artigo de Luís Carlos Patraquim
-----------------------------
Deixemos de lado a blague, para despistar, sobre a novela futurista, sub-título do autor a esta sua e nossa, por mérito dele, “Cidade dos Espelhos”
No princípio é a estranheza. Deixemos de lado a blague, para despistar, sobre a novela futurista, sub-título do autor a esta sua e nossa, por mérito dele, “Cidade dos Espelhos”. Como nos ensinou Sherlock Holmes, as primeiras evidências são, a mais das vezes, o engodo para a fulguração final da razão omnisciente que, sob a trama de enganos, falsas pistas, equívocos, repõe a ordem de um percurso, apazigua a intencional e prazeirosa perturbação de um mundo. Saudoso otimismo positivista que a incerteza apartou do nosso convívio.
Sobre os futurismos, russo, italiano à la Marineti, que custeou a sua publicação como publicidade redigida nas páginas do Figaro, à solitária aventura dos poetas do Orpheu, ficamos conversados. Maiakovski sucumbe aos seus Banhos; Marineti veste a camisa negra, e os poetas de Orpheu, de ouvido em concha para o ranger das máquinas quase inexistentes no país das uvas e estáticos ante a dramalogia em slow motion, deambulam pelos cafés da Baixa, fazem painéis, bravatas, sacodem a poeira e o cisco da Casa do Ser. Que às vezes é um galinheiro.
Mas é nessa sub-titulada designação que se revela a primeira subtil ironia de João Paulo Borges Coelho. Se ele fosse americano e andasse de casaco à banda pelos pubs de Greenwich Village, lia-se este livro e dizia-se: ora aqui está, o gajo está meio gótico, não te parece? Ou então convocava-se o Ray Bradbury: há uma poética; não, não se trata da particular ficção científica do autor de Farenheit e das Crônicas Marcianas, mas é amazing, meu, andar pela avenida Louise – um achado! – e afagar aquelas árvores de plástico, pressentir as aves agourentas, imaginar a insólita casa cor de mostarda. Será literatura fantástica? E as aves agourentas? E o “aerostato negro com as insígnias da República” que se desinfla e se estatela sobre os subúrbios? Será o colibri uma variação do corvo de Edgar Allen Poe? OMar de Sargaços, um dos capítulos, será uma homenagem ao reggae, uma alusão corsária, uma ondulada e ondulante meditação pós-colonial, uma paráfrase a Jane Rhys?
Devo dizer que não pretendo ter uma resposta nem julgo interessante essa cômoda classificação por gêneros ou atmosferas de alguma moda.
Este livro está cheio de sinais, de pontilhados exercícios de crueldade, a do mundo rarefeito onde estas personagens se movem. Alcandorado na irrevogável exigência de se demarcar de todas as antinomias, redutoras, enganosas, e alheio aos marcadores genéticos a que o câanon obriga para a jubilação identitária – moçambicaníssima, já se vê - João Paulo Borges Coelho prefere a cegueira dos sábios. No cabo do texto, avesso aos muitos ventos da História, conhecedor dela como é por ofício civil, olha o farol que, como dizia Sebastião Alba, “há séculos /que emite/ sinais indecifráveis”. Percebê-los, adivinhar-lhes ou inventar-lhes sentidos, vem sendo a empresa do autor de “As Visitas do Dr. Valdez”, desses majestosos Setentrião e Meridião onde um mesmo rio os une, masculino e feminino, como exemplarmente nos ensinou.
“Cidade dos Espelhos”. Côncavos? Convexos? Jogo de intersecções de refletidas imagens, floresta de enganos ou caminhos da floresta, os de Heidegger, recolhido na sua cabana depois da queda? Jogo e tensão do desejo como na sequência da Dama de Xangai, com um Orson Welles à procura da sua Rita Hayworth? Os espelhos…. Em Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luís Borges fala-se deles. “Devo à conjugação de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta de Uqbar”, confessa o autor de ficções, onde o texto se inclui. Estava o argentino com o amigo Bioy Casares. “Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares – prossegue Borges – recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. Também podia ir-se pela mão de Alice, mas deixemos Carroll e a sua dama de copas.
Porque tudo tem um começo, arregalamos os olhos, semi-cerramo-los, névoas e brilhos sucedem-se ante o insólito atentado às portas do Templo. Énoite, uma noite depois daquela, a antiquíssima, e deparamo-nos com o mais insólito atentado. Oautor descreve-o com alguma minúcia: umas bolinhas, que parecem de sabão, umas seringas e uma espécie de gosma, venenosa, presumimos, que três bradas – Caia, Laissone e Jeremias – sopram com uma cana. Terrorismo bacteriológico mas executado como se de uma brincadeira de crianças se tratasse. Em banda desenhada, com recorte ao fundo das colunas em sombra, veríamos a silhueta dos três da vida airada com as canas em pose e as bolinhas flanando – brilhantes ou brilhosas, como preferirem – em contraste com o escuro do mistério e o balão encimando o quadro com a onomatopeia “floc! floc!”. Éisto uma novela futurista?
E que cidade! Reduzida a si, sem topônimo, com uma parte alta, uma parte baixa, um subúrbio com paredes de chapas onduladas, ferinas, segundo o narrador. Um subúrbio assim descrito: “Os escanzelados candeeiros públicos delimitam no seu pé (o pé de Laissone) pequenas ilhas de luz sobre as quais esvoaçam, enlouquecidos, os insectos”.E, como se não bastasse, há ainda o som de um trompete. Énesta triangulação de percursos, com a sempre omnipresente avenida Louise – um achado, volto repetir – que as três personagens correm, fogem, deparam-se com gente estranha – não propriamente zombies – mas algo excêntricas, no sentido etimológico da palavra: avós desfiando o tempo, uma indefinida baba tecida agora de vazios, meninas e generais à varanda da sua obra de plástico. Caia, Laissne, Jeremias, são a única mobilidade acossada. E correm. Quando um deles é aprisionado e tropeça na palavra – para confessar, claro – a palavra é violentada. Apalavra não é da ordem da conotação. Querem-na confessional. O acontecimento tinha de ser com Jeremias. Ele faz, para si o filme breve da sua vida, mas, escreve o narrador, os torcionários “queriam dele uma torrente de palavras dóceis, que se dissolvessem numa certa lógica, mas o que o prisioneiro lhes entrega são palavras que engolem o acto, o transformam em algo que já não é acto mas uma qualquer delirante construção”. “Metáforas?”, pergunta ele, e a inquirição é-nos devolvida. Começamos a coçar a cabeça. Arre!, exclamariam, num certo antigamente da vida, os desaparecidos velhos de uma certa cidade que conhecemos. Mas Jeremias faz como Bartleby, embora o seu “preferia não… “ seja de outra ordem, porque impossível. Então, os “fragmentos de que falava – observa o narrador – são agora esquírolas que tomam conta das palavras, e as palavras são só letras soltas e sangue e guinchos e dentes e baba que excitam os torturadores, e por fim uma massa amorfa que flui devagar pelas comissuras dos lábios desfraldados, sem que seja necessário empurrá-la. Um cálido magma, quando muito um espaço mastigável”.
Grave circunstância nesta cidade futurada, a agrilhoada ou conspurcada condição das palavras. Talvez seja por isso que o som do trompete acentua a melancolia dos seres, enovelados numa espécie de tempo aracnídeo, onde há encarquilhadas mãos como raízes expostas segurando o fio, um fio de Ariadne que, suspeita-se, se perdeu.
Não obstante as vestes ditas futuristas, há nesta “Cidade dos Espelhos” a dimensão da catástrofe tal como a define Aristóteles na sua “Poética”. Cuja, consistia “numa acção perniciosa e dolorosa, como são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes”. A catástrofe introduz a perturbação que prenuncia o desfecho, ou o desenlace. “O messias está exangue – escreve o narrador – sem condições para prosseguir o encantamento do mundo. A multidão murmura, relutante em dispersar.”
Desconfio que, no meio dela, anônimo e discreto, um certo poeta, tendo assistido ao julgamento dos personagens, percorrida a avenida Louise, constatado um inusitado frêmito nas estátuas perfiladas, escutado o “lamento sincopado das chapas onduladas”, percebida a seiva inquieta por dentro das árvores sintéticas da cidade alta, esse certo poeta com uma ideia de prosa, preferiu, apesar de tudo apiedar-se da “cidade dos espelhos”. “Por isso – condescende – ela ficará em suspenso, perdida neste jogo de reflexos, enquanto das falhas das paredes e dos passeios, dos frisos dos edifícios e dos castigados olhos das estátuas, não rebentarem novas ervas e destas surgirem as sementes de futuros personagens marchando lentamente em procissão até ao templo das colunas, com as suas cores e os seus rumores”.
Ele é a criança neotécnica, a pedamorfose, de que fala Giorgio Agamben, “a que pode dar atenção àquilo que não está escrito”. E prossegue: “Acultura e a espiritualidade genuína são aquelas que não esquecem esta originária vocação infantil da linguagem humana, enquanto uma cultura degradada caracteriza-se por tentar imitar um gérmen natural para transmitir valores imortais e codificados. (…) Em qualquer parte de nós o distraído rapazinho neotécnico continua o seu jogo real. (…) Só no dia em que essa originária não-latência infantil fosse verdadeiramente, vertiginosamente, assumida como tal, em que se recuperasse o tempo e o menino Aíon fosse distraído do seu jogo, os homens poderiam construir uma história e uma língua universais, já não diferentes, e pôr fim à sua errância nas tradições. Este autêntico apelo da humanidade em relação ao soma infantil tem um nome: o pensamento, ou seja, a política”.
Mas as crianças brincam e podem ser cruéis. Deste originalíssimo livro de João Paulo Borges Coelho, onde o puro jogo de muitos sinais mescla-se com a ironia, terna é ela, onde na rarefacção que o perpassa, a memória institui-se como ágon, e percebe-se uma visualidade que a arte da escrita nos oferece, entre a imobilidade misteriosa de certos quadros de Paul Delvaux e a convulsão interior da Cathédral Engloutie, de Débussy, deste livro pode-se dizer que é um dos mais originais da literatura moçambicana.
Razão tem Nazir Can quando observa que “ a chegada de JPBC produz um saudável abalo no universo literário moçambicano. Estamos certos que a sua escrita, como ocorre com todos os tremores, marcará uma época”.
O autor que me perdoe por citar e falar, não de livros e seus fazedores, mas, seguindo na esteira deste seu entusiástico e competente estudioso, o inclua onde ele, afinal, também está.
João Paulo Borges Coelho é hoje dono de uma obra que, como afirma Nazir Can, “faz da relativização ou mesmo da desmistificação de toda a certeza, principalmente das certezas históricas e causas ideológicas de sentido único, a sua pedra angular. Esta opção, de resto, permite ao autor projetar um olhar novo sobre a História de Moçambique, um olhar que transcende a fácil dicotomia (entre “bons” e “maus”, “colonizadores” e “colonizados”) e que, simultaneamente, evita a facilidade do “indiferenciado no diverso”. Finalmente, JPBC consegue encontrar um caminho original para desenvolver a sua escrita, sem ter que passar pelo filtro de justificações normalmente exigidas ao escritor africano: porta-voz autorizado do lugar; missão social e compromisso político, que sustentam e outorgam sentido à sua vida literária, etc.
Parafraseando Rimbaud, é na liberdade livre que está o compromisso do autor de “Cidade dos Espelhos”. Só me resta saudá-lo com admiração e amizade. E convidar-vos à leitura
Fonte:
Revista Literas (Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona). Maputo, 30 de agosto de 2011. ano 1. n.8. enviada por Amosse Mucavele (coordenador). Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa.
-----------------------------
Deixemos de lado a blague, para despistar, sobre a novela futurista, sub-título do autor a esta sua e nossa, por mérito dele, “Cidade dos Espelhos”
No princípio é a estranheza. Deixemos de lado a blague, para despistar, sobre a novela futurista, sub-título do autor a esta sua e nossa, por mérito dele, “Cidade dos Espelhos”. Como nos ensinou Sherlock Holmes, as primeiras evidências são, a mais das vezes, o engodo para a fulguração final da razão omnisciente que, sob a trama de enganos, falsas pistas, equívocos, repõe a ordem de um percurso, apazigua a intencional e prazeirosa perturbação de um mundo. Saudoso otimismo positivista que a incerteza apartou do nosso convívio.
Sobre os futurismos, russo, italiano à la Marineti, que custeou a sua publicação como publicidade redigida nas páginas do Figaro, à solitária aventura dos poetas do Orpheu, ficamos conversados. Maiakovski sucumbe aos seus Banhos; Marineti veste a camisa negra, e os poetas de Orpheu, de ouvido em concha para o ranger das máquinas quase inexistentes no país das uvas e estáticos ante a dramalogia em slow motion, deambulam pelos cafés da Baixa, fazem painéis, bravatas, sacodem a poeira e o cisco da Casa do Ser. Que às vezes é um galinheiro.
Mas é nessa sub-titulada designação que se revela a primeira subtil ironia de João Paulo Borges Coelho. Se ele fosse americano e andasse de casaco à banda pelos pubs de Greenwich Village, lia-se este livro e dizia-se: ora aqui está, o gajo está meio gótico, não te parece? Ou então convocava-se o Ray Bradbury: há uma poética; não, não se trata da particular ficção científica do autor de Farenheit e das Crônicas Marcianas, mas é amazing, meu, andar pela avenida Louise – um achado! – e afagar aquelas árvores de plástico, pressentir as aves agourentas, imaginar a insólita casa cor de mostarda. Será literatura fantástica? E as aves agourentas? E o “aerostato negro com as insígnias da República” que se desinfla e se estatela sobre os subúrbios? Será o colibri uma variação do corvo de Edgar Allen Poe? OMar de Sargaços, um dos capítulos, será uma homenagem ao reggae, uma alusão corsária, uma ondulada e ondulante meditação pós-colonial, uma paráfrase a Jane Rhys?
Devo dizer que não pretendo ter uma resposta nem julgo interessante essa cômoda classificação por gêneros ou atmosferas de alguma moda.
Este livro está cheio de sinais, de pontilhados exercícios de crueldade, a do mundo rarefeito onde estas personagens se movem. Alcandorado na irrevogável exigência de se demarcar de todas as antinomias, redutoras, enganosas, e alheio aos marcadores genéticos a que o câanon obriga para a jubilação identitária – moçambicaníssima, já se vê - João Paulo Borges Coelho prefere a cegueira dos sábios. No cabo do texto, avesso aos muitos ventos da História, conhecedor dela como é por ofício civil, olha o farol que, como dizia Sebastião Alba, “há séculos /que emite/ sinais indecifráveis”. Percebê-los, adivinhar-lhes ou inventar-lhes sentidos, vem sendo a empresa do autor de “As Visitas do Dr. Valdez”, desses majestosos Setentrião e Meridião onde um mesmo rio os une, masculino e feminino, como exemplarmente nos ensinou.
“Cidade dos Espelhos”. Côncavos? Convexos? Jogo de intersecções de refletidas imagens, floresta de enganos ou caminhos da floresta, os de Heidegger, recolhido na sua cabana depois da queda? Jogo e tensão do desejo como na sequência da Dama de Xangai, com um Orson Welles à procura da sua Rita Hayworth? Os espelhos…. Em Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luís Borges fala-se deles. “Devo à conjugação de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta de Uqbar”, confessa o autor de ficções, onde o texto se inclui. Estava o argentino com o amigo Bioy Casares. “Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares – prossegue Borges – recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. Também podia ir-se pela mão de Alice, mas deixemos Carroll e a sua dama de copas.
Porque tudo tem um começo, arregalamos os olhos, semi-cerramo-los, névoas e brilhos sucedem-se ante o insólito atentado às portas do Templo. Énoite, uma noite depois daquela, a antiquíssima, e deparamo-nos com o mais insólito atentado. Oautor descreve-o com alguma minúcia: umas bolinhas, que parecem de sabão, umas seringas e uma espécie de gosma, venenosa, presumimos, que três bradas – Caia, Laissone e Jeremias – sopram com uma cana. Terrorismo bacteriológico mas executado como se de uma brincadeira de crianças se tratasse. Em banda desenhada, com recorte ao fundo das colunas em sombra, veríamos a silhueta dos três da vida airada com as canas em pose e as bolinhas flanando – brilhantes ou brilhosas, como preferirem – em contraste com o escuro do mistério e o balão encimando o quadro com a onomatopeia “floc! floc!”. Éisto uma novela futurista?
E que cidade! Reduzida a si, sem topônimo, com uma parte alta, uma parte baixa, um subúrbio com paredes de chapas onduladas, ferinas, segundo o narrador. Um subúrbio assim descrito: “Os escanzelados candeeiros públicos delimitam no seu pé (o pé de Laissone) pequenas ilhas de luz sobre as quais esvoaçam, enlouquecidos, os insectos”.E, como se não bastasse, há ainda o som de um trompete. Énesta triangulação de percursos, com a sempre omnipresente avenida Louise – um achado, volto repetir – que as três personagens correm, fogem, deparam-se com gente estranha – não propriamente zombies – mas algo excêntricas, no sentido etimológico da palavra: avós desfiando o tempo, uma indefinida baba tecida agora de vazios, meninas e generais à varanda da sua obra de plástico. Caia, Laissne, Jeremias, são a única mobilidade acossada. E correm. Quando um deles é aprisionado e tropeça na palavra – para confessar, claro – a palavra é violentada. Apalavra não é da ordem da conotação. Querem-na confessional. O acontecimento tinha de ser com Jeremias. Ele faz, para si o filme breve da sua vida, mas, escreve o narrador, os torcionários “queriam dele uma torrente de palavras dóceis, que se dissolvessem numa certa lógica, mas o que o prisioneiro lhes entrega são palavras que engolem o acto, o transformam em algo que já não é acto mas uma qualquer delirante construção”. “Metáforas?”, pergunta ele, e a inquirição é-nos devolvida. Começamos a coçar a cabeça. Arre!, exclamariam, num certo antigamente da vida, os desaparecidos velhos de uma certa cidade que conhecemos. Mas Jeremias faz como Bartleby, embora o seu “preferia não… “ seja de outra ordem, porque impossível. Então, os “fragmentos de que falava – observa o narrador – são agora esquírolas que tomam conta das palavras, e as palavras são só letras soltas e sangue e guinchos e dentes e baba que excitam os torturadores, e por fim uma massa amorfa que flui devagar pelas comissuras dos lábios desfraldados, sem que seja necessário empurrá-la. Um cálido magma, quando muito um espaço mastigável”.
Grave circunstância nesta cidade futurada, a agrilhoada ou conspurcada condição das palavras. Talvez seja por isso que o som do trompete acentua a melancolia dos seres, enovelados numa espécie de tempo aracnídeo, onde há encarquilhadas mãos como raízes expostas segurando o fio, um fio de Ariadne que, suspeita-se, se perdeu.
Não obstante as vestes ditas futuristas, há nesta “Cidade dos Espelhos” a dimensão da catástrofe tal como a define Aristóteles na sua “Poética”. Cuja, consistia “numa acção perniciosa e dolorosa, como são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes”. A catástrofe introduz a perturbação que prenuncia o desfecho, ou o desenlace. “O messias está exangue – escreve o narrador – sem condições para prosseguir o encantamento do mundo. A multidão murmura, relutante em dispersar.”
Desconfio que, no meio dela, anônimo e discreto, um certo poeta, tendo assistido ao julgamento dos personagens, percorrida a avenida Louise, constatado um inusitado frêmito nas estátuas perfiladas, escutado o “lamento sincopado das chapas onduladas”, percebida a seiva inquieta por dentro das árvores sintéticas da cidade alta, esse certo poeta com uma ideia de prosa, preferiu, apesar de tudo apiedar-se da “cidade dos espelhos”. “Por isso – condescende – ela ficará em suspenso, perdida neste jogo de reflexos, enquanto das falhas das paredes e dos passeios, dos frisos dos edifícios e dos castigados olhos das estátuas, não rebentarem novas ervas e destas surgirem as sementes de futuros personagens marchando lentamente em procissão até ao templo das colunas, com as suas cores e os seus rumores”.
Ele é a criança neotécnica, a pedamorfose, de que fala Giorgio Agamben, “a que pode dar atenção àquilo que não está escrito”. E prossegue: “Acultura e a espiritualidade genuína são aquelas que não esquecem esta originária vocação infantil da linguagem humana, enquanto uma cultura degradada caracteriza-se por tentar imitar um gérmen natural para transmitir valores imortais e codificados. (…) Em qualquer parte de nós o distraído rapazinho neotécnico continua o seu jogo real. (…) Só no dia em que essa originária não-latência infantil fosse verdadeiramente, vertiginosamente, assumida como tal, em que se recuperasse o tempo e o menino Aíon fosse distraído do seu jogo, os homens poderiam construir uma história e uma língua universais, já não diferentes, e pôr fim à sua errância nas tradições. Este autêntico apelo da humanidade em relação ao soma infantil tem um nome: o pensamento, ou seja, a política”.
Mas as crianças brincam e podem ser cruéis. Deste originalíssimo livro de João Paulo Borges Coelho, onde o puro jogo de muitos sinais mescla-se com a ironia, terna é ela, onde na rarefacção que o perpassa, a memória institui-se como ágon, e percebe-se uma visualidade que a arte da escrita nos oferece, entre a imobilidade misteriosa de certos quadros de Paul Delvaux e a convulsão interior da Cathédral Engloutie, de Débussy, deste livro pode-se dizer que é um dos mais originais da literatura moçambicana.
Razão tem Nazir Can quando observa que “ a chegada de JPBC produz um saudável abalo no universo literário moçambicano. Estamos certos que a sua escrita, como ocorre com todos os tremores, marcará uma época”.
O autor que me perdoe por citar e falar, não de livros e seus fazedores, mas, seguindo na esteira deste seu entusiástico e competente estudioso, o inclua onde ele, afinal, também está.
João Paulo Borges Coelho é hoje dono de uma obra que, como afirma Nazir Can, “faz da relativização ou mesmo da desmistificação de toda a certeza, principalmente das certezas históricas e causas ideológicas de sentido único, a sua pedra angular. Esta opção, de resto, permite ao autor projetar um olhar novo sobre a História de Moçambique, um olhar que transcende a fácil dicotomia (entre “bons” e “maus”, “colonizadores” e “colonizados”) e que, simultaneamente, evita a facilidade do “indiferenciado no diverso”. Finalmente, JPBC consegue encontrar um caminho original para desenvolver a sua escrita, sem ter que passar pelo filtro de justificações normalmente exigidas ao escritor africano: porta-voz autorizado do lugar; missão social e compromisso político, que sustentam e outorgam sentido à sua vida literária, etc.
Parafraseando Rimbaud, é na liberdade livre que está o compromisso do autor de “Cidade dos Espelhos”. Só me resta saudá-lo com admiração e amizade. E convidar-vos à leitura
Fonte:
Revista Literas (Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona). Maputo, 30 de agosto de 2011. ano 1. n.8. enviada por Amosse Mucavele (coordenador). Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário