domingo, 17 de junho de 2018

Mário de Andrade (O Besouro e a Rosa)

Belazarte me contou:

Não acredito em bicho maligno mas besouro, não sei não. Olhe o que sucedeu com a Rosa... Dezoito anos. E não sabia que os tinha. Ninguém reparara nisso. Nem dona Carlotinha nem dona Ana, entretanto já velhuscas e solteironas, ambas quarenta e muito. Rosa viera pra companhia delas aos sete anos quando lhe morreu a mãe. Morreu ou deu a filha que é a mesma coisa que morrer. Rosa crescia. O português adorável do tipo dela se desbastava aos poucos das vaguezas físicas da infância. Dez anos, quatorze anos, quinze... Afinal dezoito em maio passado. Porém Rosa continuava com sete, pelo menos no que faz a alma da gente. Servia sempre as duas solteironas com a mesma fantasia caprichosa da antiga Rosinha. Ora limpava bem a casa, ora mal. Às vezes se esquecia do paliteiro no botar a mesa pro almoço. E no quarto afagava com a mesma ignorância de mãe de brinquedo a mesma boneca, faz quanto tempo nem sei! lhe dera dona Carlotinha no intuito de se mostrar simpática. Parece incrível, não? porém nosso mundo está cheio desses incríveis: Rosa mocetona já, era infantil e de pureza infantil. Que as purezas como as morais são muitas e diferentes... Mudam com os tempos e com a idade da gente... Não devia ser assim, porém é assim, e não temos que discutir. Mas com dezoito anos em 1923, Rosa possuía a pureza das crianças dali... pela batalha do Riachuelo mais ou menos... Isso: das crianças de 1865. Rosa... que anacronismo!

Na casinha em que moravam as três, caminho da Lapa, a mocidade dela se desenvolvera só no corpo. Também saía pouco e a cidade era pra ela a viagem que a gente faz uma vez por ano quando muito, finados chegando. Então dona Ana e dona Carlotinha vestiam seda preta, sim senhor! botavam um sedume preto barulhando que era um desperdício. Rosa acompanhava as patroas na cassa mais novinha, levando os copos-de-leite e as avencas todas da horta. Iam no Araçá aonde repousava a lembrança do capitão Fragoso Vale, pai das duas tias. Junto do mármore raso dona Carlotinha e dona Ana choravam. Rosa chorava também, pra fazer companhia. Enxergava as outras chorando, imaginava que carecia chorar também, pronto! chororó... abria as torneirinhas dos olhos pretos pretos, que ficavam brilhando ainda mais. Depois visitavam comentando os túmulos endomingados. Aquele cheiro... Velas derretidas, famílias bivacando, afobação encrencada pra pegar o bonde... que atordoamento meu Deus! A impressão cheia de medos era desagradável.

Essa anualmente a viagem grande da Rosa. No mais: chegadas até a igreja da Lapa algum domingo solto e na Semana Santa. Rosa não sonhava nem matutava. Sempre tratando da horta e de dona Carlotinha. Tratando da janta e de dona Ana. Tudo com a mesma igualdade infantil que não implica desamor não. Nem era indiferença, era não imaginar as diferenças, isso sim. A gente bota dez dedos pra fazer comida, dois braços pra varrer a casa, um bocadinho de amizade pra fulano, três bocadinhos de amizade pra sicrano que é mais simpático, um olhar pra vista bonita do lado com o espigão de Nossa Senhora do Ó numa pasmaceira lá longe, e de supetão, zás! bota tudo no amor que nem no campista pra ver se pega uma cartada boa. Assim é que fazemos... A Rosa não fazia. Era sempre o mesmo bocado de corpo que ela punha em todas as coisas: dedos braços vista e boca. Chorava com isso e com o mesmo isso tratava de dona Carlotinha. Indistinta e bem varridinha. Vazia. Uma freirinha. O mundo não existia pra... qual freira! santinha de igreja perdida nos arredores de Évora. Falo da santinha representativa que está no altar, feita de massa pintada. A outra, a representada, você bem sabe: está lá no céu não intercedendo pela gente... Rosa se carecesse intercedia. Porém sem saber por quê. Intercedia com o mesmo pedaço de corpo dedos braços vista e boca sem mais nada. A pureza, a infantilidade, a pobreza-de-espírito se vidravam numa redoma que a separava da vida. Vizinhança? Só a casinha além, na mesma rua sem calçamento, barro escuro, verde de capim livre. A viela era engolida num rompante pelo chinfrim civilizado da rua dos bondes. Mas já na esquina a vendinha de seu Costa impedia Rosa de entrar na rua dos bondes. E seu Costa passava dos cinquenta, viúvo sem filhos, pitando num cachimbo fedido. Rosa parava ali. A venda movia toda a dinâmica alimentar da existência de dona Ana, de dona Carlotinha e dela. E isso nas horas apressadas da manhã, depois de ferver o leite que o leiteiro deixava muito cedo no portão.

Rosa saudava as vizinhas da outra casa. De longe em longe parava um minuto conversando com a Ricardina. Porém não tinha assunto, que que havia de fazer? partia depressa. Com essas despreocupações de viver e de gostar da vida, como é que podia reparar na própria mocidade! não podia. Só quem pôs reparo nisso foi o João. De primeiro ele enrolava os dois pães no papel acinzentado e atirava o embrulho na varanda. Batia pra saberem e ia-se embora tlindliirim dlimdlrim, na carrocinha dele. Só quando a chuva era de vento, esperava com o embrulho na mão.

— Bom-dia.

— Bom-dia.

— Que chuva.

— Um horror.

— Até amanhã.

— Até amanhã.

Porém duma feita, quando embrulhava os pães na carrocinha, percebeu Rosa que voltava da venda. Esperou muito naturalmente, não era nenhum malcriado não. O sol dava de chapa no corpo que vinha vindo. Foi então que João pôs reparo na mudança da Rosa, estava outra. Inteiramente mulher com pernas bem delineadas e dois seios agudos se contando na lisura da blusa, que nem rubi de anel dentro da luva. Isto é... João não viu nada disso, estou fantasiando a história. Depois do século dezenove os contadores parece que se sentem na obrigação de esmiuçar com sem-vergonhice essas coisas. Nem aquela cor de maçã camoesa amorenada limpa... Nem aqueles olhos de esplendor solar... João reparou apenas que tinha um mal-estar por dentro e concluiu que o mal-estar vinha da Rosa. Era a Rosa que estava dando aquilo nele não tem dúvida. Alastrou um riso perdido na cara. Foi-se embora tonto, sem nem falar bom-dia direito. Mas daí em diante não jogou mais os pães no passeio. Esperava que a Rosa viesse buscá-los das mãos dele.

— Bom-dia.

— Bom-dia. Por que não atirou?

— É... Pode sujar.

— Até amanhã.

— Até amanhã, Rosa!

Sentia o tal de mal-estar e ia-se embora.

João era quase uma Rosa também. Só que tinha pai e mãe, isso ensina a gente. E talvez por causa dos vinte anos... De deveras chegara nessa idade sem contato de mulher, porém os sonhos o atiçavam, vivia mordido de impaciências curtas. Porém fazia pão, entregava pão e dormia cedo. Domingo jogava futebol no Lapa Atlético. Quando descobriu que não podia mais viver sem a Rosa, confessou tudo pro pai.

— Pois casa, filho. É rapariga boa, não é?

— É, meu pai.

— Pois então casa! A padaria é tua mesmo... não tenho mais filhos... E se a rapariga é boa...

Nessa tarde dona Ana e dona Carlotinha recebiam a visita envergonhada do João. Que custo falar aquilo! Afinal quando elas adivinharam que aquele mocetão, manco na fala porém sereno de gestos, lhes levava a Rosa, se comoveram muito. Se comoveram porque acharam o caso muito bonito, muito comovente. E num instante repararam também que a criadinha estava uma mocetona já. Carecia se casar. Que maravilha, Rosa se casava! Havia de ter filhos! Elas seriam as madrinhas... Quase se desvirginavam no gozo de serem mães dos filhos da Rosinha. Se sentiam até abraçadas, apertadas e, cruz credo! faziam cada pecadão na inconsciência...

— Rosa!

— Senhora?

— Venha cá!

— Já vou, sim senhora!

Ainda não sabiam se o João era bom mas parecia. E queriam gozar o encafifamento de Rosa e do moço, que maravilha!

Apertados nos batentes da porta relumearam dezoito anos fresquinhos.

— Rosa, olhe aqui. O moço veio pedir você em casamento.

— Pedir o que!...

— O moço diz que quer casar com você.

Rosa fizera da boca uma roda vermelha. Os dentes regulares muito brancos. Não se envergonhou. Não abaixou os olhos. Rosa principiou a chorar. Fugiu pra dentro soluçando. Dona Carlotinha foi encontrar ela sentada na tripeça junto do fogão. Chorava gritadinho, soluçava aguçando os ombros, desamparada.

— Rosa, que é isso! Então é assim que se faz!? Se você não quer, fale!

— Não! Dona Carlotinha, não! Como é que vai ser! Eu não quero largar da senhora!...

Dona Carlotinha ponderou, gozou, aconselhou... Rosa não sabia pra onde ir se casasse, Rosa só sabia tratar de dona Carlotinha... Rosa pôs-se a chorar alto. Careceu tapar a boca dela, salvo seja! pra que o moço não escutasse, coitado! Afinal dona Ana veio saber o que sucedia, morta de curiosidade.

João ficou sozinho na sala, não sabia o que tinha acontecido lá dentro, mas porém adivinhando que lhe parecia que a Rosa não gostava dele.

Agora sim, estava mesmo atordoado. Ficou com vergonha da sala, de estar sozinho, não sei, foi pegando no chapéu e saindo num passo de boi-de-carro. Arredondava os olhos espantado. Agora percebia que gostava mesmo da Rosa. A tábua dera uma dor nele, o pobre!

Foi tarde de silêncio na casa dele. O pai praguejou, ofendeu a menina. Depois percebendo que aquilo fazia mal ao filho se calou.

No dia seguinte João atirou o pão no passeio e foi-se embora. Lhe dava de supetão uma coisa esquisita por dentro, vinha lá de baixo do corpo apertando, quase sufocava e a imagem da Rosa saía pelos olhos dele trelendo com a vida indiferente da rua e da entrega do pão. Graças a Deus que chegou em casa! Mas era muito sem letras nem cidade pra cultivar a tristeza. E Rosa não aparecia pra cultivar o desejo... No domingo ele foi um zagueiro estupendo. Por causa dele o Lapa Atlético venceu. Venceu porque derrepentemente ela aparecia no corpo dele e lhe dava aquela vontade, isto é, duas vontades: a... já sabida e outra, de esquecimento e continuar dominando a vida... Então ele via a bola, adivinhava pra que lado ela ia, se atirava, que lhe incomodava agora de levar pé na cara! quebrar a espinha! arrebentasse tudo! morresse! porém a bola não havia de entrar no gol. João naturalmente pensava que era por causa da bola.

Rosa quando viu que não deixava mesmo dona Ana e dona Carlotinha teve um alegrão. Cantou. Agora é que o besouro entra em cena... Rosa sentiu uma calma grande. E não pensou mais no João.

— Você se esqueceu do paliteiro outra vez!

— Dona Ana, me desculpe!

Continuou limpando a casa ora bem ora mal. Continuou ninando a boneca de louça. Continuou.

Essa noite muito quente, quis dormir com a janela aberta. Rolava satisfeita o corpo nu dentro da camisola, e depois dormiu. Um besouro entrou. Zzz, zzz, zzzuuuuuummmm, pá! Rosa dormida estremeceu à sensação daquelas pernas metálicas no colo. Abriu os olhos na escureza. O besouro passeava lentamente. Encontrou o orifício da camisola e avançava pelo vale ardente entre morros. Rosa imaginou uma mordida horrível no peito, sentou-se num pulo, comprimindo o colo. Com o movimento, o besouro se despegara da epiderme lisa e tombara na barriga dela, zzz tzzz... tz. Rosa soltou um grito agudíssimo. Caiu na cama se estorcendo. O bicho continuava descendo, tzz... Afinal se emaranhou tzz-tzz, estava preso. Rosa estirava as pernas com endurecimentos de ataque. Rolava. Caiu.

Dona Ana e dona Carlotinha vieram encontrá-la assim, espasmódica, com a espuma escorrendo do canto da boca. Olhos esgazeados relampejando que nem brasa. Mas como saber o que era! Rosa não falava, se contorcendo. Porém dona Ana orientada pelo gesto que a pobre repetia, descobriu o bicho. Arrancou-o com aspereza, aspereza pra livrar depressa a moça. E foi uma dificuldade acalmá-la... Ia sossegando sossegando... de repente voltava tudo e era tal-e-qual ataque, atirava as cobertas rosnava, se contorcendo, olhos revirados, hum... Terror sem fundamento, bem se vê. Nova trabalheira. Lavaram ela, dona Carlotinha se deu ao trabalho de acender fogo pra ter água morna que sossega mais, dizem. Trocaram a camisola, muita água com açúcar...

— Também por que você deixou janela aberta, Rosa...

Só umas duas horas depois tudo dormia na casa outra vez. Tudo não. Dois olhos fixando a treva, atentos a qualquer ressaibo perdido de luz e aos vultos silenciosos da escuridão. Rosa não dorme toda a noite. Afinal escuta os ruídos da casa acordando. Dona Ana vem saber. Rosa finge dormir, desarrazoadamente enraivecida. Tem um ódio daquela coroca! Tem nojo de dona Carlotinha... Ouve o estalo da lenha no fogo. Escuta o barulho do pão atirado contra a porta do passeio. Rosa esfrega os dedos fortemente pelo corpo. Se espreguiça. Afinal levantou.

Agora caminha mais pausado. Traz uma seriedade nunca vista ainda, na comissura dos lábios. Que negrores nas pálpebras! Pensa que vai trabalhar e trabalha. Limpa com dever a casa toda, botando dez dedos pra fazer a comida, botando dois braços pra varrer, botando os olhos na mesa pra não esquecer o paliteiro. Dona Carlotinha se resfriou. Pois Rosa lhe dá uma porção de amizade. Prepara chás pra ela. Senta na cabeceira da cama, velando muito, sem falar. As duas velhas olham pra ela ressabiadas. Não a reconhecem mais e têm medo da estranha. Com efeito Rosa mudou, é outra Rosa. E uma rosa aberta. Imperativa, enérgica. Se impõe. Dona Carlotinha tem medo de lhe perguntar se passou bem a noite. Dona Ana tem medo de lhe aconselhar que descanse mais. E sábado porém podia lavar a casa na segunda-feira... Rosa lava toda a casa como nunca lavou. Faz uma limpeza completa no próprio quarto. A boneca... Rosa lhe desgruda os últimos crespos da cabeça, gesto frio. Afunda um olho dela, portuguesmente, à Camões. Porém pensa que dona Carlotinha vai sentir. A gente nunca deve dar desgostos inúteis aos outros, a vida é já tão cheia deles!... pensa. Suspira. Esconde a boneca no fundo da canastra.

Quando foi dormir teve um pavor repentino: dormir só!... E se ficar solteira! O pensamento salta na cabeça dela assim, sem razão. Rosa tem um medo doloroso de ficar solteira. Um medo impaciente, sobretudo impaciente, de ficar solteira. Isso é medonho! É UMA VERGONHA!

Se vê bem que nunca tinha sofrido, a coitada! Toda a noite não dormiu. Não sei a que horas a cama se tornou insuportavelmente solitária pra ela. Se ergue. Escancara a janela, entra com o peito na noite, desesperadamente temerária. Rosa espera o besouro. Não tem besouros essa noite. Ficou se cansando naquela posição, à espera. Não sabia o que estava esperando. Nós é que sabemos, não? Porém o besouro não vinha mesmo. Era uma noite quente... A vida latejava num ardor de estrelas pipocantes imóveis. Um silêncio!... O sono de todos os homens, dormindo indiferentes, sem se amolar com ela... O cheiro de campo requeimado endurecia o ar que parara de circular, não entrava no peito! Não tinha mesmo nada na noite vazia. Rosa espera mais um poucadinho. Desiludida, se deita depois. Adormece agitada. Sonha misturas impossíveis. Sonha que acabaram todos os besouros desse mundo e que um grupo de moças caçoa dela zumbindo: Solteira! às gargalhadas. Chora em sonho.

No outro dia dona Ana pensa que carece passear a moça. Vão na missa. Rosa segue na frente e vai namorar todos os homens que encontra. Tem de prender um. Qualquer. Tem de prender um pra não ficar solteira. Na venda de seu Costa, Pedro Mulatão já veio beber a primeira pinga do dia. Rosa tira uma linha pra ele que mais parece de mulher-da-vida. Pedro Mulatão sente um desejo fácil daquele corpo, e segue atrás. Rosa sabe disso. Quem é aquele homem? Isso não sabe. Nem que soubesse do vagabundo e beberrão, é o primeiro homem que encontra, carece agarrá-lo sinão morre solteira. Agora não namorará mais ninguém. Se finge de inocente e virgem, riquezas que não tem mais... Porém é artista e representa. De vez em quando se vira pra olhar. Olhar dona Ana. Se ri pra ela nesse riso provocante que enche os corpos de vontade.

Na saída da missa outro olhar mais canalha ainda. Pedro Mulatão para na venda. Bebe mais e trama coisas feias. Rosa imagina que falta açúcar, só pra ir na venda. É Pedro que traz o embrulho, conversando. Convida-a pra de-noite. Ela recusa porque assim não casará. Isso pra ele é indiferente: casar ou não casar... Irá pedir.

Desta vez as duas tias nem chamam Rosa, homem repugnante não? Como casá-la com aqueles trinta-e-cinco anos!... No mínimo, de trinta-e-cinco pra quarenta. E mulato, amarelo pálido já descorado... pela pinga, Nossa Senhora!...

Desculpasse, porém a Rosa não queria casar. Então ela aparece e fala que quer casar com Pedro Mulatão. Elas não podem aconselhar nada diante dele, despedem Pedro. Vão tirar informações. Que volte na quinta-feira.

As informações são as que a gente imagina, péssimas. Vagabundo, chuva, mau-caráter, não serve não. Rosa chora. Há de casar com Pedro Mulatão e se não deixarem, ela foge. Dona Ana e dona Carlotinha cedem com a morte na alma.

Quando o João soube que a Rosa ia casar, teve um desespero na barriga. Saiu tonto, pra espairecer. Achou companheiros e se meteu na caninha. Deixaram ele por aí, sentado na guia da calçada, manhãzinha, podre de bebedeira. O rondante fez ele se erguer.

— Moço, não pode dormir nesse lugar não! Vá pra sua casa!

Ele partiu, chorando alto, falando que não tinha a culpa. Depois deitou no capim duma travessa e dormiu. O sol o chamou. Dor-de-cabeça, gosto ruim na boca...

E a vergonha. Nem sabe como entra em casa. O estrilo do pai é danado. Que insultos! seu filho disto, seu não-sei-que-mais, palavras feias que arrepiam...

Ninguém imaginaria que homem tão bom pudesse falar aquelas coisas. Ora! todo homem sabe bocagens, é só ter uma dor desesperada que elas saem. Porque o pai de João sofre deveras. Tanto como a mãe que apenas chora. Chora muito. João tem repugnância de se mesmo. De-tarde quando volta do serviço, a Carmela chama ele na cerca. Fala que João não deve de beber mais assim, porque a mãe chorou muito. Carmela chora também. João percebe que se beber outra vez, se prejudicará demais. Jura que não cai noutra, Carmela e ele suspiram se olhando. Ficam ali.

Ia me esquecendo da Rosa... Conto o resto do que sucedeu pro João um outro dia. Prepararam enxoval apressado pra ela, menos de mês. Ainda na véspera do casamento, dona Carlotinha insistiu com ela pra que mandasse o noivo embora. Pedro Mulatão era um infame, até gatuno, Deus me perdoe! Rosa não escutou nada. Bateu o pé. Quis casar e casou. Meia que sentia que estava errada porém não queria pensar e não pensava. As duas solteironas choraram muito quando ela partiu casada e vitoriosa, sem uma lágrima. Dura.

Rosa foi muito infeliz.

Fonte:
Mário de Andrade. Os Contos de Belazarte. 
RJ: Nova Fronteira.

sábado, 16 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 22

Imagem: Blog Genética para curiosos

Joaquim Moncks (Poesia e Poema não são Sinônimos)


“Quando – ativo ou passivo, desperto ou sonâmbulo – o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos em presença de algo radicalmente diferente: uma obra. Um poema é uma obra.”. Octavio Paz, filósofo mexicano.

POESIA é a celebração da palavra num andamento diferenciado do que utilizamos para a comunicação no dia-a-dia. Música que surge através do jogo de vocábulos numa encantada linguagem. Poesia é essa pronunciação rítmica que as palavras produzem. Poetizar é a vivificação da beleza linguística, a utilização da palavra em sua indumentária de festa e não a da lida quotidiana. Por esta razão, a constatação da Poesia não é uma situação comum, permanente. O pretenso criador há que estar possuído de uma inquietação incomum: haver entrado em “estado de poeticidade”.

POESIA, enfim, é a voz do ‘sentir’, aquilo que vem do âmago do ser, que é imaterial. É dessa maneira que a criatura humana libera os anseios e inquietações que povoam os esconderijos da sensibilidade. Quase sempre é o replicar da memória buscando augúrios de felicidade para enfrentar o momento hostil – difícil – em busca de um momentâneo estado de sublimação, resignação e/ou expectativa de que sobrevenha a alegria e o prazeroso estado espiritual compensatório do viver pessoalizado.

Para se chegar à POESIA, necessário se torna que tenhamos, no texto, alguns efeitos de estilo aos quais se chega através da presença das figuras de linguagem ou tropos – emprego de palavra ou expressão em sentido figurado – que levem à utilização dos vocábulos em sentido CONOTATIVO: “ideias e associações ligadas, pela experiência individual ou coletiva, a uma palavra”, segundo o Aurélio. O sentido figurado empresta ao pensamento energia, vivacidade, elementos de movimento. Pode conferir à frase beleza ou graça, ainda segundo a mesma respeitada fonte.

Na experiência diária – nas diversas situações da vida de relação – os vocábulos são utilizados no sentido DENOTATIVO, característico da linguagem usual, quotidiana. Nada de utilização, portanto, do sentido figurado. Muito pouco ou nada de Poesia.

O POEMA é a inquietação traduzida em vocábulos poéticos. Linguagem única para um momento único: a vida, em Poesia, surge do nada e canta a sua peculiar linguagem. É o homem pedindo socorro para o presente e hasteando o estandarte do Futuro.

O POEMA, mesmo tendo como assunto ou conteúdo situações do presente, sempre remeterá ao futuro. Isso ocorre logo após a confecção do poema e sua chegada ao mundo dos fatos, da realidade. Pelo corpo textual vindo a lume, há um novo mundo, um novo estado, uma nova coisa a ser mostrada para quem tem capacidade para traduzir o Novo: o mundo em reconstrução. Tanto pessoal quanto coletivo.

A POESIA se corporifica, materializa-se na voz do POEMA. Um é o continente, o outro o conteúdo, aquilo que se contém nalguma coisa. Poesia se identifica com Poeticidade. Também designa o gênero literário, com suas variadas espécies: haicai, acróstico, soneto, quadra, trova literária, etc., e, na contemporaneidade formal, o POEMA, composto de versos brancos, livres, sem rimas.

Portanto, a POESIA é imaterialidade e gênero literário. Já o POEMA é a materialidade concreta desse estado de poeticidade, composto por versos, expresso através de vocábulos. Palavra enfeitada para dizer do sentir e do sonho. Tudo para tornar o mundo mais bonito, mais palatável. Digno de ser vivido.

Fonte: 

Adolfo Coelho (História do Grão-de-Milho)

Era uma vez um casal que não tinha filhos. A mulher tanto pediu a Nossa Senhora que lhe desse um filho, ainda que fosse do tamanho de um grão de milho, que ao fim de nove meses ela pariu um filho, mas tão pequeno, tão pequeno que era mesmo do tamanho de um grão de milho. Foi-se passando tempo e o pequeno não crescia nada, e ficou sempre do mesmo tamanho.

O pai era lavrador e, quando andava a trabalhar no campo, era o Grão-de-Milho que lhe ia levar o jantar numa cesta, mas, como era tão pequeno, ninguém via o que fazia correr aquela cesta pela rua abaixo. O pai recomendava-lhe que não se chegasse para junto dos bois, mas uma vez que ele tinha ido levar o jantar ao pai, a brincar trepou em cima de uma folha de milho e um dos bois, pensando que era um grão de milho, lambeu-o com a língua. O pai quando quis voltar para casa, por mais que o procurasse não deu com ele, mas tanto chamou que por fim ouviu responder que o boi o tinha comido e estava dentro da tripa. 

O pai ficou muito aflito e matou logo ali o boi e começou a procurá-lo nas tripas, mas por mais que procurasse não o encontrou, até que deixou ficar tripas e tudo. De noite um lobo, atraído pelo cheiro da carne, veio e comeu as tripas do boi, e deitou a fugir. O lobo teve umas grandes dores de barriga e o Grão-de-Milho começou a gritar-lhe: "C... aí, c... aí!" 

Mas o lobo, ouvindo isto teve tanto medo que mais fugia e não podia evacuar. O Grão-de-Milho continuava a gritar: "C... aí, c... aí!", até que o lobo tão atrapalhado se viu que fez as suas necessidades.

O Grão-de-Milho logo que saiu, lavou-se muito bem lavado numa pocinha que ali estava e foi por ali afora. No meio do caminho encontrou uns almocreves (1) que levavam os machos carregados de dinheiro e juntou-se a eles (2). De repente, saltam uns ladrões, matam os almocreves e levam os machos com o dinheiro para uma casa que havia nuns pinheirais. O Grão-de-Milho, como ia metido num dos alforjes, foi também sem ser notado. Os ladrões despejaram o dinheiro em cima de uma grande mesa e começaram a contá-lo. O Grão-de-Milho pôs-se debaixo da mesa e começou a gritar: "Quem dá dé-reis, quem dá dé-reis!" Os ladrões, assim que ouviram isto, tiveram tanto medo que deitaram a fugir. Então o Grão-de-Milho ensacou o dinheiro, pô-lo em cima dos machos e foi para casa.

Quando lá chegou, era ainda de noite e bateu à porta. O pai perguntou: "Quem está aí?" e ele respondeu: "Sou eu, meu pai! Abra depressa!" O pai veio logo abrir a porta e o Grão-de-Milho contou-lhe então tudo, entregou-lhe os machos e o dinheiro e o lavrador, que era pobre, ficou muito rico.
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Notas:
1 – Almocreves: Os almocreves eram pessoas que conduziam animais de carga e/ou mercadorias de uma terra para outra em Portugal, durante a Idade Média e até tempos bem recentes - meados do século XX.
Numa época de comunicações limitadas, os almocreves eram essenciais como agentes de comunicação intercomunitária (além de serem indispensáveis ao abastecimento de bens às vilas e cidades). De entre as rotas de abastecimento mais importantes, destaque para as que levavam os almocreves a transportar peixe do litoral para o interior e, no sentido inverso, cereais. Não confundir almocreves com mercadores, pois que na maior parte das vezes os bens que transportavam não eram propriedade sua, embora fosse comum um almocreve ser também mercador. (Wikipedia)

2 Aqui algo disse Grão-de-Milho, mas o texto se perdeu.

Fonte:
Adolfo Coelho. Contos Populares Portugueses.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Malba Tahan (A Esposa e a Morte)

Na pequena aldeia Bhir, na índia, a encantadora Sanandá era citada como uma das cinco maravilhas da terra. Tinha dezoito anos, pertencia à casta dos brâmanes (1) e conservava-se solteira.

O velho Malua, seu pai, chamou-a um dia e disse-lhe:

— Querida Sanandá! Bem sei que tens no ombro direito o sinal eterno de Siva, mas apesar disso, sinto-me preocupado com o teu futuro. Todas as tuas amigas e companheiras casaram aos oito anos e tu ainda não escolheste marido. É forçoso que te resolvas, o mais cedo possível, a tomar estado.

Respondeu Sanandá:

— Três são, meu pai, os que me pretendem para esposa; Sardu, o belo mercador de Calcutá; Sivala, o rico e generoso senhor de Tandjor, e o inteligente Niassin, que construiu o templo de Bajapor. Asseguro que hesito, apenas por me sentir receosa ante as incertezas do futuro. Com qual dos três serei realmente feliz?

— Minha filha — volveu, tranquilo, o velho brâmane — não há motivos para dúvidas e hesitações. Conheço um sábio faquir que lê o futuro de qualquer pessoa. Tenho motivos para exigir tudo desse iogue (2), pois o livrei de morrer sob as garras de um tigre. Esse bom goru (3) é um santo e faz prodígios. Vou pedir-lhe que leia o teu futuro. Queres conhecer a sentença do iogue?

— Quero ouvi-lo, meu pai!

Duas semanas depois chegou a Bhir o milagroso iogue que sabia ler na areia o kismet(4) de qualquer mortal.

Sanandá trouxe-lhe um espelho redondo sobre cuja superfície polida o santo gora espalhou vagarosamente um punhado de areia branca e fina, que dizia ter sido colhida nas nascentes do Ganges, o rio sagrado. Sobre a leve camada de areia escreveu os nomes dos três jovens que pretendiam a mão da graciosa menina. Agitou depois o espelho, batendo nele onze vezes com as pontas dos dedos e pronunciando certas palavras mágicas.

A curiosidade de Sanandá era, nesse momento, sem limites.

Por fim, o iogue falou:

— Sardu, o mercador, pretende a tua mão de esposa. Se o aceitares para marido serás muito feliz durante três anos e três meses. Findo este prazo, Sardu, arrastado pelo seu espírito inquieto e volúvel, começará a ser infiel ao seu amor conjugal. E viverás, então, menina, muitos anos atormentada por um ciúme negro e torturante.

— Não me convém essa vida! — afirmou logo Sanandá. — Quero ter a meu lado um marido para sempre dedicado e fiel.

— Com Sivala, o rico proprietário — prosseguiu o iogue — o teu destino será completamente diverso. Viverás muito feliz durante dois anos e dois meses. Terminado esse período, o teu marido será tomado de grande paixão pela caça, e passará a viver nos juncais sombrios, preocupado com os laços e as armadilhas. Esquecido, por completo, do amor de sua esposa, o valente caçador só terá atenções para tigres e panteras...

— Detesto os homens indiferentes ao amor — replicou Sanandá. — Sonho com um companheiro que viva só para mim, que seja escravo de meus carinhos. Não quero ser esposa de Sivala!

— Resta-me, ainda — continuou o iogue — descrever a vida que terás como esposa de Niassin, o arquiteto. Casando com esse jovem terás sempre a teu lado um marido carinhoso, fiel e apaixonado. Durante um ano e um mês a tua existência será ditosa e invejável. Passado esse breve lapso de tempo, o teu marido será arrebatado pela Morte, e terás, ao perdê-lo, o coração despedaçado pela dor e pela saudade!

— Quero casar com Niassin! — exclamou, arrebatada, a bela Sanandá.

O judicioso Malua, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve:

— A tua decisão é quase uma loucura, minha filha! Medita um instante sobre o destino que te aguarda. Serás, certamente, mais feliz com Sardu, ou com Sivala, do que com aquele que impensadamente escolheste. Esposa de Niassin, que terás afinal? Pouco mais de dez meses de felicidade, e a seguir muitos anos esmagada por uma torturante e interminável viuvez! Procura ser sensata e razoável minha filha!

— Não, meu pai — discordou a jovem. — Já escolhi definitivamente o caminho a seguir. Prefiro a viuvez irremediável à infidelidade ou à indiferença do homem que soube conquistar o meu coração. Sinto-me apaixonada por Niassin e quero casar com ele. Peço, apenas, segredo absoluto para o meu caso e que a sentença proferida pelo iogue não chegue, de modo algum, ao conhecimento do meu noivo.

— Seja pois esse o teu kismet (4), ó encantadora Sanandá!

Dias depois realizou-se o casamento de Sanandá com Niassin. Dizem os poetas que até hoje, na índia, não houve dois esposos tão felizes e apaixonados.

Na noite em que terminava o prazo fixado pelo iogue, a jovem Sanandá deixou-se ficar de vigília na varanda de sua casa. E eis que vê surgir, como uma sombra, a figura inconfundível de Senônia, o Anjo da Morte (5).

    — Que desejas aqui, impiedoso Senônia? — perguntou Sanandá, dirigindo-se impávida ao mensageiro de Iama, o Deus dos Infernos.

O Anjo da Morte, erguendo o véu que lhe cobria o rosto formoso, respondeu, sereno:

— Venho buscar o teu marido, ó bondosa e querida Sanandá! A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

— Escuta, sedutor Senônia — retorquiu Sanandá. — Quando eu era pequenina, minha mãe deixou-me, certa vez, adormecida sobre um gramado, perto de nossa casa. O Touro Sagrado, ao sair do templo, na direção do pasto, passou sobre o meu corpo e pisou-me o braço. Conservo até hoje, junto ao ombro direito a marca de sua pata divina. Tenho, pois, o direito (por ter sido pisada pelo Touro Sagrado) de fazer um pedido ao enviado de Iama!

— Tens razão. Sanandá — respondeu o Anjo da Morte. — O Touro Sagrado concedeu-te esse grande privilégio. Podes pedir o que quiseres, exceto a vida de teu marido.

— Quero, ó poderoso Senônia! — declarou Sanandá — ter um filho aos trinta anos de idade!

Respondeu o Anjo da Morte:

— O teu pedido, menina, é sagrado, e serás atendida. Terás como desejas, um filho aos trinta e dois anos de idade!

E acrescentou:

— Vou agora buscar Niassin, o teu esposo!

— Espera, Senônia! — interveio com energia Sanandá. — Que vais fazer? Esqueceste de que eu pertenço à casta dos brâmanes. Uma mulher de minha casta (bem o sabes!) quando perde o marido não pode casar com outro homem. Como queres que eu tenha um filho aos trinta e dois anos, se pretendes arrebatar-me Niassin e condenar-me à eterna viuvez!

Senônia, o Anjo da Morte, mensageiro de lama, vencido pelo estratagema de Sanandá, viu-se forçado a partir, deixando em paz os dois esposos felizes.

Na índia, os velhos brâmanes, quando, repetem a singular história de amor de Sanandá, acrescentam, com a sabedoria dos vedas:

— A mulher apaixonada, para salvar o homem que ama é capaz de enganar a própria Morte!
___________________________
NOTAS:

1- Brâmane — o povo hindu é dividido em castas que vivem completamente separadas; não se admite, por exemplo, o casamento entre indivíduos de castas diferentes. Este sistema de distinções sociais funda-se, em parte, na diversidade de raças e, de certo modo, na natureza das profissões. As quatro mais importantes são: os Brâmanes (sacerdotes); os Chátrias (militares); os Vaicias (negociantes) e os Sudras (operários e servos domésticos). Além dessas quatro castas há uma infinidade de subcastas. Uma das castas mais ínfimas (mas não a mais Ínfima) é a dos párias.

2- Iogue — Indivíduo já iniciado nas grandes verdades filosóficas. Espírito adiantado.

3- Goru — Iluminado. Indivíduo capaz de atingir a um perfeito desenvolvimento espiritual.

4- Kismet — O destino. Corresponde ao maktub dos árabes. Fatalidade.

5- Senônia — É um dos auxiliares de lama, o décimo primeiro deus da mitologia hindu.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Trova 306 - Nei Garcez (Curitiba/PR)


Joaquim Moncks (Poemas Recolhidos)


TEMPO E CIRCUNSTÂNCIA

Um vale dentro de mim
conta a mesma história.
O grito sobre os muros,
a saudade dentro dos nervos.

Sempre e só uma história
de quem percorre o silêncio,
mundo de amores breves.

Pedaços de escória,
onde a saudade se esconde,
nicho de asperezas.

De mim,
o que surge é morno.
Triste o passar do tempo...

E essa tristeza infinda.

CANÇÃO SOLITÁRIA NO GUARUJÁ

“... Solidão é bicho arredio que só come na mão do dono.”
Márcia Peltier

A olhos vivos luze a noite:
uma vírgula de prata
surfa sobre nuvens.

Em cada recanto do mar
o sopro de Netuno
concentra navega/dores.

O canto é uma casca de noz
de um único rema/dor
que se adentra em direção
ao sol fundeado.

Afoga-se a nau
cuspindo ondas,
em vômito...

Sob o olhar complacente dos morros
sobre/vive a casca de nós.

Horizonte de eterno rema/dor.

A PROPÓSITO DE GIRASSÓIS E CHUVAS

Chega a tarde
com seus guarda-sóis de silêncios
em meio à chuva
molhando os girassóis

– suas corolas gigantes
longos pescoços verdes.

Detrás dos óculos baços
mareados pela chuva
sinto o beijo que ficou e
a indiscreta mão
contornando os quadris

– gata perdida num cipoal
de desejos.

Saudoso lembro que essa tarde
seria muito mais bela
se aqui estivesses
enlace esperança
ficaste em mim como um cipó

– um sino de safiras azuis
incrustado nas retinas.

Retirante de lembranças
bocejo sobre os girassóis
dobrando o torso cansado

– alhures a tarde vai fugindo
arrastando o véu e o buquê de noiva.

COMUNIDADE DE SOLITÁRIOS

Egoístas passageiros
desse século de agonias
somos solitários.

Inconsistentes rumores
codificados vagidos da fala humana:
amor e ódio, fio de linha
que navega o barco da vida
sob os desígnios da morte.

Sílaba sonora, solitária pluma
que me conduzes pelas alamedas da alma,
em que calçadas perdi-me?

Ajuntem-me rituais e contemplações:
concha que se assume abrindo mandíbulas
como a querer engolir o sonho.
Ajuntem-se contemplados rituais
em que me assumo: maresia e sustos.

Assomem de tudo, da boquiaberta concha,
as palmas, mãos vazias, compostas
– rito do amor –
passagem breve que fecha
para não dizer o verbo.

E contemplo,
como se de longe me visse,
a emoção sumindo
de contemplações e esperas.

A CABEÇA MAL DORMIDA

Silhuetas de casais através dos vidros
escancaram sombras
nas paredes do bar...

O real da ausência,
e a porta do boteco,
doida sobre os batentes,
a cada vulto que espreita,
fustigado pelo fog da invernia.

O insone mergulho na imagem
da amada
faz o sangue da uva tão precioso.

Cachos de sol na calçada, o dia moreno.
Na boca o sal ardente.
Somente o áspero cabernet sauvignon...

A cabeça mal dormida
e, agridoce,
a esperança indormida
na memória da língua...

Fontes:
– Joaquim Moncks. Força Centrífuga. 
Porto Alegre: Livraria e Editora P. Alegre, 2ª ed., 1979.
– Joaquim Moncks. O Poço das Almas. 
Pelotas: Universidade Federal, 2000.
– Joaquim Moncks. Bula de Remédio. 
Porto Alegre:Caravelas, 2009.

Joaquim Moncks (1946)

Oficial PM, na reserva. Advogado. Professor de Criminologia, Ciência e Direito Penitenciário, Direito Processual Penal Militar e Segurança Empresarial. Ativista Cultural. Agente Literário. Poeta. Declamador. Conferencista. Ensaísta. Analista literário. Jurado em certames literários, em festivais nativistas e eventos de poesia e música popular.

Nascido em Pelotas, em 29 de setembro de 1946. 

Tem a cidade de Canguçu, como sua segunda terra, onde iniciou sua carreira como oficial de polícia  militar, em 1969.

Deputado constituinte à Assembleia Legislativa do Estado, em 1989, presidiu a Comissão Temática de Educação, Desporto, Ciência, Tecnologia e Turismo, ajudando a forjar a carta constitucional do Rio Grande do Sul, pioneira em muitos aspectos, principalmente nas áreas da Educação e da Cultura.

Como deputado, foi autor de três importantes projetos, todos transformados em lei: o das PILCHAS GAÚCHAS, que oficializou a indumentária tradicional do homem e da mulher gaúcha, em respeito à ancestralidade e à tradição agro-pastoril do RS, como traje preferencial e de honra no território do Estado (1989); o que institui o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, o líder negro dos Palmares, como o DIA ESTADUAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA, em homenagem à negritude rio-grandense (pela primeira vez um líder político, no Brasil, lograva pedir desculpas pela escravidão imposta aos negros). Por fim, aquele que institui o dia 04 de Dezembro como o DIA DO ARTISTA REGIONALISTA E DO POETA REPENTISTA GAÚCHO (1989).

De 1973 até 2005, entregou ao público sete livros individuais, no gênero Poesia: ENSAIO LIVRE (plaqueta), 1973; FORÇA CENTRÍFUGA,1979; ITINERÁRIO (?), 1983; O EU APRISIONADO, 1986; O SÓTÃO DO MISTÉRIO, 1992; O POÇO DAS ALMAS, 2000, e OVO DE COLOMBO, 2005. Em 2008, publicou CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre Prosa e Poesia.

Recolheu material para o livro de poemas regionalistas DE QUANDO O CORAÇÃO ABRE A CORDEONA, iniciado em 1978, quando tinha intensa participação nos movimentos tradicionalista e nativista do RS. Em 1995, iniciara a coleta de textos para o livro OS MENESTRÉIS ESTÃO VIVOS,em que também predomina a prosa poética.

Vice-presidente da Academia Sul-Brasileira de Letras, em Pelotas. Da Academia Literária Gaúcha, do Partenon Literário, da Casa do Poeta Rio-Grandense e da Estância da Poesia Crioula, todas sediadas em Porto Alegre, onde reside.

Idealizador, fundador e primeiro presidente da Academia Brigadiana de História, Artes, Ciências e Letras – ABRHACEL, que congrega os intelectuais da Brigada Militar (PM) do Estado do RS.

Em outubro de 2003, assumiu a Coordenação das Casas de Poetas do Brasil – POEBRAS NACIONAL, entidade líder do associativismo literário no país, que contava com 26 sedes em 05 Estados da Federação à época da assunção de Joaquim Moncks na coordenação, e que está articulada em 74 sedes municipais em 20 estados-membros da Federação.

Editou, até agosto de 2005, o Suplemento Literário OFFICINARIUM – AMOR & INCLUSÃO SOCIAL, no Jornal RS LETRAS, de Porto Alegre/RS. Integra o Grupo dos "15 Renascidos", que publica desde março de 2005, a REVISTA CAOSÓTICA, em Porto Alegre, de circulação nacional.

Em 2006 esteve no II Encontro de Mestres do Mundo, em paralelo com o Fórum Cearense de Cultura Popular Tradicional, ocorridos em Russas e Limoeiro do Norte, no Ceará. Moncks foi declarado Mestre Nacional em Oralidade Poética Contemporânea, pela organização do evento, que reuniu a mestria do País nas modalidades de Mestres do Sagrado, dos Sons, do Corpo, das Mãos, da Oralidade e dos Sabores.

Em 2006, tomou posse como titular acadêmico na Academia Internacional Maçônica de Letras - AMIL. Diretor Nacional de Cultura da AMIL, em 2007.

Na execução do Projeto 24 HORAS DE POESIA PELA PAZ & JUSTIÇA SOCIAL, fez o aporte de 39 autores vinculados à Casa do Poeta Brasileiro – POEBRAS, na qualidade de Coordenador Nacional, em iniciativa do poeta e editor Rossyr Berny, pela Ed. Alcance, que, além de obra editada (400 páginas) reuniu 200 poetas durante a 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, nos dias 09 e 10 de novembro de 2007.

Fonte:

Nilto Maciel (A Ponte Sobre o Rio dos Amantes)

Só podiam estar em lua-de-mel. Tantos beijos, afagos, enlevados um do outro. Ela, vista de onde eu me achava, parecia ter seus vinte anos e ser muito bonita. Ou talvez se tratasse de beleza artística, cosmética, aparente. Ele também se vestia da mais fina elegância e dava ares de galã de cinema.

Não, não devia ser verdade. Eu sonhava ou talvez filmavam por ali. De onde haviam surgido? Por que tão bem aparentados naquele ermo? Ora, só havia o rio, a ponte onde eles namoravam e a estrada de que a ponte fazia parte. E mais nada. Só eles e eu. Eles esquecidos do mundo, eu todo ouvidos e olhos. E, apesar disso, eles não notaram minha presença, enquanto eu não perdia um só gesto deles, um só movimento das mãos, dos olhos, dos lábios.

Nunca gostei desse tipo de indiscrição, nem mesmo quando fui criança. Se algum dia me pus a espiar casais, o fiz da maneira mais discreta possível. Aquele, porém, assim tão esquisito, ali naquela ponte, eu não podia deixar de ver, olhar, espreitar. Sobretudo quando se atracavam, se grudavam num interminável abraço/beijo. Nem pareciam dois, antes um só ser – figura arrancada às mitologias, novo hermafrodita.

Imaginei despregá-los. Talvez até me agradecessem o ato humanitário. Dei o primeiro passo e eles, como se percebessem meus movimentos e minhas intenções, se separaram tristemente, feito irmãos siameses contra cuja ligação a medicina se interpusesse. E se olharam com toda a profundeza que existe no olhar de quem se olha ao espelho. Em seguida, com a lentidão dos eternos, ele afagou o cabelo dela, e sorriram, como crianças. E balbuciou não sei que palavras mágicas, cabalísticas.

Eu só via seus lábios a se despregarem e a se juntarem. Ela apenas sorria, um ingênuo e magnífico sorriso.

Súbito ele enfiou as mãos nos bolsos, com sofreguidão, e deles retirou cigarros e fósforos. A luz se fez e a fumaça do fósforo e depois a do cigarro aceso fizeram com que ela levasse as mãos aos olhos e abaixasse a cabeça. Já não adiantava, porém, nenhum gesto, porque a primeira baforada inundava-lhe a cabeleira, provocando-lhe afobação. Inquieto e nervoso, ele abanou o ar com tamanha precipitação que conseguiu esbofeteá-la. Atingida pela pesada mão dele, sentiu-se tonta e cambaleou.

Mais nervoso, ele jogou ao rio o cigarro e amparou-a, enquanto parecia pedir perdões. Ela, no entanto, desprendeu-se dele e, chorando, correu ao longo da ponte, para encostar-se ao extremo da murada, os olhos mergulhados nas águas.

A princípio, ele se pôs a gesticular e falar, sem sair do lugar onde estava desde quando os avistei. A seguir, caminhou no rumo dela. Ao alcançá-la, agarrou-a pelos braços e virou-a para si. Ela ainda chorava e se puseram a falar com muitos gestos, como se se ofendessem. Ele apontava para o rio, e ela, cheia de pavor, arregalou os olhos para o precipício. E exaltou-se, a chorar, a bradar, enquanto ele se calava e debruçava sobre a murada. Depois ele retirou do bolso um lenço vermelho e o entregou a ela.

Nenhum de nós percebeu, por isso, a aproximação de um carro. Eu mesmo só alertei quando ouvi uma buzinada. Voltei-me para o intruso. Ao volante do automóvel uma mulher pedia desculpas (de se ter aproximado, de haver buzinado?) e dava marcha à ré.

Quando me virei de novo para o casal, isto é, para a ponte, já a mulher e o homem haviam desaparecido. Nem sobre a ponte nem ao longo da estrada havia nenhum sinal deles. Corri até a murada e ainda pude avistá-los a nadar contra a correnteza.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Stanislaw Ponte Preta (História de um Nome)


No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. A Casa Demolida. 
RJ: Edição do Autor, 1963,

Dorothy Jansson Moretti (Chá da Tarde) III


Acomodada a um banquinho,
o meu ranguinho é um banquete;
porque à luz do lampiãozinho,
meu ranchinho é um palacete.

A lua, em passo indeciso,
muda o andante da sonata,
pondo pausas de improviso,
no pentagrama de prata.

A luz, filtrando entre os galhos,
borda a estampa definida
de uma colcha de retalhos
que enfeita meu chão sem vida.

Apático à seca e à geada,
com suor regando o chão bruto,
lavrador, de um quase nada,
faz surgir belo e bom fruto.

Baixam as brumas na serra,
lençol de gaze sutil,
que o Sol, amante da Terra,
ergue e lhe beija o perfil.

Como aos badalos do sino,
resiste o bronze ao fragor,
que aos embates do destino,
respondeu com fé e amor!

Erguem-se mãos numa prece,
se débil raio fulgura,
e por instantes aquece
uma vida triste e escura.

Fazer castelo no ar...
Ilusão da mocidade...
Nele só quem vai morar
é o fantasma da saudade.

Inquilina indesejável,
Vaidade tão bem se instala,
que o Coração, vulnerável,
já nem pensa em despejá-la.

Mesmo em sombria refrega,
ansiosa por segurança,
minha alma frágil se apega
ao frágil fio da esperança.

Não chores essa derrota
que te faz sentir-se morto!
O mar que engole uma frota
é o mesmo que leva ao porto.

O laço que nos estreita
já ficou tão apertado,
que nenhum de nós se ajeita,
sem ter o outro abraçado.

Paixão, fina taça cheia
de champanhe borbulhante;
fascínio que nos tonteia,
e se esvai no mesmo instante.

Palmos de terra em conflito,
conflito entre as religiões...
 e da paz mundial o grito
sufoca-se entre os trovões.

"Paz na Terra!"... E no entretanto,
o mundo, em afãs insanos,
há muito esqueceu o canto
que se ouviu há dois mil anos!

Persuasiva e eloquente,
saudade fala de afeto,
com sete letras, somente,
que valem todo o alfabeto.

Poeta enfrenta o destino,
sendo a alma repartida
entre badalos de sino
e desenganos da vida.

Por agradáveis caminhos,
quantos trilharam, comigo!
Mas na esteira dos espinhos
descobri: não tinha amigo!

Seja o mar agreste ou manso,
eu peço ao vento que deixe
regressar sempre ao remanso,
minha jangada e o bom peixe.

Tufões, motins, calmaria...
Intrépida, inflando a vela,
da gávea, enfim, ela ouvia:
" Terra à vista, Caravela!"

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Chá da tarde: trovas.
Itu/SP: Ottoni Editora, 2006.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Ernest Hemingway (O Casal Elliot)


O Casal Elliot tentou o possível para ter um filho. Tentou até quando a Sra. Elliot aguentou. Tentaram em Boston depois do casamento e tentaram na viagem de navio. No navio não tentaram muito porque a Sra. Elliot enjoou. Enjoou muito, e quando enjoava ficava enjoada como toda sulista. Sulista quer dizer do sul dos Estados Unidos. Como toda sulista a Sra. Elliot se desmantelou rapidamente ao balanço do mar, viajando de noite e levantando-se muito cedo. Muitos passageiros do navio pensavam que ela fosse a mãe de Elliot. Outros que sabiam que eram casados achavam que ela ia ter filho. Ela tinha quarenta anos. Os anos dela se precipitaram de repente quando ela iniciou a  viagem.

Parecia muito mais moça, aliás parecia nem ter idade, quando Elliot casou com ela depois de várias semanas de namoro, depois de tê-la conhecido há muito tempo na  casa de chá dela antes do beijo que lhe deu uma noite. 

Hubert Elliot fazia pós-graduação em direito em Harvard quando se casou. Era poeta e tinha uma renda de quase dez mil dólares anuais. Escrevia poemas longuíssimos e rápidos. Tinha vinte e cinco anos e nunca tinha ido para a cama com alguma mulher antes de se casar com a Sra. Elliot. Queria manter-se puro para levar à mulher a mesma pureza de corpo e mente que esperava dela. Dizia a si mesmo que isso era viver com decência. Namorou várias moças antes de beijar a Sra. Elliot e sempre dizia a elas numa ou noutra ocasião que levava vida limpa. Quase todas as moças se desinteressaram dele. Ele ficava admirado e até horrorizado  de ver como as moças ficam noivas e casam com homens que andaram se arrastando nas sarjetas. Uma vez tentou prevenir uma moça contra um homem que tinha sido um patife no colégio (disso ele tinha quase prova), e as consequências foram bem desagradáveis.

O nome da Sra. Elliot era Cornélia. Ela o ensinou a chamá-la de Calutina, apelido de sua família no sul. A mãe dele chorou quando ele apareceu em casa com Cornélia  depois do casamento, mas se recompôs quando soube que o casal ia viver no estrangeiro. Quando ele disse a Cornélia que havia se conservado limpo para ela, ela o chamou de "meu doce garoto" e o abraçou muito. Cornélia também era pura. "Me dê outro beijo  assim", ela pediu.

A princípio Hubert nem pensava em casar com Cornélia. Nunca pensou nela nesse sentido. Ela era uma boa amiga, e um dia, dançando com ela ao som de um gramofone na salinha que ficava no fundo da casa de chá enquanto uma amiga dela atendia na loja, ela olhou-o nos olhos e ele a beijou. Ele não se lembrava do momento em que  ficou decidido que iam se casar, mas casaram-se.

Passaram a primeira noite de casados em um hotel de Boston. Ambos ficaram desapontados, mas por fim Cornélia dormiu. Hubert não conseguiu dormir, e saiu várias vezes  para andar no corredor do hotel vestido com o novo roupão Jaeger que comprara para a viagem de núpcias. Nessas caminhadas pelo corredor viu todos os pares de sapatos, pequenos e grandes, nas portas dos quartos. com isso o coração dele disparou e ele voltou correndo para o seu quarto, mas Cornélia dormia. Não quis acordá-la, e logo tudo se acalmou e ele dormiu tranquilo.

No dia seguinte visitaram a mãe dele e no outro embarcaram para a Europa. Podiam tentar ter um filho, mas Cornélia não podia tentar com muita frequência, apesar de ambos quererem um filho mais do que tudo no mundo. Desembarcaram em Cherburgo e daí foram para Paris. Tentaram ter um filho em Paris. Depois resolveram ir a Dijon, onde havia cursos de verão e para onde tinham ido algumas pessoas que viajaram com eles no navio. Descobriram que nada havia para fazer em Dijon. Mas Hubert estava escrevendo muitos poemas que Cornélia datilografava para ele. Eram todos poemas muito compridos. Ele era muito exigente contra erros, e fazia Cornélia bater de novo uma página inteira se houvesse nela um erro. Ela chorava muito e os dois tentaram várias vezes ter um filho antes de deixar Dijon.

Voltaram a Paris, para onde voltava também a maioria dos amigos que tinham viajado no navio. Cansaram-se de Dijon, mas podiam dizer agora que, depois de Harvard ou Colúmbia ou Wabash, tinham estudado na Universidade de Dijon na Cote d'Or. Muitos teriam preferido ir para Languedoc, Montpellier ou Perpignan se houvesse universidades  nesses lugares. Mas são todos lugares distantes. Dijon fica apenas quatro horas e meia de Paris e tem jantar no trem.

Foram todos para o Café du Dome, evitando a Rotonde do outro lado da rua porque está sempre cheia de estrangeiros. Frequentaram a Rotonde por alguns dias antes de  os Elliot alugarem um castelo em Touraine que viram anunciado no Herald de Nova York. Elliot tinha amigos que agora admiravam a sua poesia, e a Sra. Elliot convencera  o marido a mandar vir de Boston a amiga dela que ficara tomando conta da casa de chá. com a chegada da amiga, a Sra. Elliot ficou mais alegre, e choraram juntas muitas vezes. A amiga era muitos anos mais velha do que Cornélia e a chamava de Doçura. Ela também era de velha família do sul.

Os três, e mais vários amigos de Elliot que o tratavam de Hubie, foram para o castelo em Touraine. Acharam Touraine um lugar plano e muito quente, parecido com  Kansas. Elliot já tinha poemas para um livro. Ia publicá-lo em Boston e até já mandara o cheque para o editor, com quem assinara contrato.

Aos poucos os amigos foram voltando para Paris. Touraine não correspondera ao que parecera ser no princípio. Logo todos os amigos partiram com um jovem rico, solteiro  e poeta para uma praia perto de Trouville. Foram todos muito felizes em Trouville. Elliot continuou no castelo de Touraine porque o alugara para o verão. Ele e a Sra. Elliot tentaram com afinco ter um filho na grande cama dura do enorme quarto  quente. A Sra. Elliot estava aprendendo a datilografar com os dez dedos, mas descobriu que, apesar de aumentar a velocidade, aumentava também a quantidade de erros. 

Agora a amiga datilografava praticamente todos os manuscritos. Era organizada e eficiente, e parecia gostar do trabalho. Elliot passou a beber vinho branco e viver num quarto separado. Escrevia muita poesia de noite, e no dia seguinte amanhecia exausto. A Sra. Elliot e a amiga agora  dormiam juntas na grande cama medieval. Choraram bonitos choros juntas. À noite jantavam todos no jardim debaixo de um plátano, o vento quente soprando, Elliot bebendo  vinho branco e a Sra. Elliot e a amiga conversando, todos muito felizes.

Fonte:
Ernest Hemingway. Contos.
Editora Civilização