segunda-feira, 17 de junho de 2019

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 7


História de um povo triste e de um rei que se viu ameaçado por uma terrível profecia. Neste capítulo vamos encontrar um rei que só criou juízo no dia em que resolveu enlouquecer.

 Das Mil histórias sem fim é esta a sétima!

 Lida a sétima restam, apenas, novecentas e noventa e três.

Conta-se que existiu outrora, na Índia, entre o Indo e o Ganges, um país tão grande que uma caravana, para atravessá-lo de um extremo ao outro, era obrigada a repousar setenta e sete vezes.

Era esse país governado por um rei, chamado Talif, filho de Camil, Camil filho de Ludin, Ludin filho de Maol, o Forte.

Certo dia, o rei Talif chamou o seu grão-vizir Natuc e disse-lhe:

- Tenho notado, meu bom amigo, que os meus súditos, desde o mais humilde remendão ao mais opulento e prestigioso emir, de há algum tempo a esta parte, andam todos tristes e abatidos. Desejo vivamente saber qual é a causa dessa epidemia de tristeza e abatimento que oprime meu povo!

- Rei magnânimo e justo - respondeu o judicioso Natuc - que o Distribuidor (1) vos conceda todas as graças que mereceis! Sou forçado a dizer-vos a verdade, embora tenha certeza de que ela vai causar-vos grande desgosto! O povo anda triste e abatido porque dentro de poucos dias deverá ser festejado em todo o reino o trigésimo quinto aniversário de vossa existência!

- Pelo manto do Profeta! - exclamou o rei Talif. - Que absurdo é este? Não vejo que relação possa existir entre o meu aniversário e a melancolia dessa gente!

- Bem sei que ignorais ainda - explicou o grão-vizir - que esse dia tão ansiosamente esperado, do vosso aniversário natalício, será para o reino o mais calamitoso do século!

- Calamitoso? Positivamente, ou tens o juízo fora da cabeça, ou terás, em breve, a cabeça fora do corpo. Já vai a tua audácia além do que eu poderia tolerar.

- Espero, ó rei magnânimo, me perdoeis a licença das expressões ao contar-vos a razão delas.

E o dedicado Natuc narrou ao soberano da Índia o seguinte:

- Uma semana depois do vosso nascimento, mandou o saudoso rei Camil, sobre ele a bênção de Alá, chamar o famoso Ben-Farrac, o sábio astrólogo de maior prestígio do mundo, e pediu-lhe que lesse nas estrelas visíveis e nos astros invisíveis do firmamento o futuro de Talif, o novo príncipe do Islã. O grande Ben-Farrac, sobre ele a misericórdia de Alá, depois de consultar os voos dos pássaros, as constelações e a marcha dos planetas mais propícios, declarou que o filho de Camil subiria ao trono aos vinte e um anos de idade, e durante quatorze outros governaria, com agrado de todos, o novo reino herdado de seu pai. No dia, porém, em que completasse trinta e cinco anos, o rei Talif seria acometido de um ataque de loucura! Se ao atingir essa idade fatal, escrita no céu pelos astros luminosos, não apresentasse o rei sintomas de demência, uma grande e indescritível calamidade, que não pouparia nem mesmo as palmeiras do deserto, devastaria o país de norte a sul! E até agora, ó rei do tempo!, não houve uma só previsão de Ben-Ferrac que fosse tida por falsa ou errada. O povo tem assistido já a realização completa de várias delas!

E, depois de pequena pausa, o grão-vizir continuou:

- Eis aí, glorioso senhor, a causa da tristeza de vossos dedicados súditos. No próximo dia do vosso aniversário seremos vítimas de uma desgraça: ou a loucura apagará para sempre a luz de vossa inteligência, ou uma calamidade, que ainda não teve igual na história, devastará o país de norte a sul!

O bondoso rei Talif, ao ter conhecimento desse triste augúrio que pesava ameaçadoramente sobre seu futuro, ficou tomado da mais profunda tristeza e sentiu invadir-lhe o coração piedoso uma onda de amargura.

- Bem triste é a minha sina! - lamentou o rei depois de longo e penoso silêncio. - Certo estou, ó vizir!, de que não poderei fugir aos decretos irrevogáveis do destino. Apelo, meu amigo, para o teu esclarecido espírito e longa experiência! Não haveria um meio de atenuar-se a grande desgraça que paira presentemente sobre o meu povo e sobre mim mesmo?

- Só vejo um meio - respondeu sem hesitar o grão-vizir - e nele venho pensando há muito tempo. Segundo a previsão formulada pelo astrólogo, se ficardes louco no dia do vosso aniversário, o país não mais terá a temer futuras calamidades. Assim sendo, no dia do vosso natalício, logo pela manhã, fingireis, por vários atos absurdos, que o destino vos privou da luz da razão. Não deveis, porém, com a simulada loucura, deixar que desapareça, ou mesma diminua, a confiança que o povo deposita em vós. Para isto, penso que os vossos atos de falsa demência deverão ser de molde que não tragam qualquer perigo ou a menor perturbação à vida dos vossos súditos. O povo depressa poderá verificar que o rei, apesar de louco, continua a exercer o governo do país com justiça e tolerância. É preferível, poderão dizer todos, um rei demente, piedoso e justo, a um soberano de espírito lúcido, mas perverso e vingativo! E, assim, a vida de todos nós continuará, como até agora tem sido, calma, tranquila e feliz!

- Grande e talentoso amigo! - exclamou o rei Talif, movido por sincero entusiasmo - Como admiro a tua sagacidade, como aprecio a tua dedicação! É, na verdade, uma solução admirável para o meu caso; fazendo-me passar por louco farei com que se realize a terrível previsão do maldito astrólogo, e restituirei a calma e o sossego ao meu povo!

E desta sorte, tendo assentado com o grão-vizir os planos para a curiosa farsa que devia representar - fingindo-se louco -, ordenou o rei Talif que o seu trigésimo quinto aniversário fosse condignamente festejado em todas as cidades e aldeias do reino.

Chegado que foi o dia, todos os vizires, nobres e ricos mercadores foram, conforme o tradicional costume, levar as felicitações e os votos de prosperidade ao régio aniversariante.

Ordenou o rei Talif fossem os seus ilustres homenageantes conduzidos à sala do trono e recebeu-os de pé, tendo numa das mãos uma caveira e à cintura longa corrente de ferro a cuja extremidade vinha presa uma figura, feita de barro, que representava um gênio infernal de horripilante aspecto.

Os ricos, nobres e vizires, ao verem a estranha e descabida atitude do rei Talif, concluíram logo que o soberano da Índia havia enlouquecido. Aqueles que ainda tinham dúvida sobre o desequilíbrio mental do rei depressa se convenceram da dolorosa verdade, quando o ouviram declarar que estava resolvido a caçar elefantes no fundo do terceiro mar da China!

E quando um dos honrados vizires ponderou sobre as dificuldades de tal empresa, o rei pôs-se a enunciar frases sem nexo.

- Qual peso é excessivo aos esforçados? Que é diante ao perseverante? Que país é estranho aos homens da ciência? Quem é inimigo dos afáveis?

- Está louco o rei! - murmuraram todos. - De dois males o menor. Estamos livres da calamidade que devia devastar o país de norte a sul!

E o povo festejou nesse dia, com demonstrações de grande alegria, o trigésimo quinto aniversário do rei Talif, apelidado o Louco.

Desde logo, porém, compreenderam todos que a branda loucura do rei Talif em nada prejudicava a marcha natural dos múltiplos negócios do governo. Na verdade, os atos provindos da demência do monarca eram inofensivos. Ora decretava o casamento de uma palmeira com um coqueiro, ou assinava uma lei ridícula pela qual tomava posse de uma parte da Lua, ou de uma nuvem pardacenta do céu.

Quis Alá, o Exaltado, que o inteligente plano concebido pelo talentoso grão-vizir Natuc desse o melhor resultado. O país continuou a prosperar e o povo da Índia vivia tranquilo e feliz, embora tivesse no trono um rei privado da luz da razão.

Um dia, afinal, inspirado talvez pelo Demônio (Alá persiga o Maligno!), resolveu o rei Talif sair do seu palácio, disfarçado em mercador, a fim de ouvir o que diziam a seu respeito os homens do povo.

Bem oculto por hábil disfarce, entrou num grande khã (2) onde se reuniam, à noite, viajantes, peregrinos e aventureiros, vindos de todos os cantos. Um cameleiro, que se achava a seu lado, murmurou com voz pesarosa:

- Pobre do nosso rei Talif! Depois do seu último aniversário ainda não recuperou a razão! Ainda hoje praticou nova insensatez! Concedeu o título de emir ao rio Ganges!

- Meus amigos - replicou um velho de venerável aspecto, que fumava silencioso a um canto. - Creio bem que o povo deste país anda treslendo! Estamos diante de um dos casos mais singulares que tenho observado em minha vida. Julgam todos que o rei Talif enlouqueceu no dia em que completou trinta e cinco anos, mas exatamente o contrário sucedeu! Foi nesse dia, precisamente, que o soberano recuperou o juízo!

- Como assim? - perguntaram os mais curiosos. - Não é possível! Como explicar os disparates e as ridículas decisões do rei?

- Já observei - continuou o ancião - que os últimos atos praticados pelo rei são inofensivos e servem apenas para divertir o povo. Antes, porém, de seu último aniversário, o rei Talif só procedia como louco ditando leis que eram profundamente prejudiciais aos interesses e ao bem-estar do país!

E, ante a admiração de todos, o velho hindu continuou:

- Não se lembram daquela estrada que o rei, há dois anos, mandou abrir, pelas montanhas de Chenab? Foi isto um ato de inconcebível loucura, visto como a tal estrada, que tantos sacrifícios nos custou, lá está abandonada sem utilidade nem valor algum. E aquele grande castelo mandado erguer no meio do lago de Magdalane? Foi outro ato de insânia do nosso soberano. Na primeira cheia do lago as águas invadiram impetuosamente a ilha e derrubaram todas as obras de arte que já estavam quase concluídas!

O bom monarca, que tudo ouvia, pálido de espanto, sentia-se obrigado a reconhecer que as palavras do desconhecido eram a expressão da verdade. A estrada e o famoso castelo tinham sido, realmente, erros lamentáveis de sua administração.

- E não foi só - acrescentou ainda o velho. - Há cerca de três anos o rei Talif mandou demitir o governador de Bhavapal, homem honesto e digno, para pôr no lugar um nobre protegido, que fora sempre um sujeito desonesto e mau. Só um rei insensato é que procede assim! E mais ainda. De outra feita o rei Talif, a pretexto de aumentar o salário dos servidores do reino...

Não quis o rei Talif continuar a ouvir a análise imparcial que o velho hindu fazia de todos os erros que ele praticara. Sem proferir uma só palavra, levantou-se e saiu vagarosamente do khã.

“É singular e espantoso”, pensava ele, enquanto vagava a esmo por vielas desertas e mal iluminadas. “É espantoso e singular o que sucedeu comigo! Creio bem que sou fraco para governar o meu povo. E no tempo em que julgava ter perfeito juízo pratiquei tantas loucuras, o que não terei feito agora que resolvi passar por demente?”

Absorto em profunda meditação, voltava o rei para o palácio quando, ao atravessar uma praça, encontrou um árabe que chorava desesperado sentado junto a uma fonte.

- Que tens, meu amigo? - perguntou-lhe o monarca. - Qual é a causa de tua grande tristeza?

O desconhecido, sem reconhecer na pessoa que o interrogava o poderoso rei da Índia, respondeu:

- Sou um infeliz, ó muçulmano! Há perto de um ano que procuro falar ao rei Talif e não consigo chegar à sala do trono nos dias de audiência pública.

- E que queres dizer ao nosso bom soberano? - insistiu curioso o rei hindu.

Respondeu o desconhecido:

- Quero transmitir-lhe uma importante mensagem que recebi há tempos de meu saudoso pai, o astrólogo Ben-Farrac!

E, como o rei quedasse pouco menos que atônito ao ouvir o nome do fatídico astrólogo, o árabe continuou:

- Pouco antes de morrer, meu pai chamou-me e disse: “Meu filho, vou contar-te uma história singular intitulada: ‘O Rei Insensato’. Peço-te que repitas fielmente essa história ao rei Talif, quando o nosso monarca festejar o trigésimo quinto aniversário. Se, por qualquer motivo, não atenderes a este meu pedido, que tem unicamente por fim salvar o rei, serás mais infeliz do que o mais desprezível dos mamelucos!”(3) Eis a causa do meu desespero; não vejo um meio de chegar à presença do rei Talif, filho de Camil, e receio que a maldição paterna venha a pesar sobre mim!

Ao ouvir tais palavras, não mais se conteve o rei Talif. Arrancando, no mesmo instante, as grandes barbas postiças e a negra cabeleira que lhe alteravam completamente a fisionomia, apresentou-se ao filho do astrólogo no seu verdadeiro aspecto, e gritou-lhe enérgico e ameaçador:

- Fica sabendo, ó infeliz!, que eu sou Talif, o rei. Exijo que me contes imediatamente essa história que para transmitir-me ouviste, há tantos anos, de teu pai, o astrólogo Ben-Farrac!

O árabe, ao reconhecer naquele simples e modesto mercador a pessoa sagrada e respeitável do rei, ajoelhou-se humilde, beijou a terra entre as mãos e assim falou:

- É bem possível, ó Rei do Tempo!, que o simples conhecimento da narrativa a que me referi seja suficiente para causar graves e profundas alterações em vossa vida. 

Desse momento em diante, porém, os nossos destinos estão ligados por laços inquebráveis. Tal é a sentença ditada pela sabedoria do astrólogo Ben-Farrac, meu saudoso pai. Sereis, ó glorioso Talif, responsável pela minha vida e, mais ainda, responsável também pela vida de meus filhos e de meus amigos mais caros.

- Afirmo, sob juramento - declarou, logo, o rei -, que nada farei de mal contra ti, nem contra qualquer amigo ou parente teu!

- Agradeço-vos a inestimável garantia que as vossas palavras traduzem - retorquiu o filho do astrólogo. - Vejo-me, entretanto, forçado a exigir outro penhor e outra segurança de vossa parte.

- Que segurança é essa? - indagou nervoso o monarca aproximando-se de seu jovem interlocutor.

- O aviso que me cumpre fazer - explicou o enviado - é o seguinte: não deveis, sob pretexto algum, interromper a narrativa que, dentro de breves instantes, vou iniciar. Graves e desastrosas seriam as consequências de um gesto de impaciência ou protesto de vossa parte.

- Juro, pelas cinzas de meus antepassados - retorquiu gravemente o monarca -, que ouvirei a tua narrativa em absoluto silêncio!

- Diante dessa promessa, proferida com ânimo sincero e leal, o filho do astrólogo iniciou a seguinte narrativa:
__________________________________________
Notas
1 Um dos muitos nomes com que os muçulmanos se referem a Alá.
2 Khã - lugar onde se reúnem viajantes e mercadores.
3 Mameluco ou mameluj, escravo. O plural seria mamelik.

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol.2

sábado, 15 de junho de 2019

Antonio Brás Constante (Escravizadas, ou pior... casadas)


Quando o assunto é algo tão profundo quanto o casamento, devemos sempre analisar os dois lados da questão. Resolvi escrever este novo texto sobre os casamentos, agora tentando apresentá-lo sob uma visão mais feminina. Pois, neste momento estou sendo motivado pela imagem de minha doce e adorável esposa, que se encontra ao meu lado enquanto escrevo. Seus lindos olhos atentos a cada linha digitada. Uma de suas carinhosas mãos segurando com firmeza um rolo de macarrão e a outra amassando uma das cópias do primeiro texto intitulado: “Aprisionados, ou melhor... casados”. (Engana-se quem pensa que a força da mulher está em seu coração. Muitas vezes esta força se concentra no braço.)

Brincadeiras à parte (não temos rolo de macarrão aqui em casa... Ainda). Mas, para grande parte das mulheres, casar é o mesmo que arrumar o pior emprego que alguém poderia imaginar. Primeiramente têm que demonstrar ao empregador que são “prendadas”, cultas, carinhosas, lindas e inteligentes. De todos esses quesitos, o tal empregador acaba só considerando o atributo: “lindas” (leia-se “gostosas” na mente dele). Isto antes de casar, porque depois de algum tempo casados, o que vale mesmo para eles são seus dotes de “mulher prendada”, que saiba lavar, passar, cozinhar, etc.

Muitos homens tratam suas esposas como verdadeiras escravas do lar. Querem roupas limpas, sexo, comida boa, sexo, casa arrumada e sexo. Mas não fazem absolutamente nada para auxiliar ou mesmo agradar suas parceiras. Preferem jogar futebol com os amigos a ter que levar sua esposa a um cinema. Gastam com cerveja e TV a cabo para assistirem ao futebol, mas esquecem de presenteá-las com um agradável perfume ou uma bela camisola, por exemplo, que poderiam deixá-las ainda mais atraentes para eles mesmos.

Se antes do casamento eles enchiam suas amadas com flores e mimos, depois de casar, o máximo que lembram de trazer para elas é um ramalhete de couve-flor ou um repolho, para que as mesmas preparem o jantar. Suas bocas deixam de elogiá-las e passam a emitir arrotos, entre outras flatulências desagradáveis. Com o passar dos anos, as mulheres descobrem que, se para transformar um sapo em príncipe elas teriam de beijá-lo; para transformar o tal príncipe em sapo bastou casarem-se com ele.

Na ótica machista e insensível, as mulheres casadas sofrem de algum tipo de distúrbio do sono, deixando-as sonolentas e com dor de cabeça quando porventura o marido está animado e com vontade de fazer algo que julga prazeroso na cama (nos próximos cinco minutos) e que não seja dormir, comer ou assistir televisão, para depois poder se virar de lado e começar a roncar. Para eles, esse distúrbio também faz com que elas fiquem completamente acordadas, mal-humoradas e dispostas, nas raras ocasiões em que por infelicidade eles passem da hora do “toque de recolher”, chegando um pouco mais tarde em casa, rezando para que elas já estejam dormindo.

Enfim, o casamento assim como qualquer outro tema pode ser retratado, escrito, vivido, pintado, etc. sob diversos ângulos diferentes, de forma séria ou bem-humorada. O que realmente importa na união entre duas pessoas é um ingrediente que alguns julgam ser mágico, denominado AMOR. Somente o amor tem o poder de transformar sapos em príncipes, prisões em castelos encantados, dragões ferozes em coelhinhos felpudos e dois mundos distintos em um único universo, também conhecido como FELICIDADE.

Fonte:
Antonio Brás Constante. Hoje é seu aniversário! “prepare-se!” e outras histórias. Porto Alegre/RS: AGE, 2009.

Arthur de Azevedo (Encontros Reveladores)


Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niterói, lembrou-se o Dr. Sales de convidá-lo para padrinho de seu último pimpolho.

O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e levar o pequeno à pia.

À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio conselheiro.

O bom homem já estava, aliás, habituado a esses tagatés. Depois que o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o seu oficial de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança, quase o seu alter ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o chapéu!

Terminada a cerimônia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se: estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele para almoçar.

O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretário de Estado dos negócios da Justiça, o Sr. Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a casa andar à roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu os sentidos. Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Sr. Pinheiro, que não dava acordo de si. Entre os comensais havia, felizmente, um médico. Transportado para um quarto e estendido sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e medicado.

– Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a ninguém!

– Mas, que foi?

– Um ameaço de congestão. 

No mesmo dia o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo e não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.

No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa. não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.

O Dr. Pinheiro logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: – uma imprudência pela qual não me responsabilizo!

Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de certa importância, mas em casa do Dr. Sales nada disseram ao Dr. Pinheiro, receando que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.

Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o Dr. Pinheiro tomou a barca, e chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava à sua espera, indo o criado para a boleia.

Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava saudá-lo com muitos rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.

Mais adiante, na Rua da Assembleia, outro importuno olhou para ele e desviou os olhos, fingindo que não o via.

No Largo da Carioca, um oficial da secretaria, que se empenhara, não havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete um olhar de proteção. .

– Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!

De fato, havia três dias que o ministério caíra, depois da tal interpelação. Ninguém o dissera ao Dr. Pinheiro, nem verbalmente nem por escrito: ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Luiz Poeta (O Pássaro Azul)




Foi um dia. Uma data perdida numa única página de cores douradamente prazerosas, solta nos sensuais recônditos da memória, cujas imagens desmaiam - agora - trôpegas - na melhor das minhas lembranças.

Era teu corpo no meu a vida inteira. De resto, a afetuosa e tênue luz do sol dourando a prata da chuva, criando estrias de neon na vítrea pele das básculas... e nossa ânsia preguiçosa de discar e pedir mais um gole para o duzentos e dois.

Eram bocas no mesmo copo, beijos nos mesmos lábios, dentes na mesma cereja E palavras nas mesmas línguas deleitosamente camonianas rabiscando duas líricas páginas epidérmicas... e a rubra e doce gota de licor sobre teus seios à meia luz dos nossos olhos úmidos pela leveza da lágrima e pela sublimidade de um único sorriso emanado de duas faces.

Foi um dia por trás das lívidas cortinas esvoaçando sob o gélido sussurro eólico invadindo uma das frestas, tocando a onírica nudez das nossas mais límpidas, visíveis e passionais fantasias.

Depois, aquela ave exótica, de plumas azuis cujo canto diluía-se na beleza de uma imagem única e sublime como nossa estupefação diante da mais eterna felicidade.

Um dia a mais, o brinde a dois e o assobio do toque dos cristais despertando o melhor dos silêncios, sob a hipnótica reciprocidade de duas almas pousadas na pétala do amor...

Subitamente, o inusitado voo e o delicado pouso daquela raríssima borboleta na flor... de plástico... prenunciando o paradoxal artesanato de uma lírica eternidade, subordinada à trama de tantos destinos desconexos...

Tudo era lindo no teu corpo... a insinuante verruguinha na pálpebra, a delicada fissura num dos caninos, a tatuagem de uma rosa no seio, a cicatriz de apendicite no ventre, a ousada picada de inseto no glúteo... puro e excitante encantamento.

Foi um dia cuja etérea lembrança repousa na página de uma antiga agenda de colecionar saudades, que o sopro do vento de uma manhã de outono, como aquela, levou para bem longe.

De resto, o pássaro azul que sumiu no céu outonal de metileno não cantou. Nunca mais...

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Nosso Português (Os nomes próprios perderam seus acentos com a nova reforma ortográfica?)


Segundo o texto oficial do Acordo Ortográfico: "Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registro legal, adote na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas e títulos inscritos em registro público".

Isso significa que pessoas cujo nome ou sobrenome tenham sido registrados com acento continuarão a assinar assim ("Andréia", "Pompéia", etc.). 

Mas atenção: nomes e sobrenomes de pessoas mortas serão escritos de acordo com a ortografia vigente, o que também deve ocorrer com novos registros. 

Quando se trata de nomes de logradouros (praças, avenidas, ruas, etc.), bairros e cidades, prevalece a grafia "nova": Pompeia (cidade paulista), Quintino Bocaiuva (nome de rua), Coreia do Sul (nome de país), Saboia (nome de região da França), etc.

Fonte:
So Portugues

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 5 e 6


Houve outrora, no país de Panjgur, na Índia, um rei que tinha três ministros.

Querendo um dia verificar o grau de estima e consideração em que era tido pelos seus três dignos auxiliares, ordenou o monarca fosse colocada no meio do grande parque do palácio real uma estátua (1) dele próprio e, escondido em discreto recanto, pôs-se à espera para observar o que fariam os ministros quando vissem inesperadamente aquele novo monumento.

O primeiro a chegar foi o ministro da Justiça. Ao defrontar com a estátua do rei no meio do arvoredo, parou muito sério, os braços cruzados sobre o peito, em atitude respeitosa, e examinou minuciosamente a obra de arte sem proferir uma única palavra, nem deixando transparecer a impressão que lhe causara o inopinado encontro.

Mal se retirara o primeiro ministro quando chegou o seu colega encarregado das Finanças e do Tesouro do país.

O digno tesoureiro do rei Malabã - assim se chamava o soberano de Panjgur - ao ver a nova estátua cobriu o rosto com as mãos e entrou a chorar desesperadamente como se grande desgosto o oprimisse.

Ao rei, que tudo observara, causou isto não pequena admiração.

- Por que teria o primeiro-ministro ficado tão sério ao ver a estátua, ao passo que para o segundo o defrontar com ela fora motivo de pranto desfeito?

Momentos depois chegou o terceiro-ministro. Era esse vizir encarregado unicamente de estudar as questões relativas às Forças Armadas e aos recursos militares do país.

O titular da Guerra, ao deparar-se-lhe a imponente figura do vaidoso monarca, entrou a rir com estrepitosas gargalhadas e de tal modo o dominaram os ataques de riso que chegou a cair de costas junto ao pedestal do régio monumento.

O rei Malabã, que além de orgulhoso era muito desconfiado - dois defeitos gravíssimos para um chefe de Estado -, ficou intrigadíssimo com a diversidade singular das impressões que sua imagem causara aos três dignos ministros de Panjgur.

A rígida gravidade do primeiro, as lágrimas do segundo e o louco gargalhar do terceiro eram enigmas que a régia sagacidade não podia decifrar, o que sobremodo o afligia.

Incapaz de refrear a curiosidade que o estranho caso lhe despertara, partiu o rei Malabã para o palácio e, tão depressa ali chegado, mandou viessem à sua presença os três ministros.

Contou-lhes o rei, sem nada ocultar, tudo o que observara e disse-lhes que queria saber o motivo por que ficara o primeiro-ministro tão sério, ao passo que o segundo chorara com abundância de lágrimas e o terceiro rira a ponto de perder os sentidos.

O ministro da Justiça, compreendendo que devia ser o primeiro a falar, assim começou, depois de saudar respeitosamente o rei:

- Deveis saber, ó rei magnânimo!, que ao ver aquela belíssima estátua, para mim até então desconhecida, lembrei-me de vós e dos grandes benefícios que tendes prestado ao povo, aos meus amigos, aos meus parentes e a mim em particular. Resolvi, pois, dirigir a Alá, o Altíssimo, uma prece, pela vossa saúde, prosperidade e bem-estar! Fiquei, como vistes, muito sério, ó rei generoso!, porque estava contrito em orações.

- Meu bom amigo! - exclamou o rei, abraçando-o. - Compreendo agora o quanto és sincero e dedicado! Jamais deixarei de retribuir a grande amizade que tens por mim.

E, voltando-se para o segundo-ministro, disse-lhe:

- Não compreendo, porém, ó vizir tesoureiro!, por que motivo a estátua pôde ser causa do teu grande desespero.

Assim interpelado, o ministro das Finanças, depois de prestar ao rei Malabã a sua homenagem humilde e respeitosa, começou:

- Cumpre-me dizer-vos, ó rei do tempo, que ao ver aquela bela estátua notei que ali estava a vossa majestosa figura posta no bronze pelo gênio incomparável de famoso artista. Este monumento é de bronze, pensei, e assim durará eternamente, ao passo que o nosso bondoso rei, na sua triste condição de mortal, não poderá sobreviver à própria efígie. Dia virá em que Hã-Ru, o Anjo da Morte, (2) na sua eterna faina, arrebatará a alma preciosa do nosso estremecido rei! E esses pensamentos cruéis, sem que eu pudesse impedir, apoderaram-se de mim e tal tristeza me trouxeram ao coração que, dando livre curso às lágrimas, chorei desesperadamente!

- Grande amigo! - atalhou o soberano hindu comovido. - Jamais me esquecerei da prova sincera de amizade que acabo de receber de ti!

E depois de abraçar afetuosamente o ministro da Fazenda, o rei Malabã voltou-se para o terceiro vizir e censurou-o com enérgico rancor:

- Nas tuas gargalhadas, porém, ó vizir!, próprias de um insensato, não vi mais do que um insulto e um escárnio à minha pessoa! Não compreendo como poderás explicar a tua atitude descabida e irreverente! Cabe-te a vez de falar! Dize-me onde foste buscar em minha estátua, perfeita e impecável, motivos para tamanha hilaridade.

Ao ouvir tais palavras, empalideceu o ministro da Guerra, sentindo que a falsa interpretação do rei punha a sua vida em grande perigo.

Sem perder, porém, a calma tão necessária em tais situações, o digno vizir do rei Malabã aproximou-se do trono e, depois de beijar humildemente a terra entre as mãos, assim falou:

- Rei generoso! Esteja o vosso nome sob a proteção dos deuses! Não sei mentir. Vou contar-vos a verdade, embora com sacrifício da minha vida, revelando-vos o motivo por que tanto ri ao topar com essa estátua! - E, diante do silêncio que se fizera, o terceiro-vizir começou: - Ao atravessar o parque do palácio, deparou-se-me um belíssimo monumento de bronze que representava a figura do glorioso sultão de Panjgur. Vendo a estátua lembrei-me, naquele instante, de uma história muito curiosa intitulada “O Beduíno Astucioso”, que ouvi contar, há dez anos, no interior da Arábia! Foi a lembrança dessa história que me fez rir daquela maneira!

- Que história é essa? - indagou o rei Malabã, tomado da mais viva curiosidade.

- É uma das lendas mais chistosas que conheço - explicou o vizir. - Ouvi-a de um velho árabe quando atravessava o deserto de Dahna! “Há, nesse deserto, uma gigantesca montanha de pedra lisa e acinzentada, que os árabes denominaram “A Sofredora”, já muitas vezes contornada pelas caravanas e varrida pelo simum. Ao norte dessa montanha agreste encontra-se pequeno e acolhedor oásis, com muita sombra e água fresca, onde florescem precisamente trezentas e trinta e três tamareiras. Dizem os caravaneiros que cada uma dessas trezentas e trinta e três tamareiras (com exceção de uma, e uma só) tem a existência ligada a uma lenda. Não há erro, pois, em afirmar que o número de lendas, nesse oásis, é igual ao número de tamareiras menos uma! A lenda da décima terceira tamareira é aquela que tem por título “O Beduíno Astucioso”. Houve mesmo um sábio matemático que calculou...

- Não me interessam os cálculos das trezentas e tantas tamareiras - interrompeu, com impaciência, o monarca. - Quero ouvir, sem mais delongas, a singular aventura do beduíno astucioso com todos os episódios, versos ou fantasias que estiverem com ela relacionados.

O rei, já meio agastado, exigia a narrativa. Era preciso obedecer ao senhor de Panjgur. O digno vizir concentrou-se durante breves instantes. Parecia coordenar as ideias e recordar os fatos que estivessem dispersos entre as brumas do passado. Decorridos, finalmente, alguns minutos, iniciou, com voz pausada, o seguinte relato:

Narrativa 6

Deveis saber, ó irmão dos árabes!, que existiu outrora, para além das montanhas de Kabul, um país muito rico e populoso chamado Kafiristã. O Kafiristã era, nesse tempo, governado por um soberano íntegro e sábio cujo nome a História registrou e perpetuou em páginas magníficas, para maior glória dos povos do Islã. Deveis saber também - pois bem poucos são aqueles que o ignoram - que esse monarca famoso, a que nos referimos, foi Romalid Ben-Zallar Khã.

Dando ouvidos aos conselhos de um vizir insidioso e bajulador, o rei Romalid (Alá o tenha em sua glória!) mandou erguer na grande praça da capital três belíssimas estátuas. (3)

A primeira era de bronze, a segunda de prata e a terceira - não obstante ser a maior - era toda de ouro. Todas representavam o rei em atitude de combate, a erguer ameaçador um grande alfanje recurvado.
Um dia, o vaidoso Romalid repousava descuidoso na varanda de marfim de seu palácio, quando notou que um velho beduíno, pobremente vestido, se aproximava do lugar em que se achavam os três monumentos. Ao ver a estátua de bronze, o árabe do deserto ergueu os braços para o céu e exclamou:

- Que Alá, o Exaltado, conserve o nosso rei! - Ao defrontar, logo depois, a estátua de prata, o beduíno riu alegremente e disse em voz bem alta: - Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei! - Ao topar, porém, com o rútilo e áureo monumento, o beduíno atirou-se ao chão; como um louco, entrou a gritar, desesperado: - Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!

O sultão, que tudo observara, mandou que trouxessem o aventureiro desconhecido ao seu palácio e em presença dos vizires mais ilustres da corte, interrogou-o sobre a significação dos votos que proferira e das atitudes diversas e inesperadas que havia assumido diante de cada uma das estátuas.
O velho beduíno, homem inteligente e astucioso, interpelado pelo poderoso senhor do Kafiristã, inclinou-se respeitoso e exclamou.

- Allah alá tiac in manlei! (Que Deus conserve a vossa vida, ó rei!) Devo dizer, primeiramente, que o meu nome é Salã Motafa. Pertenço a um grupo de nômades do deserto que hoje, para breve repouso, acamparam junto às portas desta cidade. Há dez anos que não vinha ao Kafiristã e não conhecia os três novos monumentos ora erguidos ali no meio da praça. Ao ver a estátua de bronze compreendi que ela representava o nosso rei Romalid Ben-Zallar Khã, sultão magnânimo e afortunado. Prestei, pois, como humilde súdito que sou, minhas homenagens à figura imponente e respeitável do soberano, rei e senhor deste rico país. Pensei: “Se não houvesse um rei, justo e forte, para governar e dirigir o povo, este andaria na terra como, em pleno oceano, o batel sem piloto.”

“Ao avistar, logo depois, a estátua feita de prata pensei: ‘Se o rei mandou fazer uma estátua tão cara é porque tem as arcas do tesouro a transbordar de dinheiro. Há, portanto, notável e completa prosperidade no país!’ E este raciocínio trouxe-me ao espírito grande alegria, que externei, com a maior sinceridade, ao exclamar: 

‘Que Alá, o Altíssimo, abençoe o nosso rei e por muitos anos o conserve!’ ‘O que é muito puro de sangue, de linguagem e de conduta, o que é poderoso, reto e consumado político, é digno de reinar na terra.’

“Ao verificar, porém, que a terceira estátua era de ouro maciço, fiquei assombrado. ‘O rei enlouqueceu’, pensei. ‘Onde já se viu, em que terra e em que lugar, um soberano desperdiçar tanto dinheiro numa estátua de ouro quando há tanto benefício a fazer-se e tanta necessidade a remediar-se?! Pobre e desventurado rei! Está completamente dominado pelo delírio das grandezas!’ E esta triste conclusão afligiu-me de tal modo que de mim se assenhoreou grande e incontida aflição. Atirei-me desesperado ao chão, e implorei a proteção de Deus: ‘Que Alá, o Clemente, salve o nosso rei!’”

Achou o sultão muita graça na original explicação dada pelo inteligente forasteiro e perguntou-lhe:

- Acreditas, então, ó beduíno tão bem-dotado!, que eu poderia ficar louco sem que os meus súditos o percebessem?

- Acredito, sim, ó rei dos reis - afirmou o beduíno. - Não conheceis o caso ocorrido com o rei Talif?

- Não é possível, mesmo a um rei, conhecer os casos que se deram com todos os reis. Possivelmente, ignoro o que ocorreu com esse meu digno antecessor.

- Pois é a história mais espantosa de quantas tenho ouvido - respondeu o beduíno. - Trata-se de um rei que verificou ter acontecido, consigo mesmo, uma anomalia realmente fantástica; durante nove anos, apesar de completamente louco, governava tranquilamente um dos países mais prósperos e mais ricos do mundo! E houve ainda, no caso, uma particularidade notável. No dia em que o rei Talif achou que seria prudente enlouquecer ficou inteiramente curado da demência que o aniquilava!

- Por Alá! - exclamou o sultão. - Será possível que um rei demente possa governar com acerto um grande país? Conta-nos, ó Filho do Deserto!, conta-nos esta história que me parece curiosa!

- Escuto-vos e obedeço-vos - respondeu o nômade, beijando humilde a terra entre as mãos. - Conto com a vossa generosidade. O coração do bom, embora agastado, não muda. Não é possível aquecer a água do oceano com a luz de uma vela!

E na sua voz forte e cadenciada, como o andar de uma caravana, o astucioso beduíno iniciou a seguinte narrativa:
____________________________
Notas
1 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Índia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã. 

2 Hã-Ru - Na mitologia hindu figuram nada menos de 17 deuses. Um deles, Siva, é o princípio destruidor e tem como auxiliar Hã-Ru, o mensageiro da Morte.

3 A religião maometana proíbe a representação de animais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Ásia, porém, muitos países estão inteiramente fora do Islã.
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continua…
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Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol.2

quinta-feira, 13 de junho de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVI


PAISAGEM DO SILÊNCIO

Tenho a janela para os céus aberta,
e entre a renda dos ramos da mangueira,
- timidamente a luz do luar se esgueira
e anda na sombra, vagamente, incerta.

A noite está de estrelas recoberta
e a "via-láctea..." a esparramar-se, inteira,
- parece uma florida trepadeira
abrindo os astros na amplidão deserta...

Sob a sombra das árvores, - no chão,
as rodelas de luz, tremeluzindo,
lembram moedas de prata em profusão...

É profundo o silêncio... tudo em calma...
Chego a ter a impressão de estar ouvindo
o rumor dos meus sonhos na minha alma!…

PAR CONSTANTE

Dia dois... uma festa... Era o mês de janeiro...
Festa da minha vida... A noite azul, brilhante...
Chegaste... E eu fui teu par... fui o teu par primeiro...
Dançamos... (como é bom lembrar aquele instante!)

Tu, tão linda, nem sei... Eu, feliz, petulante,
um pouco petulante, sim... mas cavalheiro...
Dançamos toda a noite... E fui teu par constante...
Nem só teu par constante... Eu fui teu par primeiro...

Quantas cousas te disse... E assim juntos, os dois,
com os meus olhos nos teus - afinal, quem diria
o mundo que ainda havia de surgir depois?

Quem diria ao nos ver, talvez, aquele instante,
que o nosso par  feliz, constante aquele dia,
seria a vida inteira e sempre um par constante!

PASSIONAL

És lânguida e amorosa quando estás sozinha
e em teu corpo perfeito este amor apoteosas!
Nos teus olhos distantes, tudo se adivinha
e há em teu beijo um sabor encarnado de rosas!

Nasceste com certeza para ser rainha,
e o serias na certa, das mais poderosas!
- no entanto, aqui te tenho escrava, e sendo minha
cabes toda e inteirinha em minhas mãos nervosas!

Os teus cabelos louros, soltos sobre o leito
espalham-se  em meu ombro, emolduram teu rosto,
e, quando assim te sinto abatida em meu peito

os teus olhos castanhos, místicos, oblongos,
vão morrendo em desmaios roxos de sol posto
sob a noite de seda dos teus cílios longos!

PENSANDO NELA
  
Neste instante em que escrevo, estou pensando nela,
longe de mim, no entanto, em que estará pensando?
- quem sabe se a sonhar, debruçada à janela
recorda nosso amor, a sorrir, vez em quando...

Ou terá tal como eu, esse ar de alguém que vela
um sonho que estivesse em nosso olhar flutuando?
Ou quem sabe se dorme, e adormecida e bela
o luar lhe vai beijar os lábios, suave e brando...

Invejaria o luar... É tarde, estou sozinho,
ela dorme talvez, e não sabe que ao lado
do seu leito, a minha alma ronda de mansinho...

Nem vê meu pensamento entrar pela janela
e ir na ponta dos pés murmurar ajoelhado
este verso de amor que fiz, pensando nela!

PÔR DE SOL
                                  ( Aquarelas )

Pelo vão da janela escancarada
Tenho os olhos pousados no horizonte,
até que atrás da terra o luar desponte
na noite só de estrelas pontilhada...

Lá embaixo - como a fita de uma estrada
sob a arcada mourisca de uma ponte
as águas cristalinas de uma fonte
são o espelho da tarde iluminada...

Há chilreios na sombra do arvoredo
e no ouvido das árvores passando
o vento diz baixinho algum segredo...

Multiplicam-se as sombras nas quebradas.
e as nuvens lembram na distância, um bando
de pétalas de luz, ensanguentadas!

PRESSENTIMENTO

O fim do nosso amor pressenti - na agonia
das tuas próprias cartas, rápidas, pequenas...
- se nem tantas, com carinho imenso te escrevia
tão poucas me chegavam por resposta apenas...

Nas cartas que a sofrer, te escrevia, às dezenas
adiava a realidade sempre, dia a dia,
procurando iludir em vão as minhas penas
muito embora eu soubesse o quanto me iludia!

Hoje... já não foi mais surpresa para mim,
dizes (como quem tem piedade), que é melhor
não continuarmos mais... e tens razão: é o fim...

Há muito eu o esperava e o pressentia no ar...
Chegou... que hei de fazer?... Foi bom... Seria Pior
se ele não viesse nunca... e eu ficasse a esperar…

PRIMEIRO AMOR

Quando te vi naquela tarde eu era
uma criança, talvez - tinha quinze anos;
- não sabia, da vida, os desenganos
que à nossa frente vão ficando à espera...

Estava no esplendor da primavera
e num mar de ilusões erguia planos...
No peito, não guardava estes profanos
sentimentos, que o mundo aos poucos, gera...

Foi assim que te vi... e então julgava
que a vida era melhor do que eu pensava
e me sentia mais feliz que um rei...

Mas um dia... Não sei por que... Partiste...
- E eu que era alegre, me tornei triste
e a tristeza em meus versos transbordei !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Vinicius de Moraes (Para uma menina com uma flor)


Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado. 

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo. 

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara- na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro. 

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois. 

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aleia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

Fonte:

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Benedita de Mello (Poemas Avulsos) 1


A BENJAMIN CONSTANT

Eu te agradeço, Benjamim Constant,
eu te agradeço todo o bem de outrora,
que há tantos anos feito, eu sinto agora
e sentirão os cegos do amanhã.

Toda a Luz do Saber, fulgente aurora,
com que me batizaste a alma pagã.
E os teus esforços que pusemos fora,
a troco apenas de promessa vã.

Eu te agradeço as expressões sinceras,
que dia e noite vens me repetindo,
certa de que és ainda o que antes eras.

Eu te agradeço o labutar infindo,
pelo qual te entendi e amei deveras.
E, sendo cega, pude ver-te lindo!

BENDITA CEGUEIRA

Não vi ciscar a terra o pintainho,
nem vi no lago espreguiçar-se a lua.
Não vi num ramo balouçar-se o ninho,
nem no dorso do mar vi a falua.

Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...
Vi ruidosa e deserta cada rua...
Meu ser em toda a parte vi sozinho...
Não vi o mato verde, a pedra nua...

Mas se não vi a graça de uma flor,
Nem  plumagem de pássaro cantor,
Bendigo o que não vi, para bem meu...

Não vi o olhar de quem renega...
E a dor de minha mãe ao ver-me cega...
E o rosto de meu pai, quando morreu...

INGRATA

Buganvília, minha amada,
onde pássaros cantores
vinham em tarde rosada
cantar cantigas de amores.

Foi junto ao muro plantada.
Guardei-a dos malfeitores.
Por ser assim, bem cuidada,
dava-me todas as flores...

E um dia fiquei tão triste,
Por ver que em tudo o que existe,
sempre existe a ingratidão!

Pela parede subiu,
e do outro lado floriu,
distante da minha mão.

MEU QUARTO DE BANHO

O meu quarto de banho era um riacho
que atrás do meu casebre se estendia
e ali formava um cristalino tacho
que a natureza cuidadosa enchia.

Ramalhada por teto, areia em baixo.
E paredes de palha luzidia
retirada ao coqueiro, ainda em cacho,
onde insistente um bem-te-vi mentia...

O cabide era o tronco dos ingás.
Sobre pedras, nas margens embutidas,
que sabonete bom, raspas de juás!

Esse rio em que virgem me banhei,
por entre as tranças de cipó floridas,
foi bem a pia em que me batizei.

MEUS VERSOS

Estes meus versos não terão beleza.
São versos pobres e descoloridos;
mortiça chama, sobre a campa acesa,
resto de instantes sem amor vividos.

Lembram grilhões a que tenho a alma presa;
morrão de cinza de meus tempos idos;
foram cantados a embalar tristeza,
não foram feitos para serem lidos.

São versos nossos, meus e teus somente.
Verdade nossa, muito nossa e crua.
Não pode ouvi-la, quem amor não sente.

História amarga que não foi contada,
e encerra apenas a minha vida e a tua.
Tu, menos eu, mais eu, sem ti. Mais nada.

MINHA ESCOLA

Minha escola! Existia só aquela
no tempo em que estudei. Jovem. Tranquila.
— Por sabê-la dos cegos — a pupila,
dia por dia se me fez mais bela.

Podem ir vê-la, porém nunca ouvi-la;
torce a verdade, é fina e tagarela,
com falar afetado, ela é singela.
Como eu a soube amar e sei senti-la!

Pintaram-lhe de rosa a alta figura.
Sofre, porém, de mal que não tem cura...
E’ velha já, cem anos faz agora.

Quanta alegria e garbo na fachada!
E lá por dentro, quanta dor guardada!
— Muita gente há feliz assim, por fora.

TREVA E LUZ

Quem diz que o cego não vê luz, não pensa
que o Pai dá tudo a todos igualmente;
que entre o vidente e o cego, a diferença
é que um vê tudo, e outro tudo sente.
  
A luz, com seu poder de onipresença,
a maior invenção do Onipotente,
vários efeitos de uma Causa imensa,
está em toda parte, em toda gente.

Não é por não ver luz que há gente cega;
mas por falhas de um órgão que a conquiste;
isto é verdade que jamais se nega.

Concordo que a cegueira é cruz pesada,
mas se alguém nada vê por não ter vista,
quem tem vista, sem luz, já não vê nada.

Benedita de Mello (1906 – 1991)


Nascida em 16 de março de 1906, em Vicencia, um lugarejo no sertão pernambucano, faleceu no Rio de Janeiro, 1991, cidade onde se radicou desde 1919. (Foi registrada como nascida no Rio de Janeiro, em 1905).

Cega de nascença foi possuidora de rara inteligência. Apesar de uma vida de sofrimentos, teve a felicidade de ser ajudada por pessoas amigas que a levaram para o Rio de Janeiro, matriculando-a no Instituto Benjamin Constant, permitindo-lhe estudar e se formar no Magistério, onde exerceu a função de professora de Português, por mais de 40 anos.

Encantava a todos com os seus versos. Mãos amigas ajudaram-na a publicar as suas poesias. Realizou inúmeras conferências e criou a Semana Social dos Cegos do Brasil, e fundou a Instituição Hellen Keller.

Autora de belos versos, deixou algumas obras como: "Lanterna Acesa"-1938 e "Sol nas Trevas"-1944. 

Primeira mulher, talvez, a ser cogitada para a Academia Brasileira de Letras.

Fonte principal:

Carolina Ramos (O Folião)


Santos. O bairro do Gonzaga respirava fundo. Depois de alguns anos, a folia do Carnaval, desta vez, teria por palco a Ponta da Praia. Do já famoso Carnaval santista, chegariam ao bairro anteriormente castigado e pisoteado, as ressonâncias dos surdos, o eco longínquo da batucada e a zoeira, bastante amenizada, da algazarra dos foliões. Longe ficava, também, o clarão exuberante das luzes da Av. Bartolomeu de Gusmão, transformada agora em passarela carnavalesca.

Entre os dois polos, o bairro do Boqueirão curtia a intermediação, como novidade, cujas consequências só poderiam ser avaliadas num após. Inclinados para a direita ou para a esquerda, como bons representantes da orla santista, os prédios de apartamentos serviam de arquibancada privilegiada, ou melhor ainda, de camarote, já que a infra-estrutura dos lares, por detrás de cada janela, garantia maior conforto.

A avenida praiana, recentemente recapeada, oferecia um tapete de asfalto impecável, lavado pelas copiosas chuvas de verão, bem propício à vibração dos passistas, na espera, indócil, do início do desfile.

Um a um, chegavam os carros alegóricos. Empíricos ainda, mostrando apenas a carcaça. A decoração acontecia no próprio local, a ritmo acelerado, e por ordem de chegada. Era ver um caminhão desovar pequena multidão à paisana e, num passe de mágica, vê-la caracterizada com as cores e brilhos exigidos pela ala à qual pertenciam os componentes. Logo, o asfalto era varrido pelas saias fartas e rodopiantes das baianas, chegadas em profusão, e pelos passos lépidos de mil e um figurantes, em trajes por vezes indefiníveis. Aconteciam excessos nessa ágil troca de roupas em local público? Certamente que sim! Aqueles que os viam, fingiam nada ver. E o assunto morria, E acabava por ser enterrado na cova rasa da cumplicidade carnavalesca que tudo perdoa e sepulta... pecadilho de carnaval, sem maiores consequências. Na maioria das vezes, quem chegava vestido, saía com bem menos roupas que era possível imaginar. Carnaval! Mesmo aqueles que se escandalizavam, mesmo aqueles que torciam o nariz aos desmandos e à semvergonhice liberada, não conseguiam ficar indiferentes à exuberância exibida pelos canais de televisão, embasbacados com a explosão colorida de beleza e sensualidade despejadas em enxurrada dentro de suas próprias casas, a um simples girar de botões. Carnaval!

Valdo prometera a si mesmo que, naquele ano, haveria de se esbaldar! Mal sentiu no ar os primeiros sintomas da síndrome carnavalesca, levou à risca a letra do velho sambão: — "vestiu uma camisa listrada..."

Largou-se. Fantasiado de povo, perdeu-se dentro dele. Tentara entrar numa das tradicionais Escolas de Samba, das mais categorizadas. Não tinha samba no pé. Muito menos na cabeça. Definitivamente reprovado, não desistiu. Dirigiu-se, cedo, para o Boqueirão, onde as Escolas ultimavam os preparativos para o desfile. Um camarim a céu aberto! Céu vestido de negro, de estrelas apagadas. Céu zangado com o que via lá embaixo! Valdo infiltrou-se aqui e ali, tentando ser útil. Ninguém precisava dele. Todo o mundo, atarefado, encarregou-se de fazê-lo ciente disso. Posto a escanteio, insistiu. Convidado, com maior veemência, a retirar os préstimos não solicitados, conformou-se, afinal. Não foi bem assim. Sentou-se no meio fio, aparentemente resignado, à espera do momento propício para voltar ao ataque.

Um frenesi muito especial correu ao longo da Escola perfilada, deixando antever que a hora da participação era chegada. Os carros alegóricos deram mostras de vida, deslizando de manso pela passarela, adornados convenientemente e com os destaques sambando nos devidos lugares.

Ensurdecedoras, as baterias faziam vibrar os prédios tortos da orla. Os cristais tiniam nas cristaleiras, quando ainda existentes.

A chuva fina, caída pouco antes, deixara o asfalto escorregadio, dificultando a tarefa de impulsionar os carros enormes, e suas frenéticas alegorias. Monumentos ambulantes! Alguns, envoltos ainda em plástico protetor. Presentes, bem embrulhados, para serem entregues aos olhos do públicos, no momento oportuno.

Não era fácil! Nem bem a faina do empurra-empurra começada, e já o cansaço ameaçava perturbar. Um dirigente de Escola descobriu Valdo, cabisbaixo, deprimido, sentado à beira da calçada.

— Ei, você aí…, quer dar uma ajudazinha?

Valdo olhou em volta, antes de responder. Era com ele mesmo. Coração aos pulos e olhos acesos, lançou-se à tarefa. Nascia naquele instante, um dos foliões mais ativos da
Avenida!

Madrugada a dentro, com ânimo insuspeitado, Valdo empurrou o imenso monumento, coberto de plumas adejantes, até a meta final.

Ao voltar para casa, pela manhã, exausto, encharcado de suor, comentava, com bravata, quase sem fôlego:

— Gente! Desfilei na maior!... Me esbaldei pra valer!...

Largou-se na cama.

Se à noite ajudara o diabo… de dia, dormiria como um anjo... feliz... feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.