segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 14 e 15


Da janela de minha casa, em Bagdá, observava uma tarde o vaivém dos aventureiros e beduínos, quando a minha atenção foi despertada por um fato que me pareceu estranho e muito singular.

Um homem, ricamente trajado, aproximou-se de um velho mercador que oferecia à venda, sob largo toldo, uma bela coleção de jarros de diversas formas. Depois de escolher, com um empenho que me pareceu exagerado, a peça que mais lhe interessava, o desconhecido pagou ao vendedor, sem hesitar, o preço exigido. Isso feito, encaminhou-se para o meio da rua e levantando, com ambas as mãos, o jarro atirou-o com toda força contra uma pedra, espatifando-o.

- É um louco! - murmurei. E, como não sei resistir à atração que sobre mim exerce o ímã da curiosidade, fui sem demora juntar-me ao grupo dos que faziam roda ao desatinado comprador.

O homem, entretanto, sem se preocupar com os árabes e cameleiros que bem de perto o observavam, abaixou-se e começou a ajuntar vagarosamente os cacos, como se lhe movesse a intenção de reconstituir o que ele mesmo destruíra inexplicavelmente.

Sheiks e caravaneiros que cruzavam a rua, vendo o caminho impedido pelo ajuntamento, gritavam do alto dos maharis (camelo de sela):

- Passagem! Eia! Por Alá! Passagem!

Ao cabo de algum tempo tornou-se enorme a confusão; os mais exaltados, proferindo insultos e blasfêmias de toda espécie, tentavam maldosamente atropelar e pisar com seus camelos os curiosos parados em grupos no meio da rua.

Temendo que aquele incidente degenerasse num conflito mais sério, deliberei intervir. Aproximei-me do desconhecido, tomei-o pelo braço e disse-lhe:

- Quero levar-vos, meu amigo, até a minha casa! Tenho em meu poder diversos jarros persas e chineses com desenhos admiráveis.

Sem se mostrar surpreendido ou contrariado pelo intempestivo convite, o jovem acompanhou-me sereno, sob o olhar atônito da multidão!

Ficamos sós. Ofereci-lhe, com demonstrações de alta cerimônia, tâmaras e água, mas ele nada aceitou. Quis apenas provar o pão e o sal da hospitalidade.

Teria, afinal, o meu estranho hóspede perdido o uso da razão?

- Onde estão os teus jarros chineses? - perguntou-me, percorrendo insistente, com o olhar, todos os cantos da sala.

- Peço perdão, ó sheik! - respondi -, faltei há pouco à verdade quando vos disse possuir jarros da China e da Pérsia. Queria, apenas, inventar um pretexto para arrancar-vos do meio daqueles exaltados muçulmanos! Bedal matghechoc ôlloh fê-vechoc! (1) Bem vejo que sois estrangeiro e desconheceis, por certo, o gênio arrebatado e violento do povo desta terra. Rara é a semana em que não assistimos, pelas praças e ruas, distúrbios e correrias. Às vezes, por causa de ninharias e frivolidades, homens são assassinados e ricas lojas saqueadas em poucos instantes. Os guardas não dominam os ímpetos sanguinários da população. Se houvesse, há pouco, um conflito com os caravaneiros turcos, a vossa vida estaria em grave perigo!

Riu o desconhecido ao ouvir a minha explicação.

- Uallah! (Por Deus!) - exclamou. - Julgavas, então, que eu fosse um fraco, um demente? É interessante! Vou contar-te a minha história e o motivo que me levou a quebrar um jarro no meio da rua.

Antes, porém, de dar início à prometida narrativa, o jovem maníaco sentou-se sobre uma almofada (que cuidadosamente ajeitara), colocou diante de si, sobre o tapete, dois fragmentos do jarro que ele, pouco antes, estilhaçara em plena rua e pôs-se a observá-los com a atenção de um obstinado.

Pareceu-me que seria mais delicado ou talvez mais cauteloso não perturbar o meu hóspede. Acomodei-me, sem-cerimônia, diante dele, acendi o meu delicioso narguilé e entreguei-me à tarefa de reparar e estudar as estranhas atitudes do lunático quebrador de vasos.

Teria, no máximo, trinta e um ou trinta e dois anos; seus olhos eram azulados; sua barba clara tinha reflexos cor de ouro vivo. Ostentava, com natural elegância, um aparatoso turbante de seda amarela no qual cintilava uma pequena pedra verde-escura.

De repente, a fisionomia do jovem tornou-se radiante, como se surpreendente inspiração o iluminasse. Ergueu o rosto e disse-me risonho:

- Afinal, o sultão perdoou o segundo condenado e este, sem querer, salvou o companheiro!

Aquela frase, para mim, não tinha sentido. Parecia disparate.

- Que sultão é esse, ó jovem? - interpelei-o com exagerada complacência, na certeza de que falava a um infeliz demente.

- Lamentável distração a minha! - exclamou com vivacidade. - Acreditei que fosses capaz de adivinhar os meus pensamentos e seguir o rumo da história que estive, aqui sentado, a arquitetar! Conforme prometi, vou contar-te o enredo de minha vida, e esclarecer os episódios que me forçaram a esfacelar o jarro diante da tenda de um mercador. E tudo compreenderás.

E na linguagem límpida e correta de um homem educado e culto, contou-me o seguinte:

Rafi An-Hari é o meu nome. Meu pai, que era um hábil negociante, fazia de quando em vez uma viagem a Sirendib (antigo nome do Ceilão), aonde ia em busca de especiarias que ele revendia com apreciáveis lucros aos seus agentes de Basra.

Quis, porém, o destino que meu pai viesse a morrer em consequência de um naufrágio, desaparecendo com todas as riquezas e dinheiro que transportava. Ficou a nossa família em completo desamparo. Forçado pelas necessidades da vida a procurar trabalho, empreguei-me como escriba em casa de um sheik muito rico chamado Ibraim Hata. 

Uma noite, conversando casualmente com o meu patrão, disse-lhe que sabia contar várias histórias.

- Se é verdade o que acabas de revelar - ajuntou o sheik -, vou dar-te, em minha casa, o emprego de contador de histórias. Passarás a ganhar o triplo de teu atual ordenado!

Aquela decisão do meu generoso amo causou-me não pequena alegria. Passei a exercer no palácio de Ibraim Hata um cargo invejável: contador de histórias. Todas as noites, invariavelmente, o sheik Ibraim reunia em sua casa vários parentes e amigos; e eu, na presença dos ilustres convidados, contava uma lenda ou uma fábula qualquer. 

Em geral, finda a narrativa, os ouvintes mais entusiasmados felicitavam-me com palavras de estímulo e davam-me ainda peças de ouro. Vivi assim, regaladamente, durante meses semeando na imaginação dos que me ouviam todos os sonhos e fantasias dos contos árabes.

Hoje, finalmente, pela manhã, fui avisado de que haviam chegado do Egito vários amigos do sheik, mercadores ricos e prestigiosos, que seriam incluídos entre os meus numerosos ouvintes para o conto da noite.

Em outra ocasião tal acontecimento seria para mim motivo de júbilo; agora, porém, veio causar-me um grande pavor, deixando-me o coração esmagado por uma angústia sem limites. E a razão é simples: tendo desfiado, sem cessar, até a minha última pérola, o colar das minhas histórias e fábulas, nada mais restava do meu tesouro! 

Como inventar, de momento, um conto interessante e maravilhoso capaz de agradar aos meus nobres e exigentes ouvintes?

Preocupado com a grave responsabilidade que pesava sobre meus ombros, deixei pela manhã o palácio de meu amo e deliberei caminhar ao acaso, pelas ruas da cidade, pois tinha a esperança de encontrar alguém que me pudesse tirar do embaraço em que me achava. Procurei nos cafés os contadores profissionais de maior fama e consultei-os sobre as melhores narrativas que conheciam; apesar da recompensa que eu prometia, não consegui ouvir de nenhum deles história que fosse nova para mim; citavam-me algumas - é verdade - mas todas elas já tinham sido por mim mesmo narradas ao sheik.

O desânimo - acompanhado de uma inquietação perturbadora - já começava a esmagar as fibras restantes de minha energia, quando me veio, não sei por quê, à lembrança, um antigo provérbio hindu: “Um jarro quebrado alguma coisa recorda.” “Quem sabe”, pensei, agarrando-me ainda uma vez à esperança, “quem sabe se um jarro partido não me fará lembrar uma história há muito esquecida no meu passado pela caravana indolente da memória?”

Conta-se (Alá, porém, é mais sábio!) que o famoso poeta Moslini ben el Valid foi, certa vez, vítima de grave atentado. Fizeram cair sobre ele, atirado do alto de um terraço, grande e pesadíssimo jarro. Veio o jarro espatifar-se aos pés do poeta e um dos estilhaços, saltando impelida pela violência do choque, foi ferir de leve o rosto de Moslini. O jarro, fabricado por um oleiro de Medina, trazia em letras douradas, sobre fundo azul, a seguinte inscrição:

“O que se adquiriu pela força só se pode conservar pela doçura.”

O fragmento que feriu Moslini era, precisamente, aquele que continha a palavra “doçura”.

Aconselharam ao poeta que levasse o caso ao conhecimento do juiz. A culpada (fora uma jovem ciumenta a autora do atentado) devia ser punida. Recusou-se, porém, Moslini, a apresentar queixa ou acusação, dizendo: “Não posso pedir castigo ou punição para uma pessoa que me feriu com tanta ‘doçura’.”

Confirmava-se, mais uma vez, o provérbio: “Um vaso quebrado alguma coisa recorda.”

Movido por essa ideia, adquiri um jarro, depois de meticulosa escolha e pondo em execução o plano delineado, limitei-me a reduzi-lo a estilhaços no meio da rua.

- E o processo deu resultado? - perguntei, interessado. - Veio à vossa memória, depois do sacrifício, alguma história interessante, digna de ser contada a um auditório seleto?

A minha ingenuidade fez rir novamente o inteligente Rafi An-Hari.

- Ualá! - exclamou, batendo-me no ombro. - O tal jarro, depois de partido, fez-me recordar um conto, muito original, que poderá divertir os viajantes ilustres e agradar ao bom e generoso sheik Ibraim. E sabes, meu amigo, que história é essa?

- Interessa-me conhecê-la - respondi. - Deve ser muito original.
______________________________________
Nota
1 É preferível agora não enganar, e dizer-te logo a verdade!

Continua…

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe (Lançamento do livro Namida Taiko*)


Um livro esperado pela comunidade japonesa no Brasil é "Namida Taiko", dos romancistas Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe.

O livro será lançado em
29 de fevereiro,
a partir das 18 horas,
na NIKKEI de Curitiba,
rua  Padre Júlio Saavedra, 598 – Bairro Uberaba,
Curitiba - PR .

Em entrevista concedida para a Revista Cazemek os autores falam sobre a criação da história do livro:

Durante viagem ao norte do Paraná em junho deste ano, visitamos a Colônia Esperança que fica no município de Arapongas. De início foi difícil imaginar que pudesse surgir uma aventura, um romance, algo mirabolante que pudesse dar sustentação à narrativa, sem ofender ou incomodar os ex moradores e moradores da colônia. Apesar de todos os personagens serem fictícios, sempre há alguém que tenta associar a alguém ou vincular a algo que aconteceu. Helena como sempre, deu uma chacoalhada com suas ideias. Criamos quatro personagens que não fazem parte da colônia, chegam disfarçados de agricultores e se transformam em protagonistas de um enredo cheio de aventura, drama, amor e fantasia.”

“Tudo é muito contido para se manter dentro do comportamento de moradores de uma colônia japonesa. O capítulo mais difícil foi imaginar o que seria a vida nos anos 40.”

Franccis e Helena apresentam uma história recheada de bom humor, drama, amor e dor, onde o taiko deixa de ser apenas um simples instrumento de percussão. Uma trama complexa baseada em honra e disciplina, conta a saga de uma jovem lutando até as últimas consequências para conquistar seu sonho.
__________________________________
 Sobre os Autores

Franccis Yoshi Kawa é brasileiro, natural de Arapongas, Paraná. Formado em Ciências Contábeis pela UFPR.  Participou da Oficina "Como Escrever Livros", da escritora Isabel Furini. Publica no site Recanto das Letras. É autor do romance “Ajoelhar jamais” - em parceria com Helena Douthe. Cadeira n. 38 da AVIPAF.
 
Helena Douthe é brasileira, natural de Curitibanos, Santa Catarina. Graduada em Administração pela PUC-PR. Sempre teve inclinação para a literatura e a música. Compositora, escritora de poesias e romancista. Helena escreve seus livros em parceria com Franccis Yoshi Kawa. Helena também escreve para o público infantil. Cadeira n. 39 da AVIPAF.
____________________________________

Glossário do Blog:
* Taiko é a denominação usualmente dada ao instrumento de percussão japonesa que surgiu há mais de 2000 anos e que já serviu a propósitos militares, religiosos, teatrais, musicais e práticos, devido ao seu som vibrante, vigoroso e místico. 

Contudo, Taiko não é, unicamente, a simples tradução para tambor japonês. A palavra carrega um significado mais amplo e profundo, de forma que serve para definir tanto o gênero dos instrumentos japoneses de percussão quanto a prática dessa arte, que não se resume a simplesmente bater tambores, mas sim, a incorporar e expressar sentimentos, além de por em prática valores morais e sociais em busca de um constante aperfeiçoamento do ser.

A Arte do Taiko é a arte do aprimoramento diário, da esmerilhação da alma, e para exercê-la é necessária força física, mental e espiritual, bem como disciplina, rigor, força de vontade, energia, união e harmonia. É uma arte normalmente coletiva que exige a comunhão espiritual daqueles que a buscam. 

Existem diversos tipos de taiko, variando em tamanho, formato, material, método de fabricação, método de afinação, origem e forma de uso.

* Namida: literalmente significa lágrimas.

Fontes:
- Texto do lançamento enviado por Isabel Furini
- Sobre a criação do livro: Revista Cazemek 
- Sobre os autores: site da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia) 
- Sobre o Taiko no site Ishindaiko 
- Foto do livro: Editora Insight 

Divenei Boselli (1938 - 2020)


1
A cascata em que se espelha
resplandecente beleza,
é o rio que se ajoelha
ante o altar da natureza.
2
Ainda que outras despontem
neste teu céu de hoje em dia,
há de lembrar, sempre, que ontem
eu fui tua estrela guia...
3
A mais ostensiva prova
de fé que a morte produz
não é a cruz sobre a cova,
mas a crença nessa cruz.
4
Amanhece… De repente,
tomando o corpo da Terra,
o sol beija ardentemente
o rosto bruto da serra…
5
A vaga está garantida
para mim, porque, sabendo
que exigem folha corrida,
eu trouxe o jornal, correndo!
6
Chego à porta, enxugo o pranto,
deixo a dor no chão que piso
e, como que por encanto,
mostro o encanto de um sorriso...
7
Chegou cedo o bom marido
e amanheceu sobre a mesa...
- De que teria morrido?
- Ora, “meu”... Foi de surpresa...
8
Choro junto à sepultura
de sonhos mortos repleta,
e a razão, mãos na cintura,
diz: – quem mandou ser Poeta?
9
Coração, pouso de estrada,
repara bem, coração,
que entre os que pedem pousada,
entra o teu próprio ladrão!
10
Da fartura prometida
de carícias e de beijos,
só resta a parca medida
que não mata meus desejos…
11
Descubro ao longo da vida
meus mais íntimos segredos,
quando, qual harpa tangida,
vibro ao toque dos teus dedos...
12
Disfarço a mágoa com jeito
de quem crê no recomeço
e o disfarce é tão perfeito
que nem eu me reconheço…
13
Enquanto eu choro e tu dormes
com teus sonhos traiçoeiros,
cabem distâncias enormes
no vão de dois travesseiros.
14
Essa idade que escondemos,
que, entre risos, desmentimos,
é sempre aquela que temos,
mas, nem sempre, a que sentimos.
15
Eu faço das fronhas, lenços,
nas longas noites sem sono
e os lençóis, braços imensos,
abraçam meu abandono.
16
“Eu tenho a idade mundo!,
grita a Mentira; e a Verdade,
em tom solene e profundo:
“Eu também tenho essa idade!”
17
Fundamentada promessa
de dignidade e decência,
a liberdade começa
no fundo da consciência.
18
Hoje, em que braços deliras,
em que outro ouvido murmuras
as verdadeiras mentiras
que me disseste por juras?...
19
Madame teve um desmaio
no quarto das empregadas,
ouvindo, do papagaio,
tremendas papagaiadas!
20
Meu olhar seco adivinha
e eu evito a despedida
porque as lágrimas que eu tinha
chorei quando eu tinha vida…
21
Meu papagaio sumiu...
E um vizinho, desonesto,
anda dizendo que o viu
no Cartório de Protesto!
22
Meu peito é campo minado
onde o amor, míssil incerto,
procura um tanque blindado
e encontra apenas deserto…
23
Na moldura carcomida
resiste o sorriso antigo,
mas o espelho mostra a vida
e o que a vida fez comigo...
24
Não regressas... Mesmo assim,
a ilusão que eu julguei morta,
morta de pena de mim,
monta guarda à minha porta.
25
No cálice, o teu adeus
transborda o fel pelas beiras
e eu padeço, feito um deus
no Jardim das Oliveiras.
26
No estreito espaço de um quarto,
muitos tiveram guarida,
mas... só contigo eu reparto
o espaço inteiro da vida!...
27
Nos beijos apaixonados
os desejos vão contendo
os versos inacabados
que a Vida vive fazendo.
28
Onde a lei torta vigora
E o povo ao jugo se presta,
O rico só comemora
E o pobre é quem paga a festa.
29
O que aumenta meu tormento
é lembrar que me sorrias
e, ao fazer teu juramento,
mentias bem… Mas, mentias!
30
Partes, levando a metade
da metade que eu já sou,
deixando inteira a saudade
na metade que restou...
31
Partiste e, neste abandono,
na luz que vem da vidraça,
afugentando meu sono,
vem a saudade... e me abraça!
32
Pedi que nenhum de nós
terminasse só e triste;
eu pus minha alma na voz
mas, mesmo assim, não me ouviste...
33
Por direito, a safra é minha,
mas, na colheita, um impasse:
por que essa erva daninha
que eu colho sem que a plantasse?
34
Por respeito e amor à Vida,
que todo o Amor se concentre
em toda Vida contida
no estreito espaço de um ventre!
35
Pranto, riacho de dor
que em mim se faz um açude,
lembrando os versos de amor
que eu quis compor, mas não pude…
36
Quero o abraço ardente, aceso
de alguém que derreta, enfim,
a neve que o teu desprezo
derramou dentro de mim...
37
Saudade, eterno martírio
que ocupa, agora, em meu peito,
os espaços que o delírio
ocupava em nosso leito!...
38
Semana santa em meu peito...
Nas trevas, sem compaixão,
as mágoas rondam meu leito
com jeito de procissão...
39
Sem saber, os violeiros,
cantando em dupla ou sozinhos,
cantam a dor dos pinheiros
que deram vida aos seus pinhos.
40
Sentimos tanta alegria
quando estamos abraçados,
que, para nós, qualquer dia,
é "Dia dos Namorados"!
41
– Seu filho não tem vontade
de trabalhar pra ninguém!
Nega o pai: – Não é verdade.
Tem má vontade... Mas tem!
42
Soubesses medir o peso
que tem a palavra "Não",
saberias que o desprezo
é um convite à traição..
43
Teu corpo, assim, sinuoso,
cheira a convite suspeito;
- o rio mais caudaloso
tem mais mistérios no leito...
44
Teus olhos, luz que ilumina
o tatear dos teus dedos,
são dois faróis de neblina
devassando os meus segredos…
45
Toda a ilusão tem a sorte
da frágil franja alvacenta
da onda que, embora forte,
de espaço a espaço rebenta.
46
Tu, que ao partires, outrora,
não pensavas regressar,
regressas, e é tua, agora,
a hora e vez de chorar...
47
Uma lágrima, sequer,
eu vi no adeus...Nem depois.
Não faz mal...eu sou mulher,
posso chorar por nós dois!
48
Um dia eu parti, pensando
poder, um via, voltar;
sem pensar que 'um dia' é quando
o Deus - destino marcar...
49
Vai trabalhar, vagabundo,
grita a mulher, feito gralha;
e ele rosna lá do fundo” :
– “Vagabundo não trabalha!”…
50
Voltas... E eu acho tão triste
a emoção de disfarçar,
que por mim, já que partiste,
nem precisavas voltar...

Fonte:

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 177


Alcântara Machado (O Monstro de Rodas)


O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.

- Ei, Pepino! Escuta só o frio!

Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora

Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.

Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.

- Leva ela pra dentro!

- Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...

Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.

- Coitada da Dona Nunzia!

A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.

- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...

Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.

- ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu...

O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.

- ... de todo o mal. Amém.

A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.

Cinco. Seis.

O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.

Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... - O mulato? - Quem mais há de ser?).

- Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha.

- Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?

Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.

- É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!

O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.

- Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.

A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.

O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam descobertos.

O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.

- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.

Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.

- Deixa eu carregar agora, Josefina?

- Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!

O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.

Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.

- Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!

Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.

- Que linda que era ela!

- Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...

O pai tinha ido conversar com o advogado.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Rita Delamari (Cristais Poéticos)


A POESIA EM NÓS

No frio de nossos dias,
o calor da tua presença
aquece!

Das nossas bocas, 
palavras com veemência
e sintonia.

Tua voz rouca
e esse olhar em sorriso, 
minha tristeza fenece!

Em nossos ouvidos,
uma bela sinfonia
enlouquece!

É tudo tão preciso
Nesse nosso universo, 
sem ponto ou reticências.

Escrevemos os nossos versos, 
sem métrica, com ou sem rimas: 
é o nosso amor, fazendo poesia.
**************************************** 

CHUVA NO OUTONO

Nas folhas 
soltas a voar, 
ela demora a enxergar
que fora o vento,
e tão somente,
que levou consigo
uma lágrima de saudade 
na chuva de outono.
**************************************** 

ESCOMBROS

Meu peito inflama
com uma chama
que me invade 
de incertezas. 

A cada tombo 
me levanto
e organizo 
meus escombros.
**************************************** 

MÃE NATUREZA

Da natureza, tudo se extrai...   
Vida em meio a tanta devastação, 
um rio de poluição se vai 
e se abrupta na correnteza.

Uma mãe, no centro 
dessa imensidão,
os seus filhos
jamais abandona. 

Vida, vivos seres de tanta beleza,
Ela se consome em preocupação...
Observa o oceano: 
ainda rico em profundeza.
**************************************** 

ORVALHO

O orvalho da noite
chora testemunhando
tão profunda dor,
que dói como açoite.

Doida esta, a de amor...
Um choro que 
não é solitário,
ainda tenho sorte:

pelo orvalho
do choro que cai,
vem exalar seu perfume,
a flor!
**************************************** 

SEUS OLHOS

Os seus olhos são
como dois diamantes...
Parecem pedras preciosas,
que juntas estão

assim como nós,
na união de amantes,
nas horas gostosas
em que ficamos a sós...

E carregam um brilho
trazendo a sua beleza:
verdes e marcantes,
puros e fascinantes,
como a própria natureza.
**************************************** 

SOFREGUIDÃO

Ouço a voz do silêncio, 
a paz que acalenta a noite, 
a força do vento
que parece um açoite... 
Mas, não, é a magia
da minha feliz solidão, 
como um sussurro 
no infinito, na imensidão
de uma saga que, juro, 
não é angústia...  
É vida, é sofreguidão!
**************************************** 

Rita Delamari, nascida Rita do Rocio Alves dos Santos é graduada 1º Sargento da Reserva na Polícia Militar do Paraná  (PMPR). Começou seus escritos na adolescência. Cursou Redação Técnico-Científica com formação acadêmica em Pedagogia. A poesia se enraizou, durante o período em que seguiu a carreira militar: “meu encanto na poesia, minha centelha à posteridade.” É membro efetivo do Centro de Letras do Paraná, 2017.
Seus livros: Das pedras as flores, Ed. Íthala, 2011; Da janela do quarto, Ed. Blanche, 2015; Contornos e contrastes, Marianas Edições, 2018.
Participou de diversas antologias, dentre elas: Cronistas do Centro de Letras do Paraná (Coleção Literária de Autores Paranaenses, 2018), Histórias que vi, vivi e ouvi II (Associação Literária Lapeana, 2019) e Conexões Atlânticas IV (Ed. In-Finita Lisboa-Portugal/2019). Seu poema “Engrenagem” foi publicado em livro, com os vencedores do Concurso Literário Fazenda Rio Grande-PR/2018 (1º lugar, gênero poesia, categoria comunidade).

Fonte:
Poemas e Biografia enviados por Isabel Furini

Homero (Odisseia)

Odisseia é um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. É uma sequência da Ilíada, outra obra creditada ao autor, e é um poema fundamental no cânone ocidental. Historicamente, é a segunda - a primeira sendo a própria Ilíada – obra da literatura ocidental.

A Odisseia, assim como a Ilíada, é um poema elaborado ao longo de séculos de tradição oral, tendo tido sua forma fixada por escrito, provavelmente no fim do século VIII a.C. A linguagem homérica combina dialetos diferentes, inclusive com reminiscências antigas do idioma grego, resultando, por isso, numa língua artificial, porém compreendida. Composto em hexâmetro dactílico era cantado pelo aedo (cantor), que também tocava, acompanhando, a cítara ou fórminx, como consta na própria Odisseia (canto VIII, versos 43-92) e também na Ilíada (canto IX, versos 187-190).

O poema relata o regresso de Odisseu, (ou Ulisses, como era chamado no mito romano), herói da Guerra de Troia e protagonista que dá nome à obra. Como se diz na proposição, é a história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quanto lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”.

Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Troia, que também havia durado dez anos. 

A trama da narrativa, surpreendentemente moderna na sua não-linearidade, apresenta a originalidade de só conservar elementos concretos, diretos, que se encadeiam no poema sem análises nem comentários. A análise psicológica, a análise do mundo interior , não era ainda praticada. As personagens agem ou falam; ou então, falam e agem. E falam no discurso direto, diante de nós, para nós – preparando, de alguma forma, o teatro. Os eventos narrados dependem tanto das escolhas feitas por mulheres, criados e escravos quanto dos guerreiros.

A influência homérica é clara em obras como a Eneida, de Virgílio, Os Lusíadas, de Camões, ou Ulysses, de James Joyce, mas não se limita aos clássicos. As aventuras de Ulisses, a superação desesperada dos perigos, nas ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência, são a matriz de grande parte das narrativas modernas, desde a literatura ao cinema.

Em português, bem como em diversos outros idiomas, a palavra odisseia passou a referir qualquer viagem longa, especialmente se apresentar características épicas.

A Odisseia se inicia in medias res (latim para "no meio das coisas"), com sua trama já inserida no meio de uma história mais ampla, e com os eventos anteriores sendo descritos ou através de flashbacks ou de narrativas dentro da própria história. O dispositivo foi imitado por diversos autores de épicos literários posteriores, como por exemplo Virgílio, na Eneida, bem como poetas modernos como Alexander Pope (The Rape of the Lock).

A ação está repartida em três tempos principais: situação de Penélope e Telêmaco em Ítaca e viagem de Telêmaco; chegada de Odisseu ao país dos feaces, onde narra as suas aventuras (recuo da ação, em vários anos); regresso de Ulisses a Ítaca e morte dos pretendentes.

Perante a presunção da morte de Ulisses, a sua esposa Penélope e o seu filho, Telêmaco são obrigados a lidar com um grupo de insolentes pretendentes, os Mnesteres ou Proci, que competem pela mão de Penélope em casamento. Telêmaco tenta assumir o controle da sua casa e aconselhado por Atena, viaja em busca de notícias do seu pai desaparecido.
A cena então muda: Odisseu é cativo da bela ninfa Calipso, com quem ele passou sete dos dez anos em que esteve perdido. Após ser libertado pela intercessão de sua padroeira, a deusa Atena, ele parte. Porém, a sua jangada é destruída por Poseidon, furioso por Odisseu ter cegado o seu filho, Polifemo. Quando Odisseu alcança a praia de Esquéria, lar dos feácios, é auxiliado pela jovem Nausícaa, de quem recebe hospitalidade; em troca, satisfaz a curiosidade dos feácios, narrando a eles - e ao leitor - as suas aventuras desde a partida de Troia. Os feácios, hábeis construtores de navios, emprestam-lhe uma embarcação para que ele regresse a Ítaca, onde recebe a ajuda do pastor de porcos Eumeu, se encontra com Telêmaco e reconquista o seu lar, reencontrando a sua esposa, Penélope e matando os seus pretendentes.

Quase todas as edições e traduções modernas da Odisseia são divididas em 24 livros. Esta divisão é conveniente, porém não é original; foi desenvolvida pelos editores alexandrinos do século III a.C. No período clássico diversos dos livros (individualmente e em conjunto) recebiam seus próprios títulos; os primeiros quatro, que se concentravam em Telêmaco, eram comumente conhecidos como a Telemaquia; a narrativa de Odisseu, no livro 9, que contém seu encontro com o ciclope Polifemo, era tradicionalmente chamada de Ciclopeia; e o livro 11, que descreve seu encontro com os espíritos dos mortos no Hades, era conhecido como Nekyia. Os livros 9 a 12, onde Odisseu reconta suas aventuras para seus anfitriões feácios eram referidos como os Apologoi, as "histórias" de Odisseu. O livro 22, no qual Odisseu mata todos os pretendentes, recebia o título de Mnesterophonia, o "massacre dos pretendentes".

Estrutura

Os últimos 548 versos da Odisseia, que correspondem ao livro 24, são tidas por muitos acadêmicos como uma adição feita por um poeta posterior; diversas passagens dos livros anteriores parecem preparar para os eventos que ocorrem nele, portanto se de fato forem uma adição posterior, o editor responsável teria alterado algum texto antigo já existente.

Telêmaco, filho de Odisseu, tem apenas um mês de idade quando seu pai sai para combater em Troia, numa guerra da qual ele não quer fazer parte. No ponto em que a obra se inicia, já se passaram dez anos após o fim da Guerra de Troia - que por sua vez durou dez anos - Telêmaco tem 20 anos e está dividindo a casa de seu pai ausente, localizada na ilha de Ítaca, com sua mãe e uma multidão de 108 arruaceiros, "os pretendentes", cuja meta é persuadir Penélope de que seu marido está morto, e que ela deve se casar com um deles.

A deusa Atena, a protetora de Odisseu, discute seu destino com Zeus, rei dos deuses, no momento em que o inimigo do herói, o deus do mar, Poseidon, se ausenta do monte Olimpo. Escondida como um chefe táfio chamado Mentes, ela visita Telêmaco e o encoraja a procurar notícias de seu pai. Ele oferece sua hospitalidade, e ela pode observar o comportamento inapropriado dos pretendentes, jantando no meio de arruaças enquanto o bardo Fêmio lhes interpretava um poema narrativo. Penélope opõe-se ao tema de Fêmio, o Retorno de Troia, por lembrá-la de seu marido desaparecido, porém Telêmaco refuta suas objeções.

Naquela noite, Atena, disfarçada como Telêmaco, encontra um navio e uma tripulação para o verdadeiro Telêmaco. No dia seguinte, este reúne uma assembleia de cidadãos de Ítaca, para discutir o que deveria ser feito com os pretendentes. Acompanhado por Atena (agora disfarçada como seu amigo, Mentor), ele parte para a Grécia continental, onde é recebido por Nestor, o mais respeitável dos guerreiros gregos de Troia, já de volta a seu lar, em Pilos. De lá, Telêmaco parte por terra, acompanhado pelo filho de Nestor, para Esparta, onde encontra Menelau e Helena, já reconciliados; estes descrevem como retornaram à Grécia depois de uma longa viagem, que passou pelo Egito e, de lá, pela ilha mágica de Faros, onde Menelau encontrou o velho deus do mar Proteu, que o contou que Odisseu havia sido aprisionado pela ninfa Calipso. Telêmaco também descobre o destino do irmão de Menelau, Agamenon, rei de Micenas e líder dos gregos em Troia, assassinado logo depois de retornar ao seu lar, por sua esposa Clitemnestra e seu amante Egisto.

A obra chega então à história de Odisseu, que passou sete anos no cativeiro, na ilha de Calipso. Esta é persuadida a libertá-lo pelo deus mensageiro, Hermes, enviado por Zeus. Odisseu constrói uma jangada e recebe roupas, comida e bebida de Calipso; acaba naufragando, no entanto, por obra de Poseidon, e é obrigado a nadar até a ilha de Esquéria onde, nu e exausto, ele se esconde numa pilha de folhas e adormece. Na manhã seguinte, desperto pelas risadas de garotas que se aproximam, vê a jovem Nausícaa, que veio com suas criadas lavar roupas à beira do mar. Odisseu pede ajuda a ela, que o encoraja a procurar a hospitalidade de seus país, Aretê e Alcínoo. Odisseu que inicialmente não se identifica, é bem recebido; permanece no local por diversos dias, participa de um pentatlo e ouve o cantor cego Demódoco executar dois poemas narrativos. O primeiro é um incidente obscuro da Guerra de Troia, a "Disputa ente Odisseu e Aquiles", enquanto o segundo é a narrativa de um caso de amor entre dois deuses do Olimpo, Ares e Afrodite. Odisseu pede então a Demódoco que retorne ao tema da Guerra de Troia, que conta sobre o Cavalo de Troia, um estratagema no qual Odisseu havia desempenhado um papel crucial. Incapaz de esconder suas emoções ao narrar o episódio, Odisseu finalmente revela sua identidade, e começa a contar a fantástica história de seu retorno à Troia.

Após uma incursão pirática em Ismara, na terra dos cicones, Odisseu e seus doze navios são desviados do curso por tempestades. Visitam então os letárgicos Comedores de Lótus, e são capturados pelo ciclope Polifemo, do qual escapa apenas após cegá-lo com um pedaço afiado de madeira. São recebidos por Éolo, senhor dos ventos, que dá a Odisseu um saco de couro contendo todos os ventos (com a exceção do vento oeste), um presente que deveria lhe ter garantido a viagem de volta para casa; seus marinheiros, no entanto, abrem de maneira tola o saco enquanto Odisseu dormia, pensando que continha ouro; todo o vento voou para fora do saco, e a tempestade resultante mandou os navios de volta para onde haviam vindo, quando Ítaca havia acabado de aparecer no horizonte.

Após pedir em vão para que Éolo o ajudasse novamente, Odisseu e seus companheiros reembarcaram nos navios e zarparam, viajando até encontrar o canibal Lestrigão. O navio de Odisseu acaba sendo o único a sobreviver ao ataque, e acaba indo parar junto à deusa-bruxa Circe, que transforma metade dos seus homens em porcos, após alimentá-los com vinho e queijo. Hermes, que havia alertado Odisseu a respeito de Circe, dá a ele uma droga chamada móli, que o fazia resistente à magia de Circe. Esta, atraída por esta resistência, apaixonou-se por ele e libertou seus homens a seu pedido. Odisseu e sua tripulação permaneceram na ilha por um ano, durante o qual festejaram, beberam e realizaram banquetes incessantes. Finalmente, os homens de Odisseu o convencem que é hora de partir para Ítaca; guiado pelas instruções de Circe, cruzam o oceano a atingem um porto na beira ocidental do mundo, onde Odisseu sacrifica aos mortos e invoca o espírito do velho profeta Tirésias para aconselhá-lo. Em seguida Odisseu encontra o espírito de sua própria mãe, que havia morrido de desgosto durante sua longa ausência; dela, descobre pela primeira vez notícias de sua própria casa e família, ameaçada pela cobiça dos pretendentes. Lá encontra também os espíritos de mulheres e homens famosos, entre eles Agamenon, que lhe informa sobre seu assassinato e lhe alerta sobre os perigos das mulheres. Ao retornar à ilha de Circe, são aconselhados por ela sobre as etapas restantes de sua jornada. Após costearem a terra das sereias, passam por entre Cila, um monstro de muitas cabeças, e o redemoinho Caribde, e chegam à ilha de Trinácia. Lá, os homens de Odisseu ignoram os avisos de Tirésias e Circe, e abatem o gado sagrado do deus sol, Hélio; este sacrilégio lhes traz como punição um naufrágio, onde todos morrem afogados, com a exceção de Odisseu, que consegue chegar à ilha de Calipso, ninfa que o força a se tornar seu amante por sete anos, até que ele consegue escapar.

Depois de ouvir com grande atenção a história, os feácios, marinheiros experientes, concordam em ajudar Odisseu a voltar para casa. Deixam-no à noite, enquanto está em sono pesado, num porto escondido em Ítaca. Lá ele consegue chegar à casa de um de seus antigos escravos, o pastor de porcos Eumeu. Odisseu se disfarça como um mendigo vagante, para descobrir como estão as coisas em sua residência. Após jantar, conta aos trabalhadores da fazenda uma história fictícia sobre si; afirma ter nascido em Creta, e ter liderado um grupo de cretenses que lutaram ao lado dos gregos na Guerra de Troia, e que havia passado sete anos na corte do rei do Egito, e depois naufragado na Tesprócia, de onde teria vindo a Ítaca.

Enquanto isso, Telêmaco navega para casa, vindo de Esparta, fugindo de uma emboscada preparada pelos pretendentes. Desembarca na costa de Ítaca e se dirige à casa de Eumeu; lá, pai e filho se encontram, e Odisseu se identifica para o filho (embora ainda não para Eumeu), e decidem que os pretendentes devem ser mortos. Telêmaco chega à sua casa primeiro; acompanhado por Eumeu, Odisseu retorna ao seu lar, ainda fingindo ser um mendigo, e presencia as arruaças dos pretendentes. Encontra-se com Penélope, e testa suas intenções com uma história inventada sobre seu nascimento em Creta onde, segundo ele, teria se encontrado com Odisseu. Ao ser interrogado, acrescenta que também havia estado recentemente em Tesprócia, onde fora informado sobre as viagens recentes de Odisseu.

Sua identidade é descoberta pela caseira, Euricleia, quando ela lava seus pés e descobre uma antiga cicatriz que Odisseu tinha, fruto de uma caçada a javalis; ele a faz jurar segredo. No dia seguinte, instigada por Atena, Penélope convence os pretendentes a competir por sua mão, numa competição de arco-e-flecha, utilizando o arco de Odisseu - que participa da competição, ainda disfarçado, e, após ser o único com força suficiente para dobrar o arco, a vence. Odisseu passa então a disparar flechas contra os pretendentes; com a ajuda de Atena, Telêmaco, Eumeu e Filoteu, um pastor, todos são mortos; Odisseu ainda executa, juntamente com Telêmaco, doze das criadas da casa que haviam feito sexo com os pretendentes,e, após mutilá-las também executam o pastor de cabras Melâncio, que havia caçoado de Odisseu e o maltratado. Odisseu então finalmente se identifica para Penélope, que, hesitante, o aceita após ele descrevê-la a cama que teria construído para ela após se casarem.

No dia seguinte Odisseu e Telêmaco visitam a fazenda de seu velho pai, Laerte, que também só aceita sua identidade após ver Odisseu descrever corretamente o pomar que Laerte lhe dera certa vez. Os cidadãos de Ítaca, no entanto, seguem Odisseu e Telêmaco ao longo da estrada, planejando vingar as mortes dos pretendentes, seus filhos. O líder do grupo afirma que Odisseu havia causado a morte de duas gerações de homens de Ítaca - seus marinheiros, nenhum dos quais havia sobrevivido à jornada de volta, e os pretendentes, que ele havia agora executado. A deusa Atena intervem pessoalmente, e convence ambos os lados a abandonar a vingança. Ítaca finalmente está em paz novamente, e a Odisseia é concluída.
**************************************** 

O traço heroico de Odisseu está em sua mētis, ("esperteza"), tanto que várias vezes é descrito como "Par de Zeus em Conselhos". Sua argúcia se manifesta no uso de sorrelfas, blefes e discursos enganosos. Os ardis podem ser tanto físicos (alterando sua aparência) como verbais, como fez ao contar para o ciclope Polifemo que seu nome era Oútis, "Ninguém", e fugir após cegá-lo; quando os outros ciclopes perguntaram a Polifemo o motivo de seus gritos, ele responde que "Ninguém" lhe está machucando, e os outros assumem que "Se sozinho como você está [Polifemo] ninguém usa violência sobre si, ora, não há como escapar do mal enviado pelo grande Zeus; então melhor rezar a seu pai, o senhor Poseidon". A falha de caráter mais evidente em Odisseu é sua soberba, ou húbris. À medida que navega para longe da ilha dos ciclopes, Odisseu grita seu próprio nome, bravateando que ninguém pode derrotar o "Grande Odisseu". Os ciclopes então jogam metade de uma montanha sobre seu barco, e rezam para seu pai, Poseidon, dizendo que um de seus filhos foi cegado; irado, o deus dos mares o impede de voltar para casa por muitos anos.

Personagens:

Odisseu (conhecido também pela forma latina, Ulisses), herói da guerra de Troia e que quer voltar para junto dos seus familiares;
Penélope, esposa de Odisseu, prima de Helena de Troia;
Telémaco, filho de Odisseu e Penélope;
Laerte, rei de Ítaca e pai de Odisseu, de onde vem o epíteto "Laércio", o mais usado para se referir a seu filho ao longo da obra;
Eumeu, porqueiro;
Euricleia, fâmula de Odisseu;
Antinoo, um dos pretendentes e o mais malino;
Eurimaco, um dos pretendentes, imitador de Antinoo.
Alcínoo, rei dos feácios;
Areta de Cirene, esposa de Alcínoo;
Nausícaa, princesa dos Feácios;
Laodamante, irmão de Nausícaa, desafiador de Odisseu nos jogos;
Hálio, idem;
Clitóneo, idem;
Equeneu, velho herói;
Demódoco, aedo, contador lírico de histórias;
Anfíloo, atleta;
Euríalo, atleta, desafiador de Odisseu nos jogos.
Zeus, rei dos deuses;
Atena, deusa da sabedoria e estratégia (a favor de Odisseu);
Circe, a feiticeira, filha do deus Hélio com a mortal Persa (a favor de Odisseu);
Poseidon, deus dos mares, antagonista principal e maior inimigo de Odisseu;
Éolo, deus dos ventos, anfitrião de Odisseu e seus amigos em sua ilha; 
Hermes, mensageiro dos deuses;
Hélio, o deus do sol, de quem os companheiros de Odisseu mataram o gado;
Calipso ninfa, filha de Atlante, apaixonada por Odisseu;
Leucothea, deidade marinha que salva Odisseu de um naufrágio.
Cila, monstro com doze pernas e seis cabeças, cada uma com três fileiras de dentes, habitava o interior de uma gruta cavada no rochedo;
Ciclopes, (literalmente "Olho redondo", "Olhicircular") em particular Polifemo (lit. "que fala muito", "Multifalaz"), filho de Poseidon e da ninfa Toosa. Gigante de umolho só, dedicado ao pastoreio e que vive em estado selvagem;
Caríbdis, monstro das profundezas marinhas que três vezes ao dia sorvia e vomitava a água do mar . Sua morada ficava a curta distância de Cila;
Hárpias, em Homero, dois monstros com corpo metade mulher e metade pássaro, habitantes de uma ilha na qual há bonança. Com seus cantos, encantam os homens que passem perto, devorando-os depois;
Lotófagos ("Comedores de Lótus"), povo fantástico que vive próximo as regiões da Líbia na África e se alimentam de flores de lótus, a qual provoca certo esquecimento.
Lestrigões gigantes antropófagos e arremessadores de rochas 

Os eventos na sequência principal da Odisseia (excluindo-se a narrativa de Odisseu) se dão no Peloponeso e naquelas que são atualmente chamadas de ilhas Jônicas.

Existem controvérsias quanto à real identificação de Ítaca, terra natal de Odisseu, que pode ou não ser a mesma ilha que é atualmente chamada pelos gregos de Ithake. As viagens de Odisseu narradas aos feácios, e a localização da própria ilha destes, Esquéria, apresentam problemas geográficos ainda mais fundamentais aos estudiosos: tanto acadêmicos antigos quanto modernos dividem-se quanto à existência ou não dos lugares visitados por Odisseu depois de Ismaros e antes de seu retorno à Ítaca.

Traduções

No Brasil há algumas traduções feitas a partir do original grego, a maioria delas poéticas .

A primeira é de Manuel Odorico Mendes, feita no século XIX, mas publicada somente em 1928, postumamente, em que, seguindo a tradição épica em português, emprega o verso decassílabo, porém branco. A tradução é marcada pela extrema concisão - com total de versos sendo menor que o do texto original -, estruturas sintáticas incomuns, decorrentes muitas vezes dessa concisão, preciosismo lexical, neologismos e latinismos - sobretudo para traduzir os epítetos gregos, como em "Aurora dedirrósea" [Aurora de dedos róseos]. Outra característica (na verdade, comum até sua época) é a substituição dos nomes gregos pelos correspondentes latinos: Zeus, por Júpiter, Poseídon por Netuno, Atena por Minerva, Odisseu por Ulisses, etc.

Sua tradução foi reeditada pelas editoras da USP e Ars Poetica, na coleção "Texto e Arte", com organização, notas suplementares e prefácio de Antonio Medina Rodrigues

A segunda tradução, da década de 40 século XX (a primeira edição com data incerta, mas publicada muito provavelmente em 1941), é de Carlos Alberto Nunes, cujo principal critério foi a tentativa de transpor o a métrica original do poema (hexâmetro dactílico) para o português, resultando num verso de dezesseis sílabas poéticas, cujo ritmo é a sequência de seis grupos (chamados "pés") de sílabas, sendo cada um composto por uma sílaba tônica seguida de duas átonas (o sexto grupo, em geral, com uma tônica seguida de apenas uma átona), no seguinte esquema: ó o o | ó o o | ó o o | ó o o | ó o o | ó o (o); ou seja, com acentuação na 1ª, 4ª, 7ª, 10ª, 13ª e 16ª sílabas. Para correta leitura do hexâmetro vernaculizado de Nunes, entretanto, é necessário atentar ainda para a cesura, normalmente ocorrendo uma vez, no meio do verso (terceiro pé), ou, menos frequentemente, duas vezes no mesmo verso.

A tradução de Nunes foi publicada originalmente pela editora Atena. O texto foi posteriormente revisado pelo próprio tradutor e republicado diversas vezes por outras editoras. Entretanto, desde que passou a ser editada pela Ediouro, o texto publicado foi o revisado por Marcus Reis Pinheiros, cuja intervenção por vezes deturpa a métrica empregada pelo tradutor. A edição mais recente foi publicada pela editora Nova Fronteira, com o texto revisado por Pinheiros.

Em 2011, Trajano Vieira, seguindo os passos de Haroldo de Campos, publicou sua tradução (ou transcriação) da Odisseia, tendo como critério resgatar a sonoridade do poema grego e sua complexidade poética e lexical. Em sua tradução, vencedora do Prêmio Jabuti, emprega o verso dodecassílabo.

Mais recentemente, a Cosac & Naify publicou, em 2014, a tradução de Christian Werner, que adotou o verso livre e cuja característica, segundo o próprio tradutor, foi conferir à tradução "clareza, fluência e poeticidade". O tradutor se preocupou em reproduzir o traço da oralidade do poema, mantendo a repetição de diversas fórmulas e estruturas na tradução.

Há também a tradução de Donaldo Schüler, editada pela L&PM em três volumes, de 2007. Não sendo propriamente poética (apesar de dispor o texto em versos), é marcada pelo extremo coloquialismo.
Eis seu proêmio:

Em Portugal, foi publicada pela editora Cotovia, em 2003, a tradução feita por Frederico Lourenço, que objetiva uma maior literalidade, clareza e fluência e, para tal, empregou versos livres. Sua tradução recebeu o prêmio D. Diniz pela Fundação Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Foi publicada no Brasil, em 2011, pela editora Penguin-Companhia (na coleção Clássicos Penguin).

Odisseia no Perseus Project (em grego clássico). 
O site, além de conter diversas traduções paralelas para o inglês, permite que o usuário confira a tradução de palavra por palavra, apenas clicando sobre elas.

Fonte:

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 176


Carlos Drummond de Andrade (Maneira de Olhar)


Recomendaram-lhe que se deitasse cedo, para acordar à hora da passagem do ano. A julgar pela insistência da recomendação, o ano não passa se os garotos ficarem de vigília. E como havia de ser, se não passasse? Era a vida do mundo inteiro que se perturbava. Tudo que estava para acontecer a partir de meia-noite bruscamente ficaria retido em malas, pacotes, na escuridão. Seria complicar tanto a vida dos outros, e a sua própria, que o menino se decidiu a acatar a ordem ingrata. Ou a fingir acatamento. Iria deitar-se, que remédio? Fecharia os olhos, pois esse é o testemunho de sono que as mães procuram no rosto dos filhos. Mas dormir de verdade, isso não. Imóvel, como nas ocasiões em que brincava de morrer, continuaria atento ao que ocorresse noite afora, pelo mundo solto. Queria devassar o mistério da passagem do ano, que ninguém sabe explicar.

A bá falara numa faixa de luz, que corta o céu de lado a lado, verdadeiro arco-íris, tão intenso que ninguém pode botar-lhe os olhos em cima; corusca, ouve-se um coro de anjos, tudo some de repente: o ano velho se foi, chega o ano novo. Mas seu tio, piloto da Varig, voou numa noite de 31 de dezembro e não confirmou a luz e os anjos; o ano-novo desce é de paraquedas, bem no centro da praça General Osório; traz na mochila talco, escova de dentes, pombas. “Pra que pombas?” “Pra soltar em sinal de alegria.” Quanto ao ano velho, acaba feito balão que perdeu gás, muito chocho.

Como as pessoas são mentirosas. A história certa eles não contam, e cada um vai inventando uma história que desmente a outra. Sua mãe, que lhe pede não mentir nunca, sua própria mãe não estaria mentindo? Por mais que lhe perguntasse como é a cara do ano velho, e a cara do novo, não tivera resposta.

Ela respondera com um sorriso, desses de que a gente gosta, mas não esclarecem nada, são modos de esconder: “Você mesmo verá como é. Depende da maneira de olhar”. Conversa com outros garotos a respeito não adianta. Cada qual diz mais bobagem que o outro; aprendem a mentir com os grandes.

Cerrou a porta, determinado. Preparou-se, deitou-se, esperou o beijo suave. Quis ainda puxar conversa, a mãe passou-lhe os dedos na face, repuxando-lhe a pele num dengue: “Dorme, coraçãozinho de manteiga”. Ela apagou a luz e saiu, veludo andando. Será que aguento ficar acordado até meia-noite? Quanto tempo é meia-noite? Da cama não se vê nada. Tenho de ir para a janela. Claro que o ano passa no ar, fico espiando. Mas tem tanta gente na rua, tanto carro buzinando, ninguém olha para cima. Estão acostumados? É ruim ficar acostumado: não se vê mais nada, as coisas vão se apagando. Eles conversam demais, seria tão bom que todo mundo ficasse calado, pensando, sentindo; o quê? sentindo. Como vão perceber que o ano passou, se falam sobre outras coisas, riem, cantam, gritam?

Depende mesmo da maneira de olhar — a mãe dissera. Agora estão sambando. As estrelas bem que continuam calmas. Elas sabem de tudo, veem aquilo que, cá de baixo, na confusão, uma criança só pode perceber se ficar de olhos arregalados, quietinha. Por maior que seja a boa vontade… E essa moleza que desce das estrelas e entra sorrateira nos braços, nas pernas, esse peso que faz baixar as pálpebras, como quem fecha cortina, devagar.

Acordou no chão, apavorado com o estrondo. Houve um desastre durante a passagem, o mundo acabou? Do salão vinham gritos, em que lhe parecia reconhecer vozes familiares. Seus pais estariam morrendo? Correu para a porta, abriu-a, atravessou o corredor, parou à entrada da sala. Teve uma imagem conjugada de garrafas, risos, cantos, beijos, copos. Estavam todos salvos, pais e amigos, mas tinham perdido o jeito comum, o jeito diurno. As vozes eram as mesmas e não eram. Arrastavam um pouco, palavras não terminavam, todas as pessoas manifestavam exagerada ternura umas pelas outras, abraçando-se ruidosamente.

A mãe viu-o de longe: “Filhinho!”, avançou com jeito engraçado, envolveu-o numa carícia, o pai tentou fazer o mesmo e não acertou, os outros bateram palmas. Seus olhos ainda não estavam abertos de todo, sentia vontade de chorar.

“Ele passou?”, disse baixinho ao ouvido. Sim, tinha passado, então não vira? Quis perguntar como é que passara, não teve ânimo. Um pouco tonta, mas docemente, a mãe levou-o de volta para o quarto, agasalhou-o, encostou rosto no rosto — o bafo casava-se a perfume —, rogou-lhe que dormisse outra vez, coraçãozinho de manteiga. O ano passara sem que ele visse. Bem que a mãe prevenira: “Depende da maneira de olhar”. Ele não acertara com a maneira.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.