sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Renato Frata* (Letra perdida)

Fuçando gavetas, papéis amarelados sorriram. 

Achar o passado que se perdera, às vezes, faz bem; cria a conexão mágica que só o vivido consegue com o ontem, virando hoje e revivendo, mesmo que por segundos, fato cuja importância marcou o dia, a época com seus borrões, e que o tempo, o mais poderoso dos sabões, se esqueceu.

Peguei o maço de folhas ali deixadas e senti, ainda, a baba seca do destilado de outrora pregada sobre as linhas oscilantes do texto, e me repugnei: um tênue cheiro de coisa azeda exalou do papel, calando-me. 

Fui mesmo um insano ao regurgitar, lá atrás no tempo, sobre o escrito. Nunca se deve deixar que a baba escorra pelo trabalho. 

Quanto às linhas sinuosas do amarrado amarelo, uma explicação; o alinhamento desregulado da máquina de escrever fê-la tão bêbada quanto o datilógrafo ao compor o texto em que descreveu que "a noite escura galopava a tristeza de um amor perdido e, nesse negror, estrelas riscadas a carvão estampavam um céu de mortalha".

Tétrico, diria, se compreendesse o texto. 

Devia mesmo estar muito bêbado para ter escrito coisas assim.

Quem consegue barrar a ânsia do embriagado? 

Palavras e ideias somatizam no álcool o medo/melancolia que o absorve, e faz simplesmente o que o coração determina. 

São energias expelidas como varetas em leque a se espalhar pelas veias, até chegarem ansiosas às pontas dos dedos.

Dizia o texto também que "cães vadios lhe serviriam de companhia aos espinhos da solidão" e que "as horas passavam mais lentamente que os goles que dava na bebericagem de um copo sebento e pastoso", como se o copo cheio a se tornar vazio, fosse ou servisse de medida de tempo...

Até que em determinada frase, que reclamava de alguém, uma expressão deixou-me mais perplexo: "... esse amor de mulher solúvel…

Mastigando as bochechas, parei de ler.

- Péra aí! Alguma coisa está errada. Mulher solúvel?

Puxei as frases sem sentido e as reli. Por três vezes. E só aí decifrei o que escrevera na escuridão dos sentimentos não correspondidos.

E não me fiz de rogado; perdoei-me pela pasmaceira etílica deixada envelhecer bêbada nas folhas babadas, pois me lembrei que a velha máquina desalinhada, certa vez, caiu ao chão, deixando escapar, para nunca mais ser encontrada, a bendita letra "V".

No êxtase alcoólico, a letra sumida foi substituída pelo "S", como a cuidar da agonia que a inspiração impunha, livrando, naquele momento, o rapazote de bem-querer, amarrotado pelo desprezo de uma mulher, ao seu ver, volúvel.

O amor contém razões que nem ele mesmo conhece - dizem, mas sempre deixa um rastro, às vezes amarelado e malcheiroso, que pode se tornar incógnita quando se mistura letra que se perdera... vivências que marcaram... paixões evaporadas com o álcool ingerido no ar pesado do quarto de solteiro, de república de jovens esperançosos. 

E enamorados.

Costumeiramente embriagados.
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* Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Célio Simões* (Bicho de sete cabeças)

Trabalhei quase a vida inteira, sustentei minha numerosa família e exerci com dignidade minha profissão de advogado fazendo uso de uma máquina datilográfica Remington cuidadosamente guardada até hoje, com a qual nos fins de semana escrevi muitas das crônicas que publiquei em vários jornais e revistas.

De repente, passei a encontrar dificuldade de comprar as fitas de cores pretas e vermelhas, os carretéis e até mesmo garimpar alguém que se dispusesse a proceder a uma prosaica limpeza no equipamento, pois foram desaparecendo os mecanógrafos, na mesma proporção que sumiram os sapateiros, os alfaiates, os leiteiros que vendiam seu produto de porta em porta e tantas outras atividades. Essa cruel realidade, que eliminou os datilógrafos da vida nacional, tem um responsável, que veio para ficar e se tornar irreversível em nosso dia a dia – o computador.

Resisti o quanto pude, porém paulatinamente fui sendo cercado por essa engenhoca, em casa, no escritório, nos caixas eletrônicos dos bancos, nas salas de audiências (“… doutor, a ata o senhor recebe pela internet”, dizem as secretárias…), nos fóruns e ofícios de justiça, nos Tribunais, no Ministério Público, enfim, em todas as frentes das quais não pode fugir quem vive numa cidade e exerce qualquer atividade profissional, em especial, a advocacia. Até médico não olha mais para o paciente. Este diz onde dói e o doutor consulta de imediato o monitor, como que a perguntar: – E aí amigão, o que esse sujeito tem?…

Depois de muita insistência e com uma baita desconfiança, guardei a máquina datilográfica e passei a dar os primeiros passos na computação, sob a orientação dos meus três filhos, cada qual deles o mais solícito para incutir na minha cabeça dura os conceitos mais elementares daquele avanço tecnológico, sem o qual atualmente nada se faz. Passaram eles mais de dois anos tentando, até chegarem à mesma conclusão:

– “Ele tem dificuldade de aprender e quando aprende, esquece depressa…”.

Todos desistiram, cada qual com uma desculpa esfarrapada. Falta de tempo, um. Excesso de tarefas, outro. Carência de paciência, o terceiro. Recebi da minha mulher um sábio conselho:

– Por que você não se matricula num curso de computação?

– Pelo simples fato de que não vou pagar mico nesta idade.

Teimei mais um ano remando contra a maré. Dependia de tudo e de todos para simplesmente ligar o aparelho, quanto mais realizar as operações que me permitiriam redigir um singelo texto para anexar a um processo, cuja impressão ficava para o dia seguinte, quando alguém colocava a impressora para funcionar. Assim, temendo perdas, os prazos judiciais para mim passaram a acabar na véspera.

Chegou o dia em que eu mesmo fiquei convencido da necessidade de buscar orientação com gente do ramo e sorrateiramente, como que pedindo desculpa para mim mesmo, matriculei-me sexta-feira em uma escola existente a uma quadra de casa, que me permitiria ir a pé, sem o sufoco da falta de estacionamento, assim libertando-me da ditadura dos flanelinhas.

Atendeu-me um cidadão magrinho e diáfano, cabelos louros em desalinho, olhar esperto, estatura mediana e pele esbranquiçada como se nunca tivesse ido à rua ou a uma praia tomar sol, parecendo personagem surgido de um museu de cera. Mas era muito educado. Após acertarmos o preço do curso, marcou minha primeira aula para a segunda-feira subsequente. E ante a revelação de que eu nada entendia de computadores, procurou me acalmar:

– Fique tranquilo. Comigo, em 30 dias, o senhor vai dar um show!

Saí dali entusiasmado, raciocinando com meus botões: – “Essa molecada vai ver só se ainda vou viver de favores…”. Ao mesmo tempo, aquele aceno de mil facilidades despertou-me a desconfiança, pois tenho severas restrições contra bazófias e recebo com reserva as promessas de milagrosas vantagens, sejam de vendedores ou prestadores de serviços, capazes de tudo para faturar em cima dos incautos.

Segunda-feira, 19h, lá estava eu firme na minha carteira, a cara no chão de vergonha, porque em torno de mim só tinham jovens, os quais me olhavam como se eu fosse um extraterrestre. Mais um pouco e entraram na sala diversos instrutores, inclusive o “museu de cera” que tratara antes comigo. Efusivo, cumprimentou-me, fez-me repetir alto meu nome a guisa de apresentação e para não me rotular de velho, apelou para um eufemismo:

– Atenção, nosso colega “veterano” nada sabe de computador. Vamos ajudá-lo a se tornar um craque…

Ninguém riu, e eu muito menos, pois estardalhaço em torno do meu analfabetismo virtual era tudo o que eu não queria naquele momento. O tal sujeito, em vez de ir embora, puxou uma cadeira, sentou ao meu lado em frente à tela de um computador e iniciou a sessão de tortura:

– Hoje nós vamos estudar um pouco de HARDWARE, SOFTWARE, SLOTS e BARRAMENTO. Hardware são todas as partes físicas que formam o computador, sabia?

– Se o senhor está dizendo…

– Placa mãe ou Mother Board é o elemento central de um microcomputador. É uma placa onde se encontra o micro e vários componentes que fazem a comunicação entre ele com os meios periféricos externos e internos, entendeu?

– Parceiro, dá pra deixar a mãe fora dessa história?

– Calma, não é isso que o senhor está pensando. A mãe é a do computador, inserida numa placa…

– Ainda bem parente, senão não ia prestar…

– Então vamos continuar. Além da placa mãe (…a dele, por via das dúvidas…), temos ainda a placa de vídeo, a placa de som, a placa de fax/modem e a placa de rede. Já ouviu falar delas?

– De rede já, eu nasci dentro de uma…

– O senhor é um gozador. Lembre que esta é apenas nossa primeira aula e temos que acelerar. Não se esqueça dos 30 dias que lhe falei – disse o professor – abrindo uma apostila e continuando a aula:

– Vamos falar um pouco de SOFTWARE. O senhor sabe que a isso se chama um conjunto de instruções que juntas tentam resolver problemas do cotidiano. Eles possuem uma sequência que são construídas através de uma linguagem de programação, “fácil de ser assimilada”, denominadas de aplicativos: WORD, EXCEL, CALCULADORA, AUTOCAD, PHOTOSHOP, WINDOWS, LINUX, UNIX, SOLARES, CD-ROM PARA APRENDER O ALFABETO, SHOW DO MILHÃO, etc.

Comecei a me sentir tonto. Um suor gelado inundou minha pele, mas procurei mostrar interesse:

– Mestre, que mal lhe pergunte, esse tal de Show do Milhão tem alguma coisa a ver com o Sílvio Santos?

– Não disse que o senhor é um gozador?…

– Sabe como é; a mensalidade é cara e eu tenho o direito de perguntar…

– Fique frio, disse o instrutor. Vamos aproveitar o tempo que resta (fez um gesto com o braço e apertou a vista olhando para o relógio de pulso) para conversarmos um pouco sobre Internet. Já ouviu falar?

– Já, mas não manjo nada. Só sei escrever na minha Remington…

– O que é isso?

– Nada, deixe pra lá…

– Bem, como eu ia dizendo, na Internet tem a HOMEPAGE, o DOWNLOAD, o UPLOAD, os SITES, os LINKS, HYPERLINKS, a praga dos SPAMS, SHAREWARE, FREEWARE, SITES DE BUSCA e PESQUISA, LISTA DE DISCUSSÃO, E-COMERCE, ANTIVIRUS, FIREWALL, VIRUS, JAVA, HTML e os COOKIES. Qual deles é do seu conhecimento?

– Professor, o senhor ainda não entendeu. Não conheço nada de computador, quanto mais de Internet.

– Perdão, tinha me esquecido. Vou fazer um resumo do que é isso: – A Internet reúne mais de um bilhão de pessoas, chamadas de internautas, funcionando com perfeição sem controle de ninguém. Uma entidade privada, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, com sede na Califórnia, sem intuito de lucro, faz a administração dos endereços da web, embora a Internet que hoje conhecemos, a World Wide Web, tenha sido inventada em Genebra, na Suíça, pela maior organização científica mundial, a Conseil Européen pour La Recherche Nucléaire, que recentemente criou o colisor de hádrons, um acelerador de partículas que pretende fazer colidir prótons em busca de vida em outras dimensões. Ficou claro agora?

– O pessoal de Óbidos já sabe disso?

– Óbidos? Não sei. Nunca estive na Ilha do Marajó…

– Olha aqui cara, vê se não sacaneia. É a minha cidade e não fica no Marajó. Tu pode ser bamba na informática, mas em geografia…

– Não se aborreça, não sou paraense, cheguei há pouco a Belém e acho que estou indo rápido demais. Voltemos apenas ao computador, para conhecimento das barras de ferramentas. Vamos descobrir os principais recursos existentes na barra de menus como ALT + A; ALT + E; ALT + X; ALT + I; ALT + F; ALT + M; ALT + B; ALT + J e ALT + U. Há também um detalhe importante, que o senhor deve ter sempre na cabeça. São os BITS e os BYTES, pois eles calculam o tamanho das informações. O BIT é a menor unidade de processamento de dados. Um BYTE é o conjunto de 8 bits, ou seja, 1 BYTE é igual a 8 BITS. Partindo dessa certeza, é fácil calcular que 1 KB é igual a 1024 Bytes; 01 MB é igual a 1024 KB e 1 GB é igual a 1024 MB. Eu vivo dia e noite na frente do computador e sei tudo isso de memória (“… não é a toa que esse treco é da cor de uma estearina, pensei…”). Alguma dúvida?

– Eu já posso ir pra casa?

– Claro que sim. Acho que o senhor foi muito bem para quem nada sabia. Desligue o computador e até amanhã.

Quando, respirando aliviado, já me dirigia à porta de saída, olhei para trás e vi o “museu de cera” tirando um pedaço de papel do bolso e me chamando pelo nome:

– Sim?…

– Aproveite as horas de folga para decorar uma coisa importante. Está escrito nesse papel, que dou para todos os meus alunos. Recoloquei as lentes e li: TIPOS DE CÓDIGOS: .org: site organizacional; .gov: site governamental; .edu: site educacional; .mil: site militar; .br: site brasileiro; .ar: site argentino; .us: site norte americano; .jp: site japonês. Por Deus que está no céu pensei, horas de folga eu não tenho; e pra que eu ia querer site americano, argentino ou japonês? Meu único objetivo era escrever minhas petições, só isso.

Cheguei em casa arrasado. Só não dei um beijo na minha máquina de datilografar porque ela estava num canto do armário, coberta de poeira e cheia de teia de aranha. Fiquei saudoso das aulas no teclado, na Escola São Francisco, de propriedade da minha querida mãe: A S D F G e pronto! A gente ia aprendendo as teclas por fileiras, inicialmente da esquerda para a direita, depois os números e um dia fazíamos a prova, quando o risco de reprovação era remoto e ocorria apenas se o candidato fosse muito bronco. Tudo sem a torrente de explicações com que fui bombardeado naquela maldita aula.

Perdi o dinheiro da matrícula, porém nunca mais coloquei os pés na tal escola, que acabou falindo, pois no local hoje funciona uma lanchonete. Confessei minha desolação ao meu filho caçula, que penalizado me deu de presente um computador de terceira mão, prontificando-se a me ensinar tudo nas nossas raras horas ociosas.

– Toma, pai. Vai aprendendo neste…

Tenho evoluído aos poucos. No escritório, já redijo e imprimo minhas petições sem maiores dificuldades e por cautela contratei um técnico para os reparos nessa máquina maravilhosa, pois em nossos frequentes conflitos e desacertos, invariavelmente saio derrotado. Mesmo a tal internet não é um bicho de sete cabeças. Vivia esquecendo minha senha, até decorá-la sem atropelos. Criei um e-mail fácil de memorizar, pois era o nome do nosso cachorro de estimação, somente trocado quando o afável vira lata morreu de velhice. Estou convencido que dessa ferramenta não posso prescindir para o exercício profissional. Fazer o quê?

Cada vez menos me lembro da velha Remington, que continua em completo desuso. Meu novo amor agora é o laptop da Itautec, mesmo com evidentes sinais de fadiga. A bateria pifou de vez e ele somente funciona ligado diretamente à tomada, o que prejudica sua portabilidade. Levei-o a uma loja especializada para fazer a devida substituição, mas não houve jeito. O atendente foi direto ao ponto:

– Não se fabrica mais bateria para esse tipo de computador e se fabricasse, não ia compensar. O preço seria quase igual a um computador novo. Sugiro que o senhor aproveite nossa promoção.

– Moço, não é bem o preço, mas eu já me acostumei com este.

– Mas a diferença é pequena para um novo. Muda apenas o sistema operacional.

– Como assim?

– Agora só vendemos Windows 7. O seu ainda é Windows XP.

– E onde está o “XP” da questão?

– É a interface!

Interface? Lembrei imediatamente do “museu de cera”. Ia começar tudo de novo. Agradeci, fui saindo à francesa e voltei para casa acariciando o velho laptop pousado no meu colo, enquanto dirigia o carro com apenas uma das mãos. Nenhum guarda me multou por causa disso…
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fonte: Uruá Tapera. 08 julho 2021
https://uruatapera.com/bicho-de-sete-cabecas-3/ 
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Estante de Livros (“A Viúva Simões”, de Júlia Lopes de Almeida)

"A Viúva Simões" (1897) é um romance da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida, considerado um clássico da literatura brasileira.

RESUMO

A história segue a vida de Carolina Simões, uma jovem viúva que retorna ao Rio de Janeiro após a morte do marido. Carolina é uma mulher inteligente, independente e determinada, que busca reconstruir sua vida.

ENREDO

1. Retorno ao Rio: 
Carolina volta para a casa de sua família, onde encontra seu pai doente e sua irmã solteira.

2. Conflitos familiares: 
Carolina enfrenta pressões para se casar novamente, mas resiste à ideia.

3. Amizade com Fernando: 
Conhece Fernando Seixas, um jovem escritor, com quem desenvolve uma estreita amizade.

4. Desenvolvimento sentimental: 
Carolina e Fernando começam a nutrir sentimentos um pelo outro.

5. Obstáculos sociais: 
A sociedade não aceita o relacionamento, devido à diferença de classe social.

6. Crise e resolução: 
Carolina enfrenta uma crise pessoal, mas finalmente encontra a felicidade com Fernando.

ANÁLISE

Crítica social: 

O livro critica a sociedade brasileira da época, abordando temas como:
- A opressão feminina.
- A hipocrisia da classe alta.
- A importância da educação.

Feminismo: 
Carolina é um exemplo de mulher independente e autônoma, lutando contra as convenções sociais.

Amor e liberdade: 
O romance explora a busca pela felicidade e liberdade individual.

Identidade feminina: 
Carolina enfrenta desafios para manter sua identidade em uma sociedade patriarcal.

Realismo literário: 
O livro apresenta uma visão realista da vida cotidiana no Rio de Janeiro da época.

Personagens principais

Carolina Simões: Protagonista, viúva, inteligente e independente.

Fernando Seixas: Jovem escritor, amigo e posteriormente namorado de Carolina.

Sr. Simões: Pai de Carolina, doente e conservador.

Irmã de Carolina: Solteira e dependente do pai.

Estilo e influências

1. Realismo literário: Influenciado por autores como Gustave Flaubert e Émile Zola.

2. Naturalismo: Aborda temas sociais e psicológicos.

3. Romantismo: Explora o amor e a liberdade individual.

IMPACTO CULTURAL

1. Influência na literatura brasileira: "A Viúva Simões" inspirou gerações de escritores brasileiros.

2. Representação feminina: O livro contribuiu para a representação mais realista da mulher brasileira na literatura.

3. Crítica social: O romance ajudou a questionar as convenções sociais da época.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 81

 

José Feldman (A Solidão das Cadeiras Vazias)

O crepitar dos fogos de artifício ecoava pela cidade, iluminando o céu noturno com cores vibrantes. Era a época do ano em que a alegria parecia contagiar a todos, mas, para muitos, essa festa era apenas um lembrete da solidão. Nas janelas empoeiradas de um pequeno apartamento, Dona Lucinda se acomodava em sua cadeira de balanço, o mesmo lugar que ocupava há décadas. Com um olhar distante, observava os fogos riscando o céu, enquanto lembranças do passado dançavam em sua mente.

Dona Lucinda era uma mulher de noventa anos, cheia de histórias e vivências. Nos tempos áureos, sua casa estava sempre repleta de risadas, familiares e amigos. Ela era a matriarca da família, a que organizava as festas, as ceias, a que contava histórias de um tempo em que o mundo parecia mais gentil. Mas, ao longo dos anos, as perdas foram se acumulando. Filhos que se foram, amigos que se afastaram, e a solidão, silenciosa, se instalou em sua vida.

Enquanto os fogos iluminavam o céu, Dona Lucinda não conseguia evitar a tristeza que a envolvia. A saudade apertava o seu peito. Lembrou-se de como costumava dançar com seu falecido marido, Jorge, sob as estrelas, com a música embalando seus sonhos. “Como o tempo passa”, pensou, enquanto uma lágrima escorria por seu rosto enrugado. O barulho da festa lá fora parecia distante, quase como um eco de um mundo que já não pertencia a ela.

A solidão dos mais velhos, especialmente nas festividades de fim de ano, é um tema que frequentemente passa despercebido na correria das celebrações. Muitas vezes, todos estão tão ocupados com os preparativos, os encontros e as festanças que esquecem que, do outro lado da rua, existem pessoas que gostariam de ser lembradas. A vida moderna, com sua agitação e individualismo, muitas vezes deixa para trás aqueles que construíram as bases da sociedade.

Dona Lucinda não era a única. Em cada esquina, havia histórias semelhantes. O senhor Manoel, que morava no andar de cima, também estava sozinho. Ele costumava ser um contador de histórias, mas agora suas narrativas eram apenas sussurros perdidos no vento. E a dona Rita, que sempre preparava os melhores doces para a ceia, agora se via cercada por caixas vazias, enquanto o cheiro de panetone no mercado a lembrava de tempos melhores.

A conscientização sobre a solidão dos mais velhos deve ser um esforço coletivo. Precisamos olhar para além de nossas vidas agitadas e enxergar aqueles que estão à nossa volta. Um simples gesto – uma visita, um telefonema, ou mesmo um convite para a ceia – pode fazer toda a diferença. É preciso que cada um de nós se lembre que, enquanto estamos cercados de amigos e familiares, há quem deseje apenas um pouco de companhia, quem apenas anseia por um ouvido atento.

Naquela noite de Ano Novo, ao invés de se deixar consumir pela tristeza, Dona Lucinda decidiu fazer algo diferente. Lembrou-se de um projeto que havia começado anos atrás: uma cartinha escrita à mão para cada um de seus netos, contando um pouco de suas memórias e desejos. Com um novo ânimo, pegou papel e caneta e começou a escrever. Enquanto as palavras fluíam, sentiu-se menos sozinha. Era como se, ao relembrar sua história, ela pudesse compartilhar um pedaço de sua vida com aqueles que amava.

A festa lá fora continuava, mas dentro do pequeno apartamento, um novo brilho começava a surgir. A cada palavra escrita, Dona Lucinda sentia que estava, de alguma forma, conectando-se novamente ao mundo. Assim como os fogos de artifício que iluminavam a noite, suas lembranças também brilhavam, oferecendo um vislumbre de esperança.

MORAL:
A vida continua, e a importância de estender a mão a quem está sozinho é uma responsabilidade que todos devemos carregar. Que no fim de ano, ao celebrarmos juntos, possamos sempre lembrar das cadeiras vazias e fazer delas, por um momento, lugares cheios de histórias e amor. Porque, no fundo, cada um de nós é um pouco da história do outro.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Arthur Thomaz (Voo atrapalhado)

O autor é de Campinas/SP
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Jorge Henrique e Mário Jorge, piloto e copiloto de uma companhia internacional, recém-chegados de um longo voo, hospedaram-se no hotel conveniado e, após um pequeno descanso, resolveram se aventurar na noite da cidade.

Indicado pelo concierge, foram até um famoso bar na avenida principal. Sentaram-se à mesa e pediram dois sofisticados drinques por pura ostentação. Ao notar que duas esplendorosas mulheres os fitavam ostensivamente, Jorge perguntou ao amigo se não era estranho o fato delas estarem flertando com dois caras feinhos como eles. Mario brincou dizendo que era por causa das caríssimas bebidas que eles estavam consumindo. Dirigiu-se até a mesa das moças e as convidou para tomar algo com eles.

Algum tempo depois, elas manifestaram o desejo de ir com eles até o quarto do hotel. Acordaram com o som das batidas da camareira na porta. Nus, com as mãos amarradas e sem lembrar nada dos acontecimentos da véspera.

Todos os objetos de valor haviam desaparecido, incluindo dinheiro e cartões de crédito. Entenderam que foram vítimas do famoso golpe "boa noite Cinderela" e, resignados, foram até o distrito policial registrar a ocorrência.

Num requinte de crueldade, as duas levaram seus cintos obrigando-os a improvisar com um barbante cedido pelo gerente do hotel. Segurando as calças, na delegacia ainda ouviram gracejos dos policiais perguntando se as "cinderelas" iriam estrelar filmes da Disney.

De volta ao hotel, colocaram seus uniformes, compraram cintos novos e apresentaram-se para o voo de retorno.

Não foram informados que além da amnésia, a droga que ingeriram permanecia no organismo provocando intensa sonolência.

Entraram na cabine do avião e após a decolagem, Jorge Henrique fez o cumprimento habitual aos passageiros e esqueceu ligado o intercomunicador.

Ao ver Mario Jorge dormindo ao lado gritou que, “não era hora de dormir”.

A moça gordinha da primeira fileira, ao ouvir que o piloto estava dormindo, em histeria, jogou-se ao chão parecendo ter uma convulsão, que passou assim que ela ouviu Alexandre o comissário de bordo, chamar a enfermagem para aplicar-lhe uma injeção. Então ela voltou à poltrona e continuou a gritar, histericamente, que o piloto estava dormindo na cabine.

 Kátia, Valéria e Alexandre, os comissários de bordo, tentavam em vão acalmar os passageiros.

Outra senhora gritava para abrirem a porta porque ela queria descer. Alguns, incluindo os mais fervorosos ateus, pediam ajuda às suas divindades. Ouvia-se gritos por Alá, Jesus, Buda, Ogum, Jeová e até Zeus.

Um marinheiro reformado, aos berros, dizia que era um atentado dos muçulmanos o que foi veementemente rebatido por um jovem barbudo com o Alcorão nas mãos. Quase deflagrando mais um conflito entre ocidente e oriente.

Mais atrás, um homem com as faces vermelhas e que tomava whisky em uma pequena garrafa, bradou que iria morrer; portanto, tomaria mais uma dose.

Três crianças, ao ouvir a palavra morrer, chorando, perguntaram à mãe se elas também morreriam. A mãe, como sempre, respondeu que não sabia e que perguntassem ao papai. O pai, em pânico, sorrateiramente esgueirou-se e foi beber whisky com o homem da face avermelhada.

Nesse momento, levantou-se alguém que parecia um pastor e gritou para que todos levantassem, dessem as mãos e orassem. Aumentou a confusão porque todos se ergueram ao mesmo tempo.

Nesta situação caótica, ouviu-se uma potentíssima voz de um grisalho senhor dizendo que era piloto aposentado e que iria assumir o comando da aeronave no lugar do dorminhoco piloto.

Fez-se um silêncio imediato.

 O senhor dirigiu-se à cabine sob o olhar apreensivo de todos. Com firmeza entrou e fechou a porta da cabine. Antes de desligar o intercomunicador, disse em voz alta a fim de que todos os passageiros ouvissem, que agora assumiria o comando. Desligou o aparelho, acordou o copiloto e disse que não era piloto nem de patinete, mas que na hora achou que era a única solução para acalmar a histeria coletiva.

Pegou o quepe, colocou na cabeça, saiu da cabine e falou aos passageiros que já estava no comando e que todos sentassem para prosseguir a viagem em segurança.

Aclamaram-no aos gritos de mito, herói e outros adjetivos.

A aterrissagem foi tranquila e o novo comandante foi carregado nos ombros dos passageiros por todo o aeroporto. Logo que se desvencilhou da multidão, desapareceu antes que alguém descobrisse que nunca havia sequer entrado em um avião até aquela data.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
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Gilmário Braga (Clara, a feia)

O autor é de Serra/ES
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Eu começo essa história fazendo a seguinte pergunta: Até que ponto beleza é fundamental? Esteticamente falando, eu nunca fui, digamos assim: Uma mulher chegada à beleza, e mesmo assim sempre convivi bem com isso, até porque não tenho como mudar. Boniteza em minha pessoa somente aquela que vem de dentro, e isso já é mais do que o suficiente para eu me sentir uma pessoa feliz. Nas festas que costumava frequentar raramente algum rapaz me tirava para dançar. Naquela época ainda dançávamos de rosto coladinho, hoje não se usa mais fazer isso. Eles preferiam sempre as meninas mais bonitas. Às vezes isso me incomodava um pouco, mas não era sempre que eu me sentia assim. Minhas tentativas de arranjar um namorado, ter um relacionamento sério eram sempre frustradas. Os rapazes sempre tinham uma desculpa para não me namorar. Chegou um momento que isso começou a mexer muito comigo.

Eu me reporto agora ao ano de 1982, época boa onde as coisas eram bem diferentes de hoje em dia. Chegamos ao fim do ano, e com ele as merecidas férias, e nessa ocasião recebemos em nossa casa a minha prima Judith que veio de Minas Gerais passar uns dias conosco no Espírito Santo. Minha prima era animada, alegre, pra cima e adorava sair, curtir a vida. Um belo dia a tarde ao chegarmos da praia, resolvemos por iniciativa dela acessar um serviço que uma empresa de telefonia disponibilizava aos seus usuários. As pessoas daquela época devem lembrar do chamado serviço 145. Esse serviço era febre na época e muita gente se divertia com isso. Funcionava assim: Você discava este número e ouvia várias pessoas conversando ao mesmo tempo, era uma espécie de linhas cruzadas. Muitas pessoas passaram a se conhecer e se relacionarem a partir dessas conversas. Bastava a gente passar o nosso contato ou apanhar o de alguém que nos interessasse. Hoje em dia isso é bem menos complexo devido as redes sociais.

– Então, Clara. Vamos tentar? Não temos nada a perder. O máximo que pode acontecer é a gente tirar uma onda com a cara dos rapazes, ou eles com a nossa cara. – Disse Judith.

– Não sei, prima. Eu me acho muito tímida para essas coisas. E depois passar o meu contato para quem eu não conheço pode ser uma furada.

– Que nada, Clara. Deixa de bobagem. O que alguém pode fazer tendo somente o seu número? Quem sabe nessas linhas cruzadas esteja o seu príncipe encantado (risos). 

– Montado no cavalo branco e tudo. – Complementei sorrindo.

Judith insistiu tanto que eu acabei topando, e diante disso ela imediatamente discou. Durante alguns minutos ela conversou com várias pessoas, e pelo visto aquele não era o dia de sorte dela.

– Agora é sua vez, Clara. Coragem. Eu estou sentindo que hoje é o seu dia de sorte.

– Será, prima?

– Se você não tentar não terá como saber. Vamos, prima! Coragem!

Meio trêmula e sem jeito apanhei o telefone e disquei. Era a primeira vez que acessava este serviço. Várias linhas se cruzavam ao mesmo tempo. Uns falavam bobagens, mulheres davam gargalhadas, mas também tinha aquelas pessoas que falavam o que se aproveitasse. Depois de alguns minutos tentando entender alguma coisa, um homem, com uma voz romântica, linda, despertou meu interesse e eu o dele também. Trocamos mais algumas palavras e o nossos contatos. 

– Viu aí prima. Eu disse que hoje era seu dia de sorte.

– Será? Eu estou tão acostumada a levar fora que um a mais um a menos não vai fazer diferença.

– Deixa de ser pessimista, Clara. Acredite! Pense positivo.

Na semana seguinte Judith foi embora. Passei dias ansiosa para que chegasse logo o dia do nosso encontro onde finalmente eu conheceria o misterioso Otto, pois foi este o nome que ele me deu. Marcamos de nos encontrarmos em um restaurante muito conhecido na cidade. Eu cheguei propositalmente meia hora depois do horário combinado, disse o nome e as características dele para o garçom e fui conduzida até a mesa onde ele supostamente me aguardava. Confesso que me surpreendi. Otto estava muito bem vestido, de aparência agradável. Eu estava diante de um homem simplesmente lindo. Aproximei-me e o cumprimentei.

– Boa tarde!

Ele virou-se para mim. Usava óculos escuros na ocasião.

– Otto? – Perguntei.

– Sim. Boa tarde. Você deve ser a Clara (pausa) – Sente-se por favor!    

Eu sentei-me de frente para ele e nos pusemos a conversar. Que homem bonito ele era! Conversamos sobre vários assuntos, mas não me animei muito. Certamente um homem bonito daquele não iria querer nada comigo, e para falar verdade, eu já estava preparada para terminar aquele encontro como bons amigos. Mais curioso é que em nenhum momento ele retirou os óculos. No início me incomodou, mas depois não dei importância. A conversa com ele estava muito agradável.

– Você quer beber alguma coisa, Clara?

– Um suco está ótimo.

– Me fala um pouco mais sobre você! Como você é por exemplo.

– Você quer saber como eu sou? Isso?

– Sim. Me fala sobre você!

Enquanto conversávamos, eu tinha a nítida sensação de que Otto não olhava para mim, e sim em minha direção. Confesso que fiquei meio confusa quando ele perguntou como eu era. Pela primeira vez estava diante de um homem que conversava comigo à vontade, sem pressa ou querendo logo terminar aquele encontro e sem se preocupar com a minha aparência. Seria mesmo o meu dia de sorte como disse a Judith? E tomada por um impulso resolvi arriscar:   

– E então, Otto? Eu sou como você esperava ou eu frustrei suas expectativas? 

– Como assim, Clara? Não entendi.

– Eu achei que você fosse me dizer alguma coisa quando estivesse diante de mim.

Ele fez um breve silêncio e logo em seguida disse:

– Infelizmente eu não posso te ver.

– Na hora eu não entendi e perguntei: Como assim não pode me ver? Estamos aqui há horas conversando.

 Ele tomou fôlego e prosseguiu:

– Eu sou deficiente visual, Clara. Não enxergo nada. Sou totalmente cego. Perdi a visão ainda na adolescência. Se houver outra oportunidade te conto como tudo aconteceu.

Eu tomei um choque com aquela revelação. Cego? Que pena, um homem tão bonito. Tentei disfarçar meus sentimentos naquela hora. Logo em seguida tomei coragem e abri meu coração para ele dizendo exatamente como eu era e com isso a minha dificuldade de conseguir um relacionamento amoroso. Ele me ouviu em silêncio e depois disse:

– Pois para mim você é a mais linda das criaturas, a mais linda das mulheres. Que importância tem a beleza física? Eu estou diante de uma mulher de alma nobre, de coração puro, e com toda certeza tem muito a oferecer. Seu afeto, seu carinho e seu amor.

As palavras de Otto me deixaram emocionada. Eu nunca tinha ouvido isso de alguém. Eu estava feliz, as lágrimas desciam em meu rosto, mas era um choro de alegria. Naquela hora eu tive a certeza que estava diante do homem da minha vida. Saímos dali como namorados, e pouco tempo depois nossas famílias foram apresentadas e tanto de um lado como do outro recebemos todo apoio.

Namoramos, noivamos e nos casamos, e como não poderia deixar de ser, minha prima Judith foi nossa madrinha de casamento. Continuamos juntos e somos felizes até hoje. Agora posso dizer que em se tratando de amor, beleza não é fundamental. O amor sim. Este será sempre fundamental para conservarmos uma relação, além de respeito e cumplicidade.

Palavras do autor: 
Embora essa seja uma obra de ficção, nos deparamos com diversas situações como essa em nosso cotidiano.

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Estante de Livros ("Kalki", de Gore Vidal)

RESUMO

"Kalki" é um romance de Gore Vidal publicado em 1978, que se passa em um futuro distópico, especificamente em um mundo onde os valores e a moralidade da sociedade foram profundamente corrompidos. O livro é uma crítica incisiva à política contemporânea, à religião e ao estado da civilização.

A história é narrada através da perspectiva de uma série de personagens, mas o foco principal está em Kalki, uma figura messiânica que representa a última encarnação de Vishnu, o deus hindu preservador. O enredo se desenrola em um cenário em que a sociedade se deteriorou sob o peso da corrupção, do consumismo e da guerra. Kalki, que surge como um salvador, é uma figura ambígua que desafia as noções tradicionais de heroísmo e sacrifício.

Em 2067, após uma catástrofe nuclear, os Estados Unidos estão fragmentados. O protagonista, Theodore "Ted" Barker, é um jovem jornalista que descobre um movimento messiânico liderado por Kalki, uma figura misteriosa, que promete uma nova era de paz e prosperidade, mas seu verdadeiro objetivo é criar uma raça superior através da engenharia genética. Ted se torna um discípulo de Kalki, mas logo questiona as intenções do líder.

TEMAS CENTRAIS

Messianismo e Redenção: 
Kalki é apresentado como uma figura messiânica, mas Vidal subverte a ideia tradicional de um salvador. A busca por redenção é complexa; ele não é necessariamente um herói, mas um reflexo das falhas da humanidade e das instituições que a governam. Isso provoca uma reflexão sobre a natureza da salvação e a responsabilidade individual.

Crítica Política: 
A obra é uma crítica contundente à política americana e ao sistema de governo. Através da descrição de líderes corruptos e de uma sociedade decadente, Vidal examina a hipocrisia da política e a alienação do cidadão comum. O livro sugere que a corrupção é endêmica e que as instituições falharam em servir ao povo.

Religião e Poder: 
Gore Vidal explora a intersecção entre religião e poder, questionando como as crenças espirituais podem ser manipuladas para fins políticos. A figura de Kalki, como um deus encarnado, levanta questões sobre a fé, a manipulação religiosa e o papel que essas crenças desempenham na sociedade.

Desumanização e Alienação: 
O ambiente distópico do livro ilustra a desumanização do indivíduo em uma sociedade dominada pelo consumismo e pela superficialidade. Vidal retrata personagens que lutam com a alienação, refletindo a crise de identidade em um mundo que valoriza a aparência sobre a essência.

IMPACTO CULTURAL

1. Recepção crítica: 
Kalki recebeu críticas mistas, mas é considerado um clássico da ficção distópica.

2. Influência em outros autores: 
Inspirou obras de autores como Don DeLillo e Margaret Atwood.

3. Contexto histórico: 
Reflete a ansiedade pós-guerra fria e a crise de confiança nos líderes políticos.

ESTILO E ESTRUTURA

O estilo de Gore Vidal em "Kalki" é caracterizado por uma prosa incisiva e um diálogo afiado. Ele utiliza uma narrativa não linear, intercalando diferentes pontos de vista e contextos históricos, o que enriquece a complexidade da história. A construção dos personagens é multifacetada, permitindo que eles sejam simultaneamente representativos de arquétipos e indivíduos únicos.

CONCLUSÃO

"Kalki" é uma obra que transcende seu contexto temporal, abordando questões universais sobre a moralidade, a política e a condição humana. Gore Vidal oferece uma visão sombria, mas perspicaz do futuro, instigando os leitores a refletirem sobre seu papel dentro da sociedade e as implicações de suas escolhas. O livro se destaca não apenas como uma narrativa envolvente, mas como um manifesto crítico que ressoa com inquietações contemporâneas.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 04


José Feldman (Um encontro inusitado)

Era uma tarde tranquila na biblioteca de um universo que desafia a nossa compreensão. Estantes infinitas se estendiam até onde os olhos podiam ver, cobertas de livros de todas as épocas e estilos. Em um canto iluminado por um brilho suave, três figuras notáveis saíram de uns livros e tiveram um encontro inusitado além da imaginação: William Shakespeare, Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato.

Shakespeare, com seu ar aristocrático e uma pena na mão, foi o primeiro a se pronunciar.

— Ah, senhores! Que prazer imenso é vê-los! Eu sou William Shakespeare, dramaturgo e poeta. E vocês devem ser os ilustres Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato. Um encontro de mentes brilhantes, sem dúvida!

Poe, com seu olhar sombrio e uma aura de mistério, respondeu:

— Sim, sou eu, Edgar Allan Poe. O gênio do terror e do macabro. E você, Sr. Shakespeare, deve saber que seus sonetos são maravilhosos, mas, francamente, você precisa de um pouco mais de escuridão em suas obras.

Lobato, sempre com um sorriso no rosto e uma caneta na mão, interveio:

— E eu sou Monteiro Lobato, o escritor para crianças e do folclore do Brasil! Prazer em conhecê-los, senhores. Agora, o que vocês precisam é um pouco de imaginação infantil! Shakespeare, seus dramas são tão sérios que eu me pergunto se você já ouviu uma boa piada!

— Vamos lá, então! — disse Shakespeare, ajeitando seu colarinho. — Eu, que escrevi sobre o amor, a ambição e a tragédia, defendo que a complexidade da condição humana é meu forte. O que você tem a dizer sobre isso, Poe?

— Complexidade? — Poe levantou uma sobrancelha. — O que você entende de complexidade, meu caro? Você escreve sobre amores perdidos, enquanto eu exploro as profundezas da loucura e da morte. Em "O Corvo", por exemplo, abordei a obsessão de um homem que perde sua amada. Não é isso que chama a atenção?

Lobato se inclinou para frente, rindo.

— Loucura, sim, mas e o humor? Vocês dois parecem estar sempre tão sérios! Eu, em "O Sítio do Picapau Amarelo", trago a fantasia e a brincadeira! Afinal, quem não gostaria de conversar com um saci ou uma boneca de pano que ganha vida? Isso é o que eu chamo de literatura!

Shakespeare, com um sorriso travesso, respondeu:

— Então você acha que um saci é mais interessante que um Hamlet? Um príncipe que discute sobre a vida e a morte? Venha, Monteiro, não me diga que prefere a companhia de um personagem que não sabe nem se deve existir!

Poe não deixou barato:

— E o que dizer de sua "Comédia dos Erros"? Uma confusão de identidades que só pode ser resolvida com um final feliz? Isso é muito otimista para o meu gosto. Onde está a tragédia, a verdadeira essência da vida?

Lobato, rindo ainda mais, respondeu:

— Olha, eu não diria que confundir personagens é um erro. É mais uma estratégia de marketing! E, Shakespeare, você fala de tragédia, mas seus personagens têm um talento incrível para fazer escolhas ruins. Que tal um pouco de sabedoria popular? "Quem não arrisca, não petisca!" E olha que eu sou um especialista em ensinar isso às crianças!

A conversa continuou, repleta de risadas e provocações. A biblioteca, testemunha desse encontro inusitado, parecia vibrar com a energia das palavras trocadas. Após horas de debate, todos concordaram que, apesar das diferenças, o que realmente importava era o amor pela literatura.

Poe, finalmente relaxando, disse:

— Sejamos francos, senhores. Cada um de nós tem sua própria abordagem para a complexidade do ser humano. Shakespeare com seu romantismo, Lobato com sua fantasia e eu com meu terror.

Shakespeare assentiu, um brilho de compreensão em seus olhos:

— Exatamente, meu amigo. E o que seria do mundo sem essas diferentes vozes? A diversidade é a alma da literatura.

Enquanto Shakespeare, Poe e Lobato discutiam animadamente, uma nova presença se fez notar na biblioteca. A luz suave que iluminava o espaço pareceu se intensificar, e um homem de porte elegante, com um olhar penetrante e um leve sorriso nos lábios, se aproximou. Era Machado de Assis.

— Boa tarde, senhores! Posso me juntar a essa conversa tão vibrante? Sou Machado de Assis, e ouvi falar sobre suas obras. Estou curioso para saber o que pensam sobre "O Alienista".

Shakespeare, sempre cortês, respondeu:

— Senhor Machado, é uma honra tê-lo entre nós. "O Alienista" é uma obra fascinante. A forma como você aborda a loucura e a razão é singular. Mas diga, o que o levou a explorar a mente humana dessa maneira?

Machado, com um brilho nos olhos, explicou:

— A loucura é um tema que me intriga profundamente. Em "O Alienista", eu queria discutir não apenas a sanidade, mas também o que é considerado normal em nossa sociedade. O Dr. Simão Bacamarte, que se dedica a entender a mente, acaba por se perder em sua própria obsessão. É uma crítica à ciência e à razão.

Poe, com um sorriso enigmático, interveio:

— Fascinante, de fato! Mas você não acha que, em sua busca pela razão, Bacamarte se torna uma figura trágica? Ele se assemelha aos meus personagens que, perdidos em suas obsessões, acabam se destruindo. A diferença é que você traz uma ironia bem-humorada à sua narrativa, enquanto eu prefiro o tom sombrio.

Machado assentiu, apreciando a observação.

— Sim, Edgar. A ironia é um dos meus instrumentos. Eu quis mostrar como a busca pela lógica pode ser tão irracional quanto a própria loucura. 

Shakespeare, com seu estilo característico, comentou:

— Muito bem colocado, Machado! Mas me pergunto se a crítica social em "O Alienista" não perde um pouco da profundidade emocional que permeia minhas tragédias. Bacamarte, embora intrigante, parece distante. Não seria mais poderoso se ele tivesse um dilema mais humano, como o meu Hamlet, que luta com questões de vida e morte?

Machado sorriu, reconhecendo a validade da crítica.

— Você tem razão, William. A emoção é fundamental na literatura. Contudo, minha intenção foi refletir a sociedade de uma maneira mais cerebral, quase como uma fábula. O que importa é que, ao final, Bacamarte é um espelho de todos nós.

Lobato, sempre entusiasmado, não deixou de defender seu ponto de vista:

— E eu gostaria de adicionar que, enquanto você aborda a loucura, eu trago a fantasia como uma forma de libertação! Os personagens do seu livro, cercados pela racionalidade, poderiam se beneficiar de um pouco de magia! Imagine Bacamarte conversando com o Saci ou criando novas teorias com a ajuda de Emília!

Machado riu, imaginando a cena.

— Seria uma combinação curiosa, sem dúvida! A magia poderia oferecer a Bacamarte o que falta em sua vida: um pouco de leveza. 

Após a troca de ideias, Machado de Assis, com seu olhar perspicaz, fez uma reflexão sobre as obras de seus colegas.

— Senhores, é interessante notar que, apesar de nossas abordagens distintas, todos nós tratamos da condição humana. William, você mergulha nas profundezas da emoção, explorando o amor e a tragédia. Edgar, você desafia os limites da sanidade e do terror, revelando a fragilidade do ser humano diante do desconhecido. E Lobato, você nos lembra da importância da imaginação e da infância, onde tudo é possível.

Ele fez uma pausa, permitindo que suas palavras ecoassem.

— Assim como Bacamarte busca entender a mente humana, nós buscamos entender o que nos torna humanos através de nossas obras. Cada um à sua maneira, contribuímos para um entendimento mais profundo da vida e da sociedade. E, se pudermos aprender uns com os outros, talvez possamos criar um universo literário ainda mais rico.

Os três escritores, tocados pela análise de Machado, concordaram, reconhecendo que, no final das contas, a literatura é um diálogo contínuo. Eles estavam apenas começando a explorar as maravilhas que poderiam surgir de suas interações, prontos para desafiar e inspirar uns aos outros, como verdadeiros mestres da palavra.

Com risadas e promessas de um novo encontro, os escritores se despediram, cada um levando consigo a certeza de que, embora suas obras fossem diferentes, a paixão pela escrita os unia em um laço eterno. E assim, na biblioteca dimensional, as histórias continuaram a se entrelaçar, trazendo à vida a magia da literatura.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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