sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Ovos quase mexidos)

O ENTREVISTADOR chega para uma pequena multidão à espera do ônibus num ponto em frente à praça central e escolhe uma moça ao acaso:

 — Bom dia, minha amiga. Como é seu nome? 

— Érica...

— Nome completo.

— Érica da Conceição.  

— Érica, muito prazer. Sou Heitor Conrado. Você está ao vivo no programa “A sorte vai até você”, do Carlos de Assis, da Rede de Televisão Vida Plena. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas, todas com uma única palavra. Quero que você responda também, por favor, às minhas indagações, com uma palavra. O que vier na cabeça. Exemplo: Casa?... você deverá dizer... lar... pai?... esteio... fogo?... chama. E assim por diante. Não poderá pensar. Preparada? Se errar uma resposta, estará fora da competição e eu escolherei outro participante. Se acertar ganhará, ou seja, levará cinco mil reais em dinheiro. Ali está o cheque nas mãos das minhas auxiliadoras, as esfuziantes bailarinas Flavia e Angélica. Num oferecimento das Lojas Semvam, onde você poderá ir de fusca, taxi, ou Uber... olhando para aquela câmera. Gravando...  
— OK.

— Posso começar?

— Sim.

— Preparada?

— Sempre.

— No final da contagem... três... dois... um... valendo... Érica, Comida?
— Massas.
— Morte?
— Desespero.
— Vida?
— Tudo.
— Esperança?
— Felicidade. 
— Amor?
— Incondicional.

— Alegria?
— Saúde.
— Política?
— Desgraça.
— Separação?
— Consequência.
— Religião?
— Ópio.
— Jesus?
— Salvação.
— Necessidade?
— Fé.
— Feio?
— Racismo.
— Escritor?
— Camões. 

Os presentes aplaudem e incentivam.

 — Silencio?
— Meditação.
— Criança?
— Futuro.
— Inferno?
— Aqui.
— Sol?
— Luz.
— Noite?
— Descanso.
— Saudade?
— Vazio...
— Trauma?
— Dor.
— Mulher?
— Mãe.

— Lágrima?
— Alívio. 
—Cadeia?
— Submundo.
— Drogas?
— Jamais.
— Viagem? 
— Roma. 
— Sonho?
— Paz!
— Flor?
— Rosa.
— Você?
— Universo.
— Mesa?
— Farta.
— Inesquecível?
— Deus.

O entrevistador abre os braços ao tempo em que coloca no rosto um sorriso alegre e contagiante. Olha para seu cinegrafista e para a multidão que se aglomerara ao lado deles e anuncia, em altos brados, a mais nova sortuda a levar um prêmio de cinco mil reais em dinheiro vivo. 

— Produção, produção, Érica da Conceição é a vitoriosa.  Ganhouuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!... Carlinhos, daqui a pouco estaremos chegando aí nos estúdios. Viva o programa “A Sorte vai até você.” Parabéns à Érica e as lojas Semvam, nossa patrocinadora oficial. Uma salva de palmas para a mais nova felizarda!...

A galera se tumultua em polvorosa, com gritos extasiados. A alegria do prêmio propaga geral. Na empolgação do momento, um “passante” engraçadinho se achega à Erica, se ajoelha a seus pés, segura a sua mão direita, e, na maior cara de pau, a pede em matrimônio:

— Amor, casa comigo? Quero ajudá-la a gastar esta pequena fortuna...   

A contemplada, obviamente, recusa a proposta. O teimoso insiste. Num dado momento, se levanta e enlaça a graciosa pela cintura. Se não fosse um dos muitos que assistiam ter pulado na frente de uma viatura da polícia militar que passava justo naquele instante, o sujeitinho teria sido linchado.

Fonte: Texto enviado pelo autor  

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Varal de Trovas n. 591

 

Mensagem na Garrafa – 49 -


Emílio de Meneses
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR (1816- 1918)

RETORNO

Olha! volto de novo, - Olha! de novo à crença.
Eu volto. É o mesmo templo. - O teu olhar traspassa
Rasga, ilumina em fogo, a abóbada suspensa
De onde pende do incenso a mesma nuvem baça.

Sinos rebadalando o glorioso repique…
Toda a massa dos fiéis pelos degraus do altar…
Deixa que suba a prece e que a esperança fique
À flor dos corações como algas sobre o mar.

É o mesmo ainda o canto invisível e crente,
O turíbulo de ouro o mesmo fumo evola,
E do órgão gemebundo o queixume plangente
É o mesmo que noss'alma embriaga e consola.

Aquece-me de novo o mesmo fogo interno,
Chora-me dentro d'alma o mesmo cantochão
Que no ouvido me entrou pelo lábio materno
Como um vinho de Cos num cérebro pagão.

Mas uma timidez de neófito me invade,
A alma se me conturba, a vista emarelece…
Sinto-me tropeçar a cada claridade
E a cada treva sinto um corpo em que tropece…

Por que em ti hão achar o desejado guia
Que o vacilante passo, estradas através,
Conduza onde não haja além da luz do dia
Outra luz que não seja a que vejo a teus pés?

Vem! que por tua voz de madrigais suaves,
Fanático, a pisar, enfebrecido e louco,
Eu descubra o caminho através estas naves
E me tires a venda aos olhos, pouco a pouco.

Aceita no agasalho ardente do teu beijo,
A alma cheia de medo e cheia de terror,
E nesta indecisão do primeiro desejo
Mata o dragão do ciúme e dá vida ao amor.

Faze do teu olhar o meu único teto,
A única inspiração me venha do teu riso,
Que eu não sei se haverá n'outrem maior afeto,
Se igual dedicação neste mundo diviso.

Queira a fúria de mar que em teus olhos se mira,
Queira a calma de luar que o teu olhar contém,
Naufragar o temor que esta paixão me inspira
E a esperança banhar da alegria que vem!

Fabiane Braga Lima (Quem ama cuida, pois o tempo urge!)

Sofri anos sem motivos e por um sentimento vulgar que chega a ser atroz, indecifrável, não existe uma tradução específica, é como ser alguém masoquista adaptado para sentir dores. Foram anos trágicos, onde a indolência havia me tomado em grande proporção, me levando numa demência coerente, onde na verdade tudo era incoerente.

Hoje, vejo uma outra pessoa, totalmente e completamente diferente, não há reminiscências de um passado árduo, minha alma e o meu coração se tornaram astutos, não mais os entrego para quem não merece. E pouco a pouco, eu pude construir argumentos sólidos de defesas e como a razão eu me tornei uma pessoa centrada! Quando me distraí, tudo que eu tinha, volta ao normal. 

Somos reais, somos feitos de carne, e a carne perece, mas a alma não é imortal. Nossa alma deve ser guardada e intacta, pois é o que temos de melhor. O tempo urge, não somos personagens, temos filhos, famílias, amigos e uma gama de relações. E quem ama cuida, nos instrui quando for necessário. Temos a necessidade de sermos reais e amar os nossos semelhantes. 

Nem sempre, somos personagens de um teatro surreal, pois a vida é tão fugaz que passa tão depressa. Cuidemos das nossas almas! Chega de fecharmos os nossos olhos, devemos enxergar a realidade como ela é. Então pense, quem ama cuida, pois o tempo urge e a carne perece, mas o amor, nunca será extinto! Ele vive....!

Fonte: Enviado por Samuel da Costa.

Samuel da Costa (O ninho da serpente)

Para João Carlos Pereira 

Parece que a teoria da relatividade foi feita especialmente para aquele lugar, onde o tempo parece ter vontade própria. Anda de forma rápida quando quer andar. E, às vezes, parece que paira no ar, de forma mágica. 

Quando Ademar caíra naquele local o tempo andava de forma bem lenta. E ele não via a hora de ver seus entes queridos novamente. Uma simples visita no cárcere onde sua irmã e amigas vieram visitá-lo. 

Era para ser apenas mais uma simples visita, não fosse Marcelo de Sousa Andrade, ou melhor, Marcelinho Serra-fita como era popularmente conhecido dentro e fora de prisão, ao vê-las partirem, ele foi categórico ao dar a ordem para Ademar: — Chama elas de volta! Chama agora! Marcelinho tinha o olhar vil de uma cobra. 

A figura do guarda, fortemente armado, postado na guarita de observação, que vigiava os encarcerados, parecia uma figura folclórica, uma mera figura decorativa. Como também o carcereiro que assistia aquela cena, sem nada fazer ou dizer alguma coisa.            

Para Ademar, o tempo que pairava no ar, agora o sufocava, porque Marcelinho Serra-fita, quem realmente mandava naquele lugar de angústias e muitas dores. Resolveu, após algumas visitas íntimas, oficializar o seu casamento com a irmã de Ademar. Uma união que Ademar não sabia se comemorava ou maldizia.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 6: Spinas

AMANHECE...

Imagem da vida 
é fonte divina,
uma doce magia.

Desenhada no céu, exala poesia 
de um tesouro perdido, exaurido
no crepúsculo, aplaudindo o dia.
Profetizando, o sino repica, doa
no amanhecer uma doce alegria. 
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DEPOIS DA CHUVA 

Gorjeios no arco-íris 
encantam aos olhos,
fluem no entardecer,

aquietando todo o meu ser.
Em um relance de nuances 
carmins, a vida é benquerer.
As marcas da chuva secam
sem pressa, até o alvorecer.
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INTUIÇÃO 

Enquanto meu eco
levita com sutileza
sobre os corrimões,

ouço sons, talvez meras ilusões 
que emaranhados entre os vãos, 
tentam livrar-se de seus grilhões.
Fitando um soalho bem cuidado,
sinto vida em outras dimensões.
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O SOM DO SILÊNCIO 

Ouvindo meu silêncio,
liberto este momento
disfarçado em dilema,

em um aroma de alfazema. 
A vida devolve em sorrisos
a esperança, abre a algema
do meu silêncio, que enreda
linhas de um singelo poema.
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PRIMAVERA 

Invernos chuvosos saem
levando apenas saudade, 
deixando ilusões serenas.

São brisas amenas que valsam
no jardim intenso da primavera,
um beijo nas pétalas pequenas.
Os vestígios carmins das rosas
serão versos das futuras cenas.
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REENCONTRO

Exalas cada manhã 
tuas cores, pairando 
nas esquinas frias 

ilusões, ou serão velhas poesias?
Um badalar do sino, timidamente, 
anuncia em vozerios, tuas magias
ou será um poeta (re)descobrindo 
este renascimento todos os dias?
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SEMENTE

Renasço cada manhã,
ecoando em silêncios
esta intensa sensação

de sentir-se viva, uma ilusão
em que fragmentos da alma
unem-se aos ecos no chão,
germinando de novo a vida...
abraçando a voz do coração.
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Observação sobre o Spina: é um poema de duas estrofes. A primeira de três versos com três palavras, obrigatoriamente, iniciada por uma acepção trissílaba. Ex: valente.

A última palavra desta estrofe rimará sempre com a última do terceiro e quinto versos, não havendo obrigatoriedade de rimar com a primeira. 

– Palavras compostas com e sem hífen são censuradas no início do poema. Da mesma forma que a ênclise e a mesóclise
– O último verso da primeira estrofe rimará sempre com o terceiro e quinto verso da segunda estrofe
– O título e a métrica são opcionais. Ao optar pela métrica regular, não se deve, jamais, alterar a quantidade de palavras dos versos com o intuito de alcançar a métrica desejada.
– As conjunções: mas, e, porém, no entanto, entretanto, pois, todavia, contudo, são todas proibidas.
– As palavras compostas por hífen são contadas como uma única acepção. As compostas sem hífen são contadas individualmente.
– Somente se utilizam palavras iguais nas rimas quando os seus significados forem diferentes; não são permitidas rimas imperfeitas nas sequências obrigatórias.

Fonte: Enviados pela poetisa.

Batista de Lima (O Velho)

Gerôncio escapou da morte. Ficou vítima da vida. Não morreu. Chegou aos cem anos e foi festejado pela idade. Todos lhe prestaram honras. Mas depois a morte não veio e as pessoas não gostaram muito disso, nem o próprio Gerôncio. É tanto que ele se recolheu como um eremita num socavão de serra para esperar a morte na placidez da velhice. Mas a morte não veio.

Pensou em suicidar-se, mas a religião que ganhara se seus pais dizia que só Deus que dá, pode tirar a vida, ninguém mais. E ali estava ele abandonado por Deus. Como seria feliz se tivesse morrido mais aos vinte e cinco anos. Mas não, perdera a quantia dos anos e como castigo estava ali, verdadeira sucata que até o tempo corrosivo acabara por esquecer. Não tinha mais com quem conversar, todos morreram. Até seus netos se foram. Seus bisnetos estavam velhinhos e não o reconheciam mais como gente e sim como um dejeto do diabo, uma excrescência divina. Naquele pé de serra, os pássaros eram outros. Rolinhas, canários, azulões, todos desapareceram. Agora só havia pardais nas árvores, num barulho infernal, e em vez de urubus, carcarás e gaviões, os céus estavam cheios de aviões, verdadeiros demônios ensurdecedores sobre sua cabeça e perturbadores do seu sono naquele fim de mundo. Mas fim para ele, era coisa que não existia. Era um esquecido de Deus. Se ia pescar no açude, não havia mais traíras, nem piaus, nem corrós, tudo era tilápia, o diabo de um peixe feio que não era de seu tempo.

Se ia tirar mel para saciar sua fome, não havia mais jati, mandassaia, jandaíra, cupira, capuxu, cafimfim, tudo era abelha italiana, com seus ferrões dourados.

Era um mundo novo e ele ali, velho, ficando para semente. Mas o que mais doía era não ter com quem conversar. As pessoas não falavam mais. Apenas ouviam rádios, televisões, aparelhos de nomes estrangeiros. E ele só, resto imortal, pronto para morrer e a morte se escondendo dele de forma tão absurda.

Até as jararacas e os cascavéis corriam com medo dele quando deveriam picá-lo para ver a queda. Isso era sofrimento demais. Ter que aturar a vida todas as manhãs. Levantar-se e sentir-se um esquecido da natureza, um postergado do cão, uma peça de museu para Deus e seus anjos. De tanto durar, resolveu arranjar novos amigos ali mesmo entre as pedras, as árvores mais velhas e uma ponta de serra escravada. Descobriu que podia conversar com aqueles entes mudos e repartir com eles a sua angústia.

Foi conversando com esses seus companheiros que constatou serem todos marcados pelo sofrimento. Todos esquecidos e condenados em sobreviver, todos com dramas iguais aos seus. Aí Gerôncio foi muito feliz. De tanto ouvir histórias e principalmente de contar histórias foi emagrecendo até não precisar mais comer e ficar se alimentando só das histórias que contava e das que ouvia. Tanto emagreceu que ficou transparente, que ficou só sua voz impressa nas pedras e suas histórias soltas pelo mundo afora.

(Batista de Lima, Janeiro É Um Mês Que Não Sossega)

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado por Nilto Maciel.
Imagem criada por JFeldman com IA Microsoft Bing

Batista de Lima (1949)

José Batista de Lima, nascido em Lavras da Mangabeira/CE (1949), embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza.  

Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. Pertence à Academia Cearense de Letras, à Academia Cearense da Língua Portuguesa e à Academia Lavrense de Letras. Desde 2009, é conselheiro do Conselho Estadual de Educação. Publicou Poemas: Miranças (1977); Os Viventes da Serra Negra (1981); Engenho (1984); Janeiro da Encarnação (1995); O sol de cada coisa (2008); Tiborna (2014); Concerto para espantos (2015). Contos: O pescador de Tabocal (1997); Janeiro é um mês que não sossega (2002); Assim falou Sipaúbas (2019). Ensaio: Os vazios repletos (1993); Moreira Campos, a escritura da ordem e da desordem (1993); O fio e a meada (2000); Uma casa toda mãe (2022).

Sua fortuna crítica está reunida no livro Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima (Fortaleza, Unifor, 2006), organizado por Nilto Maciel.

A presença do poeta é visível em muitas histórias. O ensaísta talvez se mostre quando a narrativa se aproxima da crônica social e política.

Batista de Lima apresenta os contos quase sempre em diversas ações, isto é, em diversos tempos e lugares. Em “Os Cavaleiros da Lua”, que oferece características de lenda, vemos: “Deu-se que Adamastor parou de respirar, porque morrer mesmo ela já havia morrido desde que voltara do seringal.” A linguagem, porém, é sempre poética e muito particular.

Ora em Tabocal, ora em Sipaúbas, é nesses lugarejos do sertão cearense que as personagens se movimentam, nascem, vivem e morrem. O sertão é pintado sem exageros de descrição. Há somente referências a objetos, situações, seres, como parte do cenário ou das vidas dos personagens: tapiocas, esterco de vaca, cuia de leite mungido, pé de muçambê, palhoça à beira do açude, vagens de feijão, queijo de cabras, coité. Nada de descrições inúteis ou excessivas.

Os personagens de Batista são homens e mulheres do sertão ou das cidades pequenas, até mesmo aqueles já desaparecidos, já tornados mitos, como Lampião. Alguns desses personagens, sempre secundários, se repetem em diversas histórias: padre Inácio é “habilidoso” em “A Festa de Janeiro”, aparece “já velho e ocupado com o rebanho em Cristo, de Tabocal”, em “O Pícaro”; Coronel Nicodemos, ou Demo, é o mandão do lugar, Tabocal; Dona Bilinha, mulher do coronel; major Apolônio; padre Otávio, Cabo Zezinho; e outros. Isto dá aos livros de Batista certa unidade, embora os dramas não se misturem, não se confundam.

Muitos dos personagens Batistianos têm características próprias - são caracteres. Como Maria Raimunda, a vendedora de abelhas (“As abelhas”). Ou como os padres, coronéis, doutores, fabricantes de cachaça, valentões, afinadores de violões, coveiros e até animais. A presença de cobras, cachorros e gatos é frequente na obra de Batista de Lima: em “O Lobisomem de Tabocal” o bicho “veio dos lados do cemitério, já trazendo uma porção de cachorros latindo desesperados.” Dona Margarida, na história de título homônimo, herda do terceiro marido alguns cachorros. Em “Bonifácio bom de fala” vê-se “um amontoado de cachorros”. Em “A botija” há também a presença desses animais. Há até um conto de gatos, que passam a dominar a casa de Macário (“Os gatos”).

O universo de Batista de Lima é habitado por criaturas às vezes picarescas, mas sempre muito reais. O narrador-escritor ou o narrador-onisciente atua como um memorialista muito cioso da verdade dos fatos ou um repórter astuto. Em vista disso, aqui e ali o leitor perceberá na narrativa o tom da crônica, como em “O Hospital Fantasma” e “O saque a Sipaúbas”. Neste a problemática da seca é o drama central: “Os sipaubenses comiam calango, miolo de mandacaru, carne de urubu, mas resistiam.” Na mesma linha está “Os sobreviventes”.

Alguns dos personagens de Batista são caricaturas, como Manilton, cheio de manias. Outros, como Macário, têm desenhado o comportamento ou o caráter e não tanto a fisionomia ou a aparência. Em vista disso, muitas histórias são de personagem. Malaquias, de “O póstumo”, por exemplo, “era morto de preguiça.” O conto de personagem é o mais frequente na obra de Batista. Muitos têm por título o nome ou o apelido do protagonista (“Carmina”, “Banana”); outros, a condição física, social (“O velho”, “O delegado”, “O insepulto”).

O tempo em Batista de Lima é dilatado. As ações de um mesmo drama são narradas de forma sucinta, ligadas uma a outra, porém entre uma e outra o tempo é de dias, meses, anos. Em “O Pícaro” no primeiro parágrafo Dona Bilinha “estava sentindo as primeiras dores do primeiro parto”. No segundo parágrafo o rebento, Caetano, “foi dado para criar ao Pe. Inácio”. No outro, o menino já crescido, bebia o vinho, comia as hóstias e roubava o dinheiro da coleta da igreja. Mais adiante, aos doze anos, virou lavador de pratos e limpador de banheiro em um bar. Mais adiante, tornou-se guia de cego. Termina sargento e provável candidato a prefeito. Em “O Afinador de Violões” a vida do protagonista daria um romance, como diz o povo. A história tem começo como muitas narrativas populares: “Naquele tempo”. A seguir o afinador de violões “tornou-se cassaco”. As referências ao passar do tempo são frequentes na narrativa: “Dias depois”, “O afinador começou a afinar-se de carnes”, “voltou para a companhia da mãe”, “Os anos se passaram”, “Foram anos e anos de afinação”, “Certa feita”, “Uma noite de agosto”. Essa variedade de ações/tempos está presente em muitos outros contos, como um recurso de linguagem utilizado com insistência.

Batista não se atém ao instante, ao flash, ao momento de tensão da trama. Importa a ele o ritmo do calendário, o passar do tempo. Em “Julho é um mês que não tem fim” o próprio título é significativo. Todo o passado do lugarejo é “revivido” como num sonho. Os mortos revivem suas façanhas. (…) “a noite continuou por dias e anos transfigurados. Muitas moagens e histórias se repetiram no pequeno espaço de horas.” Em “Dona Margarida” o mesmo processo: “em outros tempos”, “uns foram embora”, “de tempos em tempos”, “já enterrara dois maridos”, “chegou a festa do padroeiro”, “depois de alguns anos”.

Há dois tipos de contos nos dois livros de Batista de Lima: as histórias do sertão e as narrativas poéticas, quase poemas em prosa, como “Vertigem” e “A pedra”. Nestes a ausência de trama e de personagens chama a atenção do leitor. Às vezes há personagens, como em “O eremita”. São personagens-símbolo: Deus e Canlima, o eremita. Em “O capote” a protagonista Marta é uma menina. E tudo gira em torno de sua amizade com um capote, isto é, galinha d’angola. A narrativa se desenrola com suavidade e poesia até o desfecho, quando Marta se sente adolescente, “o capote já velho”: “Certa feita, depois de algum tempo,” o capote “amanheceu morto.” A menina “não derramou sequer uma lágrima. Andava muito entretida em se arrumar, ultimamente.” Vê-se também o fantástico ou o fantasioso em algumas narrativas, como “O encontro” e “Projeção”. Esses contos geralmente não se localizam no campo, no sertão, constituindo, pois, uma minoria no conjunto das histórias.

O conto sem enredo, de personagens sem nome, também compõe a obra de Batista, como “O cordeiro”. Algumas dessas peças podem ser denominadas parábolas, como “A Carta”. E o que dizer de uma história cujo personagem principal é a morte? Em “Lindolhar” o protagonista se vê “perseguido” ou “olhado” pela morte: (…) “ela estava no último galho da árvore”, como se fosse uma coruja. “Ela estava lá, antiga como a noite, afinando as garras para o bote”, como uma cobra.

E como o contista arranja os desenlaces de suas narrativas? Muitas vezes o desfecho é a morte do protagonista, como em “Luizão”, “O Lobisomem de Tabocal”, “O Afinador de Violões”. Em outros contos, no entanto, nada de tragédia no desenlace. Em “Os Enganos das Aparências” o suposto machão soldado Viriato, “só músculos”, o “gigante”, é flagrado em banho com negro Terto no banheiro de Dona Maroca. “Naquela mesma noite” “desapareceu pelos fundos da pensão”, “levando nas costas a mala de roupas e de surpreendentes mistérios.” Esse tipo de humor contido está presente em diversas narrativas, como “O Herói que não Retorna”, “Manilton”, “Os Azares do Aspirante”. Desfecho com humor se vê também em “O falso crime do Padre Arnaldo”. Talvez não tanto com humor é o desenlace de “Os gatos”.

Batista utiliza sempre a narração como forma básica de contar as suas histórias. Não há diálogos explícitos, diretos. E isto se dá tanto do ponto de vista onisciente como da primeira pessoa. As narrativas são constituídas basicamente de narrações, com raríssimas descrições e falas em discurso indireto.

Batista de Lima também cultiva o miniconto, embora os outros não sejam longos. Uns poucos alcançam mais de três páginas de livro, como “Janeiro é um mês que não termina”. Quanto mais reduzido, mais o conto tende a se afastar da forma tradicional. O miniconto às vezes se aproxima do poema. É o que se vê em Batista. É o poeta dando a mão ao narrador ou ao prosador. E ambos caminhando de cabeça erguida, certos de estarem cumprindo suas missões no vasto mundo das letras.

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado pelo autor.
– Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto; 
– Academia Cearense de Letras.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 23: Questionamentos, Amor e Maçãs

Isadora, belamente vestida com um esvoaçante vestido branco, sentada debaixo de seu Ipê amarelo que ficava ao lado da casa, admirando as borboletas que bailavam ao seu redor, se perdeu em reflexões sobre os paradoxos da vida...

“A vida é uma mulher cujo essência chama-se mistério. Ela é poderosa, simples, e ao mesmo tempo, caprichosa... Em meio a belos jardins, de flores e doces frutos, surgem serpentes, e o sonho da existência, de repente, vira pesadelo. E nos força a viver de apelos, campanhas por dias melhores..." 

Mas todos os dias deveriam ser bons. Caso contrário, qual seria o sentido dos desejos que brotam espontaneamente dentro da gente, assim, inocentemente, quase sem querer? Mas o ser humano é parte de tudo isso. Fruto extraído dessa mulher poderosa. Ela é esposa de Deus. Sim, porque Ele é masculino. E suas feições não são encontradas nas pétalas das flores, todavia, o espírito das feições femininas existentes no mundo é sua companheira de missão.    

Ai, esses pensamentos que me vêm não sei de onde, descoordenadamente me perturbam. Será que sou louca? Não. Não sou. Os loucos não possuem consciência de suas insanidades mentais. Mas minha alma precisa entender o porquê do bem e do mal. Se o bem fala sobre o que é certo, por que tenho que deixar o amor verdadeiro para unir-me ao amor que é de mentira? 

Nesse momento, seus questionamentos são interrompidos pela voz amorosa de Genuíno:

- Isadora...

Ela se move com agilidade olhando para trás.

- O que fazes aqui? 

- Desculpa, prenda! Tinha que te ver. Ficamos de dar continuidade à nossa conversa.

- Sim. Mas não aqui...

- Se ofereço riscos à tua paz, posso ir embora. 

- Não. Só as mulheres estão em casa. Senta aqui comigo.

Eles ficam frente a frente, e antes que a coragem se esvaísse de suas veias, Isadora disparou:

- Vou me casar com outro.

- Mentira - disse Genuíno meio sem saber o que pensar...

- Verdade. Tenho um noivo. Não o amo, mas infelizmente sou obrigada a casar com ele. 

- Por quê? O que posso fazer para livrar-te dessa situação sem sentido? 

- Nada.

- O que te prende a essa pessoa? 

Isadora faz as revelações e, aos prantos, eles se abraçam. 

Depois de um longo abraço, e de deixarem, o pranto rolar, trocam um beijo cheio de sentimentos... 

Num impulso Genuíno puxou Isadora pela mão.

- Onde vamos? - perguntou ela.

- Vamos terminar o que iniciamos debaixo daquele doce pé de macieira. 

- Queria eu, ser um homem branco, fazendeiro, para livrar-te desta situação – disse ele acariciando a face de sua amada, olhando profundamente em seus olhos ao retornarem ao local do primeiro encontro.

- Tu és perfeito. Um sonho de ser humano.

- Tu que és uma flor de perfeição. Estás a fazer um grande sacrifício por honra e amor à tua mãe. Isso é muito nobre. 

- Eu te amo tanto...

- Eu também. E já que não podemos ficar juntos, quero te amar pelo menos uma vez para levar junto de mim a lembrança de teus carinhos, de teu sabor, de teu perfume...

- Sinto o mesmo desejo, mas temo, sem querer, estar me comportando de forma desonrosa como meu pai.

- Não há desonra alguma em se entregar por amor. Teu pai, sim, desonra, não apenas a família, mas todas as outras mulheres que são usadas por ele. Não sinta raiva delas. Elas também são vítimas de uma sociedade hipócrita. E em sua maioria, não são felizes. Nem teu corpo nem tua alma pertencerão a esse tal de Fábio. Somos um do outro. Para sempre...

A natureza, protetora dos amantes, preparou o cenário para que o amor pudesse acontecer... 

O entardecer se aproximou de mansinho pintando um céu de horizonte rosado e fundo vermelho paixão! Vermelho coração... 

Com elegância, o sol se debruçou sobre a terra reverenciando e consagrando o amor daquele casal perfeito. Os pássaros não querendo atrapalhar, se recolherem em seus ninhos. E assim, em meio a toda aquela beleza, sentindo o cheiro das maçãs, Genuíno e Isadora, sem medos, sem preconceitos, sem pensar no depois, se entregaram ao amor... 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 26

 

Mensagem na Garrafa – 48 -


Machado de Assis
(Joaquim Maria Machado de Assis)
Rio de Janeiro/RJ,  1839 - 1908

UM ANJO

(À Memória de minha irmã)

FOSTE A ROSA desfolhada
Na urna da eternidade
Pr'a sorrir mais animada,
Mais bela, mais perfumada
Lá na etérea imensidade.

Rasgaste o manto da vida,
E anjo subiste ao céu
Como a flor enlanguecida
E pouco a pouco morreu!
Que o vento pô-la caída

Tu'alma foi um perfume
Erguido ao sólio divino;
Levada ao celeste cume
C'os Anjos oraste ao Nume
Nas harmonias dum hino.

Alheia ao mundo devasso,
Passaste a vida sorrindo;
Derribou-te, ó ave, um braço,
Mas abrindo asas no espaço
Ao céu voaste, anjo lindo.

Esse invólucro mundano
Trocaste por outro véu;
Deste negro pego insano
Não sofreste o menor dano
Que tu'alma era do Céu.

Foste a rosa desfolhada
Na urna da eternidade
Pra sorrir mais animada
Mais bela, mais perfumada
Lá na etérea imensidade.

Milton S. Souza (Banho de espuma)

Amanhecia, mas ainda estava escuro. Nenhum vento. A calmaria era total na beira do mar naquela manhã de março. O sol, preguiçosamente, banhava seu rosto no horizonte sem ondas. E as ondas calmas vinham, em procissão, beijar meus pés semi-enterrados na areia molhada, como que querendo saudar o raro veranista naquela solidão de pós-verão. Foi então que avistei, ao lado de uma grande pedra, um verdadeiro colchão de espumas. O mar, durante a noite, por certo, deveria ter depositado carinhosamente aquela espuma na beira da praia, bem assim como a insônia, que me fizera sair a caminhar tão cedo, depositara uma grande quantidade de saudade tua no meu coração. 

Com os pés, comecei a abrir sulcos na espuma. Sem querer querendo, terminei escrevendo o teu nome, deixando as letras marcadas na areia, cercada de espuma. A primeira estrela da manhã chegou mais perto para ler o meu poema-espuma. Seus raios cintilaram nas gotas brilhantes, tingindo de prata aquele nome que um sonho quase impossível havia gravado, bem forte, no meu coração.

Sentei na pedra molhada e tentei desenhar mentalmente, na neblina da manhã, o teu rosto que tanto me fascina. Uma gaivota passou voando, atravessando com suas asas brancas o teu sorriso imaginário. Uma leve brisa começou a soprar quando a saudade quis brincar de transformar em lágrimas o nó que eu trazia preso na garganta. Aos poucos, o vento foi ficando mais forte, fazendo a espuma voar e despedaçando as letras do teu nome. Os flocos de espuma subiram no ar e foram se chocar contra o meu rosto e com meu corpo semi-despido. Em poucos segundos, meus ombros e meus braços nus ficaram tomados por pedaços de espuma gelada. A gaivota voltou, piando alto, como que zombando dos soluços que brotavam de dentro de mim.

Chorei naquele exato momento, porque entendi a mensagem que a natureza estava me passando. Entendi que o sentimento que eu sinto por ti é do tamanho daquele mar que, calmo ou violento, não para nunca de se agitar, exatamente como o meu coração. Entendi também que o aquilo que sentias por mim era como a espuma que esvoaçava: algo frágil, inconstante e facilmente levado pelo vento da tua vontade para qualquer lado. Talvez por isso, tantas vezes, inventavas desvios para teus passos não cruzarem com os meus. Outras vezes, porém, parecendo querer brincar comigo, atiçavas perigosamente o fogo que ardia dentro de mim.

O sol até resolveu despontar mais rápido, quando sentiu as lágrimas deslizando pelo meu rosto. Carinhosamente, fez com que seus raios deslizassem até mim, secando com o seu calor as minha lágrimas salgadas. O mar, avançando rapidamente, destroçou o resto das espumas que ainda mantinham alguns pedaços das letras do teu nome. E, depois, voltou a beijar levemente os meus pés, completando aquele conforto que eu estava necessitando. Não sei por quanto tempo fiquei fazendo parte daquele belo quadro composto por Deus. Só sei que, aos poucos, fui me acalmando e fazendo aquela saudade doída voar ao lado daquela gaivota errante. Lentamente, segui caminhando pela beira do mar, mas sempre mantendo os olhos presos no horizonte, na esperança inútil de ver o teu vulto surgindo, como numa miragem, naquela faixa de areia tingida de dourado pela luz do sol…

Fonte: Recanto das Letras do autor
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/68473

Caldeirão Poético LXXIII


Nilo Aparecida Pinto
Caratinga/MG, 1915-1974, Rio de Janeiro/RJ

CASA GRANDE

A Casa Grande, na fazenda, eu via
abrindo ao sol, com modos patriarcais,
o alpendre, onde meu pai lia e relia
"A Morgadinha dos Canaviais"...

Ficava ao pé da serra, em que eu ouvia,
naqueles dias calmos e rurais,
a cachoeira que, a saltar, gemia,
como eu a dor do que não volta mais.

Meu pai envelheceu. Desfez-se a casa.
Nem ele mais sua bondade expande,
porque a morte o levou, num rufio de asa...

Mas, se o procuro — o seu amor me atrai —,
parece ainda maior que a Casa Grande
a sepultura estreita de meu pai!…
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Nilo Bruzzi
Pomba/MG, 1879 – 1978, Rio de Janeiro/RJ

A VOZ AMIGA

— “Tu que passaste a vida sem roseiras
que dessem flores para perfumá-la;
tu que tiveste sombras agoureiras
que emudeceram sempre a tua fala;

tu que desceste mudo as cordilheiras
de teu sonho — gigante cor de opala;
que sozinho choraste horas inteiras
por entre a pompa, a graça, o brilho, a gala;

toma o meu braço carinhoso e amigo
e caminhemos com tranquilidade,
toma o meu braço e eu morrerei contigo...”

— Parei diante da sombra triste e esguia...
Era a voz compassiva da Saudade
que estas palavras mansas me dizia...
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Octávio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019

MINHA LEI

Venho de Zambi, Pai Onipotente,
e de Oxalá, o Rei maior da Umbanda,
e de meu Pai Xangô, do sol nascente,
da pedreira, e dos raios que comanda.

Sou filho dessa Oxum bela e potente,
faz do amor as armas da demanda.
Senhora universal da água corrente
sentada está no trono de Aruanda!

Para seguir tranquilo a minha estrada,
levo também a proteção firmada
da Orixá do trovão, lansã querida.

A todos querer bem é minha sorte!
E assim eu hei de ser até que a morte
venha mostrar-me o rumo de outra vida...
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Osório Dutra
Vassouras/RJ, 1889 – 1968

TAPIR SELVAGEM

Deve correr dentro das minhas veias
o sangue puro de um tapir selvagem:
amo a tranquilidade das aldeias
e a música do vento na ramagem.

Indiferente às intenções alheias,
bebo a luz policroma da paisagem,
e durmo sobre a colcha das areias,
tendo a lua, que sonha, por miragem.

Bendito seja este rincão fecundo,
que põe, assim, dentro de cada planta,
toda a harmonia de um pequeno mundo!

Sei que sou rude. A minha voz espanta,
mas o meu coração guarda no fundo
a doçura de um córrego que canta.
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Palmira Wanderley de França
Natal/RN, 1894 – 1978

PITANGUEIRA

Termina Agosto... A pitangueira flora...
A umbela verde cobre-se de alvura;
e, antes que de Setembro finde a aurora,
enrubesce a pitanga... Está madura.

Da flor, o fruto é de esmeralda, agora...
Num topázio, depois, se transfigura,
e, pouco a pouco, um sol de estio a cora,
dando a cor dos rubis à carnadura.

A pele é fina, a carne é veludosa,
vermelha como o sangue, perfumosa
como se humana a sua carne fosse...

Do fruto, às vezes, roxo como o aspargo,
a polpa tem um travo doce-amargo,
— o sabor da Saudade, amargo e doce...
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Rodrigues Crespo
Campos/RJ, 1896 –  1976, Belo Horizonte/MG

A INCÓGNITA DO SER

Viver, ou não viver? Que mais importa?
Que tem por fim a vida? A própria vida?
Entramos, ao nascer, por uma porta,
e só na morte achamos a saída...

Viver só por viver não nos conforta.
Falta-nos uma causa mais subida.
Mas, o que fica da carcaça morta?
Restará algo da expressão perdida?

Consola-nos a hipótese da alma.
Mas, por que sobrevive? Por que existe?
Só tem por meta uma existência calma?

Corpo ou alma, afinal, em que consiste
sua razão de ser? E sua palma?
Ah! Como a vida, na incerteza, é triste!

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.