segunda-feira, 8 de maio de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Buraco sem curva)

EXISTE UM VELHO ditado popular que mais que expressar uma vontade do ser humano, mostra a sua frieza em relação à dor alheia no tocante à presença inescrutável da morte. “Não vou a velório de ninguém para jamais alguém se dar ao luxo em vir ao meu”. Penso o contrário. Sempre que posso, dou uma paradinha básica em alguma capela espalhada pela cidade e faço isso, na maioria das vezes, sem conhecer o morto, ou alguém do seu estreito relacionamento. Qual a razão para agir assim? Simples! 

É nesse momento de inconfundível e profunda tristeza e infelicidade que as pessoas descem do pedestal em que se acham aprisionadas. Tiram a máscara. Mostram o verdadeiro rosto onde se esconde a pecha da imbecilidade em sua melhor forma de expressão. Então vemos o fundo bem nítido da sua real personalidade. É nessa emergência de agonia imensurável que elas se despem das suas armaduras e se tornam pequenas, humildes, abertas a todos os portos. É nesse instante também que a gente toma conhecimento da nossa fragilidade e da astenia de quem está em desespero consigo mesmo.

Ficamos indefesos, à mercê de um gesto de amparo, de uma palavra de conforto. Não sei se o amigo leitor alguma vez chegou a notar que nesses fúnebres encontros as pessoas se cumprimentam e se abraçam, sem ao menos saberem quem são os interlocutores.  Não me aproximo do extinto. Jamais! Limito a tão somente distribuir pêsames, receber e dar abraços, dar condolências, como se em cada gesto eu repartisse um pouco da minha própria dor adormecida. Da minha distância escudada pelo ar pesado do ambiente, e envolto no perfume das flores e pela claridade das luzes balouçantes dos castiçais, me quedo a observar o falecido em seu leito póstumo de derradeira e longa viagem.  

O coitado ali está, solitário, sério, o rosto sem a cor da vida plena, sem o sorriso que o acompanhava nos momentos de pura e sentida felicidade. Sem poder dizer nada, se detém pacientemente ao instante de ser conduzido à sua postrema (derradeira) morada. Haverá a repetição daquele insuportável e doloroso “guia prático para defuntos com passagens só de ida”; de mais choros incontidos; de gritos e berros renovados nas gargantas; desmaios; saudades; dores, lembranças... e, depois, a solidão imutável e perversa, que se incumbirá de chegar pesada, cair melancólica e indiferente tornando maior a comoção de cada um em seu âmago particular. 

A esse quadro meio que proditório (falso) e fementido (enganoso), se juntarão os familiares em orações, seguido da jogada do punhado de terra sobre o esquife e, finalmente, a descida do corpo inerte ao chão indiferente que consumirá as suas carnes numa fome de voragem impiedosa. E indago consigo mesmo: Será que o falecido conseguiu (antes de se ver frente a frente com o barqueiro) dar aquele abraço apertado no filho, no amigo, no desafeto, no vizinho chato? Sobrou tempo para brincar com o cachorro, ou para levar o temporão na escola? Restou um segundo, para assistir à partida de futebol onde ele participaria jogando contra um time de alunos visitantes?  Será que conseguiu realizar todos os sonhos? 

Lembrou alguma vez de dizer “Meu pai, eu te amo, mamãe, como sinto falta da sua comidinha caseira, dos nossos encontros nos finais de semana!”. Conseguiu, acaso, sentar com o filho adolescente com suas ideias tresloucadas à mesa e jantar, ou a tomar com a avó paralítica um rápido dejejum? Teve, acaso, a ventura de pegar nos braços o recém-nascido, a raspa de tacho e cochichar em seu ouvido “filho, papai te ama!”. Houve tempo para um tempo mínimo de se reconciliar da briga com a esposa? Esqueceu a raiva que passou ao ser fechado no trânsito quando seguia em direção ao trabalho? Perdoou o “amigo entre aspas”, que pegou um dinheiro emprestado prometendo pagar em três dias, mas, em razão disso, desapareceu do convívio dos encontros com a galera na birosca de dona Candinha? 

Costumo comparar as cerimônias dos velórios aos casamentos. Procure observar, você leitor, que me acompanha, que nesses eventos auspiciosos, todos se concentram em olhar à noiva. Ninguém se preocupa com o cidadão que está casando. A noiva é o xis da questão, o ponto nevrálgico da pompa alvoroçada. A multidão só tem olhos e admirações para ela. A figura do “prometido” permanece esquecida, jogada, abandonada, como se não fizesse parte do elo que acabou de se formar. Nesse momento de luzes e holofotes, a mulher, (a noiva), pensa somente na realização do seu ego interior. 

O sonho de subir ao altar, ser notada, desejada, querida, endeusada. O nubente (o homem), ao contrário, vê diante de si a figura negra da razão em caminho divergente. É a partir daí, que ele se dará conta da fria em que se meteu. “Meu Deus, e agora? Mulher, filhos, gastos, brigas, família para sustentar, desavenças. Ah! Que saudade da minha vidinha de solteiro! Bons tempos, aqueles...”. O extinto, certamente, é o noivo num patamar às avessas enfrentado a sua razão desconhecida. “Meu Deus e agora? Não terei mais tempo para ligar para meus amigos, tomar uma geladinha, comer uma porção de batatas fritas, ver meus filhos, noras, genros... 

Meu patrão deverá sentir muito a minha falta? Eu era o braço direito dele. O que faço agora? Será que, ao menos meus familiares se lembrarão de me endereçarem preces além-túmulo?”. A noiva, soberba, intocável em sua altanaria continuará sendo a realização, agora sediada na figura da viúva, que recebe os amigos. Qual o quê! Em trilho paralelo, será constrangida, se verá importunada, rodeada e, em breve, terá alguém de olho gordo no seu corpinho escultural. Por distante, ou por apartado, meu caro amigo leitor, procure, vez ou outra, dar uma passadinha onde alguém cultua a memória de um distinto que está indo para o andar de cima. Perto de você, sempre existirá um esquife simplório ou luxuoso, à hora amarga de descer o féretro à sepultura. 

Talvez, num desses, você seja a única pessoa a cumprimentar os consanguíneos. Já estive em funerais onde somente as esposas e os filhos se faziam presentes. Em outros mais, estranhos passavam de olhos cumpridos tentando digerir o incompreensível. Aproveite esse momento de reflexão e faça uma introspecção. Se ponha no lugar do “de cujus”.  Coloque os pensamentos em ordem. O que poderia fazer exatamente nesse momento que por algum momento ficou relegado à segundo plano? A quem o prezado deixou de dar um “olá”, de retribuir um sorriso, ou de dizer, “que bom que você está aqui ao meu lado! 

Tal como o morto, você sentirá na pele, a razão viva e pulsante na sua melhor forma de integridade e retidão, e verá que a sua realização poderá estar bem aí, ou bem ali, como sempre esteve, debaixo do seu nariz, camuflado, quem sabe, na figura esperta de um Ricardão encapotado, que nem por um segundo (ainda que para disfarçar), se deu ao luxo de desviar os olhos dos fundilhos fartos da sua companheira e não vê, em razão disso, a hora de ocupar o seu lugar, na cama onde você, na antiga figura de Rei, mandava em tudo, como se fosse o dono único e soberano de um reinado que só se fazia deslumbrante à sua sanha de “Mané-otário”. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VIII

Todos, neste mundo, têm o seu pedaço de mau caminho. Que cruz que eu tive com este Avarento! Não lhe escapava fôlego vivo, tudo era vítima da sua ambição. O caso estava em que não custasse dinheiro em cujas circunstâncias eu me achava. Ele não comia quase nada. Não tinha síria, andava caindo em pé. E então, tão pressentido, que qualquer leve mordedura que eu lhe desse estava em cima de mim. O único refúgio que tinha, para lhe sacar algum sangue desse pouco que tinha, era quando contava o dinheiro, que então não sentia. Todo o seu cuidado era que o não sentissem e gastava nisto horas e horas. A vida deste desgraçado era tristíssima. Nunca na vida fez coisa boa à exceção de morrer que todos lhe louvaram e agradeceram. Tinha somitigarias (mesquinharias) inteiramente novas e podia compor neste gênero, apesar dos bons autores que tem havido. Teve a habilidade de ter uns sapatos dezenove anos sempre com as mesmas caras. Tudo tiveram novo à exceção dos rostos. Sempre cuspia nos calções e dizia ele que era modo de durarem porquanto criavam uma codeazinha que, além de amaciar, conservava o tripé. Tinha um colete que vestia sobre a carne que, creio, era da fazenda com que Dejanira vestiu Hércules, porque apenas o envergava no corpo metia também o diabo pois entrava logo num frenesi e num comichão que lhe durava as suas três horas. De forma que a mulher e os filhos andavam sempre à espreita se ele já o tinha vestido. E não havia tradição que ele desse um real a ninguém, depois de o ter no corpo.

Quando queria arrotar fechava a boca e dizia que aquele ar era substância que saía e não tornava. Uma das filhas esteve doente, no meu tempo, e um Cirurgião conhecido receitou-lhe um vomitório que custou trinta réis e que a rapariga devia tomar no outro dia. Mas tendo a felicidade de ter uma cólica na véspera se pôs no estado de o escusar. Mas o bom Pai não esteve pelos autos, arrumou os pés à parede gritando que o dinheiro não se havia de perder e destruir, e que ao Boticário o não querer tomar outra vez que havia de ter paciência e mamá-lo. O que assim lhe sucedeu, e esteve de cama mais de um mês, hoje vai, amanhã vai.

Nunca comprava couve que não fosse espigada, só porque era mais comprida. Sebo, que as velas derretiam, ia para a panela e chamava a isto descobertas econômicas. Alface, para ele, nunca teve folha velha. Arroz nunca precisou escolhido. Peixe, nunca lhe tirou escama, nem guelra. Dizia: Como Deus o criou. Caroço de cereja e de ginja sempre foi abaixo. Cacho que trazia uva podre, chamava-lhe passada. Peixe podre nunca lhe cheirou mal e sempre respondia: Podres tenho eu os meus pecados. Era traste de toda a conta. Jamais teve indigestão pessoa que ele sustentasse.

Defumava-se em carqueja e dizia que a alfazema era nociva, que o cheiro mau era como os amargos que faziam melhor estômago. Durava-lhe um barril de água vinte horas. Bebia da mesma forma que os galegos tomam tabaco por cheirador, chupava por sovina. A água com que se lavava tinha seiscentas serventias primeiro; ao que depois lavava a boca, a cara, as mãos, o cachaço, os peitos, o lenço do tabaco, os pés, e botava-a por fim num craveiro e muitas vezes coava-a e servia-lhe no outro dia.

Tinha um criado universal, era uma Enciclopédia. Logo pela manhã, era comprador, depois copeiro, daí mordomo e passava a cozinheiro. De tarde, servia de engomadeira, à noite, de escudeiro e seguia, no outro dia, a mesma derrota. Tinha dois dias livres na semana, segundas e quintas, que pedia esmola para ajuda do seu vestuário porquanto o ordenado era pouco e nunca lhe pagavam. Até era somítico (sovina) com isto, porque, ao menos, podia prometer-lhe muito visto não lhe dar nada. Mas era tão escrupuloso que nem assim. Disseram-lhe uma vez que era bom para calos cera-bela. Sabem o que ele fez? Ajuntou a cera dos ouvidos para pôr nos calos e o mais e que se achou bom e, daí por diante, nunca mais consentiu que pessoa de sua casa lavasse as orelhas. Andava-lhes todos os dias tirando a cera dos ouvidos para fazer velas e, quando eu saí da sua cabeça, já tinha meia oitava.

Na cama punha lona em cima do lençol para lhe durar mais o lavado. De uma vez, pôs uma filha na rua porque lhe quebrou um copo. Quando fazia a barba, em lugar de sabão punha-lhe greda (barro) para amaciar. Tinha um barrete branco tão sujo que tinha criado, por fora, uma espécie de cortiça. Podia dar qualquer cabeçada com ele que não entrava dentro. O seu divertimento era fazer alcofas (cestos de vime) e torcer linhas e ganhava muitos bons vinténs. Fiar é para que nunca teve jeito; não se fiava nem em si. E outra coisa que ele tinha: aos Domingos, chamava os filhos e punha-se com eles a apanhar moscas para comer e dizia-lhes que era o mesmo que tremoços. E estavam tão mestres todos que, por fim, já as apanhavam com a boca.

Teve uma desordem com um vizinho que era outro sovina e de todos os quatro costados (quatro avós). De palavras foram às mãos. Fez-lhe uma arranhadura na cara. Querelou (queixou-se) dele mas acomodou-se com quatro moedas que lhe deu, depois do que ninguém o podia aturar. Andava-se mesmo metendo para que lhe dessem, para assim ganhar a sua vida. Mas durou-lhe pouco o ganho, que lhe deram uma estocada que esteve à morte. Gastou na cura mais de oito moedas e ficou-lhe um reportório para toda a vida. Um ratinho feito de molho de alho era para ele um dos melhores acepipes (petiscos). Comprava carne de vaca a dez réis. Passados alguns meses é que descobriu que era de cavalo, porque prenderam o preto que lhe vendia, cuja prisão ele lamentava. No tempo dos melões era o seu regabofe por amor das tripas que, dizia ele, eram muito melhores que as de carneiro. Gostava muito de gaivotas e, de pena, era só o que comia. No tempo dos marmelos era a sua ceia. Dois marmelos chegavam para toda a família.

A sua ocupação era emprestar dinheiro sobre trastes. Mas era muito cheio de caridade a esse respeito. Não emprestava senão a quem tinha fome para assim socorrer o seu próximo e juntamente porque lhe dava quanto ele queria de usura. O seu fato e de sua família era todo comprado na feira da ladra e já um filhinho pequeno começava a estar tísico.

Um dia que jantava (que eram poucas vezes) não ceava e andava a gritar por chá de macela que não queria morrer de indigestão. Um caso que lhe aconteceu com um destes amola-tesouras. Chama-o um dia a rogos da mulher, para lhe amolar uma tesoura, que além de muita ferrugem e pouco aço lhe faltava um bico. O pobre homem foi-lhe preciso, fazendo a ponta a uma, encurtar a outra para ficarem iguais, além de que gastou muito os ferros para lhe tirar a ferrugem. Apenas o meu amigo Avaro vê a tesoura naqueles termos, entra a gritar que lhe tinha destruído a tesoura, e isto uma tesoura de Guimarães! O mais antigo traste e o melhor que tinha em casa! Que a tinha deixado curta e magra! E foi tal a gritaria que não deixou dar ao homem a sua razão. Pôs o ofício às costas e foi dando às trancas e ele ficou à porta da rua com a tesoura na mão, fazendo uma tal declamação sobre a danificação da dita que se juntaram quantos rapazes tinha o bairro a dar-lhe surra, do que ele fez pouco caso porque apenas tinha tempo de chorar a sua perda.

Mas, sobre todos os casos que lhe sucederam, o mais decantado foi o que lhe aconteceu com um Dentista. Doía-lhe muito um dente que lhe tirava só o dormir. Porque o comer isso tirava ele mesmo a si. Resolveu-se a sacá-lo e, já se sabe, um dente para ele eram dois porque, ter que dar dinheiro, era tirarem-lhe um dente da boca. Enfim, depois de muitas dores, muitas consultas, muitas resoluções, foi a casa do Barbeiro. Senhor Mestre, quer-me tirar um dente? —Todos, meu senhor, com todo o gosto. É de baixo ou de cima? — Do meio, senhor Mestre. — Quer descarnado ou de uma vez? — Como é ele mais barato? — O preço é o mesmo. — Então que diferença faz vossemecê dessas duas perguntas? - É que descarnado tem mais dores, mas menos perigo. — Pois, assim como tem mais dores, devia levar menos dinheiro! Enfim, quanto é o último porque vossemecê me tira? — São seis vinténs a tarifa e o brio de cada um... — Quem pode ter brios, cheio de dores? Pois senhor, eu sou um pobre homem, é o primeiro dente que tiro. Faça-me vossemecê o favor de tirar este a contento e, se eu gostar, pagarei os mais pelo preço que vossemecê me diz. O Barbeiro riu-se. Manda sentar o freguês, salta-lhe nas costas e arranca-lhe um dente queixoso. Ele, que se vê com o dente são fora, ficando-lhe o podre, começa num berreiro, blasfemando contra o mestre. Ao que este respondeu muito sossegado: — Vossemecê não queria o dente fora a seu contento? — Sim senhor. — Pois eu tirei um também ao meu. Se lhe não serve, não volte cá mais que eu não perco muito no freguês. Acomodou-se porque lhe disse um que ali estava que podia querelar por ter havido sangue, e esta era a sua balda (mania) para ver se ganhava o seu vintém. Mas não teve efeito desta vez por não ser prática haver querela por dente fora não sendo tirado com pedrada. Foi então a outro que lhe sacou o podre por um tostão tomando-lhe em desconto uns botões da camisa. E estando cansado de estar numa cabeça tão insignificante, além das fomes que também passava e sem ter meios alguns de ir a outra cabeça, resolvi-me expor a vida para me salvar, passando a um pescocinho que ele tinha e trazia muito sujo na ação de ele o dar à lavadeira. A qual metendo-o na roupa e pondo-a à cabeça, eu lhe passei para ela, que apesar de trazer carapuça lhe fiz de sobressalente a Carapuça IX.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

domingo, 7 de maio de 2023

Adega de Versos 105: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 82


Belas tardes de outono. Céus azuizinhos, nuvens ralinhas, rabos-de-galo distantes. A vida em seu esplendor. Tempo de folhas no chão, tempo de sombras nos caminhos. A inconstância dos ventos.

Nestes dias de negritudes entendemos que a vida é reciprocidade, cada um protegendo cada um, todos protegidos. Somos parte da orquestra da natureza - busquemos assim a perfeição que ela nos mostra. E oferece. SANTA MÃE-NATUREZA.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Olavo Bilac (Os anjos)


No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet renaissance, sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de porcelana chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rhum da Jamaica.

Agora, parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Rafael.

Júlio, falando baixo, inclina-se mais, ainda mais:

— Então, viscondessa, então?

Ela, para desviar a conversa, pergunta uma banalidade:

— Diga-me, senhor Álvaro, o senhor que é pintor, deve saber isso... Porque é que, em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas?

De canto a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde:

— Nada mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito; damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o símbolo da imaterialidade...

Mas o poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, adianta-se até o meio da sala:

— Não é só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação do caso...

Tomou um gole de rum, e continuou:

— Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade....

— Depois do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — Porque?

— Já vão ver!

E Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu:

— IX. Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselhar-lhes que se deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles..."

Houve um silêncio constrangedor no atelier...

— Aí está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só tivessem cabeças e asas...

A viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou:

Shocking! (chocante)

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.
(Quando publicado, o autor utilizou o pseudônimo "Bob")

Lançamento do livro “Asas”, de Elisa Alderani, 13 de maio


Elisa nasceu na Itália, em 1938. Veio ao Brasil, se estabelecendo em Ribeirão Preto/SP, desde 1978. Foi comerciária, atualmente aposentada. Frequenta oficinas culturais no SESC e oficinas Candido Portinari da Casa da Cultura. Membro da Casa do poeta, cadeira Nº15 da Galeria das letras Dr. Miguel Cione, da União dos escritores Independentes de Ribeirão Preto (U.E.I.) e também da União Brasileira de trovadores (U.B.T.). Tem alguns trabalhos publicados em Antologias de São Paulo, de Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e de Ribeirão Preto, sendo alguns deles premiados. Em 2008, publicou seu primeiro livro bilíngue: “Flores do meu jardim - Fiori del mio giardino” (produção independente).

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VII

Quem tal adivinhara, que nunca a tal cabeça fora! Ele não tinha nem para si, quanto mais para os outros. Se me demoro ali, dou cabo da pele ou fico doido ou tísico. O amaldiçoado nem cama tinha. A única coisa que tinha à farta eram quinze ou dezesseis moças que namorava. Um bom Letrado não tinha mais que fazer, que o bom do homem a responder a escritos. E então tudo grátis. Só uma vez lhe vi ganhar um tostão por uma notícia de touros que fez em prosa. Uma vez fez-me tomar um banho por um consoante que lhe faltou. Esquentou-se tanto que mergulhou três vezes a cabeça na água.

Noutra ocasião começou uma carta de amores por estas palavras: Para alcançar a vossa paz preciso envenenar o meu coração. E ficou tão satisfeito que quatro ou cinco noites não dormiu e não lhe escapou amigo a quem não lesse este bocado. Era uma miséria! E era felicíssimo nos primeiros versos, mas já encalhava nos segundos. O seu forte era pé quebrado, de forma que coisa inteira, diante dele, tinha muito perigo. Tudo fazia de improviso, até o comer. Deram-lhe uma vez um mote... deixe ver se me lembra... ah, sim, era

A quem quis, quis.

Glosou-o otimamente. Eu não me lembro senão o fecho final:

A quem não quero, não quero,
A quem quis, quis.

Trabalhava sobre um Poema épico que era a vida do primeiro gato dos Tártaros e já tinha três cantos. Ultimamente tinha comprado um galo para lhe cantar os outros. Tinha também composto a musa universal e andava procurando assinantes, mas ninguém assinava. Outro livrinho, que ele compôs, intitulado Versos em prosa, era um chefe-de-obra, merecia ser dado à luz. Compôs uma Tragédia em que a primeira morte que aparecia em cena era o Empresário. Depois iam morrendo, pela sua ordem, os Atores e Atrizes todas de forma que um Comparsa, que atiçava as luzes, é que vinha dar parte de que se tinha acabado a Tragédia. Num outeiro que ele teve, aí é que foram canas! Nenhuma cabra salta nem chega aonde ele chegou! Um mote que lhe deram:

Cupido fechou os olhos
Vendou-se por duas formas.

Fez maravilhas, abismou tudo, tudo estava com a boca aberta. Um surdo ficou rouco de dar palmadas. Fechou-se o outeiro com este verso:

Cupido trincou Marília,
Nunca a chaga se curou.

Ai, senhores, fez versos que ninguém lhes meteu o dente. Meteu aqui o roubo de Helena, quando fugiu para Páris e as três maçãs de estanho provando que não podiam ser de ouro pela sua descoberta ser muito posterior. E não houve outro remédio senão tudo ir-se embora e ele ficou no campo, a berrar. Passei fomes, mas passei bocadinhos bons. A uma Senhora que ele estimava mais que o seu dinheiro [1], e que lhe escreveu uma carta que começava: E me não quis fazer o que eu lhe pedi, pegou na pena, bateu na testa, pôs os olhos no teto e respondeu de repente: E lhe fiz o que a Senhora me pediu. Ora peguem-lhe lá com um trapo quente. Façam-no melhor! Pobre era ele, mas juízo! Ali não havia que arranhar.

E uns banhos que ele compôs para uns noivos seus conhecidos! Vossas mercês cuidam que começava por quer casar? Não senhores: Gil Grego e Maria dos Ais [2] pretendem unir-se com o atilho do santo Matrimônio, para o que querem casar! Fazia tudo assim. Não se ligava a exemplos nem a costumes.

Nunca comeu a horas competentes. Comia quando tinha que comer. E era muito parco, comia poucas vezes. Nunca comprou calçado feito, mas sempre por fazer. Aos sapatos nunca chamou sapatos. Mudou-lhes o nome de patos em gansos, chamava-lhes sagansos. Igualmente ao casacão tirou-lhe o cão e pôs-lhe cadela. Tinha muita esquisitice boa. Tinha um cão que é quem lhe fazia a cama e esfregava a casa, apesar do mau cheiro que lhe deixava. Tinha um criado de azulejo, na escada, que se conservou muito tempo sem uma mão. Todo o seu engomado era de imprensa.

Fez um romance a um cágado e uma Elegia à morte de um caranguejo que assim como o caranguejo na vida andava para trás, na morte ninguém lhe passou adiante.

De coisas pequenas é que ele fazia as grandes. Teve uma borbulhinha atrás de uma orelha, como a cabeça de um alfinete. Pois tanto mexeu e coçou que a chegou ao tamanho de um ovo.

Noutra ocasião pegou num pobre homem, que não era nada, pôs-o acima das nuvens, fez-lhe um retrato, chamou-lhe quantos nomes quis. Enfim, desfigurou-o, que ninguém o conhecia por tal, senão ele. E isto só porque se capacitou que tinha cara de homem de bem. Vejam lá, que tem a cara com o coração! Eu conheci um Piolho com uma cara de diabo e as obras eram de um Alexandre. Vamos ao caso: este pobre homem morreu de um enchimento de estômago, por um jantar que lhe deu um avarento. E contarei o caso, lembrando primeiro, porque faz muito a esta história, dizer que o tal Poeta tinha uns magníficos cabelos e que o avarento usava de cabeleira. Chamava-se o avaro Tadeu, era casado, tinha filhos e mulher, que ainda viviam, apesar das mil fomes que passavam no ano. E vossas mercês contarão quantas eram por dia, que eu não sei quebrados, portanto não me meto com isso.

Entrou este homem, a peditórios (rogos) da filha e da mulher, querer fazer uma função em casa e isso em respeito a ter-lhe morrido uma avó que lhe tinha deixado oito mil réis de renda. Enfim, o avaro, depois de muitas dúvidas, muitas demoras, muitos itens, resolveu-se a fazê-la mas com a obrigação de que não havia de gastar mais de quatro mil réis. Aceitou-se o partido, dispôs-se o brinco que havia de constar de seu chá e depois ceia. O que valeu muito ao Poeta ser o chá primeiro, senão morria mais depressa. A ceia constou de abóbora-menina com raiolos e arenques de fumo com farinha-de-pau. O Poeta foi convidado para encher o melhor da função pois já se sabe que função sem poeta é o mesmo que batizado sem padrinho. E ele fez, nessa noite, versos lindos e até parece que adivinhava a morte, pois um verso que lhe deram, fechou-o:

Hás de me encontrar no campo
Onde os mortos vão viver.

Fez também um soneto todo em quartetos, botando os tercetos para trás das costas, que teve muita novidade. Pintou um tanque botando água que muitos chegaram a ir beber por lhes parecer que o estavam vendo correr. A uma Senhora que estava na função e metia um olho pelo outro, numa décima que lhe fez lhe pôs direitos como um fuso, e até lhes fez bonitos. E mais estavam ali pessoas que diziam que não podia ser, como se a um Poeta fosse impossível pegar no Colosso de Rodes e metê-lo pelos becos de Alfama [3], se ele quisesse. Enfim, chegou a hora minguada da ceia. O Poeta, que, sempre em dia de banquete, tinha véspera de jejum esquentado dos versos, e da fome, meteu-se na farinha. E ainda que a ceia era muito concisa, ele também era muito verboso e não deu tempo aos outros. Meia hora não era passada, entra numa aflição de estômago. Fizeram-lhe uma esfregação com melaço quente, deram-lhe a beber umas panelinhas de queijo e dentro de três horas se pôs no estado de não passar mais fomes, nem fazer mais versos. Mas nesta última não fez falta que, graças a Deus, ainda cá nos ficaram muitos que os fazem pelo mesmo gosto.

O Avarento, apenas o vê morto, pega numa tesoura, salta-lhe no cabelo e corta-lhe, em cujo eu também saí pois que, no defunto, nada tinha a fazer. Se ele me não podia sustentar vivo, que faria morto? Deixei-me ir a buscar nova sorte, ainda que com bastante medo não me encaixasse em alguma gaveta onde tivesse o dinheiro e em que não me desse nem o ar, o que assim sucedeu. Mas não a mim, porque ele quis ter o gosto, antes de o guardar, de ver se lhe ficava bem ao semblante para mandar fazer uma cabeleira. Chegou a um espelho, pôs o cabelo na cabeça, de cuja aberta me aproveitei para ficar (ainda que não muito contente) na cabeça deste Avaro. Pois que podia eu esperar de um infeliz que se deixava finar por não gastar o seu dinheiro? A vida deste desgraçado se verá na Carapuça VIII.
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Notas
1 -  Dinheiro = Nunca o tinha. [N. do A.]
2 - Gil Grego e Maria dos AisNomes dos contraentes [N. do A.]
3 - Alfama = Ponho aqui becos de Alfama para melhor inteligência dos meus Leitores, porquanto no original falava-se num beco que havia na Transilvânia, chamado Beco. [N. do A.]

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

sábado, 6 de maio de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “05”

 

Machado de Assis (Salteadores da Tessália)

Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure.

Tal era a reflexão que eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia, até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra.

Repito, que me trariam os diários? As mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de Varsóvia, os Mistérios de Paris, a Lua de Londres, o Carnaval de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas colunas abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer o que liam. Julgai por vós mesmos.

Antes de ir adiante, é preciso saber a ideia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é com ele.

Dadas estas noções elementares, imaginai com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas: "Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a província da Tessália." Dou-vos dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a notícia; e, se vos acomodais da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante acumulação. Chamai bárbara à moderna Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.

Sim, essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas horas da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsídio, não é comum, nem rara, é única. As instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrário, quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regime das câmaras difere pouco, e, ainda que difira muito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul* Catão e Caco. Há alguma coisa nova debaixo do sol.

Durante meia hora fiquei como fora de mim. A situação é, na verdade, aristofanesca. Só a mão de grande cômico podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A folha que dá a notícia, não conta nada da provável confusão de linguagem que há de haver nos dois ofícios. Quando algum daqueles deputados tivesse de falar na câmara, em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa, agredindo um viajante, pedir-lhe-ia dois minutos de atenção. E nada ficaria, em absoluto, fora do seu lugar; com dois minutos de atenção se tira o relógio a um homem, e mais de um na câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso.

Mas, por todos os deuses do Olimpo! Não há gosto perfeito na terra. No melhor da alegria, acudiu-me à lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma coisa semelhante à notícia. Corri a ele; achei a cena dos maniotas, que ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não desse uma pequena quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local. About chega, ameaça por sua vez os homens, e, para assustá-los, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recomendação. "Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo: Conheço muito, é dos nossos."

Assim, pois, nem isto é novo! Já existia há quarenta anos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira vez que ele se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dois ofícios discretamente. Fiquei triste. Eis aí, tornamos à velha divisão de classes, que a terra de Homero podia destruir pela forma audaz de Talis. Aí volta a monotonia das funções separadas, isto é, uma restrição à liberdade das profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, pode ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas operações diversas, e a diversidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha ilusão de um instante! Tudo continua a ser velho: nihil sub sole novum.

Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condenem os demais se querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um funcionário duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hélade deite os ministérios abaixo, se lhe apraz, mas não atire às águas do Eurotas um elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este modernismo, que é outro turco, diferente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britânico para fugir à discussão da resposta à fala do trono. E repare que não há, entre os seus poemas, nenhum que se chame O presidente do conselho, mas há um que se chama O Corsário.
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* curul diz-se de ou cadeira portátil, dobrável, de pernas curvas e incrustada de marfim, reservada na Roma antiga ao uso dos mais altos dignitários (censores, cônsules, ditadores, imperadores etc.), símbolo do poder judiciário.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
A Semana - Gazeta de Notícias - 26/11/1893.

Antero Jerónimo (Poemas avulsos)

Abracei-te 
com os meus olhos
absorvi o teu brilho 
o teu sorriso 
a doçura desse menear
bebi e saboreei 
cada palavra
cada gesto
cada contorno sedutor
na volúpia do poema
que alimenta os sentidos
embriagado de ti
sorrio para mim
num sorriso que se alinha
com um rasto imaginário
um rasgo de inspiração
que dá mais sentido à vida.
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Arquiteto-me nas palavras
e de sensações me construo;
naquelas onde preencho os alicerces
e edifico a coragem para me questionar.

Nas raízes das sombras profundas
brotam resistentes e maturados caules 
libertando alvas pétalas de esperança.

O poema resistirá às intempéries temporais.
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DÁ-ME UM ABRAÇO

Dá-me um abraço
Que seja espaço bem estreitado
Onde apenas caiba a sintonia de vontades

Dá-me um abraço
Que recomponha formas quebradas
Das vicissitudes que nos atropelam a alma

Dá-me um abraço
Que seja singelo na sua inocência
Não corrompido pela rudeza da indiferença

Dá-me um abraço
Que seja corrente de seiva unificada
Palpitando no aconchego do seio apaziguador

Dá-me um abraço
Que seja pele, amor e poema
Um abraço onde caibam todos os silêncios.
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Defensor da Humanidade
tu que furtaste o fogo celestial
provocando a ira divina

Desamarra-me da lógica enfadonha
destes dias em que me enleio

Deste relógio que nos acorrenta
ao rochedo da abnegada complacência

Que nos debica,
implacavelmente
até à mais ínfima porção

Nesta vontade resiliente
de resistir à opressão.
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MEMÓRIA ADORMECIDA

A revolta corrói por dentro, intensa
no corpo cansado de reprimir
mastigam-se côdeas de desespero no resistir
no dizer não ao sobreviver de sentença
a liberdade atraiçoada em desumana condição
moldes em série de vontades amordaçadas
verdades construídas sobre mentiras subornadas
o cravo encimando espingardas é disforme ilusão
a ignomínia promessa já não cabe nesta hora
aviva as frias cinzas repletas da nossa história
corpo adormecido ergue pensamento d’outrora
onde a coragem encheu páginas de glória.
Acorda breve que o dia já demora
ó Corpo de Gente, adormecido na memória.
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O amor conquista.
A saudade resiste.

Conquistar é ter asas na imaginação
Resistir é ter uma couraça no coração

O amor, qual casa de portas e janelas abertas
A saudade bate fundo em horas incertas

O amor persegue um ideal, de pureza
A saudade resguarda-se, indiferente, na tristeza

O amor é um farol a indicar o caminho
A saudade caminha por entre sombras de mansinho

A saudade não é mais do que a prova provada
De que o amor é marca indelével no tempo.
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Seduz-me
àquele ponto
em que as vestes tentadoras
tombam no chão sem pudor
Seduz-me
enquanto feixes de luz
moldam lascivamente os teus contornos
incendiando meu olhar de tentação
Seduz-me
com aquele poder
que tu dominas com mestria
de cada gesto ser um convite ousado
alimentares em mim o teu desejo alado
Seduz-me
tira tudo de mim
eleva-me ao teu altar
e saboreia cada trago
nesse cálice de ressurreição.
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TENTAÇÃO

Quero
que me surpreendas
me tires o chão
e me prendas

que me soltes as amarras
me dispas de preconceitos
nesse teu jeito

que me envolvas
num círculo viciante
sem afrouxar

que me bebas
até à última gota
da vertical tentação

que me sorrias
com os lábios febris
de orvalhada satisfação.
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QUADRIVERSOS DIVERSOS

Artesão de silêncios 
é tão simplesmente 
aquele que aprendeu a arte
de acertar os ponteiros do tempo.
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A saudade são alvos fiapos 
dependurados na imensidão 
do pensamento, nesse lugar
onde a lembrança se faz eterna.
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Em promessa de renovado acreditar
à luz da ressurreição da palavra 
a natureza veste-se de singelo milagre
na fé que absolve o espinho dos dias.
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Existem capítulos felizes 
de livros que já não lemos,
mas que guardamos religiosamente,
na biblioteca de nossa existência.
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Inebria-se o olhar 
preso ao fogo ardente dos lábios
estilhaçando os contornos da lucidez
onde se reveste o meu corpo trémulo.
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Saibamos sabiamente costurar
com o fio resistente da humanização
um mundo em vontades dilacerado
pela imprudente cegueira da ambição.

Fonte:
– Página do poeta no facebook: Na Pele do Sentir. https://www.facebook.com/antero.jeronimo.autor

Hans Christian Andersen (O elfo da rosa)


No meio de um jardim nasceu uma roseira, em plena floração, e na mais bela das rosas vivia um elfo. Ele era uma criatura tão pequenina, que nenhum olho humano podia vê-lo. Atrás de cada folha da rosa ele tinha um lugar onde ele dormia. Ele tinha uma perfeita constituição como toda criança linda pode ter, e tinha asas que iam dos ombros até os pés. Oh, que deliciosa fragrância havia nos quartos onde ele dormia! E como as paredes eram limpas e belas, pois eram as folhas mais vermelhas da rosa.

Durante o dia todo ele adorava passar o tempo sob a luz do sol, voava de uma flor a outra, e dançava sobre as asas das borboletas enquanto voavam. De repente, ele resolveu contar quantos passos ele teria que dar para atravessar os caminhos e os cruzamentos que haviam numa folha de um pé de tília. Aquilo que chamamos de veias da folha, ele entendia como sendo caminhos que ele tinha de percorrer e, aí, eram caminhos muito longos para ele, pois, antes que tivesse terminado metade de sua tarefa, o sol já tinha ido embora: ele havia começado o seu trabalho tarde demais. Começou a ficar frio, o orvalho já estava caindo, e o vento soprava forte, então ele achou que o melhor que ele teria a fazer seria voltar para casa. Ele se apressou tanto quanto pode, mas descobriu que todas as rosas já haviam se fechado, e ele não conseguiu entrar, nenhuma rosa estava aberta.

O pobre do elfo ficou muito assustado. Ele nunca havia ficado fora durante a noite, mas sempre tirava uma soneca escondido atrás das aconchegantes folhas das rosas. Oh, isso com certeza poderia ser a morte para ele. Na outra extremidade do jardim, ele sabia que havia um caramanchão, coberto com lindas madressilvas. As flores eram semelhantes a grandes chifres decorados, então, ele pensou consigo mesmo, que ele iria dormir em cima de uma delas até o amanhecer. Ele voou até lá, porém, "façam silêncio" duas pessoas estavam no caramanchão — um jovem belo e garboso e uma encantadora mulher. Eles se sentaram lado a lado, e desejavam jamais terem de se separar. Eles se amavam muito mais do que uma linda criança pode amar seu pai e sua mãe.

"Mas nós temos que nos separar," disse o jovem, "o seu irmão não apoia o nosso namoro, e por isso ele me mandou para longe a negócios, para além das montanhas e dos mares. Adeus, minha querida noiva, pois é isso o você que significa para mim."

E então se beijaram, e a garota chorou, e lhe ofereceu uma rosa, mas, antes de fazer isso, ela deu um beijo tão ardente na rosa que a flor se abriu. Então o pequeno elfo voou correndo para dentro, e encostou sua cabecinha nas paredes delicadas e perfumadas da flor. Ali, ele pode ouvir claramente quando eles disseram: "Adeus, adeus," e ele sentiu que a rosa tinha sido colocada no peito do jovem. Oh, como o seu coração batia forte! O pequeno elfo não conseguia dormir, porque o coração dele batia forte demais. O jovem retirou a flor ao caminhar sozinho pela floresta, e a beijava muitas vezes e com tanto ardor, que o pequeno elfo quase era esmagado. Ele podia sentir através da folha como eram ardentes os lábios do jovem, e a rosa se abriu, como se fosse o calor do sol do meio dia.

Eis que veio um outro homem, que tinha um aspecto sombrio e malvado. Ele era o perverso irmão da bela jovem. Ele sacou uma faca afiada, e quando o jovem apaixonado estava beijando a rosa, o homem impiedoso o apunhalou até a morte, depois ele cortou a cabeça e a sepultou junto com o corpo sob a terra macia debaixo de um pé de tília.

"Agora ele não existe mais, e logo será esquecido," pensou o irmão malvado, "ele nunca mais voltará. Ele está fazendo uma longa viagem para além das montanhas e dos mares, é fácil para um homem perder a vida em viagens desse tipo. Minha irmã irá acreditar que ele morreu, pois, ele não pode voltar, e ela não ousará duvidar de mim sobre o que aconteceu."

Então, ele espalhou, com seus pés, folhas secas sobre a terra fofa, e voltou para casa no meio da escuridão, mas ele não voltou sozinho, como ele pensava, — o pequeno elfo o acompanhou. Ele estava sentado numa folha de tília enrolada, que havia caído da árvore sobre a cabeça do homem malvado, quando ele estava cavando a sepultura. O chapéu estava em sua cabeça agora, o que deixava tudo escuro, e o pequeno elfo tremia de medo e indignação com o ato impiedoso.

Era o início da manhã, e o homem perverso ainda não havia chegado em casa, ele tirou o chapéu, e se dirigiu até o quarto da sua irmã. Lá estava a garota bela e exuberante, sonhando com aquele a quem amava tanto, e que estava agora, assim pensava ela, viajando para longe, para além das montanhas e dos mares. Seu irmão impiedoso parou diante dela, e sorria por dentro, como somente as pessoas más sabem rir. A folha caiu de seus cabelos sobre a colcha, sem que ele percebesse, e ele saiu para dormir um pouco durante as primeiras horas da manhã. Foi aí que o elfo escorregou da folha seca, e foi parar no ouvido da garota que dormia, e contou para ela, como num sonho, tudo sobre o terrível crime, e descreveu o lugar onde o seu irmão havia matado aquele a quem ela amava, sepultando depois, o seu corpo, e lhe falou também do pé de tília, todo florido, que havia ali.

"E para que você não pense que este foi apenas um sonho que eu lhe contei," disse ele, “você encontrará em sua cama uma folha seca."

Então ela acordou, e encontrou a folha seca. Oh, quantas lágrimas amargas ela derramou! E ela não conseguia abrir seu coração para ninguém para se consolar.

A janela ficou aberta o dia todo, e o pequeno elfo poderia ter ido facilmente até uma das rosas, ou qualquer outra flor, mas em seu coração ele não poderia deixar alguém tão aflito assim. Perto da janela crescia um arbusto que produzia rosas todos os meses. Ele se sentou em uma das flores, e ficou olhando a pobre garota. O irmão dela várias vezes ia até o quarto, e ela teria ficado muito feliz, não fosse atitude covarde dele, então, ela não ousava dizer nem uma palavra para ele sobre a dor que lhe ia no coração.

Assim que a noite chegou, ela saiu de casa sem que ninguém visse, e caminhou até a floresta, no lugar onde ficava o pé de tília, e depois de remover as folhas secas da terra, ela retirou a terra e ali encontrou aquele que havia sido morto. Oh, como ela chorava e rezava para que ela também pudesse morrer! Teria ficado feliz em levar o corpo para casa com ela, mas isso era impossível, então, com os olhos fechados, ela pegou a cabeça, beijou os lábios frios, e sacudiu a terra dos lindos cabelos.

"Vou ficar com esta cabeça," disse a jovem, e assim que cobriu o corpo novamente com terra e as folhas, ela pegou a cabeça e um pequeno ramo de jasmim que florescia no meio da mata, perto do lugar onde o corpo havia sido sepultado, e os levou para casa com ela. Assim que ela entrou em seu quarto, ela pegou o maior vaso que ela conseguiu encontrar, e nele colocou a cabeça do homem que amava, cobriu-o de terras e plantou o galho de jasmim dentro do vaso.

"Adeus, adeus," sussurrou o pequeno elfo. Ele não conseguia mais suportar a visão daquela cena de dor, e foi voando até a sua rosa no jardim. Mas a rosa havia murchado, apenas algumas folhas secas ainda estavam penduradas na cerca viva que ficava atrás dela.

"Oh, meu Deus!, porque será que tudo que é belo e bom dura tão pouco," suspirou o elfo. Depois de algum tempo ele encontrou uma outra rosa, onde ele passou a viver, pois, no meio de suas folhas delicadas e perfumadas ele poderia viver com segurança. Todas as manhãs ele voava até a janela do quarto da pobre garota, e sempre a encontrava chorando perto do vaso de flores. As lágrimas amargas caíram sobre o ramo de jasmim, e todos os dias, a medida que ela ia ficando cada vez mais pálida, o ramo parecia ir ficando cada vez mais verde e mais fresco. Uma gota após a outra ia caindo, e os pequenos botões brancos começaram a florescer, os quais a pobre garota beijava com muito carinho. Mas o irmão malvado ralhava com ela, e lhe perguntou se ela estava ficando louca. Ele não conseguia imaginar porque ela estava chorando sobre o vaso de flores, e isso o aborrecia.

Ele jamais poderia imaginar que olhos fechados haviam sido colocados ali, nem que lábios rubros estavam se decompondo debaixo da terra. E um dia ela se sentou e encostou a cabeça no vaso de flores, e o pequeno elfo da rosa viu que ela estava dormindo. Então, ele se sentou perto do ouvido dela, e falou para ela sobre aquela noite debaixo do caramanchão, sobre o doce perfume da rosa e os amores dos elfos. Ela se entregou totalmente ao sonho, e enquanto sonhava, sua vida ia passando calma e suavemente, e o espírito dela ia com aquele a quem ela amava, no céu. E o jasmim abriu suas sépalas grandes e brancas, exalando uma deliciosa fragrância, pois ele não tinha outra maneira de demonstrar a sua dor pelos que se foram. Mas o irmão malvado achou que a flor bela e exuberante fosse propriedade sua, e que a sua irmã havia a deixado para ele, e ele a colocou em seu quarto, perto da sua cama, porque ela era encantadora na aparência, e a fragrância doce e deliciosa.

O pequeno elfo da rosa acompanhava tudo, e voava de flor em flor, e contava para todos os espíritos minúsculos, que moravam dentro delas, a história do jovem que fora assassinado, e cuja cabeça agora fazia parte da terra que estava debaixo deles, e sobre o irmão perverso e a sua pobre irmã. "Nós já sabíamos," disse cada pequeno espírito das flores, "nós já sabíamos, porque fomos gerados dos olhos e dos lábios daquele que morreu. Nós já sabíamos, já sabíamos," e as flores balançavam suas cabeças de maneira peculiar. O elfo da rosa não conseguia entender como eles poderiam estar tão tranquilos diante daquela situação, então ele voou até as abelhas, que estavam coletando mel, e contou para elas sobre o irmão malvado.

E as abelhas contaram isso para a rainha delas, a qual ordenou que na manhã seguinte eles fossem e matassem o criminoso. Mas, durante aquela noite, que era a primeira depois que ele havia morrido, enquanto o irmão dela estava deitado na cama, perto da onde ele havia colocado o perfumado jasmim, todos os cálices das flores se abriram, e como seres invisíveis que eram, os pequenos espíritos saíram, armados com suas lanças envenenadas. Eles se posicionaram ao lado do ouvido do dorminhoco, e contavam para ele histórias assustadoras e depois foram voando até os lábios dele, e picaram a língua dele com suas lanças envenenadas. "Agora nós vingamos o morto," disseram eles, e voaram de volta até as sépalas brancas das flores do jasmim. Quando a manhã chegou, e assim que a janela foi aberta, o elfo da rosa, junto com a abelha rainha, e todo o enxame de abelhas, correram para matá-lo.

Mas ele já estava morto. Haviam pessoas ao redor da cama, e dizendo que o cheiro do jasmim o havia matado. Então, o elfo da rosa entendeu a vingança das flores, e explicou isso para a rainha, e ela, bem como todo o enxame, começaram a zumbir em torno do vaso de flores. As abelhas não poderiam ser expulsas. Então, um homem resolveu afugentá-las, e uma das abelhas o picou na mão, ele deixou cair o vaso de flor, e o vaso se partiu em pedaços. Foi aí que todos viram a caveira branca, então eles descobriram que o homem que estava morto na cama era o assassino. E a abelha rainha zumbia no ar, cantarolando a vingança das flores e do elfo da rosa, e disse que atrás das folhas mais minúsculas existe um Elfo, que consegue descobrir as maldades, e também pune quando necessário.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 19 de maio de 1839.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VI


Parece, à primeira vista, que eu passaria mal na cabeça de um boticário porque, se houvesse quem receitasse piolhos para alguma icterícia, não ficaria piolho vivo nas cabeças de casa. Mas onde os outros julgam o mal, aí é que eu achei o remédio. Boticário jamais dá o que se lhe pede. Por isso mesmo sempre vendem gato por lebre e nunca lhes falta nada na botica. Suponhamos nós que o Médico receitava piolhos. Que fazia ele? Ia ao leito, apanhava percevejos e analisava, dizendo: —Tanto é bicho o piolho como o percevejo. Com que se sustenta o piolho? Com sangue. Que faz o piolho? Morde. E o percevejo, que faz? Também morde. E demais, se o piolho é balsâmico, o percevejo não só o é mas também odorífero. O piolho morre, o percevejo remoça. O piolho é triste, o percevejo é alegre. A cor deste é muito mais bonita que a daquele. E concluía: — O percevejo anda por leitos recamados de ouro e damasco e quando chega lá um piolho? Nunca.

No tempo dos porcos, era o meu São Martinho, porque, como o boticário fazia banha, andava sempre limpando as mãos à cabeça. Mas esta lambição ia-me dando que entender, porque uma vez que tinha lidado com os pós de Joanes, limpou também as mãos. Eu fui muito abelhudo, parecendo-me grangeia (drágea). Por um nada que os não como. O que valeu foi ter tido uma indigestão na véspera e entrar no receio de comer coisa doce, porque eu, a este tempo, já me sabia curar a mim próprio pela prática de todos os dias estar ouvindo casos e decisões sobre a Medicina, principalmente a um que era a vera efígie do Doutor Sangrado.

Ele estava justo com o boticário. Repartiam os ganhos, à exceção do defunto. E o tal amigo era tão hábil na tal nigromancia de curar que teve a habilidade de receitar trinta e três receitas para um que já estava morto havia trinta e três horas, dizendo à gente da casa que era um acidente interior mas que ainda podia tornar a si e que os remédios eram para o fim de que o acidente saísse do interior para fora, o que nunca saiu. Foi com ele à cova.

Tinha também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes? — Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê, antes de eu o curar, via-as? — Não senhor.

—Então para que se queixa, se vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.

Na verdade um homem como este nunca havia de morrer. Tinha muitas receitas particulares e foi tão bruto que morreu sem deixar nenhuma aos parentes. Alguma, que se sabe, pilhou-se a dente. Também tinha uma para a espinhela caída, que era um pasmo. Fazia uma massinha e, em lugar de formar pílulas, fazia uma espinhela, secava-a, moía-a e, dissolvida em sal amoníaco, fazia-a beber ao doente, deitado da banda da espinhela. Ao fim de três horas tornavam os pós à sua primeira forma e eis o doente com uma espinhela nova. Compôs um Tratado para tirar dentes, em cinco livros de fólio, que ensinava o método de tirar as raízes sãs deixando os dentes podres de forma que, no seu bairro, ninguém tinha raízes. Um sujeito, para pôr umas de Quaresma no seu quintal, foi-lhe pedir licença. Também tinha ópio para todo o mundo. Quem queria dormir ia lá. Houve ali um sujeito que se queixava que havia quarenta dias que não pregava olho e ele, sem prego nem martelo, apresentou-lhe tanta quantidade de ópio que ainda hoje o não abriu. Todos os anos tinha um presente do coveiro da Freguesia pelo bem que lhe fazia. Nunca comprou pevide (semente) de melão e de melancia. Comprava as das abóboras que eram quase de graça e dizia: — Para que é amendoada? Para refrescar. Pois a abóbora é muito mais fresca.

Sabem com que ele quinava qualquer remédio? Com macela e nunca isso matou ninguém. Tinha um conhecimento de ervas que não lhe faltava senão comê-las. Uma vez que um médico receitou sal inglês para uma purga (laxante), exclamou ele: — Ó tempos! Ó costumes! Não se faz caso senão dos gêneros estrangeiros. Pois não há de ser assim. Fez a purga de sal português e o pobre doente esteve a beber água todo o dia. Sobreveio-lhe uma febre à noite e no outro dia foi para a Eternidade. Mas à portuguesa. Na verdade, tinha coisas muito galantes. Um remédio que ele tinha para defluxos ajudava-os a cair no peito e depois, então, é que os levantava, se podia. Também tinha um remédio para pólipos que, dentro de meio minuto, secava pela raiz pólipo e nariz. O que lhe valia era um amigo Poeta que tinha, que lhe os fazia depois de cera, para os doentes não ficarem com defeito.

Um dia, trazendo-lhe o tal duas dúzias deles, entrou o boticário a teimar que um não prestava e o Poeta a dizer que era o melhor. E pondo-lhe na cara, disse: — Para um homem assim da sua idade, com barrete na cabeça, está-lhe pintado. Que faz o boticário? Põe o nariz no Poeta, saca o barrete e põe-lhe também. Eu, que tinha estado a ouvir a conversação e morria, havia muito, por estar numa destas cabeças, passei muito depressa para o barrete e com o mesmo para a cabeça deste Virgílio, que é o assunto da Carapuça VII.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.