quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Luis Rebelo (A camisa do noivado)

(vocabulário de algumas palavras colocadas ao final do texto)

I

Quando Telo, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do castelo de Algouço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens de armas escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Soeiro Lopes; alma negra do senhor, onde alcançara com o braço, deixara sempre vestígios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o vilico (era o seu título naquele tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas à porta despediram-no asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que ninguém o despertaria para dar audiência a um vilão. A princípio, Telo pôde sopear a ira; mas a pouco e pouco, a alienação irritou-o e levantou a voz. Soeiro Lopes assomou de repente à porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro e perguntou:

— A que vens aqui?

— Trazer o que mandaste e pedir o cumprimento da promessa! — redargüiu ele, friamente.

O senhor empalideceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvíssima e transparente, que vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez na sua vida. Depressa se recobrou e, medindo o mancebo com indizível escárnio, replicou:

— Pedi-te duas camisas fiadas e tecidos com os fios das urtigas da sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de cavaleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?!

— Ei-las! — acudiu o besteiro. — Urtigas deram o fio e fadas teceram o pano.

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admirável bem mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha, D. Soeiro tremia. Sobre o peito, em letras cor de sangue, viu as iniciais do seu nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das três esposas que tinham passado ao túmulo do seu leito.

— Bem! — exclamou. — Silvana é tua se a achares. Quanto à mortalha.. Veremos esta noite quem a veste!

Não esperou por mais o besteiro, e partiu apressando o passo, caminho da choupana de Aldonça. Um pressentimento vago advertia-o de perigo incerto. A tristeza oprimia-lhe o peito; todavia, a boa nova, que levava, devia alegrá-lo. A noite fechou-se escura. O tempo mudado. Rugindo no pinhal, o vento arrancava por entre as ramas das árvores gemidos lúgubres. No céu apagavam-se as estrelas uma após outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima do último outeiro. Sem saber por que, sentiu-se Telo desalentado. Ele, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando chegou à choupana, achou a casa erma e a porta arrombada, e acabou de crer que os presságios não mentem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma cena violenta. A lâmpada ardia ainda junto do lar, e luz mortiça deixava ver os escaninhos partidos, os vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um feixe. O mancebo parou e debalde quis ligar as idéias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrado as forças. Nem o ânimo, nem a razão se prestavam a ajudá-lo.

Fora rapto? Fora vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! Saltaram-lhe então as lágrimas, e a dor foi tão penetrante, que, a não se encostar, cairia desfalecido. Ocorreram-lhe as palavras de Soeiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do castelo, e àquela hora entrava talvez as portas do A1cácer, que para ela eram as portas do sepulcro. “É tua, se a achares!” — dissera o larápio. A quem iria Telo pedir justiça? Lutando com a agonia, sentiu que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava à donzela senão a morte depois da infâmia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou, atribulado:

— Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não embainhei a espada da justiça!

No meio destas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no ombro. Olhou. Viu Aldonça. Um sinal imperioso atalhou em seus lábios o grito que iam soltar. Guiando-o calada, a protetora de seus amores chegou a um lugar deserto, e apontando para um cavalo ajaezado, preso ao tronco de uma árvore, disse-lhe rapidamente :

— Monta!

O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha ajuntou:

— O mordomo de Soeiro Lopes entrou aqui e levou roubada a tua noiva. Corre, que por tua felicidade corres e não pares senão na vila de Miranda. Busca os paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro desta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o sucedido e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.

O mancebo, atônito, viu-a desaparecer, e, largando as rédeas, partiu direto à vila.

II

Como o Douro vai fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os penedos do seu leito! Que trovões rebramam as águas despenhadas em cascatas contra as penhas que lhe oprimem a fúria corrente! Como a noite se cobre de luto quase de repente, de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde o estampido longínquo da tempestade. Os relâmpagos fuzilam sobre as eminências.

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que vila é aquela cujas torres negras estrelam vivas luzes pelas frestas pontiagudas? Seguindo a margem do rio, Telo Vasques não sente fadiga; o brioso corcel devora a distância. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes e estradas, enfia ruas e vilas, e pára no terreiro, defronte dos paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detê-lo; mas, sem voltar a cabeça, e continuando responde:

— Busco o senhor.

Ninguém o suspende. De corredor em corredor, de aposento em aposento, chega à sala de armas. Entre os cavaleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-cós ainda.

Grossas tochas em anéis de ferro iluminavam a vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos enfeitam as colunas, cujos capitéis lavrados sustentam os fechos da abóbada. O monteiro, apercebendo Telo, encaminhou-se para ele. O mancebo vinha tão sufocado, que pôde apenas dobrar o joelho e oferecer-se a trompa. Foi preciso que ele sorrisse para o besteiro narrar o sucesso que o trazia àquela hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com vista inflamada bradou:

— Levai-me aos pés de El-Rei D. Pedro. Dizem que ele não conhece grandes, nem pequenos. A donzela que roubaram é pura e santa como a mais pura e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ela ter nascido no berço de um vilão!

À medida que o besteiro falava, a fisionomia do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pretos dilatados chamejavam, e o semblante, rosado e jovial, empalidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que se acham distantes. Quando Telo pôs termo as suas queixas e levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protetor era terrível. Ensangüentados e delirantes, mais se assemelhavam às pupilas encadeadas do tigre, do que ao olhar humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, falava tão convulsa que pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes brados:

— Lourenço Gonçalves! Acudi! Um rico-homem furtou a mais linda de minhas filhas!

O brado e a imensa cólera revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonçalves era o corregedor da corte. Ninguém ousaria chamá-lo assim senão El-Rei. Telo prostrou-se cheio de esperança.

— Segue-me! Afonso Madeira! o meu cavalo enfreado à porta! A minha capelinha de aço. Gonçalo Vasques de Góis, escrivão da Puridade! Chamai os desembargadores, relatai-lhes o feito e lavrai a sentença. Por alma de Inês de Castro!... Pelo seu amor! — murmurou mais baixo. — Antes de nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino e mais uma justiça de minhas mãos no livro das suas crônicas!

Falando assim, enlaçava a capelinha, calçava as luvas de gamo, e, com o açoite cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.

O besteiro seguiu sem proferir palavra. Os cavaleiros montavam, e uns após outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atrás o cavalo do próprio Telo Vasques, e cego de ira metia-se pelas terras de Algouço. Por cima desta vertiginosa carreira a chuva caía em torrentes. A procela abria os céus em clarões lívidos, desarraigando as árvores anosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castelo, um vulto surgiu, que lhe tomou as rédeas, convidando-o a apear-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça viu as frestas da torre iluminada. O vulto travou-lhe do braço, e disse:

— É ali!

— Vamos! — redargüiu o príncipe. E seguiu-o sem desconfiança.

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu à chave e ao impulso.

— Ide agora e Deus seja convosco! — disse a mesma voz.

Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Inês de Castro subiu. No topo da escada de caracol, a cena que se lhe representou excitou-lhe ainda mais a cólera. Perderia o salutar do nome de “Justiceiro”, se perdoasse aquele crime.

Era espaçoso o aposento. Um lampadário alumiava parte dele; o resto mergulhava-se em profunda escuridão. No centro da sala, num leito, com as mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a boca até os ais lhe sufocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados em lágrimas, pediam a Deus a morte, remédio extremo da infâmia. Soeiro Lopes, defronte, sorria medindo com a vista a queda lenta da areia duma ampulheta. A seu lado o vilico silencioso corria os dados sobre a mesa. A teia da mortalha, fiada e tecida com as urtigas do túmulo, estava nas mãos do cavaleiro, e suas palavras, irônicas como punhais, atravessam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos senhores de Biscaia cevava na formosura cativa o furor dos zelos.

— Por que choras, Silvana? Dera ontem o melhor arnês e o melhor cavalo por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor, respondeste não. A tua prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos por que chamavas! Brada pelo besteiro vilão, que preferiste ao rico-homem! Grita! Grita por El-Rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço, as portas chapeadas deste castelo ainda são mais fortes. Em esta areia, que está por instantes caindo toda...

Faltou-lhe a voz. A mão erguida do vilico deixou também rodar o último dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos dele brilhava um clarão terrível. A pesada acha reluzia em suas mãos.

— Traidor! — bradou o príncipe. — Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe todas portas. Vais ver!... Vilão! — ajuntou, falando ao vilico. — Solta as mãos e a boca a essa donzela. Ninguém se mova! Soeiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na presença de Deus!

O orgulho indômito do cavaleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que pálido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redargüiu:

— Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pedro Coelho e de Álvaro Gonçalves? O rei carrasco; falso à sua alma e à alma do seu pai? Imaginas que farei como os outros cavaleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e à má fé chamo-lhe inimigo. Vilico! Aperta os laços da cativa. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o castelo senão a Deus. A mim, homens de armas!

— Deus é justo! — clamou El-Rei, cuja fúria não conhecia limites. — O matador de três mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor cruel de donzelas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como vilão às mãos dos teus vilãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha acha. Vilãos! — bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. — Sou D. Pedro! Sou rei! Esse que aí está, rebelde e traidor, prendei-mo enquanto os meus não chegam!

A presença e a voz do filho de Afonso IV infundiam terror. Os homens de armas temiam, mas não amavam Soeiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de curta e desesperada resistência, o cavaleiro ficou à mercê de El-Rei.

— Passai um laço na cadeia do lampadário, pondes um escano para ele subir e cingi-lhe o nó na garganta! prosseguiu o soberano, indignado.

— Sou rico-homem por foro de Espanha. A afronta da morte vil cairá sobre vós e sobre todos os filhos de algo. Pedir-te-ão contas dela, verdugo! — gritou o cavaleiro, estorcendo-se.

— A Deus as darei e a mais ninguém! O desleal que violenta donzelas não é cavaleiro. Quebro-te a espada e o foro com meu cetro.

Momentos depois, Soeiro estava em cima do escano e o vilico enrolava-lhe o laço. Comovida e trêmula, Silvana lançou-se suplicante aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:

— Pedes perdão a Deus e ao teu rei?

— Não!

O pé do príncipe tombou o escano e a morte cortou as últimas palavras do cavaleiro.

III

A tropeada de muitos cavalos, soando a par do alarido e vozes do castelo, anunciou à aldeia, alvoroçada, a vinda do monarca. Telo Vasques aparecia à porta quando Soeiro Lopes expirava.

— Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e como esposo... apesar disso cheguei primeiro! A justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor!

Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Soeiro, na capela, e os noivos recebiam a bênção, tendo El-Rei D. Pedro por seu padrinho.

Falou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não se esqueceu nunca foi a Justiça que fizera em Algouço a severidade do monarca.

O castelo devolveu-se à coroa e parece que fora doado depois ao primogênito de Telo e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou fábula, não sei. El-Rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavaleiro um vilão, como de justiçar como vilão um cavaleiro.
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Vocabulário:
- Besteiro = fabricante de bestas.
- Besta = Arma antiga de arremesso, usada para disparar setas e pelouros, consistente de um arco de aço ou de madeira, cuja corda se retesa por meio de uma mola que pode ser solta ao se premir um gatilho.
- Escano = espécie de assento destinado em atos públicos às pessoas de mais elevada hierarquia.
- Menagem - Prisão fora do cárcere, concedida sob promessa do preso de não sair do lugar onde se acha ou que lhe foi designado.
- Rebramam = repetir o bramido.
- Sopear = Subjugar, dominar, reprimir, sofrear, vencer, domar.
- Vilico = regedor de lugar onde se arrecadavam os impostos e onde se administrava justiça: O vilico do século XII... correspondia não só ao moderno administrador ou mordomo de rico fidalgo, mas também representava a autoridade administrativa, e ainda, em certos casos, a judicial, dentro dos limites da honra... ou senhorio respectivo.
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Fonte:
Contos e Novelas de Língua Portuguesa. Seleção e organização de Yolanda Lhullier dos Santos e Nádia Santos. 8 ed. São Paulo: Logos, 1962. http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

Caldeirão Literário do Estado do Sergipe

Araripe Coutinho (1968)

XLII

Adentro avesso e o reto
É vulva aberta, mucosa
No inferno de nossos dentros.

Espeto o desejo como quem
Procura o risco, o medo, a coragem
De avançar perdido por algo que sei
Desde a infância, aurido.

Homem é sempre treva. Mas pode
Trazer o mundo para dentro de nós.
E a arte nessa selva é sempre
A morte.

Invento de muros. Paredes altas.
Consumo de felicidades mortas
E a maçã no escuro é Clarice
Sem decifrar GH, seu mito.

Estou apodrecendo como
Quem constrói uma catedral
Sem missa. Assim rendido no portal
Avanço sempre que me vejo.

Sou um mesmo homem
Que não conhece deus, mas que o ama.
Seria o amor assim? Este nunca vir.

Sim. É desejo o que me mata.
São negros e azuis e o quarto cabe
Cada um com seu poder.

Eu sempre rendido.

XL

Aparecer no espelho e dizer: morra!
Este é o meu tempo. Fantasmas visitando
O quarto escuro. Uma mulher de unhas longas
Tez avermelhada, sombrancelhas de chagas
Mal dormidas. É a morte. Ainda que o dia
Amanheça a noite nunca chega.
Estou tateando a ogiva de um amor sem matéria.
Carregando o andor de um santo sem fé.
É minha esta prece. É vasta, solene, quase muda.
Entendo a morte como a um copo de café.
Sirvo as compotas de frutas uma a uma.
É jambo, ameixas e morangos.
Nenhum sabor
Decifra esta ira. Estou incendiado
Desde amor.

XLIV

Tenho dito sempre
Que genet e Jeanne moreau
Estão certos: “todo homem mata aquilo que ama”.
Os negros na vidraça ensaboados
E o quarto aguardando bater seis horas.
É deu visitando a estrebaria.
Pondo fogo no feno, impedindo que se durma
Ao longo de uma costela larga.
Mas pode o desejo fraturado
Acender outra chama? Pode.
Desce as escadarias. Põe o colchão
De sombras na varanda. Deixa os glúteos
À mostra. Concentra o verde da vida
Entre os lábios. Deserta a última
Claridade. É ele quem ama.
Mesmo escuro põe vida nas coisas.
E inflama.
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Sobre o Autor
Nasceu no Rio de Janeiro em 1968 mas vive em Aracajú, Sergipe, desde 1979, onde é articulista de jornais e apresentador de programa de TV. É autor de meia dúzia de livros de poesia. Recebeu os títulos de Cidadania Aracajuana e Sergipana e é membro da Academia Sergipana de Letras. Foi diretor da Biblioteca Pública Municipal.
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Gizelda Santana de Morais (1939)

Viola de Gamba

Nossas mãos juntas
construirão gestos insuspeitados
nossos passos juntos caminharão
dobro dos caminhos
nossos corpos juntos
suportarão o peso das pressões
elevado ao quadrado
nossos mentes juntas
nossos pensamentos
nossos momentos
se esticarão como cordas
de viola de gamba
nos ouvidos dos séculos.

Pela rua

Caminho pela rua...
quantos destinos cruzam-se comigo,
quantas vidas diferentes de outras vidas,
quantas faces diferentes de outras faces...

Vou passando por muitos
(enquanto eles também passam por mim)
e perscruto seus gestos, seus modos, seus olhares.
Vejo gente sorrindo,
vejo gente cansada,
gente altiva, gente humilde, gente triste...
não vejo alguém chorando,
mas, quanta gente choraria o pranto
guardado, se não fosse a vergonha
de chorar pela rua.

Na rua passa tudo, passam todos
passa a noite, o silêncio, o barulho,
até os mortos passam pela rua.
E suas casas, suas luzes, suas pedras
também olham, perscrutam e testemunham
a tudo e todos que passam
pela rua.

Baladas do inútil silêncio

I

se há por quês
é porque não se cansam
as andorinhas de voar

nem os mágicos
de tirarem coelhos da cartola

e o tempo é o gesto
e o espaço um pedaço de pão

Quero o tato

Quero o tato
limpo como o espelho
quero o dólmen
e o anel
quero as alpargatas
para correr mundo
e a lança para cruzá-la no caminho
quero o fruto
colhido com a boca
e quero o amargo
pois também sou humano.

Interrogações

Onde a clareza
a certeza
perdidas nesse momento?
será o sono o microfone
ou o medicamento?

por que me dói
tão físico o coração
se mesmo toda físico
não me dói a mão?

por que decorre desse grito
o grito atravessado
e na esteira dos planetas
navegam tantos nadas?

de onde veio
essa louca antevisão
de perceber o futuro
sem ter de hoje os cordões?
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Sobre a Autora
Nasceu em Campo do Brit, Sergipe em 1939 e mora atualmente em Maceió. Seu primeiro livro de poesias, Rosa do Tempo (1958), foi publicado aos 18 anos, pelo Movimento Cultural de Sergipe. No ano seguinte ganha o 1° prêmio no Concurso Universitário de Poesia em Belo Horizonte. No mesmo gênero publicou, Acaso (Salvador/1975), Cantos ao Parapitinga (Aracaju/1991), Poemas de Amar (edição pessoal, 1995); em parceria com N. Marques e C. Fontes, Baladas do Inútil Silêncio (Salvador/1964) e Verdeoutono (Aracaju/ 1982); participa de coletâneas, Palavra de Mulher (Rio/1979), Aperitivo Poético (Aracaju, edições de 1986/87/88/89), NORdestinos (Lisboa/1994); entre os ensaios literários, Esboço para uma análise do significado da obra poética de Santo Souza (Aracaju/1996). Reúne sua poesia, publicada e inédita, em ROSA NO TEMPO, Scortecci Editora, São Paulo, 2003.

Doutora em Psicologia pela Universidade de Lyon (França), com a tese L'Ecriture et la Lecture, 1970); lecionou nas universidades federais de Sergipe e da Bahia e, como convidada, na Universidade de Nice. Tem vários trabalhos científicos em livros e revistas, entre os quais Pesquisa e Realidade no Ensino de 1° Grau (Cortez Ed. São Paulo/1980). É membro da Academia Sergipana de Letras.
Romances já publicados: JANE BRASIL, Aracaju/1986; IBIRADIÔ, 1ª ed. Aracaju/1990, 2ª ed. Scortecci Ed. SP. 2003, ed. francesa: Editions du Petit Véhicule, Nantes, 1999; PREPAREM OS AGOGÔS, Ed. Bagaço, Recife/1996, (Menção Honrosa no concursos nacional de romance do governo do Paraná ,1994); ABSOLVO E CONDENO, Vertente editora, SP, 2000 (menção especial, UBE, 2002); FELIZ AVENTUREIRO, Scortecci Ed. SP, 2001 (prêmio AJC, Especial do Júri, 2002).
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João Ribeiro (1860 – 1934)

MUSEON
II
Helés, a formosíssima das gregas,
Róseo trecho de mármor sob escombros
Dum Panteon que as divindades cegas
Soterraram depois de tê-lo aos ombros,

Helés, um dia, sobre a praia chegas ...
Inclinam-se extensíssimos os combros
E o vento alarga em frêmitos de assombros
Da túnica do mar as verdes pregas.

E tu reinas, tu só! Debalde, vagas
Sobre outras vagas se atropelam, correm,
Uma por uma, indiferente esmagas:

Como as paixões na tua vida ocorrem,
Uma e mais outra, nas desertas plagas
Chegam e morrem, e chegam e morrem.

IV

Este vaso quem fez, por certo fê-lo
Folhas de acanto e parras imitando.
É de ver-se a asa fosca o setestrelo
De saboroso cacho alevantando.

Que desejo viria de sorvê-lo
Os gomos todos um a um sugando,
Quando, contam, dos pássaros o bando
Do céu descia prestes a bebê-lo.

Examina este vaso. N'um momento
Crê-se vê-lo a voar, o movimento
D'asa soltando, como aéreo ninho ...

Será verdade que este vaso voa
Ou porventura à mente me atordoa
Seu capitoso odor de antigo vinho?

VIII

Foi com esta maçã d' oiro polido
Que as ambições movendo de Atalanta,
Pôde Hipomenes alcançá-la. E quanta
Vitória a essa em tudo parecida!

Ao ideal aspira! à estrela aspira! à vida
Aspira ó nada, ó turba agonizante,
Ou chores quando a terra alegre cante
— Ou cantes quando a lágrima vertida

Desça-te à boca. E bastaria, apenas,
Para galgar essas regiões serenas,
A maçã de Hipomenes, flébil, louro ...

E chegarás ao ideal e à vida, O pomo
Áureo atirando à própria estrela, como
Lá chega a l,:!z - por uma escada de ouro.

XI

Do mar e das espumas tu nasceste,
Ó forma ideal de rodas as belezas,
lnda teu corpo, mal vestindo-o, veste
Um colar de marítimas turquesas.

Milhares d'anos há que apareceste,
Outros milhares d'almas-sempre acesas
No teu amor, lá vão seguindo presas
Da rua garra olímpica e celeste.

Beijo-te a boca e sigo embevecido
Ondas sobre ondas, pelo mar afora,
Louco, arrastado qual os mais têm sido.

Ora te vendo as formas nuas, ora
Toda nua e sentir-te em meu ouvido
Do eterno som dos beijos meus sonora.
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Sobre o Autor
João batista Ribeiro de Andrade Fernandes, jornalista, crítico, filólogo, historiador, pintor, tradutor, nasceu em Laranjeiras, província de Sergipe e faleceu no Rio de janeiro, onde fez carreira depois de cursar Medicina, sem concluir o curso, na Bahia. Por concurso público, trabalhou na Biblioteca Nacional e depois no renomado Colégio Pedro II, na cadeira de Português. Estudioso de filologia, o que o levou a ter um papel decisivo nas reformas da própria língua nacional. Chegou a fazer estudos de pintura na Europa e a expor seus quadros mas foi no jornalismo e na literatura onde recebeu o reconhecimento por sua contribuição. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Obra poética: Tenebrosa lux (1881), Dias de sol (1884), Avena e cítara (1885) e Versos (1885).
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Joel Silveira (1918)

Poema

Porque não há trégua na quotidiana amargura,
os versos nascem todos desgraçados
e possivelmente maus.

Os caminhos estão gastos,
as mulheres se repetem
e é ridículo dar amor a alguém que amanhã estará murcho
e que jamais devolverá nossas cartas.
Para as horas, tão inúteis,
vale apenas a solução dos bêbedos.

Onde estão os perigos desta vida?
Quero-os todos para mim, aqui ou longe,
a eles o melhor estilo e o melhor entusiasmo.
E que sobre eles o amor e a alegria se debrucem
como rosas abertas num campo minado.
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Sobre o autor
Poeta e jornalista, nasceu em Aracaju, em 1918. Conhecido por seus livros de reportagens e ficção – entre eles o célebre Meninos eu vi (1965) e o romance Você nunca será um deles (1988), foi incluído por Manuel Bandeira em sua antologia Poetas brasileiros bissextos contemporâneos (1946).


Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/

Carlos Leite Ribeiro (A Lei da Vida)

A Lei da Vida, é um conto que teve adaptação radiofónica, e com assinalado êxito em Marinha Grande, Portugal.

(A cena passasse numa rua e numa casa modesta da Marinha Grande)

Padre – Bom dia Doutor!

Doutor – Bom dia, padre Henrique. Por cá tão cedo?

Padre – Passei por aqui perto e quis saber qual a situação clínica do nosso querido amigo José Mateus, a que muito chamam “o Inventor”.

Doutor – O que é que quer que lhe diga, padre Henrique ?

Padre – A verdade, pois esta, apesar de ser muitas vezes cruel aos nossos olhos, deve ser sempre dita.

Doutor – Será vontade de Deus ?

Padre – Como lhe queira chamar, doutor ...

2ª Pers. – A situação clínica do sr. José Mateus, tem muito a ver com a sua idade, com o seu desgaste natural ...

Padre – Só?...

Doutor – E mais um problema cardiovascular, que se está a agravar.

Padre – Quer então o doutor dizer que o caso apresenta-se muito complicado, não é ?

Doutor – Dir-lhe-ei mesmo mais do que isso – apresenta-se muito crítico.

Padre – Pobre amigo, José Mateus ! Bem, é a LEI DA VIDA – quem nasce tem de morrer.

Doutor – Nós, os cá da terra, nestes casos, pouco ou nada podemos fazer ...

Padre – O filho, o sr. Engº. Hugo Mateus, já foi avisado?

Doutor – Ontem, tentei entrar em contacto com ele. Mas não se encontrava em casa, pois, tinha ido a Espanha tratar de uns assuntos da empresa que dirige, no norte. Mandei há pouco a criada telefonar para a fábrica – o que já deve ter feito.

Padre – Vamos então aguardar a chegada do eng. Hugo Mateus ...

( toque de campainha de telefone )

Olívia - ... Bom dia, Empresa Industrial da Marinha Grande ... neste momento, o sr. Engº. Hugo Mateus, não se encontra na Empresa ... não sei, mas estou a contar que ele não se demore muito. Quem fala ?... Hááá , é da Marinha Grande. Diga-me por favor se o pai do sr. Engº. , está melhor ? ... Hóó, lamento muito a sua situação e desejo-lhe as melhoras ... pois é, é a Lei da Vida ... nestes casos é muito mais fácil dizer aos outros que tenham coragem ... pode estar descansada, sim, que eu darei o seu recado ao sr. Engº. Quando ele chegar ... pode ficar descansada ... Bom dia!

...

Olívia – Senhor engenheiro Hugo Mateus. Bom dia!

Engenheiro – Bom dia, Olívia. Há algum recado?

Olívia – Há vários, mas o mais importante, é um da Marinha Grande, que veio de casa de seu pai ...

Engenheiro – O que quer dizer que o velhote está em apuros – não é, Olívia?

Olívia – Pedem o favor para o sr. Engº. telefonar urgentemente para lá.

Engenheiro – Olívia, faça a ligação para o meu gabinete. Atenderei de lá ...

...

5ª Pers. – Já repararam que está muita gente a entrar para a casa do sr. José Mateus ? possivelmente, o velhote morreu ...

6ª Pers. – Não, ainda não deve ter morrido, pois, a sobrinha da criada, a Pureza, ainda esteve aqui há pouco e disse-me que o velhote ainda vivia.

5ª Pers. – Nestes casos, os amigos vão juntando à espera que o amigo dê o último suspiro.

6ª Pers. – Pois é. Estão à espera que o homem morra, mas como ele dizia: “Sou muito teimoso !”.

5ª Pers. – Ao fundo da rua, vem o padre Henrique ...

6ª Pers. – O que quer dizer que a situação clínica do sr. José Mateus, deve estar a complicar-se ...

5ª Pers. – Sim, para o padre ir lá a casa a esta hora ...

6ª Pers. – O padre Henrique, é amigo daquela família, já há muitos anos. Foi ele quem ensinou as primeiras letras ao sr. Engº. Hugo Mateus.

5ª - Pers. – Por falar no filho – ainda não o vi por cá ...

6ª Pers. – Eu também não. Mas não admira, pois, o sr. Eng. é administrador de uma empresa da Marinha Grande. Mas, se a situação estiver a complicar-se, não deve tardar aí.

5ª Pers. – Reparem, quem vem de lá a sair é a D. Albertina. Também uma velha amiga daquela família, já do tempo da mulher do sr. José Mateus.

6ª Pers. – Da D. Áurea, santa senhora, recordo-me bem. A D. Albertina, está a falar com aquelas vizinhas e a chorar muito. O que terá acontecido?

5ª Pers. – Ela vem agora para este lado… D. Albertina, D. Albertina ...

Albertina – Bom dia, vizinhas. Querem saber como está o sr. José Mateus, não é assim ?

5ª Pers. – É verdade. Como é que ele está, D. Albertina?

Albertina – Ora, como é que o pobrezinho está! ... está na última, mas ainda bastante lúcido.

6ª Pers. – Ainda não vi o filho, o sr. Engº. Hugo Mateus...

Albertina – Ele ainda não chegou, mas, como já está avisado da situação do pai, não deve tardar a chegar. Bem, tenho que me ir embora, pois tenho que ir fazer o almoço ao meu marido e também mudar de roupa. Até logo, vizinhas ...

5ª Pers. – Até logo, D. Albertina e muito obrigada pela sua atenção. Coitado do velhote !

6ª Pers. – Ainda me lembro quando o sr. José Mateus provocou aquela grande explosão de gás, quando pretendia que um foguetão que ele tinha inventado, subisse ao espaço !

5ª Pers. – Eu também me lembro pois fiquei com a roupa que tinha a secar, toda chamuscada. Aquele homem nunca parou com os seus inventos, e com alguns deles, teve êxito.

6ª Pers. – Como aquele saca-rolhas que com um sopro tirava as rolhas.

5ª Pers. – Reparem, ou eu me engano muito, ou é o carro do filho que vem aí ... é ele é !

6ª Pers. – Olha lá, o sr. Engº. Hugo Mateus, não é casado?

5ª Pers. – Ainda não é.

6ª Pers. – Mas ele é bastante jeitoso. Admiro-me não ter casado ainda ...

5ª Pers. – Ele é muito fino e diz que ainda tem muito tempo para se casar.

6ª Pers. – Olha, o médico também está a chegar. É aquele que está a falar com o engº. Hugo.

5ª Pers. – E neste momento, vão entrar para a casa do velhote ...

...

Engenheiro – Então, pelo que me diz, a situação clínica de meu pai, é muito crítica ?

Doutor – Direi mesmo que é muito crítica. Está medicamentado e, só por isso encontra-se, neste momento, calmo. Deve acordar daqui a pouco.

Engenheiro – Obrigado por tudo o que tem feito a meu pai. Mas, agora reparo: o padre Henrique está cá. Com licença, doutor ...

Doutor – Vá, vá engenheiro, enquanto eu vou ver o doente.

Engenheiro – Por cá, padre Henrique?!

Padre – Então eu não devia de estar cá, nesta hora tão difícil para todos nós ?! não te esqueças de que teu pai é um grande amigo que tenho !

Engenheiro – Não o quis ofender, padre Henrique – até lhe agradeço o seu cuidado e interesse!

Padre – E tu, meu rapaz, como estás? ... não queres que eu te trate pelo teu título académico – pois não?...

Engenheiro – Claro que não, padre Henrique! eu estou bem, mas como é lógico, muito preocupado com o meu pai.

Padre – Tens de ter resignação, meu filho ... como tu sabes, a idade não perdoa. Teu pai nunca parou de trabalhar, de inventar coisas.

Engenheiro – O meu pai e os seus inventos ! ele ainda deve estar a descansar – não é padre?

Padre – Está sob o efeito dos medicamentos, mas segundo o médico me disse, o seu efeito deve estar quase a acabar.

Engenheiro – E o meu pai já perguntou por mim?

Padre – Pois claro que sim, meu filho. O teu pai está lúcido. Ainda ontem me disse que queria falar contigo sobre outro seu invento. Mas não me disse do que se tratava.

Engenheiro – Nem às portas da morte, o meu pai descansa ! o que será desta vez ? – o pai e os seus inventos!

Padre – Olha lá, aquele invento contra os assaltantes de aviões, deu resultado ?...

Engenheiro – Entreguei o projecto às companhias de aviação. Ainda não me disseram nada.

Padre – E na tua opinião, como técnico, esse projecto é viável?

Engenheiro – Sim, talvez. O problema é encontrar um gás adequado para adormecer, momentaneamente, os assaltantes e os passageiros. Além do antídoto para a tripulação ...

Padre – Então, digamos, que a ideia é válida e, no futuro, até poderá ser útil ...

Engenheiro – Pois é. Até poderá ser útil, como o padre Henrique diz: se os técnicos desenvolverem a ideia.

Albertina – Desculpem interromper. Sr. Engº., o seu pai acordou agora e perguntou logo por si. Diz que lhe quer falar ...

Padre – Então vamos lá, meu filho, pois, infelizmente, teu pai não deverá ter muito tempo de vida.

Engenheiro – Passe, passe padre Henrique. Vá à frente, pois também conhece bem o caminho ...

Padre – Vamos então entrar ... olá, velho amigo! como é que tu estás, meu velho?...

Mateus– Eu ... estou bem ... vivo … e ainda ... não preciso ... de um padre ...

Padre – Olha José, eu estou aqui como um amigo que vem visitar outro, e não como padre. Mas, se tu não me quiseres aqui dentro, vou-me já embora ...

Engenheiro – Desculpe, padre Henrique, mas meu pai quer falar comigo em particular. Por favor, não leve a mal e desculpe-me ...

Padre – Eu compreendo, eu compreendo, meu rapaz. Vou já sair. Até já ...

Mateus – O padre ... Henrique ... ele ... já saiu ... ?!

Engenheiro – Já sim, pai. Mas não te canses, tem calma.

Mateus – Eu ... nunca ... nunca ... me canso ... quero ... falar contigo ... pois ... inventei ...

Engenheiro – Pai, não te canses, por favor. Podemos falar depois, quando tu estiveres menos cansado.

Mateus – Falar ... comigo ... depois ?! ... olha que será difícil ... naquela ... naquela ... escrivaninha ... está ... está ... uma projecto ... de transístor ... para evitar ... evitar o roubo ... de ... automóveis ...

Engenheiro – Pai, pai não te canses mais. Eu vou já buscar esses planos ...

Mateus – Ai ... aiiii.... iii...

Engenheiro – Pai, já vou chamar o médico ...

Mateus – Vai ... vai ... meu ... filho ... lho …



Engenheiro – Doutor, doutor ... o meu pai está a sentir-se muito mal ...

Doutor – Vou já, vou já. Saia então por favor. Deixe-se sozinho com o seu pai ...

Padre– Então, meu filho ? ...

Engenheiro – O meu pai, está mesmo muito mal !...

Padre – Tens de te conformar, é a Lei da Vida ... Olha, o doutor vem aí ...

Engenheiro – Então, doutor ?!...

Doutor – Aquilo que nós esperávamos, aconteceu agora mesmo – seu pai, morreu ...

...

Padre – Sei que estás a passar um momento, digamos, dramático. Mas tens de ir descansar, meu filho, Aqui na Terra, já está tudo terminado para teu pai.

Engenheiro – Ainda me parece um sonho ... Meu pai morreu. Meu pai morreu …

Padre – Queres passar agora lá por casa de teu pai ?

Engenheir – Sim, tenho que passar por lá para dar as minhas ordens à criada e, trazer o dossier do último invento de meu pai.

Padre – Eu acompanho-te, meu filho.

Engenheiro – Obrigado, padre Henrique ...

... … …

Engenheiro – Olívia, faz hoje um ano que meu pai morreu. Telefona para a Marinha Grande e diga à criada que não se esqueça de comprar flores, muitas flores ... para ele.

Olívia – Não me esquecerei, sr. Engº.

Engenheiro – Há algum recado para mim?

Olívia – Telefonaram da Associação das Companhias de Aviação a comunicarem que o invento de seu pai, foi aprovado e, que dentro de pouco tempo, começará a ser utilizado. Dizem que querem comunicar com o sr. Eng., para tratarem dos direitos de patente ...

...

Engenheiro – “Já dizia o grande mestre Almada Negreiros: “Podem não considerar ou até mesmo destruir a vida de um homem – mas nunca conseguem destruir a sua obra !”. Pai, se me estás a ouvir, deves de estar contente, pois, conseguiste VENCER – embora depois de morto !”.

Fonte:
E-mail enviado por Carlos Leite Ribeiro. Portal CEN.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

2ª Expo Literária

No último sábado (13/09) foi realizado uma reunião no Auditório da Biblioteca Municipal para orientar os escritores com relação à 2ª Expo Literária que será realizada nos dias 30, 31 de outubro e 01 de novembro. Na reunião estavam presentes Tânia Kalil e Margarete Moreno Comitre Silveira responsáveis pela Biblioteca, escritores e interessados em participar do evento. A partir desta semana, os escritores deverão comparecer à biblioteca para fazerem suas inscrições e combinarem sobre a participação no evento. Também presente o escritor José Verdasca dos Santos, presidente da Ordem Nacional dos Escritores que conversou com os presentes.


Participe da 2ª Expo Literária

O evento literário patrocinado pela Prefeitura, por meio das secretarias da Cultura e da Educação, abre espaço para escritores de toda a região

A Expo Literária, em sua segunda edição, está recebendo inscrições de escritores interessados em divulgar suas obras. É um evento literário que reúne importantes escritores de toda a região em três dias de exposições, palestras, bate-papos e workshops. Neste ano, a Expo homenageia os 100 anos de falecimento do escritor Machado de Assis com uma tenda para 500 pessoas onde serão ministradas palestras e contações de histórias. Haverá também uma tenda de cinema com ar condicionado onde serão exibidos vários filmes. Para as crianças e os jovens, haverá também uma tenda no parque de diversões do Paço Municipal com ensinamentos de literatura, pintura de rosto e didática para crianças. Os estandes dos livros serão montados em uma tenda onde também haverá a “Mostra da Educação”, exposição dos trabalhos de alunos da rede de ensino Municipal. Neste ano, o evento não será dentro da Biblioteca Municipal como no ano passado, será em tendas montadas ao redor para não atrapalhar os leitores da biblioteca.

O autor interessado poderá participar com três títulos e também terá acesso ao auditório para palestras e lançamentos, desde que, agendado com antecedência.

A Expo Literária acontecerá ao redor da Biblioteca Municipal "Jorge Guilherme Senger", localizada na Rua Ministro Coqueijo Costa, 180, Alto da Boa Vista – Sorocaba/SP. Os horários são: quinta-feira e sexta-feira das 8h às 20h e no sábado das 10h às 17h.

Informações pelo telefone (15) 3228-1955 com Tânia Kalil.
Cintian Moraes - jornalista
(15) 8119.2476
cintian.moraes@yahoo.com.br

Observações:
1. O regulamento para participação dos escritores sorocabanos na 2ª Expo Literária de Sorocaba poderá ser retirado na Biblioteca Municipal com a Tânia Kalil.

2. Gostariamos de explicar que o Prêmio Anual Sorocaba de Literatura foi instituído através da Lei nº 2395 de 02 de julho de 1985. A partir do ano passado a entrega foi realizada na Expo, portanto este ano também fará parte da programação de abertura.
Esse Prêmio é dado ao melhor lançamento de livro de 2007, formado por uma comissão de representantes de várias entidades. Quanto ao Prêmio, conforme consta no processo, o ganhador receberá uma medalha, um diploma (não é da Expo) e um valor estipulado mais ou menos de R$500,00. Os prêmios não são vinculados ao projeto da Expo Literária.

Fonte:
Douglas Lara. In
http://www.asorocaba.com.br/acontece

João do Rio (1881 – 1921)

Filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática e positivista, e da dona-de-casa Florência dos Santos Barreto, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto nasceu a 5 de agosto de 1881, na rua do Hospício, 284 (atual rua Buenos Aires, no Centro do Rio). Estudou Português no Colégio São Bento, onde começou a exercer seus dotes literários, e aos 15 anos prestou concurso de admissão ao Ginásio Nacional (hoje, Colégio Pedro II).

Em 1 de junho de 1899, com 18 anos incompletos, teve seu primeiro texto publicado em A Tribuna, jornal de Alcindo Guanabara. Assinado com seu próprio nome, era uma crítica intitulada Lucília Simões sobre a peça Casa de Bonecas de Ibsen, então em cartaz no teatro Santana (atual Teatro Carlos Gomes).

Prolífico escritor, entre 1900 e 1903 colabora sob diversos pseudônimos (Claude; José Antônio José, Caran D’Arche; Joe) e heterônimo com vida própria (Godofredo de Alencar) com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió. Em 1903, é indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde permaneceria até 1913. Foi neste jornal que, em 26 de novembro de 1903 nasceu João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo "O Brasil Lê", uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. E, como indica Gomes (1996, p. 44), "daí por diante, o nome que fixa a identidade literária engole Paulo Barreto. Sob essa máscara publicará todos os seus livros e é como granjeia fama. Junto ao nome o nome da cidade".

Segundo seus biógrafos, ao profissionalizar-se, Paulo Barreto representou o surgimento de um novo tipo de jornalista na imprensa brasileira do início do século XX. Até então, o exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como "bico", uma atividade menor para pessoas que possuíam muitas horas vagas à disposição (como funcionários públicos, por exemplo). Paulo Barreto move a criação literária para o primeiro plano e passa a viver disso, empregando seus pseudônimos (mais de dez) para atrair diversos públicos consumidores.

Entre fevereiro e março de 1904, realizou uma série de reportagens intituladas "As religiões do Rio", que além de seu caráter de "jornalismo investigativo", constituem-se em importantes análises de cunho antropológico e sociológico, cedo reconhecidas como tal, particularmente no tocante as quatro matérias pioneiras sobre os cultos africanos na Pequena África, que antecedem em mais de um quarto de século as publicações de Nina Rodrigues sobre o tema (além de que, a obra de Rodrigues ficou praticamente restrita aos círculos acadêmicos baianos).

Estudiosos apontaram semelhanças entre "As religiões do Rio" e o livro "Les petites réligions de Paris" (1898), do francês Jules Bois. Todavia, a semelhança parece estar muito mais na idéia geral (uma investigação sobre as manifestações religiosas minoritárias numa grande cidade) do que no plano da realização formal.

A série de reportagens despertou tamanha curiosidade que Paulo Barreto a publicou em livro, tendo vendido mais de oito mil exemplares em seis anos. A proeza é ainda mais impressionante levando-se em conta o restrito público leitor da época, num país com elevadas taxas de analfabetismo.

Alguns biógrafos criticam o cronista pelo fato de que, ao perceber o filão representado pela publicação de coletâneas (algo que se tornaria comum na segunda metade do século XX), Paulo Barreto tenha descoberto uma "fórmula" para inflacionar a própria bibliografia. Todavia, uma análise das coletâneas publicadas ao tempo de sua curta vida repele tal afirmação. Primeiro, ele fazia uma seleção dos textos que iriam ser publicados; e, segundo, os textos selecionados possuíam unidade entre si, concordante com o título geral da obra e previamente justificados por um parágrafo introdutório.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em sua terceira tentativa, em 1910, Paulo Barreto foi o primeiro a tomar posse usando o hoje famoso "fardão dos imortais". Anos depois, com a eleição de seu desafeto, o poeta Humberto de Campos, ele se afastou da instituição. Conta-se que, quando informada de sua morte, a mãe avisou expressamente que o velório não poderia ser feito lá, pois o filho não aprovaria a idéia.

As preferências sexuais de Paulo Barreto desde cedo constituíram-se em motivo de suspeita (e, posteriormente, de troça) entre seus contemporâneos. Solteiro, sem namorada ou amante conhecidas, muitos de seus textos deixam transparecer uma inclinação homoerótica bastante explícita. As suspeitas praticamente se confirmaram quando ele se arvorou em divulgador na terra brasileira, da obra do "maldito" Oscar Wilde, de quem traduziu várias obras.

Figura ímpar, que se vestia e se comportava como um "dândi de salão" (Rodrigues, 1996, p. 239), Paulo Barreto jamais ousou desafiar os estereótipos com os quais a sociedade rotula os homossexuais. Todavia, ao se propôr a defender novas idéias nos campos político e social, sua figura "volumosa, beiçuda, muito moreno, lisa de pêlo" (como registrou Gilberto Amado) tornou-se um alvo perfeito para toda sorte de racistas e homofóbicos reacionários, dentre eles, Humberto de Campos.

É nesse contexto que se insere seu suposto "flirt" com Isadora Duncan, que apresentou-se no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1916. Duncan e Barreto já haviam se conhecido anteriormente, em Portugal, mas foi somente durante a temporada no Rio que se tornaram íntimos. O grau dessa intimidade é um mistério. Especula-se que tudo poderia não ter passado de uma "jogada de marketing" para atrair a atenção da imprensa, embora outras fontes citem um suposto diálogo em que a bailarina teria interpelado Barreto sobre sua pederastia, ao que ele teria respondido: Je suis trés corrompu ("Sou completamente corrupto").

Em 1920, Paulo Barreto fundou o jornal A Pátria (chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores), no qual buscou defender os interesses dos "poveiros", pescadores lusos oriundos em sua maioria de Póvoa de Varzim, e que abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro. Ameaçados por uma lei de nacionalização do governo brasileiro, que exigia que a pesca fosse exercida apenas por nacionais, e os obrigava a naturalizar-se para poder continuar na profissão, os "poveiros" entraram em greve.

A atividade de Barreto em prol da colônia portuguesa granjeou-lhe grande quantidade de inimigos, um sem-número de ofensas morais ("manta de banha com dois olhos" foi uma das mais leves) e até mesmo um covarde episódio de agressão física, quando, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi surrado por um grupo de nacionalistas.

Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 23 de junho de 1921. Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que parasse e lhe trouxesse um copo d'água. Antes que o socorro chegasse, no entanto, ele faleceu, vítima de um enfarte do miocárdio fulminante.

A notícia de que João do Rio havia morrido espalhou-se por toda a cidade rapidamente. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escritor que certa feita, sob o pseudônimo de Godofredo de Alencar, havia registrado sua opção preferencial pela diversidade:

Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos. (Gomes, 1996, p. 69).

O nome Paulo Barreto batiza uma rua inexpressiva no bairro aristocrático de Botafogo. Como apontou Graciliano Ramos, "a homenagem que lhe tributaram é modesta: ofereceram-lhe uma rua curta" (Gomes, 1996, p. 11). A Póvoa de Varzim, em Portugal, também deu o seu nome a uma pequena rua mesmo no centro da cidade, junto à Câmara Municipal.

João do Rio é patrono da cadeira número 1 da Academia Irajaense de Letras e Artes (AILA) ocupada pelo escritor e poeta acadêmico Agostinho Rodrigues, fundador da entidade, em 1993.

Cronologia
– 1881: nasce em 5 de agosto.
– 1896: presta concurso para o Ginásio Nacional (Colégio Pedro II).
– 1898: morre Bernardo Gutemberg, irmão caçula de Paulo Barreto.
– 1899: em 1 de junho publica seu primeiro texto.
– 1900: começa a escrever para vários órgãos da imprensa carioca.
– 1902: tenta entrar para o Itamarati, mas é "diplomaticamente" recusado pelo Barão do Rio Branco por ser "gordo, amulatado e homossexual" (Gomes, 1996, p. 114).
– 1903: indicado por Nilo Peçanha, começa a trabalhar na Gazeta de Notícias, onde permaneceria até 1913.
– 1904: entre fevereiro e março, realiza para a Gazeta a série de reportagens "As religiões do Rio", posteriormente transformadas em livro.
– 1905: em novembro, torna-se conferencista.
– 1906: estréia sua primeira peça teatral, a revista Chic-Chic (escrita em parceria com o jornalista J. Brito).
– 1907: o drama Clotilde, de sua autoria, é encenado no teatro Recreio Dramático. No mesmo ano, ele se candidata pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras.
– 1908: em dezembro, faz sua primeira viagem à Europa, tendo visitado Portugal, Londres e Paris.
– 1909: em março, morre o pai e Paulo e sua mãe mudam-se para a Lapa (em casa separadas, contudo). Em novembro, lança o livro de contos infantis Era uma vez..., em parceria com Viriato Correia.
– 1910: é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em dezembro, faz sua segunda viagem à Europa e visita Lisboa, Porto, Madri, Barcelona, Paris, a Riviera e a Itália.
– 1911: com um empréstimo de 20 contos de réis fornecido por Paulo Barreto, Irineu Marinho deixa a Gazeta e lança em junho o jornal A Noite. Um ano depois, ele quitou totalmente o empréstimo.
– 1912: é lançado o livro Intenções, de Oscar Wilde, em tradução de Paulo Barreto.
– 1913: torna-se correspondente estrangeiro da Academia de Ciências de Lisboa. Em novembro, faz sua terceira viagem à Europa, tendo visitado Lisboa (onde sua peça A bela Madame Vargas é encenada com grande sucesso), Paris, Alemanha, Istambul, Rússia, Grécia, Jerusalém e Cairo.
– 1915: viaja à Argentina e se encanta com o país. Declara que "Buenos Aires é a Londres gaúcha" (Gomes, 1996, p, 120).
– 1916: torna-se amigo de Isadora Duncan, durante a temporada dela no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao lado de Gilberto Amado, teria testemunhado a bailarina dançar nua na Cascatinha da Tijuca.
– 1917: em 22 de maio, escreve para O Paiz uma crônica intitulada "Praia Maravilhosa" onde exalta as maravilhas da praia de Ipanema. É presenteado com dois terrenos no futuro bairro, onde passa a residir neste ano. Funda e passa a dirigir a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).
– 1918: viaja à Europa para cobrir a conferência do armistício em Versalhes, após a I Guerra Mundial.
– 1919: publica o livro de contos "A mulher e os espelhos".
– 1920: funda o jornal A Pátria, onde defende a colônia portuguesa. Por causa disso, é vítima de ofensas morais e agressão física.
– 1921: em 23 de junho, morre de enfarte fulminante. Seu enterro é acompanhado por mais de 100 mil pessoas.

Representações na cultura

João do Rio já foi retratado como personagem no cinema, interpretado por José Lewgoy no filme Tabu (1982). No filme Brasília 18% (2006), Otávio Augusto interpreta uma personagem homônima, que no entanto pouco ou nada se relaciona à figura histórica.

Obras do autor

- As religiões do Rio. Paris: Garnier, 1904?
- O momento literário. Paris: Garnier, 1905?
- A alma encantadora das ruas. Paris: Garnier, 1908.?
- Era uma vez... (em co-autoria com Viriato Correia). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909.
- Cinematographo: crônicas cariocas. Porto: Lello & Irmão, 1909.
- Fados, canções e danças de Portugal. Paris: Garnier, 1910.
- Dentro da noite. Paris: Garnier, 1910.?
- A profissão de Jacques Pedreira. Paris: Garnier, 1911.
- Psicologia urbana: O amor carioca; O figurino; O flirt; A delícia de mentir; Discurso de recepção. Paris: Garnier, 1911.
- Vida vertiginosa. Paris: Garnier, 1911.
- Portugal d'agora. Paris: Garnier, 1911.
- Os dias passam.... Porto: Lello & Irmão, 1912.
- A bela madame Vargas. Rio de Janeiro: Briguiet, 1912?
- Eva. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1915.
- Crônicas e frases de Godofredo de Alencar. Lisboa: Bertrand, 1916?
- Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917.
- Nos tempos de Venceslau. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917.
- Sésamo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917.
- A correspondência de um estação de cura. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurílio, 1918.
- A mulher e os espelhos. Lisboa: Portugal-Brasil, 1919?
- Na conferência da Paz. 3 v. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1919-20.
- Adiante!. Paris: Aillaud; Lisboa: Bertrand, 1919.
- Ramo de loiro: notícias em louvor. Paris: Aillaud; Lisboa: Bertrand, 1921.
- Rosário da ilusão.... Lisboa: Portugal-Brasil; Rio de Janeiro: Americana, 1921?
- Celebridades, desejo. Ed. póstuma. Rio de Janeiro: Centro Luso-Brasileiro Paulo Barreto, 1932.

Fontes:
- http://pt.wikipedia.org
- http://www.releituras.com
- Foto: http://www.joaodorio.com
- Academia Brasileira de Letras
- João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. SP: Martin Claret, 2007. Contra-capa.

João do Rio (O homem de cabeça de papelão)

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

Fontes:
R. Magalhães Junior (org.) Antologia de Humorismo e Sátira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1957.
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João do Rio (Aventura de Hotel)

Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade heteróclita mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões em conclusão da sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.

Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino Parecia um aquário. A mim pelo menos. As atrizes tomavam ares graves de peixes evoluindo cerimoniosamente no fundo d'água para cumprimentar as damas sem palco; os homens eram reservadíssimos. Tudo aquilo mastigava calado, cada um na sua mesa, batendo o talher. Só quando havia hóspede novo é que surgiam frases breves.

- Quem é?

- O deputado Gomensoro.

- Ah!

Sempre grandes nomes, gente importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares empastilhados. E à noite, no saguão guarnecera de um indizível mobiliário hesitante entre o estilo otomano, os belchiors e o confortável inglês, podia-se ver os representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó.

Precisamente tínhamos mais dois hóspedes, o velho ministro do Supremo, Melchior, e seu sobrinho Raul Pontes, rapaz elegante, vivaz, espirituoso, com vinte anos irresistíveis. Todos no hotel respeitavam Melchior e gostavam do Raul, e ainda ninguém esquecera a sua verve quando o deputado Gomensoro, depois de apertar-lhe a mão, dera por falta do relógio. Onde se fora o relógio? No bonde? Roubado? Saíra Gomensoro com ele? O Dr. Raul Pontes ria a bom rir. O relógio evaporara-se decerto. Era o calor. E ficou muito bem aquele estouvamento, tanto mais quanto o velho Melchior representante da justiça, mostrava-se incomodado.

No dia seguinte, ao vestir-me para o almoço, lembrei que na minha gravata creme ficava bem um alfinete de turmalina azul com brilhantes do Cabo, linda jóia e lindo presente. Abri a gaveta onde deixara à noite. Não estava lá. Abri outras gavetas, procurei, remexi malas e bolsas. O alfinete desaparecera. Quis descer, prevenir o gerente. Mas contive-me. Podia tê-lo atirado para qualquer canto. Quando se quer achar um objeto, a gente está vendo-o e é como se não o visse. Depois uma queixa sem provas contra o criado acirra a má vontade. Menos talvez que as queixas com provas, mas sempre o bastante para sermos malservidos. Eu sou prudente. Três ou quatro dias depois, no saguão, o senador Gomes, que só tinha livros e roupas velhas no seu aposento, perguntou-me de repente:

- Você tem um alfinete de turmalina azul, não?

Além de prudente, sou inteligente. Por que diabo naquele distinto hotel, o senador indagava de um alfinete desaparecido? Tê-lo-ia apanhado por farsa? Era pouco próprio para o alto cargo legislativo, mas para mim uma confiança simpática. Fez-me o efeito de um piparote no ventre. Respondi:

- Tenho sim. Por que pergunta? Ainda hoje sai com ele...

Gomes travara com a genial Zulmira Simões, oráculo teatral de aquém e de além-mar, uma discussão superior sobre Calderon de la Barca, a quem, aliás, ambos imputavam várias peças de Lope de Vega. Em tão elevada esfera da dramaturgia espanhola, Gomes não respondeu à minha pergunta, e eu que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior meio abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie de prata. Coisa estúpida afinal!

O gatuno - porque era o gatuno, não havia dúvida, - o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria. Que fazer? Prevenir o proprietário? Mas eu estava num hotel tão distinto! Era pouco correto e estabeleceria o desequilíbrio na confiança geral. Não! seria melhor esperar.

No dia seguinte, como voltasse de ouvir o D. Cesar de Bazan com Zulmira Simões e o brumeliano de Sousa, enquanto de Sousa subia à frente, a atriz murmurou:

- Ah! meu amigo, este hotel tem casos curiosos... Sabe que fui roubada?

- Sério?

- Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raimundo logo no começo da nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O Dr Pontes foi também roubado no seu porte-monnaie.

- Como eu!

- O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá.

Horas depois felizmente rebentava o escândalo. Pela manhã, Mme. de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face â mam de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapos - dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso. Falou até de processo por perdas e danos. Era um ladrão cínico. E durante o almoço a conversa generalizou-se. Ninguém escapara. O que acontecera comigo acontecera com de Sousa, com o barão de Somerino, com o negociante tuberculoso, com o ex-vice-presidente da ex-missão do México, com a estrela revisteira, com o Dr. Melchior. Todos tinham sido roubados e confessavam por desabafar. Havia até mesmo recordações. O Dr. Pontes, o nosso caro Raul, indagava da genial Simões:

- V. Excia. andava à cata do ladrão naquele dia em que a encontrei no corredor?

- Não; ainda não sabia. Tive apenas um pressentimento. Acho que deviam prender o homem.

- Mas não há provas! exclamava Mme. de Santarém. Não encontraram nada! Era esperto. No dia em que desapareceu o meu face â mam, não saí do quarto.

- Roubos excepcionais...

- Estamos no domínio dos ladrões geniais.

- Precisamos de um grande agente dedutivo para resolver o crime...

- E prender o Antônio copeiro? Ora para ladrões desse gênero basta a nossa polícia!

Aliás o tal Antônio gatuno parecia mais um doente. O homem afinal não tirara nunca dinheiro, e as argolas de guardanapos do hotel eram lastimáveis como valores. Mas, fosse gatuno genial ou doente, Antônio partira e a confiança renascia. Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, Mme. de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face â mam, outra o seu berloque.

É uma aventura! É um caso de diabolismo! sentenciava o negociante tuberculoso.

O hotel convulsionava-se. Só o senador Gomes resmungou:

- Que besta!

E aquela frase dita tristemente preocupou-me. No fundo, porém, o sujo e ilustre homem tinha razão. O gatuno, ou o sportman da ladroeira não era Antônio, era outro, existia, anunciava a sua presença, estava ali, ao nosso lado. Audácia? Loucura? Estupidez? No dia seguinte deu-se por falta do colar de ouro com pedras finas da atriz Simões, os brincos da mulher do tuberculoso sumiram-se. Foi o terror. Os hóspedes trancavam o quarto e saíam levando os valores no bolso, mesmo para almoçar. A limpeza era feita na presença dos respectivos locatários. Já ninguém se falava direito, já ninguém conversava. Havia entre nós um ladrão. Um ladrão! O medo prendia as senhoras aos quartos. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes; tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima; os criados serviam, coitados! com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice-presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em varejar os quartos.

- Pelo amor de Deus! gemia o proprietário.

- É outra tolice, acrescentava Gomes. Nós temos aqui gente respeitável.

- Pois está claro! dizia logo Mme de Santarém, divorciada pela quarta vez.

E, apesar da vigilância, continuaram a desaparecer objetos. Não era possível! Ou sair, ou dar queixa à polícia.

Uma vez encontrei na cidade Melchior e Pontes, acompanhando Mme de Santarém a uma confeitaria. Eram duas horas da tarde. Voltei à pensão. Por uma coincidência, morava no mesmo corredor que essas três pessoas, mesmo pegado ao senador Gomes. Estava a despir-me, quando senti passos abafados. Abri a porta devagar. Era o alegre e sempre espirituoso Pontes. Vinha para o seu quarto. Mas não. Parou no quarto de Mme. de Santarém, experimentou uma chave, torceu, entrou. Oh! a imoralidade dos hotéis honestos! O felizardo ia gozar as delícias de um aprês-midi amoroso com a honestíssima senhora! Pouco depois, porém, ouvi um leve rumor, espiei de novo. Era Pontes, com o ar mais natural, que fechava o quarto e andava ligeiro. Quis fazer-lhe uma pilhéria, gritar; - aí maganão! ou outra parvoice qualquer - porque eu sou de natural pândego. Mas deixei para o jantar, recolhi. E no jantar Mme de Santarém, que chegara momentos antes, apareceu transmudada: tinham-lhe roubado o broche de rubis.

Estávamos todos no salão e sustiveram-se todos num pasmo raivoso, quando a gentil senhora bradou:

- Acabam de roubar o meu broche de rubis! Mais um!

Os meus olhos cravaram-se no Dr. Pontes. Tinha o mesmo pasmo dos outros, o mesmo ar, o mesmo olhar.

Uma idéia atravessou-me o espírito. Era ele o gatuno! Não havia dúvida. Era agarrá-lo ali, logo... Mas se fosse apenas o amante? Afinal era um homem que devia respeitar a família e o tio!

As provas eram contra ele, absolutamente contra. No hotel ninguém poderia lembrar-se de sair depois daqueles roubos. A situação precisava ficar clara. Eu cometeria um escândalo, diria ali que o vira entrar no quarto de Mme de Santarém e as explicações viriam depois.

Ia falar, ia contar tudo, quando senti que pesavam em mim os dois olhos do senador Gomes, enquanto este, balançando a cabeça, balançando a faca entre os dedos, parecia por todos os modos pedir-me para não dizer nada. Gomes sabia! Desde o dia em que falara do meu alfinete! Contive-me. Mesmo porque entravam a Pepita, mais o seu cachorro, ambos desesperados com o desaparecimento de um anel marquise, admirável, segundo a opinião da estrela.

O engenheiro Pereira ergueu-se.

- Gerente! Não fico mais um dia no seu hotel. A situação é delicada para o primeiro que sair do ergástulo, mas eu arrosto-a. Tenho família, tenho uma esposa nervosa e tenho valores. Sou o engenheiro Salústio Pereira. As minhas malas passam pelo seu balcão, para o exame. Tire-me a conta...

O diplomata, que, entretanto, devia cinco semanas, teve um esforço:

- Eu também saio.

Os outros ficaram quietos, incapazes, mas com grande admiração minha, o Dr. Pontes falou:

- Vivemos nesta aflição há já algum tempo. Há um gatuno aqui, ou um gatuno de fora que possui a chave.

- É isso, a chave... atalhei eu.

- Mas apesar do mútuo respeito que nos devemos, a desconfiança existe. Ora, eu já pensei mal de meu tio. Proponho, pois que ao sair daqui, façamos uma passeata pelo hotel, entrando e varejando todos os quartos. Serve?

Eu tinha acabado de sorver o café e admirei Pontes: ou um gatuno esplêndido ou um inocente. Em compensação, o senador Gomes olhava a porta absolutamente pálido. Que se iria passar?

- Serve? tornou a dizer Pontes.

- Mas está claro, fez o Gomes. Partimos todos para a passeata lá da entrada. É o meio alegre de acabar com uma pressão séria.

- Apoiado! Este Pontes sempre o mesmo!

Mas Gomes erguia-se no rumor das exclamações.

Erguia-me, alcancei-o no corredor Estávamos sós. Sussurrei-lhe:

- O gatuno é ele. Vi-o entrar no quarto da Santarém...

- Não é.

- Então quem é?

- Não sei.

- É impossível negar mais tempo. Ou o senhor diz-me ou eu explico tudo em público. Só o muito respeito...

Gomes teve um gesto alucinado, junto à escada que dava para os aposentos superiores.

- Nada de palavras inúteis. Jura segredo?

- É um crime.

- Jura?

- Juro.

- Pois salvemos uma pobre mulher, salvemos uma desvairada, meu amigo, salvemo-la! Não, pergunte por quê. Amo-a como pai, como amante, como quiser.

É ela que rouba, é ela. Não há meio de impedir Vou mandá-la embora e ao mesmo tempo tremo de vê-la no cárcere. É louca. Neste momento mesmo estamos à mercê da sorte e do disparate do Pontes, a quem eu devia odiar Mas vamos salvá-la. É preciso salvá-la. Tudo será restituído. Já tenho feito isso. Psiu! Esconda-se, esconda-se. Aí debaixo da escada. Não a veja, não a veja...

Alguém descia a escada sutilmente. Escondi-me com o coração batendo, enquanto Gomes amparava-se ao corrimão. O silêncio parecia aumentar a vastidão da escada. A voz do Gomes indagou:

- Tudo?

- Sim, meu medroso, sim, eu tinha tudo junto. Toma. E agora, até...

O vulto passou para o saguão de entrada. Da sala de jantar vinham vindo os hóspedes, excitados com aquela investigação policial aos quartos. Trêmulo, lívido, Gomes meteu-me na mão um embrulho, enquanto empurrava nas vastas algibeiras da sobrecasaca e da calça outros pequenos rolos, a dizer:

- Amanhã, restituiremos pelo correio, amanhã saem muitos. Sê bom, salva-a!

Era atroz, era trágico, era ridículo ver aquele homem ilustre e honesto a guardar os roubos de uma cleptomaníaca satânica e era estúpido o que eu fazia! Mas irresistível.

Fosse quem fosse essa gatuna inteligente, era de uma ousadia, de um plano, de uma afoiteza, de um egoísmo diabolicamente esplêndidos. Estiquei o pescoço na ânsia da curiosidade, a saber quem era, a ver quem podia ser no hotel tão cheio de hóspedes, aquela de que me fazia cúmplice, aquela que misteriosamente, impalpavelmente, durante um mês, trouxera ao hotel atmosfera de dúvida, de crime, de infâmia. E, contendo um grito de pasmo, vi Mme de Santarém entrar no saguão sorridente e calma.

Fonte:
http://www.biblio.com.br/

João do Rio (O Bebê De Tarlatana Rosa)

(Tarlatana: Tecido muito fino e engomado, usado em forros de vestidos, saias, aparelhos de gesso etc. - Fonte: Caudas Aulete)

- Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventura não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura. .

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatolio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico parecia absorto:

- É uma aventura alegre? indagou Maria.

- Conforme os temperamentos.

- Suja?

- Pavorosa ao menos.

- De dia?

- Não. Pela madrugada.

- Mas, homem de Deus, conta! - suplicava Anatolio. - Olha que está adoecendo a Maria.

Heitor pegou um largo trago à cigarreta.

- Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ância e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...

- Nem com um, - atalhou Anatolio.

- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a porneia da cidade, saio como na Finícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.

- Muito bonito! - ciciou Maria de Flor.

- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champanhe aos clubs de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. "Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros da ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos d’álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parava diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tartalana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quando ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: - Ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e ser sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e mais secante da cidade.

- E o bebê?

- O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chauffeur, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: "para pagar o de ontem." Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: onde vais hoje?

- A toda parte! - respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.

- Estava perseguindo-te! - comentou Maria de Flor.

Talvez fosse um homem... - soprou desconfiado o amável Anatolio.

- Não interrompam o Heitor! - fez o barão, estendendo a mão.

Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, sorriu, continuou:

- Não o vi mais nessa noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra um cacetação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.

- A quem dizes!... - suspirou Maria de Flor.

- Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!

- É quando se fica mais nervoso!

- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do Interior, quando o vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei. - "Os bons amigos sempre se encontram"- disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. - Estás esperando alguém? - Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? - Onde? - Indagou a sua voz áspera e rouca. - Onde quiseres! - Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.

- Por pouco...

- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: - "Aqui não!" Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado o jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua, escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem em baixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz de combustões distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. - Então, vamos? Indaguei. - Para onde? - Para a tua casa. - Ah! não, em casa não podes... - Então por aí. - Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! - Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. - Que tem? - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. - Que máscara? - O nariz.- Ah! Sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou: Não! Não! Custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal estar curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! - Não! Procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu; o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente - uma caveira com carne...

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. - Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Fosse tu que quiseste...

Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxuria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.

Quando parei à porta de casa para tiver, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tartalana rosa...

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatolio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes, e resumiu:

- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.

Fonte:
http://www.biblio.com.br/