quinta-feira, 26 de março de 2020

João Ubaldo Ribeiro (Pensamentos, Palavras e Obras)



Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre achei que a pior coisa é os pensamentos. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do futebol, quer dizer, a gente só pecando porque não queria assistir o catecismo, nessa aula dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas e os olhos piscando o tempo todo e a cara de doente, dizia que se peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas pensamento é muito descontrolado, de maneira que todo mundo tinha dificuldades nessa parte, talvez somente dona Maria José não tivesse, porque tudo o que ela pensava era catecismo.

Muitas vezes perguntei a minha mãe — e não perguntei a dona Maria José, porque o que a gente perguntava a ela, ela mandava a gente estudar e escrever uma dissertação, para ler alto no outro domingo — como é que a pessoa fazia para não pecar por pensamentos e ela me disse que bastava não pensar nem besteira nem safadagem. Ora, isso está todo mundo sabendo, a questão é que a besteira e a safadagem aparecem o tempo todo, sem ninguém chamar. Mas de fato era uma coisa muito de admirar que os crescidos todos, na hora da comunhão, iam sem pestanejar, quer dizer, não tinham pecado nem por pensamento, por que senão não iam arriscar a receber o corpo de Cristo com tudo por dentro sujo imundo de pecados. Eu não, eu sempre tive problemas, porque primeiro nunca deixava de esquecer algum pecado e na hora que saía é que eu lembrava e aí ficava com vergonha de voltar ao padre e aí ficava achando que ia comungar sujo imundíssimo. Mas minha mãe disse que não podia fazer lista de pecados, onde já se viu, que na hora o Espírito Santo ajudava, mas ele nunca me ajudou, pelo menos eu nunca notei nada. Enfrentei bastante sofrimento.

No primeiro ano, eu não tive o problema do pecado, porque a comunhão foi na Páscoa do colégio e eu era o único aluno que ainda não tinha feito comunhão, de forma que minha mãe me mandou com uma fita branca desta largura amarrada no braço e descendo com umas franjas, que eu fiquei envergonhadíssimo. Na outra mão, minha mãe mandou eu segurar uma vela também amarrada de fita e fiquei mesmo um espetáculo, de forma que me considerei fazendo penitência o tempo todo e, de qualquer jeito, só conseguia pensar na fita e na vela, uma coisa tristíssima de se ver que eu estava e todo mundo me olhando e só não dando risada porque era uma questão de comunhão. Mas ainda assim eu fiquei desconfiado e aí, na hora que o colégio todo ficou sentado na igreja, esperando a missa começar, consegui falar com dona Maria José, para saber se podia fazer uma confissão de última hora. E somente um reforço, disse eu, a senhora sabe, a pessoa vai andando, vai pecando. Palavras e obras, não, mas pensamentos sempre uma coisa ou outra vai escapando, disse eu, e ela ficou vermelhíssima. Então ela me levou até um padre alto que estava na sacristia e perguntou a ele se ele podia ouvir a confissão de última hora de um rapaz e eu ali me sentindo todo besta, com a fita e aquela vela na mão, mas eu queria estar garantido, com essas coisas não se brinca, e o padre era desses que vem logo querendo dar porrada, desses que puxam o queixo da pessoa e passam uns tapinhas na cara, não suporto. Ah, quer dizer que veio para a primeira comunhão e não se confessou, não é, falou ele, puxando minha fita que quase esculhamba tudo e me deu grande preocupação, porque minha mãe ia botar a culpa em mim e, se eu botasse a culpa no padre, ainda ia tomar um cachação. Não senhor, eu me confessei, é que eu estou com um problema. E então o padre foi mais simpático, me chamou para o canto e disse: qual é o problema? Raiva da mãe, disse eu para não perder tempo, porque a missa ia começar e, se eu não estivesse lá na frente, minha mãe ia se aborrecer. Por causa dessa fita e dessa vela, disse eu. Ah, disse o padre, dois padre-nossos. Achei barato naquela hora, rezei os dois padre-nossos, assisti a missa, comunguei e achei que estava tudo ótimo. E a inocência.

No segundo ano não tinha mais a fita nem a vela, foi um grande alívio, porém durou pouco, justamente porque, não tendo nem fita nem vela, sobrou mais espaço para pecados de pensamento e, além disso, a pessoa vai ficando mais velha e vai pecando mais, é a lei da vida. Felizmente nesse ano teve retiro no sábado e comunhão no domingo, de forma que a gente saía correndo da confissão e ia comungar, para não dar tempo de pecar por pensamento. Também Valdilon, que tem um irmão padre e deve saber dessas coisas, explicou que o camarada fecha os olhos, tapa os ouvidos e fica fazendo barulhos os mais altos possíveis com a boca fechada, que ressoa no ouvido e faz aquele escarcéu etc etc e a pessoa vai evitando o pecado. Com treino, acho que é possível e de fato Valdilon treinou diversos, mas eu nunca treinei porque ficava com vergonha de esperar a comunhão no meio daqueles sujeitos tudo de olho fechado, ouvido tapado e fazendo mmmnnn-mmmnnn e bzzzz-bbzzz. Mas, de qualquer maneira, essa segunda comunhão correu muito bem, porque eu comunguei em cima da confissão, saí leve, leve. Quase na certeza.

Na terceira é que foi muitíssimo pior, porque eu estava numa idade de viver pecando por pensamentos. É aí que eu até entendi por que o catecismo fala tanto nos pensamentos, é porque tem gente que se torna assim como eu me tornei: não faz nada, só pensa maus pensamentos, todos os tipos. Mesmo fazendo força, não adiantava nada. Era parar, era estar tendo maus pensamentos. Às vezes eu dizia assim, franzindo até a testa: não vou ter, não vou ter, sai pra lá, e cantando músicas alto — vestida de branco ela apareceu, trazendo na cinta as cores do céu, ave, ave, ave Maria — mas não resolvia: o mau pensamento zipt! Pronto. Nessa situação, era mais do que difícil uma boa comunhão, ainda mais que eu dei para achar que os outros não tinham esse problema, que era tudo obra das tentações do diabo do cão, não se podia confiar em ninguém.

E teve coisas piores nesse ano. Minha irmã ia fazer primeira comunhão e minha mãe fez uma mesa especial, muito mais especial do que a minha, que nem foi especial. Quer dizer, pecado da inveja. E depois tinha de ficar em jejum e eu quase como uma bolachinha de goma, só não comendo porque meu anjo da guarda foi forte e apareceu gente na hora de pegar a bolacha. Pecado da gula, mais sacrilégio. A madrinha de minha irmã apareceu da Bahia e eu fiquei olhando para as pernas dela: conte ai mais pecados, começando de cem. Meu pai me deu dez mil réis e deu cinco a minha irmã e pediram para eu comprar um santinho para mim e um para ela, todos os dois com meu dinheiro e eu não gostei. Pecado da avareza e mais diversos quebrados e mistos.

Quando chegou na igreja, eu já estava suando e nesse dia não era uma questão de esquecimento na confissão, nem nada disso. Cada respirada que eu dava, tome uma pecada. A missa ia andando, ia andando e eu vendo a danação chegando, até que não aguentei mais e aproveitei que meu pai assistia missa lá de fora fumando, e minha mãe não podia gritar comigo na igreja e então disse a meu pai que queria ter uma conversa com ele de homem para homem, se ele não ia rir. Não vou rir, disse meu pai. Pois então, pois então eu quero ficar aqui na igreja até a outra missa, possa ser a missa das nove, das dez, das onze ou de meio-dia. Quero ficar para comungar depois de confessar direito. Muito bem, disse meu pai, quando voltar traga uma garrafa de clarete único da bodega de seu Barreto e volte antes de uma hora.

Minha mãe ainda quis que eu fosse com todo mundo e ainda quis muitas conversas, mas minha irmã estava com asas de anjo e tudo e tinha a madrinha altamente granfina da Bahia, de forma que eu fiquei. Confessei às nove, faltando um pouco. Pequei logo na saída, quis regressar, titubeei, fiz que ia mas não ia, acabei fazendo o sinal da cruz, rezando a penitência, assistindo a missa, mas não tive coragem de comungar, porque, na hora, eu parecia uma cabeleira pendurada de piolhos de pecados, um aspecto péssimo. Voltei, confessei às dez. Achei que, se corresse para o altar de Santo André e rezasse até a hora da comunhão, ia conseguir segurar o pecado. Mas quando fui ajoelhando no altar, veio uma onda de pensamentos de pecado e fiquei com vontade de comer um pastel com guaraná e até pensei que qualquer coisa eu dava para não estar ali e estar em outro lugar comendo um, ou dois ou três pastéis com guaraná. A missa toda eu passei pensando em comida e, quanto mais eu queria não pensar, mais eu pensava. Não comunguei, estava cada vez mais triste. Às onze, confessei rapidamente, ofereci minha fome a São Judas Tadeu e rezei cinco minutos de olhos fechados, acho que sem pecar. Mas, quando abri os olhos um minutinho, estava uma porção de moças passando lá fora para a praia e pequei, pequei, pequei! Uma fome enorme e uma vontade de chorar e então eu rezei todas as rezas que sabia e me confessei às doze horas para a missa do meio-dia e, ali ajoelhado, esperando a hora, fui sabendo que estava pecando, fui vendo aquela fieira de pecados passando por mim e até fiquei como que de fora, assistindo cinema. E nem me lembro como foi que eu me levantei e fui receber a comunhão, boiando no meio de todos aqueles pecados e, Deus me perdoe, quase tenho um engulho de arrependimento na hora da hóstia entrar em minha boca. A fome passou e acho que tive febre e até hoje não gosto de me lembrar disso, mas vivo me lembrando. Até hoje, tenho certeza de que vou para o inferno. E é só por isso que eu não quero morrer agora, porque, tirante isso, eu queria.

Fonte:
João Ubaldo Ribeiro. Livro de histórias. RJ: Nova Fronteira, 1981.

Gioconda Labecca

Gioconda do Carmo Labecca de Castro, nasceu em Campanha/MG, em 1931. Filha de Humberto Labecca e Iria de Resende Labecca, descendentes de italianos. Sua mãe foi professora na cidade de Campanha e aposentou-se por lá. Teve treze irmãos, todos falecidos.

Seus primeiros estudos foram feitos em Campanha e formou-se professora em Varginha/MG.

Desde muito cedo revelou um extraordinário talento para a composição de poesias. Seu primeiro poema foi publicado no "São Lourenço Jornal" quando contava apenas treze anos de idade.

Após a aposentadoria de sua mãe, a família mudou-se para o Rio de Janeiro, à procura de melhores condições de estudo para os filhos.

Tendo conhecido pessoalmente o Presidente Getúlio Vargas, foi nomeada como Investigadora no Departamento Federal de Segurança Pública, desde que era seu desejo trabalhar na Polícia.

Após dois anos como Investigadora, prestou concurso para o Ministério da Fazenda, no Depto. Administrativo do Serviço Público (DASP). Sendo transferida, posteriormente, para a Receita Federal, onde se aposentou.

Nessa época, ocupava suas noites ministrando aulas de dicção e oratória, conciliando o trabalho no Ministério da Fazenda com os estudos.

Noiva do Oficial da Aeronáutica Antônio Firizola, vivenciou a terrível tragédia de perdê-lo num desastre aéreo.

No rico ambiente cultural do Rio de Janeiro, envolveu-se com a intelectualidade, participando de vários grupos literários, notadamente, com o grande poeta general Arnaldo Damasceno Vieira, Presidente da Sociedade de Homens de Letras do Brasil, que a introduziu no meio literário, assim como com o poeta Manuel Bandeira, que a considerava a melhor declamadora de seus versos.

Fez cursos de Parapsicologia, Psicologia, Pirâmides, Radiestesia, Cromoterapia, na “Associação Mens Sana”. Curso de Parapsicologia no Hospital Santa Catarina SP. Curso Intensivo de Legislação Trabalhista no Palácio Tiradentes/RJ. Literatura na Academia Brasileira de Letras/RJ. História no Ateneu Paulista. Literatura na Academia Paulista de Letras, entre outros.

Sua estreia foi com o livro "Trinta Mensagens de Amor" lançado pela editora dos Irmãos Pongetti. O sucesso deste livro foi celebrado por muitos críticos literários que a comparavam a Olavo Bilac. Foi considerada a "Poetisa do Amor" pelo desassombro de seus versos. Após esse início auspicioso, seguiram-se mais vinte e um livros, ao longo dos anos, entre poesias, trovas, haicais e sonetos, evidenciando sua enorme energia criadora.

Membro da Academia de Brasileira de Trova/RJ (Cadeira de Teófilo Dias); Círculo de Cultura Luso-Brasileira e Luso-Espanhol – Portugal; Sociedade de Homens de Letras do Brasil/RJ; Academia Internacional Americana; Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes/RJ; Instituto Histórico e Cultural Pêro Vaz de Caminha/SP; Sociedade Geográfica Brasileira/SP; Ateneu Angrense de Letras e Artes (Angra dos Reis/RJ); Academia de Letras e Artes de Paracambi/RJ; Pen Club de Curitiba/PR. Foi Presidente da Academia de Letras da Grande São Paulo (Cadeira de Augusto dos Anjos) nos Bienios 2009/2010, 2011/2012 e 2013/2014.

Algumas de suas obras:

Trinta Mensagens de Amor - 1954 ; Cânticos - 1956; Sonetos Escolhidos - 1970; A Estória do Zé Cachorro - 1973 ; Brasil dos Meus Sonhos - 1977; Ao Som de uma Flauta Doce - 1992 ; Conte Histórias Recitando - 1998 ; Voltando ao Passado - 2006 ; Trovas da Madrugada - 2010; Réquiem para a Saudade - 2011.

Fonte:
Wikipedia
Academia de Letras da Grande São Paulo

quarta-feira, 25 de março de 2020

Monteiro Lobato (Fábulas) Liga das Nações


Gato-do-mato, jaguatirica e irara receberam convite da onça para constituírem a Liga das Nações.

– Aliemo-nos e cacemos juntos, repartindo a presa irmãmente, de acordo com os nossos direitos.

– Muito bem! – exclamaram os convidados. – Isso resolve todos os problemas da nossa vida.

E sem demora puseram-se a fazer a experiência do novo sistema. Corre que corre, cerca daqui, cerca dali, caiu-lhes nas unhas um pobre veado. Diz a onça:

– Já que somos quatro, toca a reparti-lo em quatro pedaços.

– Ótimo!

Repartiu a presa em quatro partes e, tomando uma, disse:

– Cabe a mim este pedaço, como rainha que sou das florestas.

Os outros concordaram e a onça retirou a sua parte.

– Este segundo também me cabe porque me chamo onça.

Os sócios entreolharam-se.

– E este terceiro ainda me pertence de direito, visto como sou mais forte do que todos vós.

A irara interveio.

– Muito bem. Ficas com três pedaços, concordamos (que remédio!); mas o quarto tem de ser dividido entre nós.

– Às ordens! – exclamou a onça. – Aqui está o quarto pedaço às ordens de quem tiver coragem de agarrá-lo.

E arreganhando os dentes assentou as patas em cima.

Os três companheiros só tinham uma coisa a fazer: meter a cauda entre as pernas. Assim fizeram e sumiram-se, jurando nunca mais entrar em Liga das Nações com onça dentro.
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Disse o Visconde de Sabugosa:

Na minha opinião, as fábulas mostram só duas coisas: 1) que o mundo é dos fortes; e 2) que o único meio de derrotar a força é a astúcia. Essa da Liga das Nações, por exemplo. Os animais formaram uma liga, mas que adiantou? Nada. Por quê? Porque lá dentro estava a onça, representando a força, e contra a força de nada valeram os direitos dos animais menores. Bem que a irara fez ver o direito desses animais menores. Mas nada conseguiu. A onça respondeu com a razão da força. A irara errou. Em vez de alegar direito, devia ter recorrido a uma esperteza qualquer. Só a astúcia vence a forç
a.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Carlos Drummond de Andrade (Luzia)


— Não está me conhecendo? Sou a Luzia. Em casa todos bem?

— Oh, Luzia, desculpe. Ando com a vista meio fraca. Mas você está um bocado alinhada, criatura!

— O senhor acha? Bondade sua.

— Acho, não. É fato. Você se casou, Luzia?

— Que nada, doutor. Casamento é pra quem pode, quem sou eu?

— Você estava noiva quando saiu lá de casa.

— Estava sim, mas o senhor quer que eu seja franca? Não gostava dele, queria só casar, pra dar gosto à minha tia, que me criou. Aí eu pensei assim: Não tenho amor a este camarada, depois do casamento faço a infelicidade dele, não é direito. Até que meu noivo era legal, tinha uma alfaiataria em Niterói, carro na praça. Não fiz bem?

— Você foi muito correta, Luzia.

— Pois é. Mas depois me desiludi dos homens, sabe? Me desiludi completamente.

— Tão cedo!

— Tenho dezoito anos por fora, por dentro já perdi a conta. Veja só; fui ser cem por cento com o meu noivo, e quando arranjei outro namorado, não dei sorte.

— Também não gostou dele?

— Gostei demais, aí é que está. Foi o meu erro. Aí ele me disse que era casado, não podia remediar nada.

— Sendo assim…

— Mentira dele, doutor. Minha prima gostou de um cara que não usava aliança, quando foi ver ele tinha obrigação em casa, com cinco bocas. O meu não, se fez de pai de família pra não casar.

— É pena, Luzia. Mas não fique triste, há tanto marido ordinário nesse mundo, quem sabe se você não escapou de um!

— Ah, mas agora sou eu que não penso em casamento. Tenho mais que fazer.

— E que é que você faz?

— Pois o senhor não sabe? Quando saí de sua casa, resolvi acabar com o serviço de copeira. Empregada doméstica não resolve. Fiz o curso na escola de manicure, tirei certificado e fui trabalhar num salão de mulheres. Não dava pra pagar o quarto. O porteiro de uma boate olhou pra mim e disse: “Broto, não faz unha de mulher, que é fominha, faz unha de homem”. Mudei de salão, desta vez dei sorte.

— Ótimo, Luzia.

— Graças a Deus nunca mais andei sem dinheiro, o senhor acredita? O patrão só me paga no fim do mês, mas os fregueses dão boas gorjetas, de maneiras que tenho sempre algum na bolsa. Agora estou menos folgada, porque tive de comprar móveis, o apartamento estava tão vazio!

— Que apartamento, Luzia?

— O que eu aluguei. Um freguês se ofereceu pra prestar fiança, dizem que isso é difícil.

— Não é difícil, é um sonho. E você se queixa dos homens?

— Quer dizer: de todos, não. Comprei os móveis no crediário e agora vou comprar uma radio-vitrola. Quando acabar o pagamento compro a geladeira.

— Parabéns, minha filha, você venceu.

— Ah, doutor, não diga isso. Estou só começando. Quando quiser, apareça lá em casa que me dará muito prazer. Casa de pobre, mas tem uísque pros amigos. Recomendações à madame, um beijo pros netinhos!

E seguiu — o alegre estampado, a saia curta, as pernas longas e bem esculpidas, o bico fino dos sapatos, o sorriso de dentes alvos no belo moreno carregado do rosto.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVII


Agatha Christie (Resenha de Livros) 5


OS CRIMES ABC
The ABC Murders


Um misterioso e metódico assassino comete seus crimes de acordo com três normas: escolhe suas vítimas e as cidades onde moram seguindo rigorosamente uma ordem alfabética; deixa junto aos cadáveres um guia de trens, chamado ABC na Grã-Bretanha e anuncia cada um dos assassínatos através de uma carta dirigida a Hercule Poirot, indicando o lugar e o dia em que cometerá o crime. Tudo leva a supor que se trata de um estranho e aterrorizador psicopata, tão louco quanto inteligente e frio, que os jornais comparam a Jack, o Estripador. Porém o cruel criminoso não sabia que, ao enviar cartas a Poirot, brincava com fogo, desafiando um inimigo que o superava em inteligência. E Poirot imagina se a maneira de agir do assassino não constitui uma perigosa cortina de fumaça para ocultar alguém mais perverso do que um sanguinário doente mental. Poirot lança a pergunta e, como sempre, termina encontrando a surpreendente resposta.

O pequenino gênio Hercule Poirot desvenda uma série de assassinatos muito intrigantes. São assassinadas pessoas cujos nome e cidade onde moram estão de acordo com a ordem alfabética e, junto de seus corpos é sempre encontrado o guia de trens ABC. O mais estranho, porém essencial para a solução dos crimes por Poirot, é que o misterioso assassino sempre avisa ao detetive quando irá matar suas vítimas indefesas. A polícia acha que Sir Alexander Bonaparte Cust é o assassino, mas Hercule soluciona esses crimes com um desfecho absolutamente incrível.

MORTE NA MESOPOTÂMIA
Murder in Mesopotamia


Na misteriosa e fascinante Bagdá, uma expedição arqueológica procura vestígios de uma antiga cidade assíria. Mas a arqueologia pouco pode ajudar, quando a bela e encantadora Louise Leidner, esposa do chefe da expedição, é brutalmente assassinada. É preciso que entre em cena o maior de todos os decifradores de enigmas: um conhecido detetive belga… Morte na Mesopotâmia é uma das mais sensacionais aventuras de Hercule Poirot, o genial investigador criado pela imaginação da “velha dama” do crime, Agatha Christie.

Mrs. Leidner é assassinada em uma expedição arqueológica em Bagdá. Fora algo muito estranho pois ninguém vira pessoas circularem no pátio do local que dava acesso a cena do crime. Quem teria feito tal monstruosidade com a bela Louise? Só uma pessoa poderia responder: Hercule Poirot.

Durante uma expedição arqueológica à Bagdá, Poirot é chamado para solucionar um misterioso enigma: A mulher do chefe da expedição é assassinada em seu próprio quarto, só que o acesso parece impossível sem que o assassino seja visto, pois todos os ambientes da casa, sem exceção, tem ligação com um enorme pátio, onde o criminoso poderia ser visto facilmente por qualquer um. Além disso, a vítima, antes de morrer, estava assustada porque vinha recebendo cartas ameaçadoras de uma pessoa aparentemente morta. Um final realmente surpreendente!!!

CARTAS NA MESA
Cards on the Table


Para investigar o inesperado assassinato do extravagante Mr. Shaitana durante uma partida de bridge, ninguém melhor do que seus próprios convidados: quatro detetives particulares - e entre eles se encontra o melhor de todos, Hercule Poirot. O problema é que sobre cada um desses homens paira a sombra de crimes não esclarecidos no passado. Neste jogo de cartas marcadas, em que todos são virtualmente suspeitos, caberá ao genial detetive belga dar a cartada final.

O ricaço Mr. Shaitana, que tem costumes um tanto bizarros, convida para um jantar em sua residência quatro detetives particulares (entre eles Hercule Poirot) e quatro assassinos que nenhum juiz conseguiu alcançar por falta de provas. E foi nessa noite que Mr. Shaitana assinou seu decreto de morte, foi assassinado por uma das oito pessoas ali presentes, mais provavelmente pelos quatro assassinos impunes. Hercule Poirot desvenda o crime descobrindo o assassino onde ninguém poderia imaginar.

POIROT PERDE UMA CLIENTE
Dumb Witness


Todos responsabilizaram o acidente que Emily sofreu na escada a seu cachorro, um terrier. O mais que Emily pensava sobre o acidente, mais ela se convencia que alguém da sua família tentava matá-la. Assim, no dia 21 de Abril, ela escreve uma carta a Hercule Poirot contanto suas suspeitas. Misteriosamente ele não recebe a carta até o dia 28 de Junho, quando ela já estava morta.

MORTE NO NILO
Death on the Nile


A parte principal deste romance desenvolve-se a bordo de um barco, que navega pelas águas do Nilo, em cujas margens se levantam ruínas milenárias, restos de uma civilização dedicada ao culto dos mortos; e lá nesse ambiente fúnebre, uma deslumbrante garota, que tinha tudo - juventude, beleza, riqueza e felicidade -, perde tudo, num repente, ao ser assassinada na sua cabine. O assassinato foi cuidadosamente planejado, para que seja impossível descobrir o assassino, quem teve a má sorte de que Hercule Poirot estivesse de férias no Egito, e pudesse investigar seu crime - aliás, seus crimes, porque há mais de um - com uma maior atenção da que se tinha empregado em cometê-los. Para aumentar a intriga e o suspense, sabemos que entre os passageiros do Karnack, se encontra um famoso assassino profissional, que é perseguido pelo Coronel Race, amigo de Poirot e sagaz agente do Serviço Secreto inglês.

Poirot sai de férias. Embarca no Karnack para um cruzeiro nas águas do velho Nilo. Mas o que seria um belo passeio transforma-se em uma série de assassinatos que assustam o detetive pela frieza como são executados. Mas como se faz um arqueólogo ele encontra fragmentos, espana-os tirando o supérfluo e chega a verdade.

ASSASSINATO NO BECO
Murder in the Mews


Quatro estranhos casos desafiam a inteligência de Hercule Poirot. No primeiro, que dá título ao livro, o detetive belga investiga a morte de uma mulher. Todas as pistas indicam que se trata de um suicídio, mas Poirot desconfia de assassinato. Em O Roubo Inacreditável, Hercule Poirot é contratado para desvendar o desaparecimento de documentos secretos do governo inglês. Em O Espelho do Morto, ele se depara, mais uma vez, com um estranho suicídio. Agora, a vítima é um excêntrico aristocrata, encontrado morto dentro do próprio quarto com todas as portas trancadas pelo lado de dentro. O último caso é Triângulo de Rodes. Um assassinato brutal é cometido, e um inocente está prestes a ir para a cadeia. Hercule Poirot põe suas “pequenas células cinzentas” para funcionar até descobrir a verdadeira identidade do culpado.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

terça-feira, 24 de março de 2020

Dorothy Jansson Moretti (Uma Noite Inesquecível)


Há uma grande agitação no vestiário feminino. As garotas que vêm de Riversul trocam às pressas a roupa que vestem pelo uniforme simples, clássico e bonito do coral: saia azul-marinho, blusa branca, sapatos vermelhos e um laço também vermelho amarrado à gola.

Eu as observo, divertida. Uma garota engordara e outra emagrecera. Já vestidas e não se sentindo a cômodo, resolvem trocar as saias. Despem-se e tentam vestir-se, uma com a saia da outra. Pior a emenda! Despem-se novamente e voltam a vestir-se como estavam, Duas meninas queixam-se dos sapatos que lhes maltratam os dedos... mas tudo isso em meio a boas risadas e exclamações divertidas. Uma farra!

Pelas dependências do Clube Fronteira encontro velhos amigos. Cumprimentamo-nos com efusão. É sempre gratificante vê-los novamente. Há uma grande expectativa. A apresentação do Coral Santa Cecília promete ser sensacional e a sala está repleta.

Começam a entrar os cantores, em fila, sob estrondosos aplausos. O Maestro Batista é o último a passar. Para ele, salvas mais imponentes ainda. As coristas se ajeitam na posição indicada pelo Maestro. Ele faz breve e interessante exposição sobre música coral. Mostra o que convém e o que não convém numa apresentação vocal. Depois volta-se para o grupo e de maneira quase imperceptível dá-lhes a tonalidade.

Então o milagre acontece. Como se fossem um único instrumento tangido pelos dedos do Maestro, aos movimentos de suas mãos, sopranos e baixos, contraltos e tenores desprendem suas vozes maravilhosas, ora em pianíssimo, ora em meio forte, depois e crescendo, e finalmente num forte ou fortíssimo de arrepiar até os nervos da gente, de comoção.

É uma completa sinfonia com seu adagio, seu allegro, seu rondo e seu scherzo. É a leve música da Renascença; é a doce Ave-Maria; é a missa monumental, é a inconfundível cançoneta italiana; é a sentimental música latino-americana; é o encantador folclore brasileiro, nas asas do vento a se "imbalançá".

É o fragor de uma tempestade. É o trinar de um passarinho. E todos os sons que as vozes do universo repetem a cada dia, desde a cascatinha humilde que despenha no riacho até o vagalhão que se esfacela às fragas rijas do oceano... É mais que magnifico. É divino!

Estamos extasiados ao final, e os aplausos são intermináveis. Descemos a escada e nos encaminhamos para a mesa onde será servido um suculento arroz-com-frango acompanhado de salada e de uma farofa deliciosa.

E mesmo ali, todo mundo com muito bom apetite e servindo-se à vontade, o espírito da música não abandona o ambiente. Cantam alguns, lá na ponta da mesa. Aqui no meio, o Maestro faz dueto com um dos tenores do coral. Até eu me encorajo e faço trio com minhas sobrinhas. E todas essas manifestações espontâneas e isoladas são muito aplaudidas.

Por fim, alguém pede uma música de sua preferência e o Maestro não se faz de rogado. E mesmo sentado, todo mundo tendo à frente um prato cheinho de ossos, ele dá o tom e a turma canta ainda três números, o último dos quais é o belíssimo e arrebatador Salmo 150, de Ernâni Aguiar.

Sou insaciável em matéria de boa música. Fico querendo mais... e acho que os outros também. Mas a festa chega ao fim. Ainda há quarenta e cinco minutos de estrada para o pessoal de Riversul.

Aqui fora está um tanto frio, mas o céu escuro está muito estrelado.

Que façam boa viagem o Maestro e seus companheiros!
  
(Tribuna de Itararé - 26/04/87)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Rachel de Queiroz (Nudez)


A filha tentava convencer a mãe a ir à praia e a velha resistia: estava muito idosa e gorda para vestir maiô.

— Mas, mamãe, eu já vi de maiô, na praia, muitas senhoras mais velhas e mais gordas do que você!

E a velha, suavemente:

— Eu também já vi. Por isso mesmo é que não vou.

Para mim, o critério dessa velha é o critério certo em matéria de nudez. O que é feio se esconde. Um moço, uma moça, no esplendor da juventude, seus belos corpos podem se mostrar praticamente desnudos, de biquíni, de sunga, de cavado: assim tão enxutos, rijos e tostados, chegam a ser castos. Predomina a impressão de beleza e saúde sobre a sugestão erótica. E, depois, sabe-se que aquela floração é tão transitória! Deixem que os jovens fruam o instante passageiro, que usem e mostrem os corpos na sua hora de flor, antes que chegue a hora da semente e do declínio.

Afirmam os nudistas, com perfeita lógica, que, todo o mundo andando nu, a nudez acostuma e deixa de escandalizar: sim, acredito que num campo de nudistas se acabe vivendo com a mesma naturalidade que numa sala de família. Aliás, quem convive com índios sabe disso: o hábito torna a nudez invisível.

O que eu tenho contra os nudistas é a exibição obrigatória da feiúra humana, o seu despojamento total, a miséria fisiológica sem um véu que a disfarce. O ridículo, a falta de dignidade de todo o mundo nu.

Certa amiga minha que, numa praia da Noruega. de repente se viu dentro de um grande bando de gente nua, diz que o seu choque primeiro não foi o da vergonha, foi o do grotesco. As pelancas, os babados, os rins flácidos, os joelhos grossos. A velhota magra com seus ossinhos de frango assado, a quarentona de busto murchinho, o senhor ruivo de barriga redonda, braços e canelas tão finos e peludos que, se tivesse mais duas pernas, seria igual a uma aranha. A matrona obesa e o seu esposo idem e o par de jovens rechonchudos, de mãos dadas como dois porquinhos enamorados. A seca donzela machona de coxas de cavalete, e a falsa Vênus de cintura grossa, com o falso atleta de torso enorme e pernas curtas. Da tribo toda, praticamente só se salvavam os adolescentes e as crianças.

A humanidade nua é feia, não há dúvida. E por isso mesmo a gente se oculta debaixo da roupa. Talvez mais do que para o defender do frio, a roupa se inventou para encobrir o corpo e lhe dar dignidade. O que é bonito se mostra, o que é feio se esconde, é a lei de todas as culturas humanas. Nada mais triste do que a deterioração do que foi belo. Ninguém usa no dedo um anel sem a pedra, ninguém bota na sala um ramo de flores murchas.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Fernando Sabino (Na Escuridão Miserável)


Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

- O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de esmola.

- Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.

- O que é que você está me olhando aí?

- Nada não senhor- repetiu.- Tou esperando o ônibus...

- Onde é que você mora?

- Na Praia do Pinto.

- Vou para aquele lado. Quer uma carona?

Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:

- Entra aí, que eu te levo.

Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:

- Como é o seu nome?

- Teresa.

- Quantos anos você tem, Teresa?

- Dez.

- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?

- A casa da minha patroa é ali.

- Patroa? Que patroa?

Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a  mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.

- Hoje saí mais cedo. Foi jantarado.

- Você já jantou?

- Não. Eu almocei.

- Você não almoça todo dia?

- Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim.

- E quando não tem?

- Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na  penumbra  do  carro,  suas  feições  de  criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês:

- Mas não te dão comida lá?- perguntei, revoltado.

- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse pra eu não pedir.

- E quanto é que você ganha?

Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma ninharia, não mais  que  alguns trocados. Meu impulso era voltar, bater  na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.

- Como é que você foi parar na casa  dessa...  foi  parar  nessa casa?- perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do  Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:

- Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí noutro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados. Pode parar que é aqui moço, obrigado.

Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia do Pinto.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972

Irmãos Grimm (As Três Linguagens)


Houve, uma vez, na Suíça, um conde que tinha um filho único, mas tão obtuso que não conseguia aprender coisa alguma. Então, o pai disse-lhe:

- Escuta, meu filho, por mais que me esforce, não consigo meter nada dentro da tua cabeça. Precisas ir para fora daqui. Eu te confiarei a um mestre muito célebre, que tentará fazer algo de ti.

O rapaz foi enviado a uma cidade estranha e hospedou-se na casa do mestre durante ano inteiro. Passado esse tempo, voltou para a casa do pai e este perguntou-lhe:

- Então, meu filho, o que aprendeste?

- Meu pai, aprendi o que latem os cachorros. - respondeu o rapaz.

- Misericórdia divina! - bradou o pai, - foi tudo o que aprendeste? Vou mandar-te para a casa de outro mestre, em outra cidade.

O rapaz foi e passou um ano na casa do segundo mestre. Voltando daí a um ano para casa, o pai perguntou-lhe:

- Que aprendeste, meu filho?

- Meu pai, aprendi o que dizem os passarinhos. - respondeu ele.

Zangadíssimo, o pai então gritou:

- Ó perdição humana! Perdeste um tempo precioso e nada aprendeste? E não te envergonhas de aparecer ante meus olhos? Vou mandar-te a um terceiro mestre. Se desta vez não aprenderes nada, não quero mais ser teu pai.

O filho permaneceu um ano inteiro com o terceiro mestre. Quando voltou para casa, o pai perguntou-lhe:

- Vejamos, meu filho, que aprendeste?

- Meu pai, - respondeu ele - neste ano aprendi o que coaxam as rãs.

O pai, então, louco de raiva, levantou-se de um salto, chamou a criadagem e disse:

- Este homem não é mais meu filho. Expulso-o de minha casa e ordeno que o leveis à floresta e o mateis.

Os criados levaram-no à floresta mas, no momento de matá-lo, condoeram-se dele e soltaram-no para que se fosse. Arrancaram os olhos e a língua de um veado, que levaram ao velho conde como testemunho.

O rapaz peregrinou durante algum tempo. Por fim foi ter a um castelo, onde pediu pouso para aquela noite

- Sim, - disse o castelão - mas só se quiseres pernoitar lá embaixo naquela torre. Advirto-te, porém, que arriscas a vida. A torre está cheia de cães ferozes que latem e uivam sem parar e, em determinadas horas, é preciso dar-lhes um homem, que devoram imediatamente.

Em consequência disso, toda a região vivia em luto e mergulhada na tristeza, e não havia quem pudesse solucionar o problema. O rapaz, porém, não tinha medo e disse:

- Irei lá com os cães que uivam. Dai-me somente alguma coisa que lhes possa atirar para que comam. A mim não farão mal algum.

Sendo essa a sua vontade, deram-lhe só a comida para os cães e o conduziram à torre. Quando penetrou lá dentro, os cães não latiram, mas abanaram amistosamente as caudas e comeram o que lhes apresentou, sem lhe torcer um só fio de cabelo.

Na manhã seguinte, saiu de lá são e salvo para assombro geral. Foi ao castelão e disse:

- Os cães, na sua linguagem, revelaram-se a razão por que estão aí presos e porque causam tanto dano à região. Estão encantados e precisam guardar um grande tesouro escondido lá embaixo, na torre. Enquanto o tesouro não for desenterrado, eles não se apaziguarão e, sempre na sua linguagem, entendi o que é preciso fazer.

Todos se alegraram ao ouvir isso e o castelão propôs adotá-lo como filho se conseguisse resolver tudo da melhor maneira possível. O rapaz tomou a descer à torre e, instruído como deveria agir, desincumbiu-se da tarefa com felicidade, depois levou para cima uma arca cheia de ouro. A partir desse dia, nunca mais se ouviram os medonhos uivos dos cães ferozes, haviam desaparecido. A região ficou livre para sempre desse flagelo.

Decorrido algum tempo, o rapaz teve a ideia de viajar a Roma. Pelo caminho, passou junto a um charco e dentro dele as rãs coaxavam seus mexericos. Aguçou o ouvido, prestando atenção ao que diziam, quando percebeu o que estavam a dizer, caiu em profunda tristeza e preocupação.

Finalmente, depois de muito andar, chegou a Roma. Lá soube que havia falecido o Papa e reinava grande incerteza entre os Cardeais, que não conseguiam eleger o sucessor. Por fim, convencionaram que seria eleito aquele a quem fosse revelada, por um sinal milagroso, a vontade Divina.

Justamente quando assim deliberavam, o jovem conde entrou na igreja e logo duas pombas brancas como neve, foram pousar em seus ombros e lá permaneceram imóveis. O clero reconheceu nisso a vontade Divina e, sem mais delongas, perguntaram-lhe se queria ser eleito Papa. O jovem, indeciso, não sabia se era digno de tal encargo, mas as pombas o persuadiram e ele respondeu que sim.

Então, foi ungido e consagrado, cumprindo-se assim aquilo que, com grande consternação sua, ouvira as rãs coaxarem ao passar pelo charco. Pois elas justamente diziam que ele se tornaria Papa.

Depois de coroado, teve de celebrar e cantar missa, mas não sabia uma única palavra, pois jamais tinha feito isso. Então as pombas, que permaneciam pousadas em seus ombros, o ajudaram, sussurrando-lhe aos ouvidos tudo o que devia fazer e dizer.

Fonte:
Contos de Grimm.

domingo, 22 de março de 2020

Monteiro Lobato (Por que Lopes se Casou)


— Pois, meu caro — dizia Lucas ao seu amigo Lopes —, fiz essa asneira, casei-me.

— E és pai duma legião...

— Tenho doze filhos e já alguns avos do décimo terceiro.

— E tudo quanto produz o teu trabalho some-se em bugigangas, leite, farinha, cueiros, fraldas, cavalinhos de pau...

— Um trabalho de negro cativo mal dá para mantê-los no pé de decência que minha posição requer. E é uma voragem a minha casa. Quando entro numa sapataria é para comprar doze, catorze pares de sapatos! Das lojas nunca trouxe fazenda aos metros, é às peças. De feijão gasto meia saca por quinzena. Uma voragem!

“E se visses que jararaca me saiu minha mulher... Uma fera, Lopes! Dessas que lançam com prato à cara do marido se este torce o nariz ao quitute. E feia, desleixada, lambona, cabelos despenteados, um fedelho aos berros no braço, as chinelas a se arrastarem pela casa, trec, trec, trec. Traz à cinta a penca de chaves e um rabo de tatu que até a mim inspira respeito. Dirige o movimento da casa a lambadas. Grita sem parar, deblatera, diz nomes, arranca a orelha às criadinhas. É um despotismo de saias a serviço dum estado de sítio que suprimiu o meu poder marital, o meu pátrio poder, o meu poder animal de homem, e me põe na casa humilde e caladinho, de orelhas murchas como um lazarento burro de carroça. Felizmente o trabalho na repartição afasta-me da inferneira oito horas por dia. É quando vivo. Mas logo que a tarefa termina e volto para a geena, ah, Lopes, nunca saberás com que angústia o faço... O lar! Falam poetas nas delícias do lar, no remanso do lar... A avaliar pelo meu, o lar é círculo que esqueceu ao Dante. Em caminho para o ‘remanso do lar’ rememoro tudo o que me espera. No topo da escada, de mãos à cintura, a minha tremenda metade em atitude de juiz em face do réu.

“— Trouxe a pimenta? Comprou o sabão? Chamou o homem para consertar a torneira?

“E se acaso me esquece alguma coisa, lá desaba o temporal.

“— É isto. Não presta para nada, não sei por que casou, já que não serve nem para trazer da cidade um pão de sabão de cinza para a burra da mulher que fica em casa a se matar de trabalho —, e tá, tá, tá. Não imaginas a minha vida, Lopes...”

Arrepiado ante as confidências do amigo, Lopes alvitrou certas soluções desesperadas.

— Em teu caso, Lucas, eu recorria a meios extremos, ao divórcio, à bolinha...

— Caçoa, caçoa. Eu também caçoava...

— Mas, Lucas, estás a exagerar. Dou de barato que seja assim. Mas há compensações. Os filhos, por exemplo, as sãs alegrias da paternidade...

— Os filhos... Tem muita graça o primeiro, o segundo e ainda o terceiro. Depois, do quarto ao décimo segundo... que pestinhas infernais! Destroem tudo, põem a casa imunda, vivem num corrupio de travessuras capazes de endoidecer um santo. Não sei se os filhos dos outros são assim, mas os meus batem os recordes. Há um, senhor Lulu, que prenuncia novo Átila. Diverte-se em quebrar, furar, judiar, escangalhar o que encontra. Ontem procurei um livro — livro de contas, sossega! — e fui encontrá-lo no quintal, dentro duma poça d’água, à guisa de barragem de dique. Só em louça quebrada esse patife me dá um rombo de quarenta mil réis por mês.

“E não é só ele.

“O Eduardinho tem a mania de enfiar os talheres nos buracos dos ratos, nas frestas do assoalho.

“Outro se especializou em quebrar os dentes aos garfos. Chegamos à perfeição de ter em casa apenas um garfo com quatro dentes! Já as facas são uma dentadura completa. Quem é o dentista? O senhor Lulu. Aparece uma cadeira com três pernas. Quem foi o carpinteiro? O senhor Lulu.

“A Inazita tem a bossa da costura. Está praticando no corte... Em pilhando a tesoura, esconde-se nos cantos e vai picando o que encontra. Há dias recortou um corpinho no oleado da mesa, um oleado adquirido na véspera — e tão caro...

“O Leandro é o homem da balística. Vive com o papo da camisa cheio de pedregulho e cacos de telha — ‘tentos’, diz ele — e brinca de partir vidraças aos vizinhos. Tem, para mal meu, mão certa como o Guilherme Tell.

“O Lucas, esse chora. Chora doze horas por dia, à toa, por brincadeira. É o rei da manha, mas daquelas manhas intermináveis que deixam os nervos da gente em carne viva.

“O Bentinho, que é torto, o coitado, já fuma pontas de cigarro e coleciona nomes feios apanhados na rua.

“O mais velho foge de casa pela janela e entra de madrugada. Anda-me sorumbático, com umas perebas suspeitas.

“O Juvenal...”

— Para um bocado, Lucas. Deixa-me tomar fôlego e fazer uma observação. Sendo assim como dizes, travessos, insubordinados, insuportáveis, a culpa é só tua. É que lhes não dás a devida disciplina, não os corriges, não lhes torces o pepino no tempo propício, homem!

— Será, mas que queres? Não posso, não tenho energia. Sou uma tapera, um homem arrasado que me fiz fatalista para ter uma filosofia que me dê paz à consciência. Bem me acusa ela de inépcia e frouxidão extrema... Às vezes vêm-me ímpetos de reagir, entrar em casa de guatambu em punho e ir deslombando às cegas a escadinha inteira, coisa de começar no frangote das perebas e acabar nos seis gatos ladrões do Chiquinho, com escala pelos cães sarnentos do Manuel, pelos canários azucrinantes do Júlio e pelas bonecas de pano de Mariquinha. Moê-los em massa, a granel e ir entregar-me à polícia e pedir ao júri, de joelhos, trinta deliciosos anos de paz e silêncio no fundo duma cela. Mas fica em ímpetos. Sou uma tapera, incapaz dum movimento enérgico...

O pobre Lucas consultou o relógio e assustou-se.

— Três horas! Minha cara-metade deve estar furiosa. Adeus, Lopes, vou-me ao “repouso do lar” — concluiu, despedindo-se com um riso amargo.

E foi-se o Lucas apressadamente, cheio de pacotes pelos nós dos dedos; embrulhos nos bolsos e um queijo sobraçado...

Lopes ficou imóvel no lugar, com os olhos parados, recordando. Veio-lhe à mente o Lucas de quinze anos antes. Era um rapagão alegre, todo esperanças no futuro e amigo de arquitetar castelos de Espanha. Poetara. Amara uma dúzia de meninas em duas centenas de sonetos parnasianos e por fim elegeu como diva a Nonoca Fagundes, uma loura translúcida, de fala melíflua — Botticelli temperado à moderna, dizia ele.

Era bonitinha, dezessete anos, em pleno viço da beleza do diabo, um mimo de fragilidade grácil, boazinha como não havia outra — boa, “boa constritor”... Muito ingênua e amiga de reticências graciosas, corava a todo instante. Dizia ele: Moram em suas faces duas rosas Bela-Helena. Andar saltitante como de sílfide.

Um verso dele rezava:

Das plumas tens no andar
a suave macieza...

Lucas amou-a em regra, e sonetou-a inteira dos cabelos aos pés, parnasianamente, nefelibatamente, com lirismo de comover as pedras. Não a tratou antropofagicamente, porque a antropofagia guindada à escola estética ainda não fora inventada.

Sonhou-a ao seu lado, “amiga peregrina de alma e coração”, num arroubo perene de felicidade celestial pela estrada da vida afora... Amou-a três anos seguidos, com o dispêndio duma arroba de versos arrancados à carne viva da inspiração. Bateu-se a punhadas com vários rivais temíveis. Rompeu com a família, que desaprovava o casamento. Cantou-lhe à janela, com muito choro de violão, todas as modinhas do tempo — Quisera amar-te, Acorda donzela —, além de outras adrede compostas para aquele fim. Amou-a loucamente, “como só se ama uma vez na vida”. Foi desses que dizem em prosa, verso e cochicho: “Ver-te e amar-te foi obra de um só momento”.

Intercalou em alexandrinos o clássico “anjo, mulher ou visão”. Esgotou inteirinho o alforje romântico das imagens enluaradas; recorreu à botânica e assolou o reino vegetal à cata de flores comparativas. Não contente com isso, ainda deambulou pelos céus e mergulhou no oceano em busca de imagens — que nada era bastante à imensidade daquele amor.

Casou por fim e estava reduzido àquilo...

Em vista do que, Lopes, que andava noivo e irresoluto se casaria ou não, tendo já no ativo uma dúzia de sonetos amorosíssimos, decidiu-se incontinenti — casou.

Se tinha de acabar como o Lucas, levasse sobre ele, ao menos, a vantagem de menor cópia de versos à futura cascavel. Porque lhe pareceu que o maior sofrimento do Lucas havia de ser o remorso da enorme bagagem de versos pré–nupciais.

E era.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 4


POR QUE NÃO PEDIRAM À EVANS?
Why Didn’t They Ask Evans?


Frances Dewent e Bobby Jones formam uma dupla de jovens destemidos à procura de novas aventuras. Dessa vez, os dois descobrem o cadáver de um homem que pode ter sofrido um acidente ou ter sido assassinado. Frances e Bobby decidem investigar o caso, tendo duas pistas. Uma é a fotografia de uma bela mulher. A outra é uma estranha frase pronunciada pelo homem antes de morrer: “Por quê não pediram à Evans?”. Em busca da mulher misteriosa e do tal Evans, a dupla se envolve com um perigoso assassino. A solução do crime parece estar cada vez mais próxima… e as vidas da dupla por um fio.
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ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE
Murder on the Orient Express

A ação de Assassinato no Expresso do Oriente, um dos romances mais famosos de Agatha Christie, transcorre, integralmente, no mais famoso dos trens, e serviu de argumento para um célebre filme, no qual todos os numerosos personagens da narração - quase não há personagens secundários - foram interpretados, algo muito pouco frequente no cinema, por figuras de primeira. Ao se passar num trem, a sua apaixonante intriga é ao mesmo tempo concentrada e dinâmica porque se desenvolve sempre num mesmo lugar, que tem a particularidade de ser um lugar em movimento. Através desta longa viagem, o inefável e sedentário detetive belga Hercule Poirot goza da oportunidade de resolver um dos seus casos mais misteriosos, tendo ao seu alcance, sem necessidade de deslocar-se, tanto a vítima como todos os possíveis assassinos.
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O DETETIVE PARKER PYNE
Parker Pyne Investigates


Especialista em estatística, dono de uma mente muito viva e um grande conhecedor da natureza humana, Parker Pyne utiliza estas qualidades para ser uma espécie de vendedor de felicidade. Mas o bondoso e aparentemente inofensivo detetive não se limita a solucionar os problemas de mulheres ciumentas, maridos fracassados ou militares da reserva: também cabe a ele enfrentar ladrões, sequestradores e assassinos. Para eles, Pyne prepara as armadilhas mais engenhosas, demonstrando que uma mentira oportuna pode ajudar a descobrir a verdade. Estas doze histórias variadas e divertidas sobre o curioso personagem mostram o inigualável senso de humor que tornou Agatha Christie famosa em todo o mundo.

O Caso da Esposa de Meia-Idade

Depois que a Sra. Packington descobre que o marido está saindo com outra mulher, ela decide procurar Parker Pyne para tentar resolver seu problema. Com um pouco de artimanhas, o detetive finalmente consegue seu objetivo de uma maneira muito interessante.

O Caso do Soldado Insatisfeito
Um major do exército entra em contato com Parker Pyne pois se sente entediado. O detetive pede para ele ir a um certo endereço se encontrara com um tal de Jones. Lá ajuda uma mulher que o coloca numa grande aventura. No final vemos como foi que tudo foi tramado.

O Caso da Senhora Angustiada
Uma senhora pede que Parker Pyne lhe ajude a devolver um diamante que roubara sem que ninguém saiba, pois poderia acabar com seu casamento. Parker Pyne a ajuda e descobre outras coisas que a senhora não teve coragem de contar.

O Caso do Marido Desgostoso

O Sr. Wade não quer se separar de sua mulher que já tem um amante. Assim, procura Parker Pyne para tentar ajudá-lo a reconquistar a mulher. Com um plano muito simples, o detetive consegue seu objetivo mas deixa o Sr. Wade em uma situação muito constrangedora.

O Caso do Empregado de Escritório

Um empregado de escritório está cansado da monotonia do dia-a-dia e procura Parker Pyne para resolver seu problema. Com um pouco de criatividade, o detetive faz o empregado viver muitas aventuras que o fazem ver como a vida pode ser emocionante.

O Caso da Milionária
Depois da morte de seu marido, uma milionária se sente infeliz mesmo tendo tudo o que o dinheiro pode comprar. Chama o detetive para ajudá-la, e ele faz a milionária fazer uma pequena viagem que muda completamente sua vida.

Você Tem Tudo o Que Quer?
Numa viagem de trem, o detetive Parker Pyne tenta resolver o mistério do desaparecimento das joias de uma jovem senhora. Depois de algumas investigações, ele descobre a identidade do ladrão e resolve mais um caso.

O Portão de Bagdad

Viajando pelo Oriente, Parker Pyne se defronta com um assassinato muito curioso e que desperta sua curiosidade. Apenas conversando com alguns passageiros ele consegue descobrir a identidade do assassino e o motivo que o levou a fazer o que fez.

A Casa de Shiraz

Ainda no Oriente, Parker Pyne tenta resolver o mistério de uma inglesa que não deseja voltar nunca mais à Inglaterra. Com um único detalhe, o detetive descobre os motivos da inglesa e a faz mudar de ideia.

Uma Pérola Valiosa

No Oriente, Parker Pyne tem que resolver o caso do desaparecimento de uma pérola muito valiosa, perdida durante um pequena viagem que todos fizeram. Como sempre, o ladrão é sempre o menos suspeito.

Morte no Nilo

Senhora pede ajuda a Parker Pyne pois acredita estar sendo envenenada pelo marido. Sua enfermeira fala com ele sobre a mesma suspeita. Com uma simples análise, Parker Pyne descobre quem está envenenando a senhora.

O Oráculo de Delfos
O filho da Sra. Peters é sequestrado e seus raptores pedem uma colar que vale 100 mil dólares. Pedindo a ajuda de Parker Pyne, ela tem de volta seu filho e a identidade dos sequestradores.
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TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS
Three Act Tragedy


Durante uma festa na casa do famoso ator Sir Charles Cartwright, o reverendo Stephen Babbington cai morto, envenenado, diante dos convidados. Este crime cruel é apenas o primeiro ato de uma tragédia macabra, que envolverá ainda outros dois misteriosos assassinatos, sempre por envenenamento. Três grandes desafios para o genial detetive Hercule Poirot, que rouba a cena com sua arguta inteligência, para arrancar a máscara sob a qual se esconde o insuspeitado assassino.
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MORTE NAS NUVENS
Death on the Clouds


Uma velha senhora é assassinada quando viajava de avião de Paris a Londres. A causa da morte foi uma pequena ferida provocada por um dardo envenenado lançado de uma zarabatana. O assassino somente poderia ser um dos dez passageiros restantes do avião, mas, para desgraça do criminoso, entre eles estava o único que poderia descobri-lo: um baixinho de grandes bigodes e aspecto um tanto ridículo, chamado Hercule Poirot. Duas são as principais perguntas que se colocam para o grande detetive belga: 1) Por que o assassino escolheu arma tão estranha e exótica para cometer o homicídio? 2) Como pôde disparar a zarabatana dentro de um espaço tão reduzido sem ser visto por nenhum dos outros passageiros? Completamente desconcertada a polícia considera que, mesmo que o assassinato sendo um fato, sua execução parece impossível. Poirot, para quem nada é impossível, descobre o engenhoso recurso usado pelo assassino para matar a vítima e, como consequência, sua insuspeitada identidade.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

sábado, 21 de março de 2020

Humberto de Campos (Chaves e Fechaduras)


- Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, - dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda viscondessa de Lima Freire, - os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos poderão compreendê-las.

- As mulheres são, então, o maior mistério do universo? - indaguei, com ironia.

A viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância, acentuou, bondosa:

- O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da fechadura tão frequentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.

- O símbolo da fechadura?

- Sim; não o conhece?

E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de míope:

- Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...

- Só? - interrompi.

- Espere aí! - pediu, impondo-me silêncio com o leque.

E continuou

- Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?

Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.

- Cada mulher - continuou - devia esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a felicidade de um lar!

- Isso era antigamente! - observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. - Hoje não há mais portas com uma chave só.

E acentuou, rindo:

- As portas, hoje, são de trinco!

Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.

Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas da secretária…

Fonte:
Humberto de Campos. Contos Vários.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 3


A LINHA DO CORAÇÃO
Alguém leu, anos atrás,
a palma de minha mão,
e disse, entre outras coisas,
com muita admiração:
"Como é nítida e perfeita
a linha do Coração!..."

Os anos foram correndo...
Muita gente foi subindo…
Muita gente enriquecendo...
E eu sempre pobre e humilde,
fui vivendo... fui vivendo...
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  CARTA
à Sebastiana (menina às vésperas de sair de um Abrigo)

Muito em breve partirás,
minha alegre Sebastiana!
Sei que contas dia a dia,
e semana por semana...
E se alegre sempre foste,
tão vivaz e tão contente,
agora então teu olhar
tem um brilho diferente!

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana,
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!


Bem sei que anseias partir...
Queres conhecer a Vida...
Por isso, ansiosa, só pensas
agora em tua partida.
— Partir para ver o Mundo...
Ser feliz... ter liberdade...
Descobrir o cobiçado
País da Felicidade!...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Há muitos anos já vives
neste acolhedor Abrigo,
e sei que me consideras
um sincero e bom amigo.
És tão ingênua, tão boa,
nada conheces do Mundo,
e julgas que vais achar
um paraíso profundo…

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, —
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Não julgues um Paraíso,
a Vida... o Mundo cá fora!
Há muito lábio sem riso...
Há muita gente que chora...
E até mesmo as alegrias
que tu pensas que se alcança,
vais ver depois: são menores,
que os teus sonhos de criança...

Mas ouve aqui um conselho,
— teu amigo não te engana, –
modera tua alegria,
minha alegre Sebastiana!

Meus versos tristes perdoa,
são versos de despedida;
guarda-os bem para lembrares
da tua infância querida...
Não percas jamais teu riso,
nem na luta mais insana!
Que a Vida te seja leve...
Sê feliz, Sebastiana!
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CREPÚSCULO

Não tem de todo ainda a chama fria,
o seu olhar que tanto ardia outrora...
Mas aquele esplendor que nele havia,
serenamente, e aos poucos, vai se embora...

Nota-se ainda traços de Alegria
nos seus ares tão sérios de senhora,
como raios de sol em agonia,
numa Tarde que, lenta, se descora...

Tem o viço da flor em plena vida!
Mas amanhã talvez (ninguém garante!...)
que não tombe do caule, fenecida...

E assim se vê, num tom ainda incerto:
— sinais da Juventude já distante
e traços da velhice que vem perto!...
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INFELIZES…

Certas vidas eu conheço,
que entre tristezas e prantos,
têm sempre um feliz momento…
– E há vidas que são marcadas
por tão constante tormento,
que eu julgo só conhecerem
neste Mundo o Sofrimento…
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TARDE DEMAIS…
(Para o Dr. Cid Cardoso)

Ela passou por minha vida um dia...
E amou-me muito como mais ninguém!
Tinha a beleza olímpica, sadia,
e uma alma pura e esplêndida também!

Que afinidade entre nós dois havia!
E ao seu lado sentia-me tão bem!
Do ideal que se sonha, parecia
ter mais ainda que o ideal contém…

Por minha culpa demorou-se pouco…
Vi-a partir, indiferente e louco,
sem dar-lhe um beijo ou um adeus sequer.

E agora… muito tempo já passado,
eu sofro pelo mal de ter amado
tão tardiamente assim esta mulher!…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Irmãos Grimm (Gentalha)


Franguinho disse à Franguinha:

- Agora é a época em que estão amadurecendo as nozes, vamos os dois à montanha e, pelo menos uma vez na vida, fartemo-nos, antes que o esquilo as carregue todas.

- Sim, - respondeu Franguinha - vamos; vamos regalar-nos fartamente.

E lá se foram os dois para a montanha. Como era um dia magnífico, deixaram-se ficar até tarde. Ora, eu não sei se realmente estavam empanturrados, ou se apenas fingiam estar, só sei que não queriam voltar a pé para casa e Franguinho teve que construir um carrinho com cascas de nozes. Quando ficou pronto, Franguinha acomodou-se nele e disse:

- Agora, Franguinho, podes puxar.

- Que ideia a tua! - respondeu Franguinho, - prefiro antes ir a pé para casa. Não, não foi esse o nosso trato. Sentar-me na boleia e servir de cocheiro, posso fazer, mas atrelar-me e puxar, isso é que não!

Enquanto assim discutiam, chegou uma pata cacarejando:

- Corja de ladrões, quem vos deu licença para invadir a montanha das minhas nozes? Agora me pagareis.

Precipitou-se de bico aberto sobre Franguinho, mas este, que não era nenhum covarde, atirou-se valentemente contra a pata, trepou-lhe nas costas, bicou-a e esporeou-a tão violentamente, que ela não teve remédio senão pedir mercê. Como punição, consentiu que a atrelassem ao carrinho. Franguinho subiu à boleia como cocheiro e partiram em carreira desabalada.

- Corre pata, corre o mais ligeiro que puderes!

Após terem percorrido bom trecho de caminho, encontraram dois peões: um alfinete e uma agulha. Estes gritaram:

- Para! Para!

Então explicaram que já estava escurecendo e não podiam dar mais um passo sequer; o caminho estava tão lamacento! Não poderiam viajar no carrinho? Tinham estado na estalagem dos alfaiates, além dos muros da cidade, e lá se haviam retardado bebendo um copo de cerveja.

Como era gente magra, não ocupavam muito espaço. Franguinho deixou-os subir. Mas tiveram de prometer não pisar os pés dele o de sua querida Franguinha. Era tarde da noite quando chegaram à estalagem, e não querendo prosseguir a viagem de noite, mesmo porque a pata estava mal das pernas, cambaleando de um lado para outro, decidiram pernoitar aí.

O estalajadeiro, a princípio, tentou opor-se, inventando mil dificuldades e alegando que a casa estava lotada. Isso porque tinha a impressão de que não eram da alta sociedade. Mas, tão bem souberam argumentar, prometendo-lhe que ganharia o ovo que Franguinha havia posto pelo caminho e, também, que ficaria com a pata que botava um ovo por dia, que, finalmente, ele acabou por deixá-los pernoitar.

Mandaram, então, pôr a mesa e banquetearam-se alegremente. Pela manhã, logo de madrugada, quando ainda dormiam todos, Franguinho despertou Franguinha, apanhou o ovo, fez-lhe um buraquinho com o bico e juntos chuparam-no, atirando a casca na lareira.

Depois, foram onde estava a agulha dormindo a sono solto, pegaram-na pela cabeça e espetaram-na no encosto da poltrona do estalajadeiro, e o alfinete espetaram na toalha de rosto.

Feito isso, sem dizer a ninguém, abriram as asas e foram-se voando pela planície afora. A pata, já habituada a dormir ao relento, tinha ficado no terreiro; ouvindo-os esvoaçar, acordou e foi saindo. Encontrou um regato e por ele foi nadando, descendo a corrente; era mais rápido do que puxar o carrinho.

Algumas horas mais tarde o estalajadeiro, levantando-se antes dos outros, lavou-se e foi enxugar-se na toalha; então o alfinete arranhou-lhe o rosto, deixando-lhe um sulco vermelho que ia de uma orelha a outra. Foi à cozinha, onde queria acender o cachimbo, mas, ao inclinar-se na lareira, as cascas do ovo saltaram-lhe nos olhos.

- Esta manhã tudo está contra a minha cabeça, - resmungou, e deixou-se cair muito irritado na sua poltrona. Mas deu um pulo, gritando: - Ai, Ai.

A agulha o havia espetado dolorosamente, - e não na cabeça.

A essa altura, o furor dele chegou ao extremo; começou a suspeitar dos hóspedes que haviam chegado tão fora de hora na noite anterior. Foi procurá-los, mas estes já haviam desaparecido.

Diante disso, o pobre estalajadeiro jurou nunca mais hospedar gentalha que, além de comer muito, não paga nada, e ainda por cima, agradece com malvadezas.

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVI


Alcântara Machado (Lisetta)


Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

- Olha o ursinho que lindo, mamãe!

- Stai zitta! (Cale a boca!)*

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.

- As patas também mexem, mamã. Olha lá!

- Stai ferma! (Fique parada!)

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil réis na Casa São Nicolau.

- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

- Ah!

- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:

- In casa me lo pagherai! (Você vai me pagar em casa!)

E desferiu por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

- Stai ferma** o ti amazzo, parola d'onore! (Fique parada ou eu mato você, palavra de honra!)

- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! (Escute, Lisetta. Eu não vou mais te levar para a cidade! Nunca mais!)

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere più adesso! (Não chore mais!)

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

- Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não aguentava mais.

- Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:

- Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
____________________
* Todas as frases em italiano foram traduzidas para o português por José Feldman.
** No texto original está “ferina” (selvagem, ferina), o que deixaria sem sentido o texto, acredito que foi um erro de digitação e o correto é “ferma” (calada).


Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Dorothy Jansson Moretti (Índios e Lágrimas)


Em conversa com minha vidinha, dizia-me ela    finalmente, uma amiga de sua filha vencera a resistência dos pais e se casara com um advogado que eles repudiavam por ser de origem indígena.

O preconceito fez-me lembrar de um fato que aconteceu quando eu estudava em colégio interno, e eu o relatei com minúcias à minha vizinha.

Certo dia, apareceu no pátio, vindo pela estrada que ligava o colégio à cidade, uma distancia de quatro quilômetros, um indiozinho de uns catorze anos. Tinha um nome lindo e sonoro: Itáiro Igaiara. Coitadinho! Não se sabia o quanto ele havia andado, mas estava coberto de poeira, a roupa em frangalhos e os cabelos semi-longos sujos e cheios de piolhos! Deram-lhe "aquele" banho, vestiram-lhe roupas limpas, cataram-lhe os parasitas, e permitiram que ele ficasse no colégio, estudando em troca de pequenos serviços nas hortas, compatíveis com sua capacidade física.

Itáiro, não lhe bastasse a timidez, era menosprezado por quase todos os colegas masculinos e femininos. Eu tinha pena dele e tratava-o sem preconceito, conversando e procurando fazê-lo sentir-se mais integrado entre nós.

As coisas, porém, começaram a tomar um rumo que eu não previra. Ele tentou levar a amizade para o terreno de um namorico. Eu tinha só treze anos, e aquilo me pareceu uma coisa horrível! Fiquei indignada e passei a trata-lo com estudada indiferença. O pobre sentiu a virada e ficou tristinho, mas eu estava irredutível. Não nos falamos mais.

Chegou o fim do ano e em meio aos preparativos para as festas, Itáiro, por intermédio de Dona Anita, nossa governante, conseguiu conversar comigo. Pediu-me desculpas. Disse que não queria voltar para Mato Grosso, de onde viera, deixando-me magoada com ele. Profundamente tocada por sua humildade, eu "perdoei" Itáiro, e continuamos amigos novamente.

Enquanto eu contava esse caso à minha vizinha, não percebi que meu filho, que tinha seis anos, estivera atento à nossa conversa. Eu esqueci o assunto. Mais tarde, notei que Paulinho, sempre tão vivo e tagarela, estava meio macambúzio, mas não prestei muita atenção àquilo. No fim da tarde, muito quieto, de deitou-se e cobriu a cabeça. Fui ver o que havia. Estava doente? O que estava sentindo? Mas ele... nada!

À noite, minhas amigas Noemi e Elivir apareceram lá em casa. Contei-lhes que o Paulinho não estava muito bom. Elas foram vê-lo. Elivir achou-o muito quente e vermelho. Colocou-lhe o termômetro. Normal, mas ele não falava nem mesmo com elas de quem gostava tanto e que o agradavam demais.

Ficamos as três preocupadas, e eu resolvi obrigá-lo a dizer-me o que se passava. Cansado com minha insistência, ele finalmente reagiu, mas num pranto desesperado...

'*Buááá...”

"Mas o que é isso, meu filho. O que é que você tem?"

Chorando e fungando muito, a resposta, toda entrecortada, veio afinal:

"É... por causa... do índio...”

– "Índio? Mas que índio?"

Eu estava aturdida. Não tinha a mínima ideia do que ele queria dizer.

Soluços:

"O índio que queria casar com você,,, e você não quis... Ele usava pena, mamãe?"

Toda a minha preocupação acabou-se. Mentalmente reconstituí a cena da maneira como Paulinho a imaginara: um índio todo enfeitado de penas, querendo casar comigo e eu dizendo que não... Deu-me uma vontade louca de rir, e a custo consegui conter-me.

"Mas meu filho? A mamãe tinha só treze anos e o índio catorze. Não podíamos nos casar.”

Ele continuava num choro desconsolado. Abria as comportas retidas durante um dia inteiro. Eu mal sabia o que fazer. Muito menos Elivir e Noemi que ignoravam absolutamente o que se passava. Tive que repetir-lhes a história, depois, na cozinha, e elas riram a valer, às escondidas de Paulinho, para não magoa-lo ainda mais. E ele chorava, chorava…

Finalmente ocorreu-me uma ideia;

"Filho, mas e o papai? Se eu casasse com o índio, você seria filho do índio e não do papai Paulo... Você queria?"

Acalmando-se um pouco e ainda fungando muito, ele me olhou assustado.

Insisti:

"E então... onde é que o papai ficava nessa história?"

Agarrado ao pai do jeito que ele era, acabou por se conformar. Secaram-se as lágrimas e, como acontece em qualquer criança, dali a instantes já estava alegrinho, brincando com Noemi e Elivir, feliz da vida e esquecido - pelo menos momentaneamente ~ daquele índio de penas que tanto o fizera "penar"...

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Telefone)


- O senhor é que é o senhor mesmo?

- Como?

-  Estou perguntando quem é o senhor, afinal.

- Evaristo Pestana de Matos, seu criado.

- Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.

- É meu avô paterno.

- Então fala pra seu avô vir ele mesmo, trazendo a carteira.

- Isto eu não posso falar não senhor.

- Não pode por quê?

- Porque ele já é falecido desde 1952.

- Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada.

- Cancelada como, se ele foi chamado pela Companhia no jornal de hoje?

- Olha, moço, a Companhia chamou na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a chamada. Compreendeu?

- Compreendi não. A Companhia chamou, tá chamado. Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a primeira cota do telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo, aliás afilhado dele.

- O senhor está é brincando. Seu avô não precisa mais de telefone.

- Mas preciso eu, que sou neto dele, será que o senhor também não mora? Este talão aqui foi conservado pela família durante  um  quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor do lado esquerdo, chamou meu pai  e disse: "Etelberto, tira da gavetinha do criado-mudo minha inscrição de telefone e guarda ela com cuidado. Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa esperança. Não vende a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho. Satisfaz minha última vontade". Disse e morreu.

- É comovente, mas...

- Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e  também embarcou, coitado. Na hora de despedida, me fez a mesma  recomendação. Estou cumprindo um mandado de família, uma coisa sagrada para mim. Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão.

- Esse talão é de Abel Setembrino de Matos, homem!

- Eu sei. Meu avô, pai de meu pai. Me tocou como bem de família.

- Tocou como? Por acaso entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando isso?

- Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais senão eu podia ficar com o talão, se sou filho único de filho único de meu avô?

- Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é filho único de quem. Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o próximo.

- Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a televisão reclamar o direito de meu avô, nem contratar advogado. Pois eu vou, eu contrato.

- Faça o que quiser.

- O que eu quero é o telefone de meu avô, pedido em 1943!

- Retire-se, o senhor está enchendo!

- Hein?!

- Está enchendo, já disse!

- Estou é me sentindo mal... Uma coisa do lado  esquerdo..,  uma nuvem .. . uma vertigem. A gente esperando  desde  a  Segunda  Guerra Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor me chama para o seu seio... Não faz isso comigo, deixa pelo menos eu tomar  um táxi, ir em casa entregar a meu filho Tonico este talão... Quem sabe se ele um dia...

Cai.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.