domingo, 12 de janeiro de 2020

Machado de Assis (Tempo de Crise)


 Queres tu saber meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso incompletas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nascido. Aqui a coisa é diversa; assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

Quando desembarquei estava o C... à minha espera na praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

- Caiu o ministério!

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C... quem eram os novos ministros.

- Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

- Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

- Há de haver.

Seguimos para o Hotel da Europa que é na rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

À porta perguntei-lhe eu:

- Onde saberemos notícias?

- Aqui mesmo na rua do Ouvidor.

- Pois então na rua do Ouvidor é que?...

- Sim; a rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

Ouvi silenciosamente as explicações do C... e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito, fumando, e conversando com o caixeiro.

- A que horas esteve ela aqui? pergunta o sujeito.

- Às dez.

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

- Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C...

- Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão? alguma rosa de Citera.

- Qual! disse eu.

- Por que?

- Os jardins de Citera são francos; e ninguém espreita as rosas por fora...

- Provinciano! disse o C... com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa hora para o jardineiro... Anda sentar-te.

- Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

- Com razão, respondeu o C... Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia recompô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a.cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os sentimentos e todas as ideias...

- Contínua, meu Virgílio.

- Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense? Aqui acharás a flor da sociedade, - as senhoras que vêm escolher joias ao Valais ou sedas à Notre Dame, - os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Comércio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um cupê à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário para aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilantes de riqueza, -porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, - é que a simples vista consola.

Saiu-me o C... tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

- Cansou de esperar, disse eu.

- Sentemo-nos.

Sentamo-nos.

- Fala-se então de tudo aqui?

- De tudo.

- Bem e mal?

- Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C... a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

- Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

Estas últimas palavras revelaram no C... um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor da morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

- Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

- Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C... perguntou-lhe o que sabia da crise.

- Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

- Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C...

- É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve câmara?

- Não.

- Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à câmara...

- Para que? Aqui mesmo saberemos.

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

- Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C... passado algum tempo.

- Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

- Mas por que? perguntei eu.

- Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

- Ah!

- O ministro do Império quer o Valadares, e o da Fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

- Ora, vivam! Então já sabem da crise?

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

- Crise formal? perguntamos todos.

- Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a São Cristóvão...

- É o que eu dizia, observou o Dr. Abreu.

- Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C...

- O verdadeiro motivo foi uma questão de guerra.

- Não creia nisso!

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

- Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do ministro da guerra?

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

- Seja qual for o motivo, disse o C..., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

- Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

- Quem sabe?

Ferreira tomou a palavra:

- A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem, a câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança.

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

Mas então não estão todos cm São Cristóvão? observou o C...

- Este vai naturalmente para lá.

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco alimentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

Afirmamos que sim.

- Qual seria a causa? perguntou ele.

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

- Está certo disso? perguntou o desembargador.

- Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do ministro da Guerra.

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C... que me respondeu:

- Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem informado.

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Brutus diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

- Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C... Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

- Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

- O que há?

- Sim.

- Há crise.

- Bem; mas os homens saem ou ficam?

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

- Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.

- Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

- Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

- Qual é a causa?

- A nomeação de um juiz de direito.

- Só!

- Só.

- Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

- Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

- Será aceita a demissão? perguntei eu.

Mendonça abaixou a voz:

- Creio que é.

Depois apertou a mão ao desembargador ao C... e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

- Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

Passa defronte um sujeito.

- Anda cá, Lima, gritou Abreu.

O Lima aproximou-se.

- Estás convidado para o ministério?

- Estou; você quer alguma pasta?

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, - a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C... e o Lima, e seguiram viagem.

- São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

- Eu era capaz de as nomear para o ministério.

- Sendo eu presidente do conselho.

- Também eu.

- A mais gorda devia ser ministro da Marinha.

- Por que?

- Porque parece mesmo uma fragata.

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

- Quem será? Algum ministro?

- Vejamos.

- Não; é a A...

- Como vai bonita!

- Pudera!

- Ela já tem carro?

- Há muito tempo.

- Olhem, ali vem o Mendonça.

- Vem com outro. Quem é?

- É um deputado.

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

- Que há? perguntamos quando ele chegou.

- Foi aceita a demissão.

- Quem é o chamado?

- Não se sabe.

- Por que?

- Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

- Mas donde sabe isso? disse o desembargador.

- Soube na Câmara.

- Não me parece natural.

- Por que?

- Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

- Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do ministro da Fazenda.

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

- Quem será chamado?

- Naturalmente o N...

- Ou o P...

- Já hoje de manhã se dizia que era o K...

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

- Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

- O B...

- Com certeza?

- É o que se diz.

- Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

- Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B foi ao paço.

- Viu-o?

- Não; mas disseram-mo.

- Pois acredite que até segunda-feira...

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

Cada qual expôs a sua conjectura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

- Está enganado; pode o F... ficar com a pasta da Justiça, o M... com a da Guerra, K... Marinha, T.... Obras Públicas, V... Fazenda, X... Império, e C... Estrangeiros.

- Não é possível; o V... é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

- Mas o V... não pode entrar nessa combinação.

- Por que?

- É inimigo do F...

- Sim; mas a deputação da Bahia?

Aqui coçava o outro a orelha.

- A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N...

- O N... não aceita.

- Por que?

- Não quer ministério de transição.

- Chama a isto ministério de transição?

- Pois que é mais?

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C..., e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

Desta vez íamos ter notícias frescas.

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V... tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

- Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V....; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

- Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

- Quem são?

- Não sei, respondeu o deputado.

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

Houve um pequeno silêncio. Conjecturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

- V. Excia. acredita que o ministério fique organizado hoje?

- Creio que sim; mas daí pode ser que não...

- A situação não é boa, observou Ferreira.

- Admira-me que V. Excia. não seja convidado...

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política, como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

- Pois não me admira nada isso; deixo o lugar aos incompetentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

- Perdão, é muito digno!

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

- Podes dar-me uma palavra?

- Que é? perguntou o deputado levantando-se.

- Vem cá.

Foram até a porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

- Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

- Acredita? perguntei eu.

- Sem dúvida.

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Num desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C...) andar na rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.

- Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

- Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma joia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

Nada se soube nessa tarde.

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C... jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à rua do Ouvidor.

- Não era melhor irmos à casa do V..., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

- Primeiramente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C...; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

A rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os frequentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

- Que há?

- Está organizado.

- Mas quem são?

O desembargador tirou do bolso uma lista.

- São estes.

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

- Mas isto é certo? perguntei eu.

- Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

- O que é? o que é; perguntou por traz de mim uma voz.

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

- Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

- Tenho uma lista.

- Vejamos se combina com esta.

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma delas deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise. Perguntaram-lhe porque razão.

- Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Eça de Queirós (A Aia)


Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo*, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta* dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava* ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Numa noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de ouro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva. Mas brados de alarme irromperam, de repente, no palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto. E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai dor sem nome! O corpinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lhes mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria estática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros.

Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — Ah! — lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera.

Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa. a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?

A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

— Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho.

E cravou o punhal no coração.
___________________
Glossário:
Caçoleta = cadinho; recipiente.
Chalrava =Emitia vozes inarticuladas (crianças).
Fojo = Buraco aberto na terra e disfarçado com folhas ou galhos para caçar, vivos, bichos ferozes.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. Ciberfil Literatura Digital, 2002

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VI


MINHA PAIXÃO
Não consigo entender porque partiste,
deixando-me sozinho em terra estranha.
Hoje, não tenho a luz e sou mais triste,
porque sem ti, o amor não me acompanha.

Como esquecer a mágoa que me assiste,
— se a saudade chegou cheia de manha?
Teu perfume de flor ainda insiste
em aumentar a minha dor tamanha...

Por que fugiste assim, minha poesia,
eras tu meu querer, minha alegria,
a energia que vibra no meu ser.

Tu és da minha casa, a grande porta,
a inspiração ardente que conforta
para escrever meu verso até morrer.
* * * * * * * * * * * * * *

O BEIJA-FLOR
Levanto cedo e veja quem me espera,
um lindo beija-flor beijando a rosa.
Não para de adejar, ai quem me dera
sugar também aquela flor mimosa.

Quantas flores o beija-flor paquera
e baila no ar buscando a flor ditosa
e se exibe num voo que acelera
à procura da flor, a mais viçosa.

De flor em flor consegue seu intento,
mesmo voando em luta contra o vento
para beijar, feliz, mais uma flor...

Também o bardo — beija-flor certeiro,
de verso em verso vai buscar faceiro
dentro do peito uma canção de amor.
* * * * * * * * * * * * * *

SEM FRONTEIRAS

Viajo com as nuvens. Sou poeta.
Gosto de dar vazão ao pensamento,
Sou capaz de chegar ao firmamento
e voltar para a terra como atleta.

Na terra, pego a minha bicicleta,
vou pedalando mesmo contra o vento,
enquanto os versos nascem no acalento
de uma paixão suave e não secreta…

Não há fronteiras, pois o amor é brando,
poetas são assim, vivem sonhando
com um mundo feliz e mais humano.

Não importa se a vida é muito breve,
importa o amor que faz o peso leve,
quando o perdão se torna soberano.
* * * * * * * * * * * * * *

SOMOS UM

Hoje, voltas depois de tanto tempo
e enlaças outra vez a minha vida.
Meu coração de amor se faz sedento
e busca no teu seio uma acolhida.

E se te vejo esbelta, o sentimento
cresce no peito com paixão sofrida:
ficar longe de ti é meu tormento
e a noite fica longa e mal-dormida.

Desperta o sol. Os pássaros em festa,
o amor renasce e entoa uma seresta
à vida que sonhei te amando assim...

E quanto mais te beijo, mais te quero,
e em te querendo, mais eu te venero,
pois somos um e estás dentro de mim!
* * * * * * * * * * * * * *

SÚPLICA

Sou um estranho no Planeta Terra,
onde o certo nem sempre prevalece,
onde o forte se impõe, fazendo guerra,
e o amor no coração desaparece.

Vou fugir da cidade para a serra,
quero elevar meu pensamento em prece,
vou meditar, quem sabe assim encerra
a solidão que fere e não aquece.

Escárnio, ingratidão e desengano,
contaminam a terra e o ser humano,
ninguém escapa ileso a tanta dor.

Suplico, pois, Senhor, que ponha fim
ao desconforto de sofrer assim,
melhor viver à sombra de um amor.
* * * * * * * * * * * * * *

 VELHO MAR

Nasci longe do mar, mas seduzido
por seu fascínio belo, encantador,
fico ouvindo, na praia, o seu gemido
e os madrigais de um velho pescador.

Mas às vezes me sinto assim perdido
como um barco singrando sem motor,
ouço as ondas num grito dolorido,
uma angústia que cala a própria dor.

Vejo da praia, a imensidão do mar,
as ondas que o rochedo vêm beijar,
depois, voltam serenas sem rancor.

Cada onda que vem morrer na praia,
parece a minha vida que desmaia
ao pensar em perder o teu amor.

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Antonio Roberto de Paula (Outra e Mais Outra para Relaxar)


– E aí?

– Beleza?

- Beleza.

- Vamos tomar uma hoje?

- Hoje, não. Sem chance.

– O que houve?

– Aquela dor.

- Voltou?

– É.

- Você precisa ir a um médico, cara!

- Se continuar, eu vou.

– Tá doendo muito?

- Pra caramba. Exagerei ontem.

– Onde cê foi?

- Passei por quatro botecos.

- O que te arrebenta é que você mistura.

– Cê também, cara!

- É, mas dou um tempo. Você é todo dia.

- Tava pensando. Será que eu sou alcoólatra?

- Deixa de ser besta. Lógico que não.

- Mas todo dia eu tenho que tomar pelo menos uma.

- É normal. A gente fica cansado e nervoso e toma pra relaxar.

- Mas ontem eu não fiz nada. Não cansei e não fiquei nervoso. Quando me dei conta já tinha tomado uma meia dúzia de cervejas e outro tanto da branca.

- Cê tomou remédio?

– Tomei um pra dor de cabeça e outro pro estômago.

- E não melhorou?

- A cabeça tá mais leve, mas o estômago tá esquisito. Não comi nada ontem e tô sem fome hoje.

– Por que você não vai num médico?

– Tô com medo.

– Do que?

– Acho que ele vai encontrar alguma coisa.

– Ah, encontrar com certeza ele vai, mas bota fé que não é nada grave. No máximo uma gastrite.

– Acho que a gente tá exagerando na bebida.
 
– Também acho. Mas fala pra mim, tem coisa mais gostosa do que ficar numa mesa de bar?

- Mas precisa de bebida sempre?

- E tem jeito de ficar duas horas conversando tomando guaraná e suco de laranja?

- E vendo os caras das outras mesas dando aquelas goladas gostosas na cerveja?

- Falando nisso, vamos pedir uma? Uma só?

- Não, hoje eu tô fora.

- Pede uma cerveja preta. É fraquinha. Teu estômago nem vai sentir.

- Não.

- Então bebe uma jurubeba ou uma raiz amarga. É bom pro estômago.

- Não, pede uma cerveja pra você que eu vou tomar só um copo.

– Tá.

– Acho que esta gastrite pode ser também do cigarro.

-Também colabora. Bebida e cigarro com o estômago vazio não é mole.

- Quantos cigarros você fuma por dia?

- Um maço e meio. Por aí. Durante o dia eu regulo, mas no bar eu acendo até na bituca.

- Igual eu. Põe mais um pouquinho.

- Cê falou deste lance de alcoólatra. Será que a gente é?

- Pra falar a verdade, na bucha mesmo, acho que sim.

- Não tinha pensado nisso.

- Penso direto nisso, mais ainda quando acordo de ressaca. Sabe aquela hora que você encara o espelho e fica louco de arrependimento?

- E promete que não vai tomar mais nenhuma até o próximo milênio?

- É. E à tarde esquece do que falou. Põe mais um golinho.

– Tô ficando barrigudo.

– Barriga de chope.

- E você, além de barrigudo, tá com a cara inchada.

- Não tem nada a ver com a bebida. Meu pai é assim.

- Porque também é outro bêbado. Rá, rá, rá, rá, ...     Vou pegar mais uma.

– Teu caso é mais grave. Você é baixinho. Não dá pra disfarçar.

- Vamos fazer um trato. A gente só toma na terça, quinta e sábado.

- Hoje é segunda. Então vamos ter que tomar amanhã.

- Não disse que vamos ser obrigados a tomar nestes três dias Podemos passar batidos.

- Tem que ter opinião. Pode pintar a maior festa do mundo que a gente não bebe. Certo?

- Certo, mas é bom acertar que no domingo é opcional. Imaginou passar um domingão a seco?

- E a sexta? Fim de expediente.

– O que é que tem?

- O que é que tem? Quando foi que você deixou de beber na sexta-feira?

– Acho que nem na Sexta-feira Santa.

- Sobra a segunda e a quarta.

- Certo. Mas tem uma coisa. E se jogo da seleção cair num destes dias?

- Mas aí pode. É um caso excepcional. Copa do Mundo é de quatro em quatro anos. Ver jogo da seleção sem tomar uma cervejinha nem pensar

– Concordo. Coloca mais um pouco aí no meu copo.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Luiz Damo (Trovas do Sul) VI


A abelha durante o dia
não para de trabalhar,
nunca fez engenharia
e faz tudo sem falhar.

A grande e dura saudade
sob a lápide se esconde,
só nos traz perplexidade
e ao grito sequer responde.

Água por todos os lados
de ilha podemos chamar,
triste é ficarmos ilhados
sem que possamos nadar.

A justiça, embora tarde,
nunca deverá falhar,
inimiga do covarde
que não quer se revelar.

Altos montes ou baixadas
por florestas revestidas,
pelas fontes são regadas
prometendo novas vidas.

As gotículas de chuvas
descendo nos parreirais,
se misturam com as uvas
formando doces cristais.

Das flores gostamos tanto
pelo perfume que exalam,
são templos do puro encanto,
com ternura elas nos falam.

Distantes, porém profundos,
bons momentos de alegria,
pareciam de outros mundos
de tanta paz e harmonia.

Do semblante da criança
tão sorridente a brincar,
brotam raios de esperança
que ajudam a iluminar.

Doze meses o ano tem,
trinta dias tem um mês,
sete a semana contém
tempo que o mundo Deus fez.

Ecos podem ser ouvidos
num silêncio singular,
podendo ser confundidos
com distúrbio auricular.

Lares fartos de ternura,
campos cheios de verdor,
sobre a mesa da cultura
brilhe a chama do labor.

Muitas trilhas na floresta
feitas com foice e facão,
hoje, a lembrança nos resta,
da alavanca e do pilão.

Muitos sonhos são desfeitos
por falta de consistência,
buscamos os mais perfeitos
nos caminhos da existência.

Nas manhãs ensolaradas
cheirando restos de orvalho,
segue o obreiro nas estradas
para o local de trabalho.

Ninguém será condenado
com sentença proferida,
sem transitar em julgado
e a pena reconhecida.

No cantar dos passarinhos
Deus também se manifesta,
cantos cobrem os caminhos
e transformam as florestas.

Nos abismos do passado,
talvez um projeto antigo,
jaz em dores, transpassado,
esperando um solo amigo.

Nossa luta pela vida
no nascimento começa,
sendo apenas concluída
quando a morte se atravessa.

Nossos rios e lagoas
estão sendo poluídos,
quase ninguém canta loas
por julgarem já perdidos.

Nunca devemos correr
quando o certo é devagar,
antes, sempre socorrer,
que o socorro mendigar.

O homem tem a liberdade
de escolher e decidir;
seguir pela claridade,
ou nas trevas prosseguir.

Onde quer que a luz esteja
é lá que estaremos nós
e assim o mundo nos veja
conhecendo a nossa voz.

Os caminhos da verdade
às vezes não são floridos
e os espinhos da maldade
machucam nossos sentidos.

Outrora a "palavra" tinha
sotaque de um documento
e a fonte donde ela vinha
era mais que um testamento.

Pelos frutos conhecemos
a planta que os produziu,
se são bons, logo dizemos:
que ela já nos seduziu.

Quando os verbos conjugamos
nos três tempos consagrados,
vemos que nos subjugamos
aos problemas já passados.

Saí pelo mundo afora
em busca de soluções,
posso computar agora
conquistas e decepções.

Quem nunca soube plantar
como pode pretender,
algum sonho alimentar,
ou de bons frutos colher?

Se a resposta não retruca
demonstra ser verdadeira
e ao tê-la sequer machuca,
durará pra vida inteira.

Se as águas forem cercadas
pela terra firme e boa,
mesmo que estejam paradas
não passam duma lagoa.

Se o tempo nunca passasse
e assim nada envelhecesse,
com certeza, a nossa face,
a de um Anjo parecesse.

Se quisermos comer pão,
trigo devemos plantar,
para tê-lo sempre à mão
no almoço, café e jantar.

Tantas horas sem dormir,
ou dias sem trabalhar,
tudo nos faz presumir:
só vence quem batalhar.

Tão brilhantes, as estrelas,
neste universo espalhadas,
esperamos poder vê-las
em noites enluaradas.

Tem um tempo para tudo:
para dar e receber,
o melhor tempo, contudo,
é o que temos pra viver.

Tendo flores nos caminhos
bons perfumes vou sentir,
porém se tiver espinhos,
são dores: por quê mentir?

Toda a beleza do mundo
cabe na palma da mão,
quando num gesto fecundo
alguém ajuda um irmão.

Transformar a tempestade
em luzes para o futuro,
requer força de vontade
para até seguir no escuro.

Tudo passa tão depressa
que por vezes perde a graça,
quando a confiança cessa
um novo contexto traça.

Um terreno pedregoso
nunca se deve escolher,
pra não tornar-se oneroso
o fruto que for colher.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: Tom Tit Tot)


Era uma vez, há muito, muito tempo, uma mulher que fez cinco empadas, mas, quando as retirou do forno, verificou que as tinha deixado lá tempo de mais, pelo que o revestimento estava demasiado duro para se poder comer.

Indicou então à filha:

- Coloca estas empadas na prateleira durante algum tempo, que já voltarão a estar.

Repare-se que se referia ao revestimento, o qual passado algum tempo, estaria mais mole, mas a jovem pensou: "Bom, se voltarão a estar, então como-as já." E não tardou a pôr a ideia em prática.

À hora de jantar, a mulher ordenou-lhe:

- Vai buscar uma das empadas. Suponho que já estarão...

A jovem foi lá, mas apenas viu a prateleira vazia.

- Ainda não estão! - comunicou à mãe.

- Nem ao menos uma?

- Nem ao menos uma! - confirmou.

- Paciência - decidiu a mulher -, estejam ou não, comerei uma ao jantar.

- Mas não podes, porque ainda não estão.

- Com certeza que posso. Traz a que estiver melhor.

- Não posso trazer a melhor nem a pior, porque comi todas. Portanto, só o poderás fazer quando voltarem a estar lá.

A mulher enfureceu-se, abandonou a mesa, pegou nos apetrechos de fiar e, enquanto trabalhava, cantarolava:

- A minha filha comeu cinco empadas! Cinco empadas num único dia! A minha filha comeu cinco empadas! Cinco empadas num único dia!

O rei, que naquele momento percorria a rua, como não conseguisse compreender os termos da canção, deteve-se e perguntou:

- Que cantiga é essa?

Como tinha vergonha de que ele se inteirasse da ação reprovável praticada pela filha, ela respondeu:

- A minha filha fiou cinco meadas! Cinco meadas num único dia! A minha filha fiou cinco meadas! Cinco meadas num único dia!

- Com a breca! - exclamou o monarca. - Nunca tinha ouvido falar de uma proeza dessas! - E acrescentou: - Bem, olha, como preciso de uma mulher, vou casar com ela. Mas presta atenção: durante onze meses por ano, será dado de comer tudo o que for do seu agrado, terá todos os vestidos que desejar e toda a companhia que lhe apetecer. Mas, no mês restante, terá de fiar cinco meadas por dia, de contrário mando matá-la.

- Combinado! - assentiu a mulher, ao mesmo tempo que refletia que se tratava de um casamento extraordinário e acabaria por descobrir uma solução para o problema das cinco meadas, embora estivesse confiada em que, até lá, o rei esquecesse o assunto.

Por conseguinte, eles casaram. Durante onze meses, a jovem esposa teve tudo o que quis para comer, todos os vestidos que pediu e toda a companhia que desejou. Como o tempo passava cada vez mais depressa, começou a pensar nas meadas e perguntava-se se o rei ainda se lembraria disso. Mas como ele nunca aludia ao fato, acabou por se convencer de que tombara no esquecimento.

No entanto, no derradeiro dia do penúltimo mês, ele mandou-a chamar e a conduziu a um aposento que ela nunca vira, cujo único conteúdo consistia numa roca e uma banqueta.

- Bem, minha querida - disse-lhe -, a partir de amanhã, ficas aqui encerrada com algo para comer e linho. Se, à noite, não tiveres fiado cinco meadas, perderás a cabeça.

E afastou-se, para tratar de assuntos de estado. Ela ficou então dominada por um medo atroz. Sempre fora uma moça despreocupada, pelo que nem sequer sabia fiar. Que aconteceria no dia seguinte, se ninguém a ajudasse? Sentou-se na banqueta e chorou como uma desesperada.

De repente, ouviu um ruído, como se estivessem a bater à porta. Levantou-se, foi abrir, e que viu? Um magro e pequeno ser negro, com uma longa cauda, que a olhou com curiosidade e perguntou:

- Porque choras?

- Que te importa?

- Não perdes nada em me dizer porque estás tão amargurada.

- Não lucraria nada com isso.

- Isso é que tu não sabes. - observou a criatura, movendo os dedos em torno da cauda.

- Muito bem - acedeu ela. - Não vou adiantar nada, mas também não posso ficar pior do que já estou.

Assim, recobrou o ânimo e descreveu o caso das empadas, meadas e tudo o resto.

- Acaba de me ocorrer uma ideia - declarou o pequeno ser.

- Virei todas as manhãs à tua janela, receberei o linho e à noite o trarei devidamente fiado.

- E que exiges em troca?

Piscou o olho e disse:

- Todas as noites, disporás de três oportunidades de adivinhar o meu nome. Se não o conseguires antes de o mês terminar, pertencer-me-ás.

Ela refletiu que decerto seria bem sucedida até ao fim do mês, pelo que concordou.

- Ótimo! - exclamou o pequeno ser, e gostava que vissem as voltas que dava à cauda!

Na manhã seguinte, o marido conduziu-a ao aposento onde se encontrava o linho e a comida para esse dia e lembrou-lhe:

- Se não o tiveres fiado todo até à noite, perderás a cabeça. - E afastou-se, depois de fechar a porta à chave. Pouco depois, soaram leves pancadas na janela. A jovem levantou-se, abriu-a e deparou-se-lhe o pequeno e bizarro ser, empoleirado no peitoril.

- Onde está o linho?

- Aqui o tens. Quando começava a anoitecer, tornaram a bater nos vidros da janela. Ela foi abrir e, com efeito, a pequena e bizarra criatura trazia cinco meadas sobre o braço.

- Aqui estão - anunciou, entregando-lhas. - Como me chamo?

- Bill? - aventurou ela.

- Não, não é Bill. - replicou ele, agitando a cauda em todas as direções.

- Ned?

- Também não. - replicou, agitando a cauda em todas as direções.

- Então, só pode ser Mark.

- Nem pensar.

Ele agitou ainda mais a cauda e retirou-se.

Quando o marido chegou, ela mostrou-lhe as cinco meadas.

- Bem, reconheço que não tenho motivos para te matar, esta noite. Amanhã, receberás a comida e linho para esse dia.

Continuaram a levar-lhe o linho e a comida, com a visita diária do pequeno ser de manhã e à noite. Entretanto, a jovem passava o tempo a tentar decidir que nome proferiria no final de cada dia, mas nunca acertava. A medida que o fim do mês se aproximava, ele olhava-a com malícia crescente e a agitação da cauda recrudescia ante as tentativas, infrutuosas, para adivinhar o nome.

Por fim, chegou o penúltimo dia. O ser apareceu à noite com as cinco meadas e perguntou:

- Descobriste como me chamo?

- Será Nicodemos?

- Não, não é Nicodemos.

- Samuel?

- Também não.

- Então, tem de ser Matusalém.

- Nem por sombras.

Em seguida, olhou-a com intensidade e pronunciou as seguintes palavras:

- Só falta a noite de manhã, e serás minha!

E retirou-se.

Nem imaginam como a jovem ficou alarmada. De repente, porém, ouviu aproximar-se o rei, que, pouco depois, entrava. Ao ver as cinco meadas, declarou:

- Bem, minha querida, estou a ver que amanhã também terás completado as cinco meadas, pelo que não haverá motivos para te mandar matar. Por conseguinte, quero jantar contigo aqui, esta noite.

Foi servido o jantar, depois de trazerem outra banqueta para ele, e sentaram-se à mesa.

O monarca apenas introduzira a primeira garfada na boca, quando começou a rir.

- Que se passa? - quis saber ela.

- É que, quando fui à caça, hoje, entrei numa área do bosque onde nunca tinha estado e havia uma mina de cal, da qual provinha uma espécie de murmúrio. Apeei-me do cavalo, aproximei-me sem produzir o menor ruído e espreitei. Sabes o que se me deparou? O ser negro mais pequeno e gracioso que vi até hoje. Calcula o que fazia. Estava sentado diante de uma pequena roca e fiava maravilhosamente depressa, ao mesmo tempo que agitava a longa cauda em todas as direções e cantava:

Nimmy, nimmy, not
O meu nome é... Tom Tit Tot.

Quando ouviu estas palavras, a jovem conteve-se com dificuldade de dar pulos de alegria, e manteve-se quieta e calada.

Na manhã seguinte, à hora de ir buscar o linho, a pequena criatura olhou para dentro descaradamente. E, quando anoitecia, ela ouviu que a chamavam do outro lado da janela. Abriu-a e o minúsculo ser saltou imediatamente para o peitoril e entrou. Exibia um sorriso trocista de orelha a orelha, e com que rapidez agitava a cauda!

- Como me chamo? - perguntou, enquanto entregava as meadas.

- Salomão? - disse ela, fingindo-se apreensiva.

- Não, não é Salomão - replicou ele, avançando alguns passos.

- Zebedeu?

- Também não. - Agitou a cauda tão depressa, que quase não se via.- Não te precipites. Mais uma oportunidade e ficarás a pertencer-me - acrescentou, estendendo as mãos negras para ela.

A jovem recuou dois passos, olhou-o em silêncio por um momento e pôs-se a rir, ao mesmo tempo que cantarolava:

Nimmy, nimmy, not
O teu nome é... Tom Tit Tot.

Quando ouviu estas palavras, a pequena criatura emitiu um guincho e, de um salto, desapareceu na escuridão. Ela nunca mais o voltou a ver.
_________________________________
Nota do Blog:
Este conto tem muita similaridade com o conto “Rumpelstichen”, dos Irmãos Grimm. Sendo os contos dos Irmãos Grimm compilações de contos mais antigos, provavelmente o deles tenha se inspirado neste conto tradicional inglês.

Fonte:
Contos Tradicionais da Europa

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A. A. de Assis (Jardim do Imperador)


O jardim foi sempre uma espécie de sala vip da cidade, o espaço nobre onde tudo acontecia. O footing na calçada em torno; o coreto ao centro – palco para retretas, palanque para comícios, altar para missas campais; ambulantes vendendo sorvete, pipoca, mariola; crianças brincando de dia; namorados brincando de noite.

Segundo as atas, foi construído ainda na época da monarquia, em honra de Dom Pedro II, que naquele chão pisara. O nome aliás atesta-o: Jardim do Imperador, que edil nenhum até hoje ousou mudar. O povo diz às vezes “largo” ou “praça”, mas o nome oficial, de batismo, é “jardim” mesmo: Jardim do Imperador, orgulho do lugar.

O problema era a indisciplina dos passantes. Em vez de caminhar pelas trilhas cuidadosamente mantidas e varridas pela prefeitura, insistiam em passar por cima dos canteiros. Daí que o chamado “coração da urbe” precisou ser várias vezes reconstruído. Cada novo prefeito, logo que assumia, redesenhava o recanto, replantava a grama, renovava as flores, repodava as árvores. Houve um que chamou arquitetos da capital para orientar a reforma, entretanto infrutiferamente.

Campanhas nas escolas e através da rádio local, sermões do padre e do pastor, panfletos apelando à consciência da população, nada surtia efeito, sequer a ameaça de multas. Os passantes teimosamente continuavam passando por sobre defeituosos atalhos.  Só Seu Chiquinho entendia e explicava o fenômeno: “Falta de democracia acaba nisso. Me elejam prefeito e resolvo o caso”.

Até que um dia Seu Chiquinho enfim prefeito se fez. Primeira providência, em cumprimento da promessa: desmanchou o jardim. Deixou intatos somente o coreto e as árvores; no demais mandou passar o arado e com enorme gramado cobriu a área inteira.

Em poucas semanas os passantes, no seu contínuo vaivém, fizeram novas trilhas, só que dessa vez a seu jeito, sem desenho algum traçado em gabinetes. “Democracia é assim: o povo criando seus próprios caminhos”, confirmava o sábio burgomestre, ditando os lances para a conclusão da obra: “Agora resta apenas calçar e retocar com o devido capricho as passarelas que o povo marcou, depois fazer os canteiros ao lado... e pronto, estará resolvido o problema. As linhas poderão até parecer um pouco tortas, porém o importante é que foram definidas pelos donos delas, os cidadãos passantes, na mais absoluta liberdade. E é isso que de fato interessa”.

Seu Chiquinho estava certo: nunca mais indisciplinado algum pisou na grama nem chutou as flores, bastando hoje aos jardineiros aguar as plantinhas para conservá-las viçosas. “Democracia é assim”, insistia ele: “Quando o povo é que faz a lei, a lei se cumpre. Se o povo é que abre a trilha, por ela caminha o povo. Não há ninguém que obrigue ninguém a seguir sem vontade um rumo”.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor

Heitor Stockler de França (Poemas Avulsos)


DENTRO DE UM GRANDE SONHO

Alma simples de poeta e coração sem jaça,
Nasci para ser bom, livre de preconceito,
Vivendo para amar, na beleza e na graça,
Tudo que é natural e tudo que é perfeito.

E sinto este meu ser já de tal afeito
A esse fino prazer, licor de azulea taça,
Que me julgo feliz, glorioso e satisfeito
Na artística emoção que todo me repassa.

Embora a aparecer na áurea legião da rima,
Não vislumbro fulgor no estro que me anima,
Nem sei se há vibração nos versos que componho.

E assim, tal como a névoa errante pela altura
Infinita do céu, a mim se me afigura
Que passo por aqui dentro de um grande sonho!

EU E A VIDA

Meu corpo, este conjunto singular,
Prodigioso na sua estruturação,
Foi definido para agasalhar
A vida no rigor da sua função.

Assim, a infância como a adolescência,
Inda a maturidade conceituosa,
Nele estiveram, em normal sequência,
Aguardando a velhice caprichosa.

Vê-se que quatro fases circunscritas,
Distinguem o ritual da vida humana
E que a nem toda gente por suas ditas,
Dado é atingir a escala soberana.

Eu, todavia, me sentindo em graça,
Três etapas venci conscientemente,
Porém, na última que exige raça,
É prêmio para mim estar presente.

A primeira chegou, era a esperança,
A alacridade em saltos de balé,
A puerícia a entrar na contradança
Do mundo, ainda, insciente a tomar pé.

A segunda, ardorosa sucessora,
De início encheu de sol todo o cenário
E esbanjou sensações como se fora
Eterno esse período extraordinário.

A terceira, entretanto, ponderada,
Sem se afastar do belo, da ventura,
Também sonhou, cantou emocionada,
Certa de que o melhor nem sempre dura.

A quarta, venerável, mas temida,
A estimular-me, atenta permanece,
Até quando não sei. Gosto da vida,
Por isso é que ela escuta a minha prece.

MAIS UM ANO

Mais um ano deflui e noto. se me amplia
O vinco natural dessa rude passagem.
Com esperança Imensa a vida se inicia.
Mas, é incógnita, sempre, o termo de uma viagem!

É certo que envelheço e passo, todavia.
Se meu físico cede e rola na voragem,
Tenho a alma intacta e nova, ainda, e quem diria?
Sempre atrás de um Ideal - a fúlgida miragem!

Parece-me que tudo o que tenho aspirado.
No lento decorrer desta jornada de anos,
De canseiras sem trégua e vagos desenganos.

Com armadura de aço e tal como um Cruzado,
A passos vou vencendo e, pelo algo que fiz,
Arrogo-me o direito a me julgar feliz!

MINHA DESPEDIDA

O meu estado de doente
Não aguenta mais a cama,
Sou por isso impertinente,
Não é comédia, isto é um drama.

Assistido como estou
Pela esposa, filhos, netos,
A moléstia se afastou,
Vencida pelos afetos.

Minha esposa é meu jardim
Não de avencas, nem junquilhos,
Flores d'alma, ramo afim,
Pelo amor de nossos filhos.

Das duas noras que temos
Eu e Brasília até agora,
Carinhosas, não sabemos,
Qual delas a melhor nora.

Dos genros, dois, nem se fala,
É uma parelha batuta
Feita ao requinte de sala,
Quanto da vida na luta!

REFLEXOS DA INFÂNCIA

Gosto de fazer versos quando chove
E ouço o marulho d'água nas sarjetas;
Esse fragor de indômitas maretas,
Tem não sei quê de estranho e me comove...
Não que eu seja um triste, um alma doente,
Às belezas da vida indiferente.

Mas, apenas porque
Minhas recordações da infância
Despertam meu passado
Que, embora distante,
Ainda mora no meu ser.

Revejo, então, contemplativo,
Como num cosmorama
Detalhes da época vivida
No lugarejo natal.

Agora, a casa paterna,
Depois, lá fora, na chácara,
A horta verde, o pomar,
O campo, a aguada, a mangueira,
A lida da criação;
O vento, a chuva, a bonança,
A enxurrada nos caminhos,
O sol dourando a paisagem,
E eu, como um rei de tudo,
Contente a gozar a vida.

Por isso, se está a chover
E se outra coisa não faço,
Faço poemas, versos traço,
Para a infância reviver!...

SEGUE O TEU MESTRE

É extensa a estrada real.
É largo esse caminho
Onde o sol espadana estranha luz,
Ora sendo de flor, ora de espinho,
Fulgindo em cada pétala um ideal
E em cada sombra uma maciez de arminho.

Por ela é que o destino te conduz!...

Essa estrada é o Caminho de São Thiago,
A Via-Láctea do sonho que te embala…
Mas, ante o ignota que é tão vago,
Que canseiras terás para alcançá-la!

Caminha e acautela-te, entretanto,
Ouvindo os ecos bons, desviando os maus,
O teu cérebro inculto, ainda, é um caos
E o passo é tardo e incerto, por enquanto.

Segue o teu Mestre que conhece a viagem…
Ouve-lhe a voz de apóstolo e de amigo;
É bem certo que estando ele consigo,
Aprenderá melhor toda a paisagem.

Verá através da ciência conhecida,
Tudo o que a mater natureza encerra:
Perfume, luz e som, o céu e a terra,
O mundo todo - o ritmo da vida!

Fonte:
Apollo Taborda França. Palmeira e o seu poeta Heitor Stockler. Palmeira/PR: A. T. França. 2004.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Arthur de Azevedo (João Silva)


Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.

Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.

Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espírito de moça, até então despreocupado e tranquilo, quando certa manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujás, soprava o sugestivo instrumento de Pã, o mesmo indivíduo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro.

Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a filha do comendador Freitas não fez a esse respeito a menor confidência a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenúncio de um sentimento mais decisivo.

Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.

A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.

Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.

Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.

O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.

O comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns dos outros.

O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.

Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas.

Da janela do seu quarto, a srta Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua.

Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à srta. Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.

A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.

E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.

Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!

O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.

Um velho amigo do comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da srta. Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.

Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.

- É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!

Mas acrescentou:

- Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.

Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.

D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!

D. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.

O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.

Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na srta. Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta - tão violenta que a moça adoeceu.

Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.

Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa - pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela -, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a srta. Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.

- Esse casamento seria uma felicidade, disse o comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!

- Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!

- Você!

- Eu, sim!

- Duvido!

- Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!

E voltando-se para os compadres:

- Façam favor de não interromper a nossa conferência!

O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois - um quarto de hora apenas! - saíram ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra!

A estupefação foi geral.

- Conseguiste alguma coisa? - perguntou o pai ao padrinho.

- Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.

O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sítio.

Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!

O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:

- Este é o senhor Pedro Linhares!

Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:

- Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...

E apontou para o comandante, que sorriu.

- ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.

A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Raul Pompéia (Violeta)


I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

- Sabe da Vevinha?...

- Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma coisa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida  de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre.

Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido. A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muxoxo, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro. Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

- De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida. Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia. Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

- Como sabe, minha tia?...

- O meu moleque viu...

- Será possível?...

- ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

- ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dois parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua... O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

- Como?... perguntou-lhe esta.

- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginastas furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos. O que está dizendo é um insulto.

- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor? Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

- Então, cale a boca... Se o seu moleque...

- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!... Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja. O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

- São minhas! – murmurou. Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma coisa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses. Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia ainda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha. Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio. Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

- O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito. Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regime) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro? O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se coisa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos. Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me trouxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia Factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha.”


Fonte:
Biblioteca Eletrônica. CD Rom Digerati.