terça-feira, 19 de maio de 2020

Vinicius de Moraes (Antologia Poética) IV


EPITÁFIO

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.
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POR-DO-SOL EM ITATIAIA

Nascentes efêmeras
Em clareiras súbitas
Entre as luzes tardas
Do imenso crepúsculo.

Negros megalitos
Em doce decúbito
Sob o peso frágil
Da pálida abóbada

Calmo subjacente
O vale infinito
A estender-se múltiplo

Inventando espaços
Dilatando a angústia
Criando o silêncio....
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SONETO AO INVERNO

Inverno, doce inverno das manhãs
Translúcidas, tardias e distantes
Propício ao sentimento das irmãs
E ao mistério da carne das amantes:

Quem és, que transfiguras as maçãs
Em iluminações dessemelhantes
E enlouqueces as rosas temporãs
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes?

Por que ruflaste as tremulantes asas
Alma do céu? o amor das coisas várias
Fez-te migrar – inverno sobre casas!

Anjo tutelar das luminárias
Preservador de santas e de estrelas...
Que importa a noite lúgubre escondê-las?
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SONETO A OTÁVIO DE FARIA

Não te vira cantar sem voz, chorar
Sem lágrimas, e lágrimas e estrelas
Desencantar, e mudo recolhê-las
Para lançá-las fulgurando ao mar?

Não te vira no bojo secular
Das praias, desmaiar de êxtase nelas
Ao cansaço viril de percorrê-las
Entre os negros abismos do luar?

Não te vira ferir o indiferente
Para lavar os olhos da impostura
De uma vida que cala e que consente?

Vira-te tudo, amigo! coisa pura
Arrancada da carne intransigente
Pelo trágico amor da criatura.
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SONETO DE DESPEDIDA

Uma lua no céu apareceu
Cheia e branca; foi quando, emocionada
A mulher a meu lado estremeceu
E se entregou sem que eu dissesse nada.

Larguei-as pela jovem madrugada
Ambas cheias e brancas e sem véu
Perdida uma, a outra abandonada
Uma nua na terra, outra no céu.

Mas não partira delas; a mais louca
Apaixonou-me o pensamento; dei-o
Feliz – eu de amor pouco e vida pouca

Mas que tinha deixado em meu enleio
Um sorriso de carne em sua boca
Uma gota de leite no seu seio.
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SONETO DE LONDRES


Que angústia estar sozinho na tristeza
E na prece! que angústia estar sozinho
Imensamente, na inocência! acesa
A noite, em brancas trevas o caminho

Da vida, e a solidão do burburinho
Unindo as almas frias à beleza
Da neve vã; oh, tristemente assim
O sonho, neve pela natureza!

Irremediável, muito irremediável
Tanto como essa torre medieval
Cruel, pura, insensível, inefável

Torre; que angústia estar sozinho! ó alma
Que ideal perfume, que fatal
Torpor te despetala a flor do céu?
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SONETO DE VÉSPERA

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou – fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Fonte:
Vinícius de Moraes. Livro de Sonetos. RJ: Sabiá, 1967.
Livro enviado pelo poeta.

Contos e Lendas do Brasil (Porque os Galos Cantam de Madrugada)

Certo dia Sua Majestade o Leão deu uma festa e para a mesma convidou todos os outros bichos. O pagode devia começar aos primeiros albores do dia e os convidados a essa hora já deveriam estar presentes.

A festa era de arromba, a mais bonita de quantas havia notícia até aquela data. Quando chegou o dia marcado, nenhum dos bichos teve sossego. É que nenhum queria faltar ao convite, muito menos perder a hora.

Ao clarear do dia, o rei dos animais já tinha a casa cheia. Uma multidão. Nenhum dos convidados faltara, a não ser mestre Galo. Ele se esquecera inteiramente do convite.

Notando a sua ausência, Sua Majestade enfureceu-se, achou que aquilo era pouco caso, não tinha desculpa e mandou uma escolta de dois gambás para trazer o galo à sua presença.

Quando os gambás entraram no galinheiro, foi um salve-se quem puder; a galinhada saltou dos poleiros e se pôs a esvoaçar pelo rancho, a cacarejar que nem maluca. Mestre Galo acordou, espreguiçou~se e não atinou com aquilo.

Um gambá falou:

— Viemos buscar-te, seu tratante, por ordem de Sua Majestade. El-rei Leão dá-te a honra de um convite para a maior festa do mundo e ficas a dormir.. .

O galo coçou a cabeça:

— Ah! É verdade! Esqueci-me, perdi a hora!

— Pois por isso mesmo estás pegado para Judas. Outra vez, darás um nó na crista, para não esqueceres, ..

— Perdão, camaradas! Não me levai para lá! Que desejará fazer de mim Sua Majestade?...

— Ainda perguntas! Comer-te, se tamanha honra te der, caso não queira entregar-te aos gambás, a fim de que nós demos cabo de ti!

E dizendo isso, um dos gambás foi destroçando toda a família de mestre Galo, sem deixar uma cabeça na extremidade de cada pescoço. Os gritos aumentaram e as penas
esvoaçaram no interior do rancho.   

O galo chorava, maldizia-se, mas em vão. Ordenou-lhe:

— Vamos! Para a presença de Sua Majestade!

Mestre Galo não teve outro remédio senão seguir na frente, mas cabisbaixo e jururu.  Chegados ao palácio do leão, a escolta e o preso foram ter à presença de Sua Majestade, que soltou um urro de raiva;

— Patife! Galo de uma figa! Com que então ousaste desobedecer ao meu real convite, não te apresentando à hora marcada para a minha festa? Pois vais pagar caro esse atrevimento.. .

— Saiba Vossa Majestade que não foi por querer, mas por lamentável esquecimento. Perdão! Eu me ajoelho aos pés do meu rei!

— Tens o que se chama memória de galo, cabeça de vento. Ia dar-te a morte, mas como te humilhaste, e para não perturbar a alegria da minha festa, vou comutar a pena. Daqui para diante, como castigo do teu esquecimento, não dormirás depois da meia-noite. Dormirás ao pôr do sol e acordarás logo depois. À meia-noite, cantarás, às duas amiudarás e ao surgir do dia cantarás ainda, dando sempre sinal de que estás alerta. Se dormires, se não cantares nas horas indicadas, tu com tua família correrás o risco de ser comido pelos animais inimigos de geração tão indigna. Assim não esquecerás mais e ficará punida tua vil memória!
*    *    *

Mestre Galo sentiu-se muito contente com a solução e, para não se esquecer de que havia de cantar à meia-noite, cantou também ao meio-dia. Dessa data em diante, passou a cumprir o seu fado, cantando pela madrugada a fora, por ter desatendido a um convite do monarca. E quando canta, fecha os olhinhos, fazendo força para não se esquecer de que tem de cantar outra vez, e canta de dia para se lembrar de que há de cantar de madrugada.

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Literatura Infantil (Origens)

Pintura de Parede em 3D
O impulso de contar histórias deve ter nascido no homem, no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros alguma experiência sua, que poderia ter significação para todos. Não há povo que não se orgulhe de suas histórias, tradições e lendas, pois são a expressão de sua cultura e devem ser preservadas. Concentra-se aqui a íntima relação entre a literatura e a oralidade.

A célula-máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como "clássica", encontra-se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir.

São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e se difundiram por todo o mundo, por meio da tradição oral.

A Literatura Infantil constitui-se como gênero durante o século XVII, época em que as mudanças na estrutura da sociedade desencadearam repercussões no âmbito artístico.

O aparecimento da Literatura Infantil tem características próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo "status" concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola. Sua emergência deveu-se, antes de tudo, à sua associação com a Pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se converterem em instrumento dela.

É a partir do século XVIII que a criança passa a ser considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta.

As Mil e Uma Noites: Coleção de contos árabes compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias em cadeia, em que cada conto termina com uma deixa que o liga ao seguinte. Essa estruturação força o ouvinte curioso a retornar para continuar a história, interrompida com suspense no ar.

Foi o orientalista francês Antoine Galland o responsável por tornar o livro de As mil e uma Noites conhecido no ocidente (1704). Não existe texto fixo para a obra, variando seu conteúdo de manuscrito a manuscrito. Os árabes foram reunindo e adaptando esses contos maravilhosos de várias tradições. Assim, os contos mais antigos são provavelmente do Egito do séc. XII. A eles foram sendo agregados contos hindus, persas, siríacos e judaicos.

O uso do número 1001 sugere que podem aparecer mais histórias, ligadas por um fio condutor infinito. Usar 1000 talvez desse a ideia de fechamento, inteiro, que não caracteriza a proposta da obra.

Os mais famosos contos são:
• O Mercador e o Gênio;
• Aladim ou a Lâmpada Maravilhosa;
• Ali-Babá e os Quarenta Ladrões Exterminados por uma Escrava;
• As Sete Viagens de Simbá, o Marinheiro .

O rei persa Shariar, vitimado pela infidelidade de sua mulher, mandou matá-la e resolveu passar cada noite com uma esposa diferente, que mandava degolar na manhã seguinte. Recebendo como mulher a Sherazade, essa iniciou um conto que despertou o interesse do rei em ouvir-lhe a continuação na noite seguinte. Sherazade, por artificiosa ligação dos seus contos, conseguiu encantar o monarca por mil e uma noites e foi poupada da morte.

A história conta que, durante três anos, moças eram sacrificadas pelo rei, até que já não havia mais virgens no reino, e o vizir não sabia mais o que fazer para atender o desejo do rei. Foi quando uma de suas filhas, Sherazade, pediu-lhe que a levasse como noiva do rei, pois sabia um estratagema para escapar ao triste fim que a esperava. A princesa, após ser possuída pelo rei, começa a contar a extraordinária "História do Mercador e do Efrit", mas antes que a manhã rompesse, ela parava seu relato, deixando um clima de suspense, só dando continuidade à narrativa na manhã seguinte.

Assim, Sherazade conseguiu sobreviver, graças a sua palavra sábia e à curiosidade do rei. Ao fim desse tempo, ela já havia tido três filhos e, na milésima primeira noite, pede ao rei que a poupe, por amor às crianças. O rei finalmente responde que lhe perdoaria, sobretudo pela dignidade de Sherazade.

Fica então a metáfora traduzida por Sherazade: a liberdade se conquista com o exercício da criatividade. Fantasia ajuda a formar a personalidade da criança.

A literatura infantil surgiu somente no século 17, com a descoberta da prensa. As histórias infantis e os contos populares, no entanto, existem desde que o ser humano adquiriu a fala. Há notícias de histórias antigas na África, na Índia, na China, no Japão e no Oriente Médio — como a coleção de contos árabes As Mil e Uma Noites.

Algumas histórias tratam de temas que fazem parte da tradição de muitos povos e apresentam soluções para problemas universais. É o caso de “O Pequeno Polegar”. O personagem representa o desejo de vingança do mais fraco contra o mais forte. Os pequenos se identificam com os heróis e experimentam diversas emoções.

Que criança não fica com medo ao imaginar o Lobo Mau devorando a Vovozinha? Ou odeia a bruxa quando ela prende Rapunzel na torre? Para a escritora Ana Maria Machado, os contos de fadas pertencem ao gênero literário mais rico do imaginário popular. "Essas histórias funcionam como válvula de escape e permitem que a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo simbólico, saindo mais feliz dessa experiência."

A ideia foi difundida após a divulgação dos estudos do psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990). Para ele, nenhum tipo de leitura é tão enriquecedor e satisfatório do que os contos de fadas, pois eles ensinam sobre os problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. Ou seja, a fantasia ajuda a formar a personalidade e por isso não pode faltar na educação.

Uma obra é clássica e referência em qualquer época quando desperta as principais emoções humanas. O que os pequenos mais temem na infância? A separação dos pais; e esse drama existencial aparece logo no começo de muitas histórias consideradas referências na literatura.

Para Bettelheim, a agressividade e o descontentamento com irmãos, mães e pais são vivenciados na fantasia dos contos: o medo da rejeição é trabalhado em João e Maria, a rivalidade entre irmãos em Cinderela e a separação entre as crianças e os pais em Rapunzel e O Patinho Feio.

A leitura das histórias no passado tinha mais um propósito muito claro: apontar padrões sociais para as crianças. O objetivo das moças ingênuas era encontrar um príncipe, como mostrado em A Bela Adormecida e Cinderela. Em A Polegarzinha, de Andersen, a recompensa final da protagonista, Dedolina também era o casamento.

Já garotas desobedientes, como Chapeuzinho Vermelho, deparavam com situações dramáticas, como enfrentar o Lobo Mau. Essa história tinha forte caráter moral na sociedade rural do século 17: camponesas não deviam andar sozinhas. Isso mostra como os contos serviam para instruir mais que divertir.

Fonte:
Portal Educação

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Revoada de Maritacas)


TRABALHEI, POR TRÊS meses, numa agência de automóveis e, confesso, minha experiência nessa área não foi das mais promissoras. O único cliente que tive o privilégio de ter em mãos, e, mesmo assim, porque minha gerente me passou o contato, depois de  fechada a venda, se constituía em somente ligar e pedir para que retornasse à agência, assinar os papéis e fazer o restante do pagamento, vez que havia dado de entrada uma soma considerável em dinheiro vivo.

Há dias, eu ligava, insistia, perseverava e o sujeito me cozinhava em banho-maria o que me levou a acreditar que indubitavelmente a criatura desistira da compra, ou, no pior dos mundos, ficara enraivecido pelo simples fato de, quando viera na loja pela primeira vez, ter sido atendido com toda amabilidade por uma linda jovem alta e magra, de cabelos compridos e olhos profundos e claro, olhos envolventes e carregados de uma meiguice invulgar.

Realmente, a Emilly, minha gerente, se constituía, sem tirar, nem por, num pedaço de caminho largo, propício a todos os tipos de pecados, além de atenciosa, dócil e incrivelmente dona de si, o que constituía no seu principal segredo para tratar com as pessoas, mesmo as mais indecisas e culminar com os fechamentos rápidos impostos pela empresa, sem mencionar o fato de que, mês após mês, a beldade vinha batendo o primeiro lugar em fechamentos de negócios e atendimentos vips entre os demais colegas.

Como eu estava pensando seriamente em desistir e ela, sabedora de meus problemas pessoais, abriu mão desse cliente em particular, observando todavia que a aquisição estava concretizada, faltando apenas que a criatura viesse até a revendedora e assinasse a papelada para finalmente levar para casa o veículo de sua predileção.

— Como te falei, Berredo — disse com delicadeza a Emilly. —  Basta você ligar todo santo dia, que ele uma hora não terá como lhe dizer não. Lembra que água mole em pedra dura... E não esqueça: a comissão dessa venda (isso fica aqui entre nós) eu repassarei a você na totalidade, para lhe dar uma injeção de força e ânimo.

Seguindo os conselhos de Emilly, todo santo dia assim que chegava, passava a mão no telefone e lembrava o seu Anacleto Barbosa a vir até a agência, tomar uma água gelada, saborear um delicioso cafezinho... No primeiro dia, seu Anacleto me pediu desculpas alegando não poder comparecer em face de precisar ir a um enterro. Apresentei, num gesto respeitoso, as minhas condolências e desliguei. Em face desse imprevisto, deixei passar uns dias e ataquei novamente.

Seu Anacleto, como num disco de vinil arranhado, pediu mil desculpas prometendo que em breve viria me conhecer pessoalmente. Mandou um abraço à Emilly e nosso papo findou ai, fechando com a mesma conversa mole que “precisava ir urgente a um enterro”. Confesso que fiquei deveras chateado com a criatura e prometi, a mim mesmo, que ligaria uma derradeira vez, e então descartaria o camarada que tudo indicava e levava a crer, fazia hora e motejava com a minha fuça.

Deixei de novo passar uns dias e voltei à carga,  intencionando de antemão se o filho das unhas viesse com a mesma lenga-lenga de precisar comparecer a um enterro, como das vezes passadas. Com pesar de perder o emprego e ficar sem moral com a Emilly, mandaria o enrolão com carro e tudo para aquele lugar. Liguei. Seu Anacleto, bom de papo, se quedou em mesuras. Pediu perdão, falou do cafezinho que eu prometera e fechou o nosso diálogo com a mesma dispensa esfarrapada que naquele dia também não poderia vir à loja, em face de carecer ir a um enterro.

Juro por tudo quanto é mais sagrado, minha intenção não era outra senão a de mandar aquela figura asquerosa e nojenta tomar naquele lugar, com todas as letras. Eu precisava desabafar, falar poucas e boas, mandar para os ouvidos do infeliz cobras e lagartos. Todavia, parece que levado pelo silêncio repentino que fiz imprimir à minha voz, e pela  respiração ofegante de puro espanto e raiva, ou sei lá o quê, seu Anacleto explicou:

- Berredo, meu caro jovem. Esqueci de lhe falar. Peço humildemente que me perdoe. Acredito que a senhorita Emilly não lhe tenha colocado a par sobre a minha profissão. Sou agente funerário!    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Rita Mourão (Trovas Premiadas) 2


Não temo o mar que me nega
ser mais branda a travessia.
Temo sim, a mente cega
que me bloqueia a ousadia!
- - - - - -
Não temo quedas, barreiras,
por mais que a tristeza insista.
Águas que são cachoeiras
não tem lodo que resista!
- - - - - -
Nas serestas da lembrança
onde o orvalho enfeita a tela,
a minha ilusão te alcança,
mas a razão diz:- Cautela!!!
- - - - - -
Nesta espera em que me farto
só dispenso a nostalgia
é quando a porta do quarto
tua chegada anuncia!
- - - - - -
Neste teatro que há em mim,
do meu papel não lamento.
Sem saber qual é meu fim
enceno o final que invento.
- - - - - -
No espaço, brilhando inquieta,
Cadente estrela me induz
a pensar que algum poeta
faz no céu versos de luz.
- - - - - -
No lar que me fez honrado
ante os conceitos de espaço,
o respeito era sagrado
mesmo que o pão fosse escasso.
- - - - - -
Nos meus embates medonhos
sempre enfrento os desafios,
quando a vida tece sonhos
e o tempo desfaz os fios.
- - - - - -
Nossas almas parecidas,
nossos sonhos se irmanando,
eu e tu, vidas vividas,
tarde demais se encontrando.
- - - - - -
Num cenário à luz de vela,
papai repassando a lida
deixou-me a lição mais bela
encenando a própria vida.
- - - - - -
Num jogo da fantasia
entre a loucura e a razão,
vislumbro na cama fria
teu corpo que busco, em vão.
- - - - - -
Os meus desejos de agora,
juntei-os, pus no correio:
(destino, Natais de outrora),
mas a resposta não veio
- - - - - -
O trovador finge tanto
que ao cantar a própria dor,
finge que a dor no entanto
é de um outro trovador.
- - - - - -
Ousar não é ser valente
ao buscar gloria e poder.
Ousadia é quando a gente
humaniza o nosso ser!
- - - - - -
Para ter felicidade,
ao buscá-la eu pressuponho,
que seja qual for a idade
felicidade é ter sonho.
- - - - - -
Por mais que o orgulho insista
peço a Deus a quem me entrego
que nas horas da conquista
eu saiba despir meu ego.
- - - - - -
Por medo meu coração
fechou-se e ainda pôs trave,
mas agora outra paixão
bate à porta e quer a chave.
- - - - - -
Quando a lua me abre as frestas
das lembranças que são tuas,
eu choro as velhas serestas
feitas à luz de outras luas!
- - - - - -
Quando deixei minha terra,
jurei e cumpri a jura,
que venceria esta guerra
entre o sertão e a cultura!
- - - - - -
Quando uma ofensa me oprime
em silêncio enfrento tudo.
Qualquer grito se redime
ante meu protesto mudo.
- - - - - -
Queres chamar-me de amigo,
mas teu olhar traidor
é a frase que eu mais bendigo
das frases mudas do amor
- - - - - -
Resisto, mas me afrouxando,
revogo a minha sentença.
Quem ama mesmo sangrando
perdoa e renova a crença.
- - - - - -
Retida além do horizonte
onde a razão se esvazia,
dos sonhos ergo uma ponte
e prossigo a travessia.
- - - - - -
Roxa ou preta quando antiga,
mas rubra se a dor maltrata.
Por isso na há quem diga
da saudade a cor exata.
- - - - - -
Se a porta é larga, desvio,
sem luta não tem vitória.
Porta estreita é o desafio
de quem vence e faz história!
- - - - - -
Sem ter fortuna aparente,
sob a luz de um lampião
fui bem mais rica e mais gente
naquela casa de chão.
- - - - - -
Se o homem abaixasse a fronte
com fé, respeito, humildade,
seria a Terra uma ponte
entre Deus e a humanidade.
- - - - - -
Seria a paz mais presente
e o porvir menos incerto,
se nas mãos do adolescente
sempre houvesse um livro aberto.
- - - - - -
Ser mãe é perpetuar
a vida em seu seguimento
conjugando o verbo AMAR
seja qual for o momento.
- - - - - -
Sozinha, num desvario,
sem concretude, meus braços,
traçam, sobre um leito frio
o perfil dos teus abraços.
- - - - - -
Tiro a máscara e ouço aflita,
de um mar de farsas sem fim,
meu outro eu que ainda grita
por vida dentro de mim.
- - - - - -
Trazendo o filho nos braços,
ante a dor ou alegria
toda mãe possui os traços
da Virgem Santa Maria!
- - - - - -
Velha casa, sonho alado
que a saudade hoje remonta
para mostrar meu passado
brincando de faz de conta.

Fonte:
Site de Rita Mourão
https://versosderita.weebly.com/trovas-premiadas.html

domingo, 17 de maio de 2020

Contos e Lendas do Brasil (Garganta do Inferno)


Na Serra do Itacolomi havia um grande e profundíssimo fojo* redondo e perpendicular, no meio do campo.

A boca, de cerca de três braças de diâmetro, era ornada de um cômoro* de pedras soltas e emaranhadas de matagal bravio, onde se aninhavam bandos de morcegos e corujas e servia de covil para jararacas e boiciningas*.

Sua profundidade ninguém ousava sondar, pois todos tinham medo de aproximar-se muito daquele medonho boqueirão a que chamavam a Garganta do Inferno.

Contava-se uma infinidade de estórias assustadoras a respeito daquela caverna. Dizia-se entre outras coisas que antigamente, no local onde mais tarde surgiu a caverna, vivia em um miserável ranchinho certa mulher muito velha e muito rica, de quem todos fugiam, pois era tida como bruxa.

Em virtude do pacto que ela fizera com o Demônio, recebendo de suas garras muitos poderes, nas noites de Sexta-Feira Santa, conseguiu ajuntar muito ouro e obteve o dom de viver cinco idades de homem, contanto que nunca deixasse de praticar malefícios e artes diabólicas.

Segundo se dizia, ela morava ali desde tempos imemoriais e não faltava quem asseverasse que a sua idade já alcançava a quinhentos anos. Mas uma noite a velha e o rancho sorveteram* debaixo da terra com pavoroso estrondo e, em seu lugar, no outro dia, lá estava aquela horrenda caverna. Em certos dias, ouviam-se nas suas profundezas bramidos, uivos e gemidos espantosos e a terra estremecia ao redor do buraco fumegante.

As velhas, quando tinham de passar por ali, faziam-no a toda pressa, rezando o Credo e benzendo-se. É que algumas delas, com seus próprios olhos, tinham visto o Diabo sair de lá na figura de um Dragão, no meio de uma fumarada e línguas de fogo. Os meninos não se atreviam a chegar muito perto, pois tinham como certo que lá morava uma serpente negra, com olhos de fogo.
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Esse buraco, na narrativa de Bernardo Guimarães, engoliu a heroína e ao longo dos anos que se seguiram fez desaparecerem burros incautos que por ali andavam, pastando o escasso capim que vicejava na itapanhoacanga*, sugerindo a ideia de que o Demo alimentasse o desejo de se fazer tropeiro.

Depois que um exorcista conseguiu entupir com orações esse trágico buraco, ninguém dirá que ele existiu outrora naquele lugar em que hoje se encontra o adro da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas.
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Vocabulário
Boicininga – cobra mais conhecida por cascavel.
Cômoro – elevação de terreno não muito alta; outeiro, duna.
Fojo – remoinho de água, de lama, etc.
Itapanhoacanga – rocha rica em ferro, dura, bem consolidada, composta de fragmentos derivados de itabirito, hematita e de outros materiais ferruginosos, cimentados por limonita (que pode variar de 5% a mais que 95%).
Sorveteram – desapareceram, sumiram.

 
Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 13


MENSAGEM...
Glosando A. A. de Assis (Maringá/PR)


MOTE:
Se quereis ser minha imagem,
diz-nos Deus, eu Vos conclamo:
– Escutai minha mensagem,
e amai-vos como eu vos amo!


GLOSA:

SE QUEREIS SER MINHA IMAGEM,
ó meu filho predileto,
cuida que a tua passagem
seja cheinha de afeto!

Por amar-nos sem medidas,
DIZ-NOS DEUS, EU VOS CONCLAMO.
Com suas mentes unidas,
à paz do mundo, eu vos chamo!

É universal a linguagem
que fala de paz e amor:
– ESCUTAI MINHA MENSAGEM,
e vivei com mais ardor!

Nesta mensagem, vos digo,
e em altos brados eu clamo:
– Amai amigo e inimigo,
E AMAI-VOS COMO EU VOS AMO!
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MORADA NA TROVA
Glosando Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)

MOTE:
Pode o amor, banhado em sonhos,
construir morada nova,
nos braços sempre risonhos
dos quatro versos da trova.


GLOSA:
PODE O AMOR, BANHADO EM SONHOS,
renovar-se, reviver,
mudando os dias tristonhos,
num eterno renascer.

E, assim, feliz e faceiro,
CONSTRUIR MORADA NOVA,
e seus dotes de engenheiro,
na construção, pôr à prova.

Apressar dias tardonhos
e atirar-se com alegria,
NOS BRAÇOS SEMPRE RISONHOS
de ternura da poesia.

Essa morada bonita,
que a felicidade aprova,
tem a beleza infinita
DOS QUATRO VERSOS DA TROVA.
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ESCREVER...
Glosando Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

MOTE:
Só ouso fazer poesia
para quem já as conhece
quando seu ser irradia
esse calor que me aquece.


GLOSA:
SÓ OUSO FAZER POESIA
e dar asas à emoção,
porque me traz alegria,
me faz bem ao coração!

Sempre escrevo com carinho
PARA QUEM JÁ AS CONHECE
e cruzando o meu caminho,
com um sorriso, agradece!

Eu visualizo a utopia,
nesse instante tão bonito,
QUANDO SEU SER IRRADIA
e ilumina o infinito!

É bom escrever! Dá calma!
Escrever rejuvenesce,
e eu sinto, bem dentro da alma,
ESSE CALOR QUE ME AQUECE.
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AMOR E LUZ
Glosando Olavo Bilac
(Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918)

MOTE:
O amor que a teu lado levas
a que lugar te conduz,
que entras coberto de trevas
e sais coberto de luz?


GLOSA:
O AMOR QUE A TEU LADO LEVAS
é grande, é forte, é bonito,
com sua força, tu o elevas,
à potência de infinito!

Esse amor só de alegria
A QUE LUGAR TE CONDUZ,
se ele ilumina o teu dia
com as luzes que produz?

É com ele que tu enlevas
tudo e todos, de repente,
QUE ENTRAS COBERTO DE TREVAS
e sais bem mais reluzente!

É nesse amor abençoado,
que esqueces a tua cruz,
relembrando o teu passado,
E SAIS COBERTO DE LUZ!
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RISO TRISTE...
Glosando Vanda Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)

MOTE:
No sorrir, nem sempre existe
mensagem de bem estar.
Quanta vez, num riso triste,
nós choramos... sem chorar!

 

GLOSA:
NO SORRIR, NEM SEMPRE EXISTE
uma dose de alegria,
muitas vezes, nele, insiste
alojar-se a nostalgia!

Nem sempre ele nos transmite
MENSAGEM DE BEM ESTAR.
Muitas vezes, é um convite,
que a sorrir, nos faz chorar!

O mundo quase desiste
de encontrar felicidade!
QUANTA VEZ, NUM RISO TRISTE,
há muita fraternidade!

Nós sorrimos, sem sorrir...
Nós amamos, sem amar...
Nós partimos, sem partir...
NÓS CHORAMOS... SEM CHORAR!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Machado de Assis (História Comum)


… Caí na copa do chapéu de um homem que passava… Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.

Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus*, ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.

Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis - coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive. Saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil.

Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa. De manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade, mas a vida dos alfinetes não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele, mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.

— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?

— Que meias, nhanhã?

— As que estavam na cadeira…

— Ué, nhanhã! Estão aqui mesmo.

E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, consertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette, para o corpo das moças, dizia comigo, que era bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.

— Meninas, são horas!

— Lá vou, mamãe! disseram todas.

E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.

— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído…

Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:

— Pode ser.

— Pode ser? Vai ficar mesmo.

— Clarinha, só se espera por você.

— Pronta, mamãe!

Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.

Na sala estava a família, dois carros à porta. Desceram enfim, e Felicidade com elas, até a porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram, mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.

— Não é preciso, sinhá! Aqui está um.

Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as, pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima. Uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores… Ah! Enfim! Eis-me no meu lugar.

Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Terminada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.

— Não se vexe, não é preciso que me diga nada, basta que me aperte a mão.

Clarinha apertou-lhe a mão, ele levou-a à boca e beijou-a. Ela olhou assustada para dentro.

— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio, amanhã mesmo escreverei a seu pai.

Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.

— Tome…

E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua… Caí na copa do chapéu de um homem que passava e…
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Vocabulário
Fichus – lenço usado para a cabeça ou para os ombros

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha. Publicação em 1906.

Saulo Gomes Thimóteo (Análise do conto de Machado de Assis: História Comum)


O enredo em si é o mais trivial possível, igual a seu protagonista: um alfinete foi comprado por uma mucama, por acaso, é ele quem prende uma rosa no vestido de uma moça e, quando está com o futuro noivo, ele é descartado. Mas os artifícios encontrados por Machado para singularizar essa história são de vária ordem.

Inicialmente deve-se observar o modo da sequência narrativa. A primeira frase do conto é a última, dando um tom cíclico, ou seja, o final já é conhecido logo no início (Algo parecido acontece nos inícios de “A cartomante” e de “A causa secreta”). E na sequência, no método machadiano da digressão e conversa com o leitor, o alfinete pede perdão pela sua tentativa de escrita épica e, agora que tem a atenção do leitor, irá contar sua história.

É pela perspectiva do narrador-protagonista que o enredo segue. E o fato de ser um alfinete (tão comum), mas ter ares grandiosos, faz com que se construa as peripécias todas. Começa com um suspiro por ser o alfinete de uma mucama (“Que destino!”), embora reconheça sua sorte de poder ouvir as conversas das moças da casa (“não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil”). Dessa monotonia inicial, eis que se anuncia a sua aventura, que aos poucos o narrador vai tecendo – apesar de alfinetes não tecerem…

O foco em Clarinha, ao mesmo tempo que tem a função de criar o conflito do conto vai mostrando as trivialidades de uma família da época e dos bailes da corte dos finais do século XIX. Além disso, a relação das moças com Felicidade (com a pontada de ironia que há no nome da mucama) também traça um breve instantâneo da estrutura familiar durante o Império.

E então as duas histórias se unem, quando Felicidade dá o alfinete para prender a rosa. “Um era eu”. Comparando-se a Napoleão Bonaparte, mostra-se como ele se sente subir na vida, indo de um “lenço pobre de uma pobre mucama” até o baile, com todo seu luxo e esplendor, e que ele considerava o “seu lugar”.

Mas a roda da fortuna atinge todos os seres, mesmo os alfinetes, de modo que no clímax do conto, no encontro e promessa de noivado que o Dr. Florêncio dá a Clarinha (interessante o fato do nome da moça encontrar-se no diminutivo, para retratar a familiaridade, ao passo que o noivo possui o status de um título de doutor), com as batidas do coração tão fortes, ocorre a quebra de expectativas e o alfinete é jogado fora e cai no chapéu de um homem qualquer que passava.

Surge então, como encerramento, um segundo sentido para essa “História comum”. Não apenas por tratar-se de um objeto comum, mas também por ser a mesma história que tantas vezes se repete, em tantos contextos diferentes: quem se vê, de repente, cercado de luxo e riquezas, pode perder a tudo de maneira igualmente rápida. E tanto a subida quanto a queda não ocorrem, necessariamente por mérito ou erro próprio. Às vezes são só joguetes que outras mãos levam, põem e atiram fora…

E pronto!

Fonte:
http://www.umprofessorle.com.br/2018/12/20/historia-comum/

sábado, 16 de maio de 2020

Fernando Sabino (Hora de dormir)


- Por que não posso ficar vendo televisão?

- Porque você tem de dormir.

- Por quê?

- Porque está na hora, ora essa.

- Hora essa?

- Além do mais, isso não é programa para menino.

- Por quê?

- Porque é assunto de gente grande, que você não entende.

- Estou entendendo tudo.

- Mas não serve para você. É impróprio.

- Vai ter mulher pelada?

- Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.

- Todo dia eu tenho.

- Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.

- Espera um pouquinho.

- Não espero não.

- Você vai ficar aí vendo e eu não vou.

- Fico vendo não, pode  desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai.

- Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.

- Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já para a cama.

- Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.

- Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.

- Pode perder.

- Deixe de ser malcriado.

- Você mesmo que me criou.

- O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?

- Falo como quiser, pronto.

- Não fique respondendo não: cale essa boca.

- Não calo. A boca é minha.

- Olha que eu ponho de castigo.

- Pode por.

- Venha cá! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas. Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.

- Ficando o quê?

- Atrevido, malcriado. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando... Quando ele falava está na hora  de  dormir, estava na hora de dormir.

- Naquele tempo não tinha televisão.

- Mas tinha outras coisas.

- Que outras coisas?

- Ora, deixe de  conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.

- Chato.

- Como? Repete, para você ver o que acontece.

- Chato.

- Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai. E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha cá.

- Amanhã eu não vou ao colégio.

- Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.

- Você me bateu...

- Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.

- Por que você é assim, meu filho? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?
Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e  vá dormir.

- Papai.

- Que é?

- Me desculpe.

- Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.

- Por que não posso ficar vendo televisão?

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

Contos e Lendas do Brasil (João, O Vaqueiro que não Mentia)


lnzistia dois fazendeiros no sertão, casados. lntão, condo se encontraram dizia:

— lntão, cumo vai o seu vaqueiro?

— O meu vaqueiro vai bem.

(Sujeito safado, mentiroso, o outro dizia c’u patrão de João)

— Não, João, não. João é um homem. João não mente.

Ele dizia: — Mente.

— Mente? Bom.

— Um dia eu le mostro se João não mente.

Então, esse de lá tinha uma moça bonita, musculosa e coisa e tá. Saiu mais a filha, a mais bonita que tinha e aprontou-se pras banda da fazenda que trabalhava João. Foi pra lá e disse:

— Você vai saí lá e vai saí no pátio da casa de João e num vorte mais.

— Sim, sinhô.

A moça aprumou-se e danou-se no pátio.

João tava tirando a sela do cavalo, quando deu fé, viu a moça e parou. Disse:

— Aquela moça veio perdida. Eu vou botar ela em casa e num tiro a sela do cavalo aqui.

E quando ela chegou:

— Boa-tarde, João.

— Boa-tarde, moça. Que é que anda fazendo, anda perdida?

Disse: —Não.

— Num anda perdida?

— Não. Saí dali, que dei aqui nessa fazenda, pensando que era a fazenda do meu pai.

— Não. Você tá errada.

Disse: — Não, num estou errada, não.

— Então eu vou arrochar aqui a cia e vou ali ver uma sela pra montar no cavalo, pra botar você na sua casa.

Disse: — Vou nada

— Pruquê não vai? Eu num quero você aqui.

— Mais eu num vou.

Aí foi tomando logo a dereção de embocar na casa.

— Moça, num faça isso, não.

— O xente já tá feito. E eu num vou mais pra casa. Meu pai me mata c’uma pisa. Se eu hei de morrer c’uma surra, fico aqui.

— Nada, e coisa e tá.

E por finá ficou a moça.

Bom. João, quando era todo fim de semana, que ia pra casa do patrão parava o cavalo acolá, virava o cavalo nas duas mãos e seguia para casa do patrão.

Chegava lá e dizia:

— Bom-dia. patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai tudo em paz. O boi Leição ‘stá bem.

— Tá certo.

Pela continuação do tempo a moça deu pra vomitar, essas coisa e tá e aí desejou comer a urêia do boi Leição.

Ele disse:

— Moça, aquele boi, não tem jeito, não. Eu num faço uma coisa dessa.

E ela insistindo, insistindo, insistindo...

Ela diz:

— Nada e coisa e tá, tire a urêia, eu só quero comer a urêia.

Disse:

— Se é d’eu tirar a urêia do boi, eu mato o boi.

Matou o boi, fez carne de só, ela provou logo um pedaço especiá, mandou logo pro pai e haja...

João pensava o que havéra de fazer na vida. E quando foi no fim da semana, ele disse:

— O jeito qu’eu tenho é largar uma mentira pru’ meu patrão.

Ele lá (o pai da moça já tinha reunido jazibande, escrivão, testemunha, juiz de direito. tudo.

Aqui montou no cavalo. Tinha um pé de baraúna, cuma daqui acolá. Riscou o cavalo, quando chegou no pé da baraúna.

— Bom-dia, patrão.

Ele mesmo respondeu:

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

João dizia:

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição ... Saiu-lhe um berruga na urêia e eu fiz um curativo na urêia do boi e o boi morreu.

Aqui disse ele:

— Mais João mentir?

Virava prá trás, virava pra trás, sentava o cavalo na porta e virava de novo pra lá.

— Bom-dia, patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição... Eu fazendo uma ração num rochedo de muita pedra, muito arto, de mandacaru, o boi escapuliu, quebrou o pescoço...

Aqui, João pensava e dizia: — Mas eu mentir a meu patrão!

Virava pra trás e coisa e tá.

Quando ele fez umas quatro ou cinco vez, disse:

— Eu vou agora na casa do meu patrão contar essa história cumo foi.

Chegou lá, riscou o cavalo e disse:

— Bom-dia, patrão (O João).

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição? Ele disse:

O pobre de um vaqueiro
Que se vê no vasto sertão,
Vi umas bonitas forma
E umas delicadas feição,
Vi-me tão aperriado
Que matei o seu boi Leição.

– Home mais aí a musga bradou, e coisa e tá... Foi uma grande festa. Pegaram o João e a moça do fazendeiro lá casaram e foram viver.

E então a ‘posta feita é que se João mentisse, o home lá perdia a fazenda. E como de fato não mentiu, e ele perdeu a fazenda. João foi pra fazenda do que levantou o farso do sogro, foi pra fazenda do sogro e ficaram vivendo lá, vizinho.

Fonte:
Téo Brandão. Seis contos populares do Brasil. Maceió/AL: Universidade Federal de Alagoas, 1982.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 10


O CAVALO AMARELO
The Pale Horse


Um sacerdote ancião é assassinado em um subúrbio de Londres. Um crime aparentemente comum. Porém, um papel escondido no sapato do morto desperta a atenção do inspetor Lejeune: uma lista com nomes de pessoas que aparentemente haviam morrido de causas naturais e outra relação de vítimas potenciais. A investigação o leva a Pale Horse, onde vivem três mulheres estranhas - uma espécie de reencarnação moderna das bruxas de Macbeth. Lá ele descobre uma organização criminosa que pratica crimes através de telepatia. Utilizando métodos pouco ortodoxos, Lejeune consegue desvendar uma das tramas mais surpreendentes de Agatha Christie.

Mark Easterbrook é um historiador inglês de vida pacata e sossegada, até um reverendo idoso morrer misteriosamente em uma noite de nevoeiro, intrigado pelo caso, ele, Ariadne Oliver e uma moça chamada Ginger, tentam resolver o mistério que paira na antiga pensão chamada o cavalo amarelo. Onde as pessoas são mortas por telepatia.
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A MALDIÇÃO DO ESPELHO
The Mirror Crack’d From Side To Side


A maldição do espelho parece se abater sobre Marina Gregg, linda estrela de cinema, quando ela decide comprar a antiga mansão vitoriana Gossington Hall. No novo lar, em vez da tranquilidade campestre que sonhou desfrutar ao lado do marido, a atriz se depara com uma série apavorante de sustos e assassinatos. A Maldição do Espelho é mais uma irresistível aventura de Miss Marple.
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OS RELÓGIOS
The Clocks


Um homem desconhecido é encontrado morto na casa de uma senhora cega. Na cena do crime, quatro relógios parados na mesma hora: quatro e treze. Sem qualquer pista do assassino ou da identidade da vítima, o detetive Colin Lamb, do Serviço Secreto inglês, pede ajuda a Hercule Poirot. Ao iniciar a investigação, o detetive afirma que o caso é muito simples, mas ele logo percebe que a solução não é tão óbvia, principalmente quando outros dois assassinatos são cometidos em circunstâncias misteriosas.
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MISTÉRIO NO CARIBE
A Caribbean Mystery


Os hóspedes do Goldem Palm Hotel, que passam as suas férias na ilha antilhana de Trinidad pensam que estão gozando das delícias de um verdadeiro paraíso, sem suspeitar que, de acordo com a tradição bíblica, nesse paraíso terrenal também se oculta uma serpente, na pessoa de um assassino que, depois de ter matado três vezes, já escolheu a sua quarta vítima entre os felizes veranistas. Porém o frio criminoso não podia imaginar era que seria descoberto graças à sagacidade extraordinária da mais inofensiva, pelo menos aparentemente, destes veranistas: uma velhinha solteirona, com um aspecto bondoso e tímido, Miss Marple, cuja vida passou no pequeno povoado de St. Mary Mead, onde aprendeu tudo o que era necessário sobre as virtudes e as paixões que constituem o miolo da natureza humana. Para desmascarar o assassino e chegar a tempo para salvar a última das suas vítimas, a famosa Miss Marple conta, esta vez, com a mais inesperada das ajudas.
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O CASO DO HOTEL BERTRAM
At Bertram’s Hotel


O luxuoso hotel Bertram é um dos poucos edifícios de Londres a conservar o charme da Inglaterra do início do século e, mesmo frequentado por duquesas e barões arruinados, ainda é um dos símbolos da aristocracia britânica. Quando Miss Jane Marple se hospeda no hotel Bertram, sua única intenção é recordar os bons tempos de sua juventude passados lá. O que a simpática velhinha de Saint Mary Mead não pode imaginar é que está para se envolver com uma série de crimes e roubos misteriosos: uma ameaça à reputação do tradicional hotel e à própria vida de Miss Marple.
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A TERCEIRA MOÇA
Third Girl


A jovem Norma Restarick visita o detetive Hercule Poirot para confessar um crime que acredita ter cometido, embora não tenha certeza. Porém, depois de fazer esta estranha declaração, a moça vai embora sem dar maiores explicações e achando Poirot “velho demais”. Instigado em sua curiosidade - e atingido em seu amor-próprio -, o grande detetive resolve fazer uma investigação que o levará por caminhos intrincados e sombrios. Afinal, quem é Norma? Uma doente mental ou apenas uma vítima inocente na teia que alguém teceu para destruí-la? Poirot não descarta qualquer possibilidade e, mais uma vez, consegue desvendar a trama sinistra para encontrar uma surpreendente resposta.
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NOITE SEM FIM
Endless Night


Lugares malditos, casas assombradas, mortos que se levantam das tumbas, amores funestos e pessoas que fazem pacto com o diabo são temas frequentes na literatura inglesa. Agatha Christie segue a tradição com esta história ambientada em uma grande mansão rural, erguida numa região marcada por uma antiga maldição: o Campo do Cigano. Sob o efeito do lugar, Michel Rogers fica fascinado ao conhecer a dominadora Ellie. No ardor da paixão, os dois resolvem erguer ali sua casa, sem dar atenção às advertências de uma cigana que os aconselha a se afastarem para evitar a desgraça. Mas a morte marca sua presença na figura de um assassino que parece sentir prazer em matar, atraído pelo abismo da Noite sem fim.
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UM PRESSENTIMENTO FUNESTO
By the Pricking of My Thumbs


Envolver-se em tramas perigosas é uma especialidade do casal de aventureiros Tommy e Tuppence Beresford. Desta vez, durante uma visita a um asilo de senhoras, Tuppence vê um quadro que retrata uma casa que não lhe parece totalmente estranha. Lá, também conhece uma anciã que lhe fala de um menino morto escondido em uma chaminé. Pouco tempo depois, a velha senhora abandona o asilo sem dar qualquer explicação. Disposta a descobrir o paradeiro dela, Tuppence decide encontrar a casa misteriosa e acaba deparando-se com um assassino perverso.
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NOITE DAS BRUXAS
Hallowe’en Party


A escritora de livros policiais Ariadne Oliver foi convidada para ir a Woodleigh Common, onde uma festa das bruxas (‘Halloween’) tinha sido organizada para alguns adolescentes, dentre os quais estava uma jovem conhecida por fazer revelações sobre assassinatos e intrigas. Mas quando a garota é encontrada morta dentro de uma tina com maçãs cortadas, Ariadne imagina quão grande teria sido a última revelação que a menina teria feito. Agora, qual dos convidados da festa queria mantê-la calada é uma questão para Hercule Poirot. Mas desmascarar este assassino não será nada fácil, ainda mais que ninguém em Woodleigh Common sequer acreditava que a jovem contadora de histórias tivesse sido assassinada.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Cecy Barbosa Campos (Visão Praiana)


Sentada no degrau superior da escada de cimento que levava do calçadão à areia da praia, Marlise contemplava o mar, absorta na alternância das águas, ora azuis, ora verdes, mais claras ou mais escuras, conforme o brilho do sol que se projetava sobre elas.

O movimento contínuo que afastava as ondas, lançando-as no horizonte, era imediatamente seguido pelo retorno, quando elas estendiam seus braços de espuma sobre a areia parecendo querer abraçar os banhistas retardatários que naquele fim de tarde, comemoravam mais um dia de labuta com um refrescante mergulho.

Foi assim que Marlise o viu pela primeira vez; voltava correndo da água, com o corpo molhado e o cabelo, um pouco longo, respingando gotículas quando ele sacudia a cabeça. Ao passar por ela o rapaz notou que, descuidado com os movimentos que fazia, lançara-lhe água e com um sorriso um pouco sem graça, pediu-lhe desculpas por ter-lhe dado um banho involuntário. É claro que a moça aceitou as desculpas e quase agradeceu o acontecido.

Percebendo a receptividade da acolhida, o banhista sentou-se no mesmo degrau, ao lado dela, e entabularam uma animada conversa. Entretanto, após alguns minutos, alegando ter deixado seu terno, sapatos e pasta num bar em frente, o rapaz apressou-se na despedida e atravessou a rua sem pedir o telefone de Marlise nem deixar o seu, para que ela se comunicasse com ele.

Frustrada em sua expectativa, a moça ficou ali mais algum tempo e depois decidiu-se a voltar para o apartamento que dividia com duas amigas.

Lá chegando contou sobre o encontro que tivera com aquele "deus grego". Garantiu que, os breves momentos e as poucas palavras que trocaram tinham sido suficientes para que ela tivesse a certeza de que ele era o homem de sua vida, embora não tivesse indícios de que ela fosse a mulher da vida dele.

As amigas riram e fizeram muitas brincadeiras a respeito da sua timidez. Ela deveria ser mais ousada e, é claro, deveria ter imediatamente pedido o número do celular daquele homem maravilhoso.

A partir daquela tarde, Marlise passou a ir, quase diariamente, no mesmo horário, ao mesmo local da praia, sentando-se no mesmo degrau, fingindo fazer a sua contemplação do pôr do sol. Na verdade, agora ela observava os banhistas e os transeuntes que se aproximavam daquele bar onde ele dissera guardar suas roupas.

Depois de algumas semanas ela já vivia uma obsessão. A lembrança do rapaz, sacudindo seus cabelos molhados a perseguia e ele lhe aparecia até em sonhos. Prejudicava a sua concentração no trabalho e fizera dela uma companhia enfadonha até para as amigas que já estavam cansadas de ouvir falar num indivíduo que nunca aparecia e que elas brincavam ter sido uma visão!

Finalmente um dia, impetuosamente, Marlise tomou uma decisão. Após breves instantes sentada em seu posto de observação, levantou-se e, com passos firmes, dirigiu-se ao bar mencionado. Sentou-se a uma das mesas, pediu um suco e começou a examinar o ambiente. Naquele horário o local ainda estava relativamente vazio e foi fácil verificar que seu amado não estava entre os fregueses. De repente, seus olhos se encontraram com os de um dos garçons que, rapidamente, desviou o olhar. Em um segundo Marlise reconheceu o seu "deus" da praia, embora ele estivesse bem diferente do que lhe parecera anteriormente, com os cabelos para trás, fixados pelo gel.

Ela também fora reconhecida pois o garçom não manteve os seus olhos nos dela, possivelmente constrangido por ter tido a sua mentira descoberta.

Decepcionada, não pela ocupação do rapaz, mas pela intenção dele de aparentar uma situação diferente da realidade, Marlise tomou lentamente o suco enquanto pensava em sua própria imaturidade. Sorrindo para si mesma, sentiu-se parodiando Proust: ter ficado parada no tempo alimentando uma ilusão e sonhando com alguém que, afinal, nem era o seu tipo!

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

Contos e Lendas do Brasil (A Casa de Pedra)

Era naqueles velhos tempos coloniais em que paulistas e portugueses — estes apelidados emboabas — uns ao norte e outros ao sul, rasgavam a extensa província de Minas Gerais, à cata do ouro.

Em São João Del-Rei, emboabas e paulistas, cada qual de seu lado e por sua conta, se entregavam a mineração aurífera, sendo capitão-mor, na época, Diogo Mendes que, em companhia da filha e de Fernando, seu sobrinho e secretário, residia no local que é hoje o arraial de Matosinhos.

Entre os paulistas — segundo conta Bernardo Guimarães em seu livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del-Rei” — havia um, de nome Gil, rapaz antes trabalhador, mas desprotegido da fortuna, que passou a enriquecer a olhos vistos, depois que foram para sua companhia um bugre, por ele salvo da morte após um sério conflito entre paulistas e aborígenes, chamado Irabuçu, e Judaíba, sua filha.

Propalava-se que Irabuçu sabia de uma fabulosa mina onde, diariamente, apanhava ouro aos punhados, para levar ao seu salvador. Um dos portugueses, pelos patrícios apelidado Minhoto, que votava a Gil ódio tremendo, entendeu de deitar as mãos ao velho índio, auferindo com isto dois proveitos: ficar senhor da mina, onde o selvagem o conduziria sob ameaça de morte, e fazer mal ao inimigo, estancando-lhe a fonte de riqueza.

Sem demora, tratou de por em execução o plano que havia traçado. Aliciou patrícios, que sitiaram o índio, quando uma tarde partia para a mina, mas este desapareceu como por encanto sob uma moita, de onde saiu, numa carreira fantástica, um enorme gato-do-mato, que pos os portugueses em debandada, julgando o índio transformado em animal.

Outras ciladas lhe preparou o Minhoto, mas em vão. Irabuçu, cercado no campo, sem possibilidade de escapar, quando todos o imaginavam seguro, desaparecia misteriosamente. Ninguém mais, então, queria saber de capturá-lo, julgando-o pactuar com o demônio. À vista disso, o Minhoto foi à casa do capitão-mor, a fim de, com a gente deste, destemida e bem municiada, aprisionar Irabuçu, repartindo entre ele, o capitão-mor e o secretário, o ouro recolhido da mina.

Recebeu-o Fernando, o qual, depois de o ouvir com interesse, fez-o ciente de que o ouro da mina seria todo de El-Rei, não cabendo a ele, Minhoto, um grão sequer. E sem reparar no desespero do patrício, que se julgava miseravelmente roubado, deu ordens para que lhe     trouxessem Irabuçu, a fim de que este revelasse o local da mina de onde saía o ouro, sem que a El-Rei fosse ter o devido quinto.

Preso Irabuçu e levado à presença do capitão-mor e sua gente, negou-se ele a fazer qualquer declaração a respeito, muito menos a levá-los à mina. Ameaçaram-no de suplícios horríveis e, por fim, de morte.     Nada o demovia de sua firme decisão.    Foi só ante a ameaça de torturarem sua filha Judaiba que Irabuçu aquiesceu.

Amarrado como uma fera, lá foi ele, o pobre velho, escoltado por seis portugueses, armados até os dentes, em direção ao fabuloso Sésamo.

Depois de penosa caminhada de léguas e léguas, feita com o propósito de despistá-los, porquanto a mina distava da povoação apenas alguns quilômetros, chegaram, por fim, ao cair da noite, em frente a uma grande furna muito alta, cujo interior...
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Cedamos, porém, a pena a Bernardo Guimarães que vai, no seu estilo vigoroso, descrevê-la e narrar a trágica aventura dos portugueses e do índio no interior dessa furna conhecida hoje por Casa da Pedra e situada quase nas divisas de São João del-Rei com a histórica cidade de Tiradentes.
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Irabuçu acendeu na fogueira o seu archote e foi entrando pela caverna. Os emboabas o acompanhavam de perto, benzendo-se e rezando quanta oração sabiam.
 
Para fora da lapa nada mais se via; a escuridão da noite, que começava a descer, a fumaça da fogueira tudo escondiam. Estavam segregados completamente da luz do céu, e franqueavam os lôbregos umbrais do reino das trevas.

Acompanhemo-los e vamos também admirar, à luz do archote de Irabuçu, as maravilhas dessa imensa e misteriosa gruta,
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O pavimento é plano, liso, coberto de areia e de folhiço, como um solo de aluvião; os emboahas penetram com facilidade pela gruta a dentro. Logo à entrada, entre os brancos pilares da arcada imensa, que serve de pórtico aos outros, observa-se um curioso e estupendo fenômeno. Um enorme rochedo está como pendurado da abóbada, à semelhança de lustre colossal, colocado à entrada daquele templo subterrâneo. Mas o monstruoso lustre está envolto em crepe pardacento, suas luzes estão extintas, e é mister brandir o archote em volta dele para admirar-lhes as dimensões titânicas, e ver como se acha preso à cúpula por um ligamento proporcionalmente tão delgado, que faz estremecer. Está ali como a espada de Dâmocles, suspensa por um fio, aquela massa enorme de milhares de quintais, como ameaçando esmagar, pulverizar com sua queda, os imprudentes mortais que ousarem passar-lhe por baixo, para devassarem os mistérios daqueles áditos tenebrosos.

Mas Irabuçu e seus companheiros não estão ali para admirar semelhantes maravilhas; passam por debaixo do imenso candelabro sem prestar-lhe atenção, internam-se mais alguns passos, e acham-se no recinto de um vasto salão, amplo e circular, à maneira da nave de magnífica rotunda. Curvava-se sobre suas cabeças uma abóbada de pasmosa elevação, e de profunda que era, mal seria apercebida ao fraco clarão do archote, se não fora o cintilar das pedras úmidas, polidas e pontiagudas, de que estavam crivados o teto e as paredes da gruta.

À luz daquele archote demasiado escassa para alumiar tão vasto recinto, o interior da lapa, já de si mesmo curioso e surpreendente, tomava um aspecto solene e fantástico, que inspirava, a um tempo, pavor e assombro. Os muros e a abóbada pareciam cobertos de ornatos e esculturas caprichosas, de frisos, relevos, cornijas, colunas, nichos e volutas, em desordenada profusão.    Aqui via-se um altar mutilado; ali cavava-se no muro um trono em ruínas; além ressaltava da parede um magnífico púlpito; mais além um renque de colunas decepadas se estendiam a perder-se na escuridão. E tudo isso se revestia de brilhantes e variadas cores reverberando à luz do facho com reflexos de ouro e rubi, de esmeralda e safira, de topázio e ametista.

Era uma gruta de estalactites, curioso brinco, em que a natureza parece comprazer-se dando as mais singulares e caprichosas figuras a essas rochas formadas no côncavo das cavernas pela congelação de gotas de água infiltrada durante séculos através das fendas dos rochedos.

Além de tudo isso, uma multidão de cordas de grossura enorme descendo perpendicularmente da abóbada, em uma altura talvez de mais de vinte braças, vinham embeber-se no chão. Dir-se-iam cordões, que suspendiam imensas cortinas destinadas a velar os mistérios daquele estupendo e maravilhoso santuário. Eram raízes de árvores seculares, que, cravando-se pelas fendas da abóbada e achando em baixo o espaço vazio, alongavam-se até o solo, onde vinham beber a seiva, para alimentar a robusta e vicejante selva, que cobrindo o corixéu da gruta, balanceava lá em cima — a mais de cinquenta braças de altura — a coma verde-negra às auras livres do céu.

Em tudo se parecia aquele antro com o interior de um templo ciclópico, por onde roçara a asa estragadora dos séculos, ou passara a mão vandálica do bárbaro, destroçando e mutilando tudo.

A luz avermelhada do archote batendo nas miríades de pontas de estalactites, que incrustavam toda a abóbada, reverberando em chispas cintilantes, produzia o mais deslumbrante efeito.
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Os portugueses não puderam conter um grito de surpresa e assombro, e estacaram por instantes, diante de tamanha maravilha.

— Que isto, Santo Deus!... — exclamavam uns. Tudo isso é ouro e pedraria!... é aqui!... estamos enfim na mina...

Outros, porém pensavam estar em um palácio de fadas, e acreditando que o bugre não era mais do que um formidável encantador, começaram a temer por sua sorte, receando ali ficarem encantados por todo o sempre.

Para se moverem, foi mister que Irabuçu os acordasse daquela estupefação. Já dois fachos se tinham consumido, e não havia um minuto a perder.
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O índio avançou, contornando o vasto salão, como procurando entrada a outros aposentos. Viam-se, com efeito, em torno, aqui e acolá, grande número de fendas e arcadas de várias dimensões, e corredores que se perdiam na escuridão, e pareciam dar entrada a novos e vastíssimos compartimentos.    O bugre penetrou pelo mais espaçoso desses corredores seguido de perto pelos portugueses. Via-se de um lado, suspenso na muralha, um púlpito quase perfeito, de linda e grandiosa estrutura. Os emboabas cuidaram ver dentro dele um monge de joelhos e debruçado, com a fronte envolta em seu capuz. Já se ajoelhavam e persignavam, quando subitamente troou-lhes aos ouvidos uma voz horrível, antes um pavoroso mugido.

— Tapaçununga! — bradara Irabuçu com toda a força de seus pulmões. Os ecos das profundas cavidades reproduziram por largo tempo o grito estranho, em surdos e temerosos rugidos.

Imediatamente dois sanhudos e truculentos canguçus, rompendo das grutas interiores, passaram velozes como o raio por entre os portugueses, e desapareceram de novo na escuridão.

De susto ou abalroados, quase todos caíram por terra, e trêmulos, cobertos de suor gélido, não pensaram senão em encomendar a alma a Deus,

— Não tenham medo, meus brancos — disse Irabuçu, com um sorriso calmo e satânico; estes bichos moram aqui; são uns gatinhos que vigiam o ouro de Tupã; foi para tocá-los para fora que Irabuçu gritou.
 
Estas palavras, proferidas em tom de diabólica ironia, não eram muito próprias para tranquilizar os emboabas.

— Se temos de morrer sem falta — murmurou um, com voz desfalecida — é melhor morrermos aqui mesmo; daqui não dou nem mais um passo para diante.

— Se temos de morrer — replicou outro, um pouco mais animado — tanto faz morrer aqui como acolá; vamos companheiros!... Pelo que vejo, já estamos no inferno em corpo e alma, e tão inferno é aqui, como lá adiante.

O terror, tendo tocado ao seu cúmulo, converteu-se em coragem, como costuma acontecer, nessa coragem dos que se julgam irremissivelmente perdidos, e que se chama coragem do desespero.

Guiados pelo índio, os emboabas avançaram resolutamente através de um dédalo de furnas, corredores, escaninhos irregulares, em que se achava dividida gruta, à maneira de alvéolos de uma colmeia gigantesca. Esses diversos compartimentos eram separados entre si por grossas massas de estalactites, que pendendo do teto vinham quase tocar ao chão, como feixes de colunas carcomidas pela base, ou como os canudos de um órgão emborcado, e também por grandes camadas de estalagmites, que se erguiam do solo como restos de pilastras derruídas, ou de muros arruinados.

Já o terceiro facho estava prestes a extinguir-se, ainda eles não haviam chegado ao tão suspirado alvo de tamanhas fadigas e perigos.

— Ainda estará muito longe essa maldita mina? Bugre endiabrado!... — bradou um dos emboabas. — Olha, não vá nos faltar o lume!… Se ficarmos às escuras não sei como daqui nos havemos de safar...

— Ficaremos sepultados em vida debaixo destas catacumbas — acrescentou outro, — Voltemos, meus caros; isto não vai bem…

— É ali!... é ali!... — exclamou Irabuçu, apontando para uma solapa estreita, que se divisava a alguns passos de distância, na base de um enorme congesto de estalagmites, e pela qual mal poderia entrar um homem agachado.

— AIi... naquele buraco! Deus me defenda de lá entrar!... Ali só lagarto ou cobra...

Apenas um dos emboabas acabava de proferir estas palavras, desprega-se da abóbada e cai no meio deles uma jiboia enorme, de mais de braça de comprimento e grossa como a perna de um homem, fazendo um ruído surdo como corda que despenca do alto de um mastaréu, e, desdobrando-se rapidamente, correu a esconder-se nas trevas, entre as anfractuosidades dos rochedos, O medonho réptil, acordara sobressaltado pelo eco daquelas vozes estranhas e, deslumbrado pela luz, querendo fugir, se precipitara de uma alta cornija, onde estava a dormir tranquilamente. Os portugueses murmuravam a tremer a oração de São Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

— Meu Deus! Meu Deus!... Que será de nós... — exclamavam; quase a chorar de medo. Se essa mina está na profundeza dos infernos, guardada por onças e serpentes, escusado é procurarmos lá ir. Voltemos, meus amigos!... Isto não está nada bem! Voltemos quanto antes! Irabuçu, meu velho, por piedade, tira-nos daqui para fora; deixemos isto para amanhã... Livra-nos deste inferno!

— Essa cobra não tem veneno — respondeu tranquilamente Irabuçu — aqui há muitas; é bom dar um tiro; elas fogem espantadas e não incomodam mais a gente,

— Pois vá! — disse um deles; e, sem refletir, trêmulo de impaciência, de frenesi e de terror, com mão convulsa engatilhou a escopeta e disparou o tiro.

O eco refrangido de gruta em gruta reboou como uma descarga atroadora; o ar agitou-se convulsionado; a chama do facho oscilou violentamente,    e as sombras, que ali estavam, dançaram pelas paredes como um grupo de duendes. Uma nuvem de morcegos e corujas subindo de todos os cantos revoavam em turbilhões, açoitando com as asas as faces daqueles hóspedes imprudentes, e acabaram por apagar completamente o facho, que ardia na mão de Irabuçu...

Acharam-se todos subitamente mergulhados na mais completa e profunda escuridão!...

Os ecos do tiro, prolongando-se ainda largo tempo em lúgubres mugidos pelas abóbadas soturnas, pareciam estar entoando um fúnebre "de profundis" sobre aqueles infelizes ainda vivos e já envoltos na escuridão dos túmulos.

— Acode-nos, Irabuçu... Só tu nos podes salvar!... Vem dar-nos a mão!...    Por piedade, vem livrar-nos deste inferno!...

Estas e outras exclamações faziam os míseros emboabas com voz tão suplicante e lastimosa, que cortaria o coração de outro qualquer que não fosse Irabuçu.

— Irabuçu aqui vai!... Acompanhem!… — respondeu uma voz sepulcral, que parecia romper das entranhas da terra.


— Irabuçu! Irabuçu! — bradavam ainda os míseros estorcendo-se nas ânsias do desespero.

Mas só lhes respondiam os ecos das cavernas subterrâneas remurmurando uns sons confusos e medonhos.

*     *     *

E dizem que, mais tarde um sábio dinamarquês procedia a estudos mineralógicos no interior da Casa da Pedra, quando foi dar, numa sala estreita profundamente escura, que a luz de um archote mal iluminava, com as ossadas muito brancas dos sete desgraçados, sobre as quais enormes serpentes deslizavam de manso...

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Silmar Böhrer (Croniquinha) 1



Nos momentos de intimidade as minhas andanças são pelos caminhos do Ser. A gente sabe que as nossas veredas interiores são ricas, trilhamos tantas ideias, ideais, idealizações. Por isso o recolhimento pode ser mal que  vem para o bem. Nossos Eus são convivas que, tantas vezes, seguem com as suas idiossincrasias, dialogando, rindo, indagando, chorando, acostumados a esta vida de altos e baixos.

VIDA, VIVÊNCIAS, VIVERES.

VIVAMOS !

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.