ou longe? 

Zeca: — Perto demais. 

Toninho: — E agora? 

Zeca: — Agora é fé em Deus e passo firme! Em frente...

Ambos avançam com cautela, mas no meio do caminho…

Toninho: — Espera! Tem uma mão no meu ombro! 

Zeca: — O que, Toninho? 

Toninho: — Alguém me pegou pela mão! 

Zeca: — Então pergunta se é um assaltante ou um anjo da guarda! 

Ao ouvir essas palavras, o estranho tenta ser gentil: — Pelo amor de Deus, vocês estão atravessando na frente do ônibus! 

Toninho: — Ah, então é um cidadão preocupado...

Zeca: — Avisa para ele que estamos confiantes. 

Voz Estranha: — Que mal pergunte: confiantes no quê?! 

Zeca: — Na lei da sobrevivência urbana!

O desconhecido arrasta os dois com a maior cautela para o outro lado da calçada.

Toninho: — Ufa, chegamos vivos. 

Zeca: — Vivos, sim… mas cá entre nós, humilhados. 

Toninho: — Esquece. Vamos em frente...

Toninho e Zeca agora em segurança no outro oposto, enfrentam um novo desafio. De repente, uma tempestade de ventos inesperados sopra a todo vapor.

Zeca: — Beleza, sobrevivemos à primeira tentativa. 

Toninho: —  Sim, Zeca. Mas agora temos um problema novo. 

Zeca: — Pelo amor de Deus, qual? 

Toninho: — Tem um cachorro me seguindo... 

Zeca: — Como assim te seguindo? 

Toninho: — Sinto ele aqui do meu lado… tá respirando forte. 

Zeca: — Pergunta se ele tem alguma dica de navegação. Toninho: —  Amigo, você sabe atravessar avenidas? 

Em meio ao burburinho das pessoas, carros e ônibus os dois amigos ouvem apenas latidos. 

Toninho: — Nada útil. 

Zeca: — Talvez seja um guia voluntário. 

Toninho: — Ou só quer um biscoito para mastigar enganando a fome. 

Zeca: — Ignora esse bicho. Vamos continuar...

Toninho e Zeca avançam. Todavia, o fazem à esmo. No meio do caminho, surge um motoboy. A criatura freia ao mesmo tempo em que grita.

Motoboy, aos berros:  — Vocês dois são malucos?  

Zeca: — Um pouco, sim! 

Motoboy: — Atravessar essa via assim? Sem ajuda? Querem ver Deus mais cedo?

Toninho: — Se quiser nos ajudar, estamos aceitando. 

Motoboy: — Eu não faço seguro para isso! 

Zeca: — Então, meu amigo só torce por nós e deixa que Deus faça o resto!

O motoboy acelera, buzina e desaparece no trânsito.

Toninho: — Pronto, Zeca. Agora temos duas preocupações. 

Zeca: — Diz ai, Toninho: O cachorro continua no seu pé? 

Toninho: — Continua. Ei espere!  Acho que tem um policial vindo na nossa direção. 

Zeca: — Como sabe? Você é cego ou está mentindo? Deixa pra lá. O policial que está vindo... isso pode ser bom como pode ser ruim... 

Toninho: — Ele está falando no rádio. 

Policial: — "Central, temos dois cidadãos tentando chegar a algum lugar. Parecem perdidos." 

Toninho: — Talvez ele nos dê uma direção. 

Policial: — Senhores, boa tarde.  Precisam de ajuda? 

Zeca: — Depende. Essa ajuda vem com ou sem multa? 

Policial, rindo: — Sem. 

Toninho: — Então aceitamos.

O policial guia os dois rapazes para um outro local. Um prédio com dois bancos na porta de entrada. O cachorro os segue. Quando chegam…]

Zeca: — Fim da linha perigosa! 

Toninho: — Sim! 

Policial: — Vocês sabem que tem faixa de pedestres a dez metros daqui, né? 

Zeca: — Sim… mas seu guarda, onde fica a emoção nisso?

O policial suspira. O cachorro abana o rabo e senta.

Toninho: — E agora? 

Zeca:  — Agora vamos almoçar.

Toninho:  — E o cachorro? 

Zeca: — Ele almoça com a gente.

Nessa altura dos acontecimentos, temos um cachorro aparecido do nada, um motoboy irritado, um policial confuso e uma travessia repleta de risco iminentes. 

Depois de galgarem uma nova avenida com a ajuda do policial, Zeca, Toninho e o cachorro misterioso chegam a uma praça cheia de árvores.  Nela, algo estranho acontece.

Toninho: — Zeca… 

Zeca: — O quê? 

Toninho: — Já reparou que tem uma multidão nos olhando? 

Zeca: — Como assim? 

Toninho: — Eu tô ouvindo cochichos… e palmas. 

Zeca: — Isso significa que acabamos de virar um evento público. 

Toninho: — Ou um protesto, vai se saber agora, com a precisão devida... 

Zeca: — Ou, no pior dos mundos, um “flash mob” espontâneo. 

Toninho: — Ou só uma turma de curiosos achando que atravessar avenidas movimentadas, como fizemos ainda há pouco, apesar de sermos cegos, seja um esporte radical.

Misteriosamente um repórter de microfone na mão e uma câmera surgem do nada.

Repórter: —  Senhores, podem dar uma declaração sobre essa incrível demonstração de coragem? 

Toninho:  — Coragem? 

Repórter: — Sim, meus prezados! Vocês ali atrás enfrentaram o que chamamos de caos urbano e o fizeram sem medo, e agora o público aqui presente quer saber: é um movimento oficial? 

Zeca: — Perfeito. Um movimento oficial… 

Toninho: — Zeca, não faz isso. 

Zeca: — É claro que é oficial! 

Repórter:  — Qual o nome desse movimento? 

Zeca: —“Travessia Sem Medo – “A Revolução Urbana”! 

Toninho: — Meu Deus!

A multidão na praça, vibra. Pessoas pegam o celular para filmar.

Repórter: — E qual é o objetivo da “Travessia Sem Medo?”. Zeca: — Mostrar que São Paulo pertence aos pedestres destemidos! 

Toninho: — Isso vai dar processo... 

Zeca: — Ou um documentário fabuloso.

O policial que os ajudou apareceu de novo e suspirou fundo.

Policial: — Se isso virar moda, eu saio do meu emprego. Toninho: — Faz sentido.

 O cachorro continua seguindo os dois cegos.

Do nada, graças aos dois cegos, tivemos um movimento urbano revolucionário sem qualquer necessidade, tipo uma plateia espontânea e um repórter sedento por manchetes! Em meio a toda essa balburdia, uma “influencer” famosa decidiu aderir à tal da “Travessia Sem Medo” e aproveitando a deixa, fez um vídeo viral. De repente, todo mundo começou a atravessar as avenidas sem hesitação, sem olhar, tanto de um lado, como de outro, enquanto os motoristas entravam em colapso nervoso, tentando entender o que acontecia. Os dois cegos sem alguém explicar os verdadeiros motivos, acabaram presos e levados para uma delegacia nas imediações. Ao serem liberados, horas depois, ao fazerem o caminho contrário, de volta para casa, foram ambos barbaramente atropelados e mortos por uma ambulância a toda velocidade que os pegou em cheio, justamente em frente ao restaurante onde horas atrás, os dois amigos pretendiam almoçar. Quanto ao cachorro o guarda levou para sua casa e o deu de presente à filha de cinco anos.  
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Feldman (Fábula da Velha Coruja)


Em uma floresta distante, havia uma velha coruja. Ela era uma dos mais antigas e sábios da floresta, tendo visto gerações de animais nascerem e crescerem. Ela era conhecida por sua força e sabedoria, e muitos animais a procuravam para pedir conselhos e orientação.

No entanto, com o passar dos anos, começou a sentir os efeitos da idade. Suas penas começaram a murchar, e suas pernas não eram mais tão fortes quanto antes. Ela precisava de cuidado e atenção, mas seus filhos e netos, que haviam crescido e se mudado para outras partes da floresta, não estavam mais por perto para ajudá-la.

Os animais mais jovens da floresta não tinham mais tempo para visita-la ou ouvir suas histórias. Eles estavam ocupados com suas próprias vidas e problemas, e não tinham mais paciência para lidar com as necessidades de uma velha coruja.

Ela se sentia abandonada e sozinha. Ela havia dado tanto para a floresta e para os animais que viviam nela, e agora não tinha mais ninguém para cuidar dela. Começou a se sentir como um peso para os outros, e sua dor e tristeza aumentaram a cada dia.

Um dia, um jovem esquilo passou pela clareira onde ela estava. Ele notou que a velha coruja estava murcha e sozinha, e decidiu parar para visitá-la. Ela contou a ele sobre como se sentia abandonado e sozinho, e o esquilo ouviu atentamente.

Ele percebeu que a coruja não era apenas uma velha coruja, mas uma fonte de sabedoria e conhecimento. Ele decidiu visita-la regularmente, ouvindo suas histórias e aprendendo com sua experiência. Outros animais começaram a se juntar a ele, e logo ela estava cercada de amigos que a cuidavam e a respeitavam.

No entanto, a lição mais importante que ela ensinou a todos foi sobre a importância de cuidar dos idosos. Ela mostrou que os idosos não são apenas pessoas que precisam de cuidado, mas também são fontes de sabedoria e conhecimento.

Moral da história: 
Os idosos merecem respeito, cuidado e atenção. Eles têm muito a oferecer em termos de sabedoria e experiência, e é importante que sejam tratados com dignidade e compaixão. Ao cuidar dos nossos idosos, estamos não apenas ajudando-os, mas também preservando a nossa própria humanidade e garantindo que as futuras gerações possam aprender com a experiência e sabedoria dos mais velhos. Ás vezes, alguns minutos de conversa e um cafezinho podem fazer milagres para a auto-estima de um idoso. Pense nisto, antes de ver ele como um fardo para a sociedade. Eles são seres como os mais jovens e possuem emoções também.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou de sua autoria 4 ebooks.. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes>
José Feldman. Gangorra do tempo. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 18 de maio de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 31 *

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 134


Noite chegando serena. Lua cheia despontando no fim do mundo, longe o horizonte. Ela crescendo rubra, crescendo. Longe as nebulosas, para onde se olha  estão bandos de nuvens avançando.   

Imprevistos? Previsões que podem assustar. Sons, barulhos no leste. A escuridão avança. Os increus descreem. Só barulho, dizem! A natura brinda e castiga. A imprevisão se confirma nos horizontes - noite loguinho contaminada de trevas imensas, raios chegando, chuva iminente.  

A assim seguiu a noite menina por muitos minutos. Piscões, sons distantes que logo chegaram - como a vida, tudo chega!  

Raios rutilantes rompendo regiões rapidamente.  Raios sustos.  Raios do céu. Raios-que-o-parta.  Raios.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Asas da Poesia * 23 *

 

Poema de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Conselhos de mãe

Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas, trata-a com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho
sem pressa de alcança-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!
= = = = = = = = =  

Poema de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Amo
(para Carolina Ramos)

Eu amo a lua, que me encanta, bela,
a ressaltar, da noite seus valores;
amo a cascata que borbulha espumas,
amo das brumas hibernais alvores,
Eu amo a brisa que suspira, calma,
deixando na alma o murmurar de amores;
amo dos astros o fulgente lume,
amo o perfume essencial das flores.
Eu amo tudo a que minha alma assiste,
tudo de belo que no mundo existe,
tudo que vibra em mim e amor requer.
Mas... se a tudo consagro um grande amor,
o que amo na terra com maior fervor,
é a inteligência, numa só mulher!
= = = = = = = = =

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A ciência hoje é um colosso, 
com tudo fora de centro: 
faz laranja sem caroço, 
gravidez sem filho dentro...
= = = = = = = = =

Soneto de
PAULO ROBERTO OLIVEIRA CARUSO
Niterói/RJ

Cuidando de tuas pétalas

Devo ter cuidado ao tocar
tuas pétalas adocicadas,
porquanto são-me elas dadas
em assaz incauto confiar!
 
Ademais, são frágeis elas!
Mas são ávidas por afagos.
Os meus toques são bem pagos
com teus ósculos, sorrisos e trelas!
  
Devo tê-las em cuidado,
possuí-las com todo carinho
que uma flor a mim suplique.
  
Tu não tens, porém, suplicado,
porque trato-te com jeitinho.
Que em teu peito este fique!
= = = = = = 

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ 1901 – 1964

Sugestão 

Sede assim  qualquer coisa 
serena, isenta, fiel.

 Flor que se cumpre, 
sem pergunta. 

Onda que se esforça, 
Por exercício desinteressado. 

Lua que envolve igualmente
 os noivos abraçados
 e os soldados já frios. 

Também como este ar da noite:
 sussurrante de silêncios
 cheio de nascimentos e pétalas.

 Igual à pedra detida,
 sustentando seu demorado destino 
E à nuvem, leve e bela,
 vivendo de nunca chegar a ser.
 
À cigarra, queimando-se em música 
ao camelo que mastiga sua longa solidão, 
ao pássaro que procura o fim do mundo, 
ao boi que vai com inocência para a morte.

 Sede assim qualquer coisa 
Serena, isenta, fiel.

 Não como o resto dos homens.
= = = = = = 

Trova de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

Adotei o isolamento, 
feito um ermitão qualquer. 
Pra fugir do casamento 
e das manhas de mulher!...
= = = = = = 

Soneto de
MANUEL BANDEIRA
Recife/PE (1886 – 1968) Rio de Janeiro/RJ

Soneto inglês nº 1

    Quando a morte cerrar meus olhos duros
    — Duros de tantos vãos padecimentos,
    Que pensarão teus peitos imaturos
    Da minha dor de todos os momentos?
    Vejo-te agora alheia, e tão distante:
    Mais que distante — isenta. E bem prevejo,
    Desde já bem prevejo o exato instante
    Em que de outro será não teu desejo,
    Que o não terás, porém teu abandono,
    Tua nudez! Um dia hei de ir embora
    Adormecer no derradeiro sono
    Um dia chorarás... Que importa? Chora.

    Então eu sentirei muito mais perto
    De mim feliz, teu coração incerto.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Dai-nos ó, Pai, a razão,
desta santa imagem tua…
e que eu reparta o meu pão,
com quem não tem pão na rua!!!
= = = = = = 

Dobradinha Poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Eterna Partitura

Sonatas intercaladas
antes, durante e depois…
E em nossa pele, trocadas,
as digitais de nós dois!

Antes que eu chegue ao último suspiro
retirarei de mim toda amargura,
indo aos teus braços e em completo giro,
vivenciarei a eterna partitura…

Ali quero aninhar… Nesse retiro,
longe estarei da dor, da desventura,
do desamor, desdém, porque prefiro
o sonho à realidade sem ternura.

Concordes na regência e no compasso,
acordes vibrarão naquele espaço;
nosso desejo exprimirá bem mais…

Harmonizando o amor com melodia,
o maior feito ao fim da sinfonia:
– ter em meu corpo as tuas digitais!…
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Lembranças de amor desfeito...
silêncio em horas tardias,
pois tua ausência em meu leito
dorme onde outrora dormias.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Exemplo de mãe

Não me admiro de sentir saudade
De meus longínquos tempos de criança,
Vividos na escassez, é bem verdade,
Mas com imenso amor e esperança.

A gente era pobre e a cidade
Nem possuía luz ou segurança
De algum Doutor. Mas nessa qualidade
Aquilo é um sonho em minha lembrança…

Pois o importante é que então vivendo
De modo simples, “remendando o pano”,
só de carinho a gente ia crescendo…

A grande fé em Deus nos consolava,
Mudava em alegria o desengano…
Tal o exemplo que mamãe nos dava!
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Quando a solidão me invade, 
distante do teu carinho, 
eu me agarro na saudade 
para não chorar sozinho!
= = = = = = 

Hino de
FLORÂNIA/RN

Florânia terra querida
Linda filha do sertão
Cantaremos em nossa lira
O que plantaste em nosso coração.

Oh! coração do Seridó
Onde se irradia mais fulgor
Os seresteiros vão cantando
Tua beleza e esplendor.

Rincão cercado de serras
Perfumado de Bugi
Cheio de flores tão belas
Que sempre vão nos seguir.

Tua fé e esperança em festa
Numa eterna melodia
Teus espinhos e pedras se transformam
Em canção e poesia.

Solo puro e bravio
O trabalho nos faz crescer
Sempre humilde e hospitaleiro
Cada dia nos faz vencer.

Ao longo de teus caminhos
Vaqueiros tangem o gado.
E o vento leva as cantigas
Ao santo Monte amado.

Cosme de Abreu é teu exemplo
De coragem e bravura.
Na luta, paz e bondade.
Cheio de amor e candura.

Colhemos tua paz
No branco do algodão
Que é nosso orgulho de colheita
Um pouco de nosso pão.

Oh! Florânia terra querida
De riquezas sem igual
Do Brasil tão querido
Tão bela, sem rival.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Com ousadia me olhaste, 
ousada eu correspondi. 
Com loucura me abraçaste 
e o resto eu juro, nem vi!
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
POEMA DO OLHAR 
(samba-canção, 1962) 
Evaldo Gouveia e Jair Amorim

Em teu olhar busquei perdão
Busquei sorriso e luz
Achei meu sol
Vivi meu céu
Meu céu em teu olhar

Olhando a ti
Eu me perdi pelos caminhos
Quem me chamar
Vai me encontrar nos teus olhinhos

Em teu olhar, estranho olhar
Meu sonho um dia se acabou
Nos olhos teus
Existe amor, existe adeus
= = = = = = = = =

Soneto do
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Apenas um menino 

Queria me tornar uma criança
Diante da tristeza que há no mundo,
Sem precisar usar minha esperança
E nem me entristecer em um segundo. 

Queria ter nos olhos a inocência...
No coração, a chama da bondade
E não saber o que é intransigência,
Nem arrogância, medo...ou maldade. 

Queria a pureza de um menino
Sorrindo para o gesto pequenino
De um outro menininho... nada mais. 

Assim, num novo mundo eu viveria,
Criando sempre nova fantasia
Diante da magia que há na paz
= = = = = = = = =

Aldravia da
MARILZA DE CASTRO
Rio de Janeiro/RJ

Solicitude
lícita
se
verdadeira
atitude
= = = = = = = = =

Soneto de
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Rainha das águas 
(a Alberto de Oliveira)

Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro
Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira,
Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,
Na esguia concha azul orladurada de ouro.

Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro;
Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira,
Das ondas a seguir a luminosa esteira,
Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.

Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia,
Lambem de popa à proa o casco à concha esguia,
Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana;

E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios,
Saúda esse outro sol de coruscantes raios
Que orna a cabeça real da bela soberana.
= = = = = = = = =

Trova Premiada de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

Relendo o livro da vida
quando a solidão me invade,
em cada página lida,
sempre encontro uma saudade…
= = = = = = = = =

Poema de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

Talvez a velha saudade
seja apenas um embalo
do vento olhando a lua.
O rascunhar de um poema
nas estrelas, o sorriso
desenhado, o pranto solto,
quem sabe o doce bailar
das águas idolatrando
o amor, cálido, sereno,
na sua poesia nua.
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Quadra Popular de
DEODATO PIRES
Olhão/Portugal

Quer tenha ou não tenha sorte
na vida que Deus lhe deu,
não pode fugir à morte
todo aquele que nasceu.
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Soneto de
CARMO VASCONCELLOS
Lisboa/Portugal

Sem lutos

De vós, amados, quero ao vos deixar:
sentidos poemas, flores, melodias,
riso e lembranças de felizes dias,
e sem lutos a minh’alma há de voar.

E já volátil, há de então acenar-vos 
a fina poeira, da ida e vã matéria,
depois... montada numa gota etérea,
hei de baixar na chuva a visitar-vos.

Porém, se alguns de vós eu vir chorosos,
pérola d’água, os olhos lavarei
aos que em saudade mostram olhar fosco.

E pra secar os olhos lacrimosos,
flamas ao sol brilhante roubarei...
Que amar-vos não será chorar convosco!
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Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Descendo esta escadaria
Onde ela vai me levar?
Se eu soubesse eu desceria;
Como não sei, vou ficar!
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Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa, 1919 – 2004, Porto

Quero

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.
= = = = = = = = =

Haicai de
HUMBERTO DEL MAESTRO 
Serra/ES

Três dias de chuva:
No terreno alagadiço
Concerto de rãs.
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Poetrix de 
RONALDO RIBEIRO JACOBINA
Santo Antonio de Jesus/BA

problemas, eis a questão

Não me envolvo em novelos:
Se posso resolve-los, resolvo, sem alaridos.
Se não, já estão resolvidos.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Figura sem estilo 

Ia eu pela rua, figura de estilo na lua
Sem siso, piso o piso molhado, mas que aliteração 
Escorrego numa inadvertida metáfora 
Por pouco não me estatelava no chão.
Podem pensar que é uma hipérbole 
Mas acreditem que não é exagero não 
É que até os pombos se riram
Na sua mais astuta personificação.
O meu joelho é que gemeu coitado
Desesperado com tanta falta de jeito
Pobre de mim, figura sem estilo.
Num mundo sem tino, valha o eufemismo
Um mundo que tropeça à beira do abismo.
Muito eu poderia discorrer sobre o assunto 
Mas já chega desta conversa fiada
As palavras são como as cerejas, valha-nos a comparação
Ainda bem que tive o bom senso, de não usar paralelismos nesta descrição.
Sacudo das vestes toda a ironia
E siga, pronto para mais um dia!
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Eduardo Affonso (Português de Grife)


Tem hora em que eu queria falar português.

Não o daqui, este genérico, mas o de lá, o de marca.

Não passar, como passo, horas na frente da tela do computador, mas diante do écrã.

Conseguir dizer “queria ter consigo” sem que me olhassem como se estivesse a falar grego (significa “quero estar com você”, em tradução livre para o português de cá).

E, claro, abusar da segunda pessoa. Não só do pronome, como fazemos aqui, mas também do verbo. Nada de “tu vai”, “tu viu”, “tu foi”: vais, viste, foste – e tudo isto chiando – ops, a chiar – feito uma panela de pressão no cio, igual mineiro depoix de doix diax de fériax no Rio.

Ter a chance de mandar e desmandar com dois imperativos, o afirmativo e o negativo:

– Vai-te embora! Não, não te vás.

Aqui são iguais:

– Vá embora. Vá embora não.

E a gente nem usa o imperativo, porque prefere pedir, e com jeitinho.

Queria poder aplicar na vida real aquelas conjugações todas que a gente é obrigado a aprender para aplicar só na prova.

Usar “a gente” no sentido de “os outros”, não de “nós”. E usar “nós” de vez em quando, em vez de “a gente”.

Ah, como eu queria uma chávena, em vez de uma xícara. De chá, de preferência, porque chávena de chá é o que o há de mais chique.

Atender o telefone e dizer “Estou”, como se fosse possível atendê-lo não estando.

Valer-me dos pronomes oblíquos e usá-los em lugar de usar eles.

Falar “seu” no sentido de “dele”. E quando alguém disser “Ele levou seu cão a passear” não ter dúvidas de que ele tenha levado o cachorro dele, não o Tião – que, de vira-lata, seria promovido a rafeiro.

E dizer, no acto, que estou convicto que o facto, de prompto, não causará impacto – assim, cheio de soluços, de estalidos na fala.

E ser arquitecto, talvez escriptor (acho que essa eles nem usam mais, mas eu usaria, porque, como eles, me negaria a adoptar o Accordo Ortographico, e ressuscitaria tranqüilamente o trema e o acento grave sòmente por pirraça, para provar que a língua é minha e ninguém tasca).

A propósito, usaria tasca como taberna, jamais como conjugação do verbo tascar, que no português de lá acho que nem existe.

Complicado seria misturar os idiomas e dizer que a gira é gira, que tinha uma bicha na bicha, que o cacete era do cacete. Enfim, essas confusões de todo bilíngue. Ops, bilíngüe (e dá-lhe brigar com o corrector do telemóvel, que teria que ser actualizado para o português que falávamos aqui cem anos atrás).

Queria muito partilhar este texto num sítio, em vez de compartilhá-lo num site.

E junto, postar um enlace, não um link – bastando para tanto acionar a tecla do meu rato. E me acostumar ao facto de que, em português, mouse se diz rato.

Se calhar, se me apetecer, um dia hei-de escrever assim (inclusive com esses hÍfens, que são os únicos cuja regra não tem excepção).

Estás a perceber por que tem horas – perdão, por que há horas – em que dá vontade de falar português?

Mas bate uma lombeira, um banzo, uma leseira, um quebranto, que a vontade logo passa, e eu volto a falar em brasileiro, que tem outro gingado, outro molejo, outro encanto.
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Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do autor. 22.06.2019
https://tianeysa.wordpress.com/2019/06/22/portugues-de-grife/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing