sexta-feira, 28 de abril de 2023

João do Rio (A Amante Ideal)

Esses cavalheiros haviam mostrado um certo apetite. Era, após o jantar, na residência de Ernesto Pereira, assaz feliz para ter, antes dos quarenta anos, um palacete discreto e muito mais de cem mil contos.

Com tão confortável fortuna, Ernesto estava quase branco, não bebia senão águas minerais e mantinha as mulheres como simples companheiras para distrair. Após um negócio - ceia com elas e champanhe bebido pelos outros. Enriquecer quando não custa a vida e uma fortuna, custa, pelo menos, o melhor bem humano, porque transitório - a mocidade. Ernesto aliás tratava o doloroso e delicado assunto com cinismo amável. - Que querem vocês? Aos vinte anos, afastei as mulheres para conquistar a Fortuna. A Fortuna vingou-se desabituando-me do amor...

Mas era gentil, muito gentil, como diziam essas damas. Fazia as despesas de uma italiana, montara casa a uma espanhola, comia com as figuras mais impressionantes do armorial da galanteria, e protegia, às ocultas, algumas costureiras e modistas. O desprezo, ou antes, a integral indiferença de Ernesto pelas mulheres, só poderia ser notada porque esse homem jamais tinha uma história de mulher a contar. Quando narrava um fato era dos outros e referia-o sempre com o riso ingênuo da completa incompreensão. Parecia contar pilhérias de bonecos.

Os amigos julgavam-no feliz. Era-o. O homem feliz é aquele que não conhece o amor.

Nesse momento, porém, acesos os charutos no terraço sobre o mar a roda se fazia de homens, como é a maioria dos homens, tendo a vida com dois fins: dinheiro e mulher. Estavam Otaviano Rodrigues, que se arruinara por uma princesa austríaca, e André Figueiredo, com quem a princesa enganava Otaviano, mas que por sua vez tinha várias paixões, menos a princesa. Estava Clodomiro Viegas, que nunca pagara o amor e andava sempre a arranjar dinheiro para ser gentil com as generosas criaturas. Estava o comendador Andrade, que em trinta anos de francesas ainda não aprendera a falar francês. Estava Teodoro Gomes, o bolsista que enriquecia a bailarina russa de uma companhia italiana, em companhia de Godofredo de Alencar, o único literato com dinheiro.

E também palestrava Júlio Bento, lindo e excelente rapaz de trinta e cinco anos, casado, pai de cinco filhos, mas cuja lista de conquistas não deixava de ser profusa.

A conversa, precisamente, generalizava-se a propósito da última paixão de Júlio, senhora alta, com enorme boca vermelha e dois braços de tragédia, admiráveis e brancos, "as duas velas de seda da trirreme do amor", como dizia, com exagero, Godofredo de Alencar. Essa mulher agoniava Júlio Bento. Eram cartas, telegramas, chamadas ao telefone, imprevistas aparições, cenas de ciúme, ataques, tentativas de suicídio, recriminações, inquéritos minuciosos.

- Um inferno, meus caros! E eu tenho receio que minha esposa venha a saber.

- Mas deixa-a. Nada mais simples! insinuou Ernesto com o seu ingênuo e feliz desconhecimento do complicado desespero das ligações amorosas.

- É bom dizer. Ela mata-se...

- Ora!

- E para que deixar esta, se são todas assim? indagou ironicamente Alencar. Amar é sofrer, mas ser amado é o cataclismo. Não se pode fazer mais nada. Elas caem sobre a gente como os andaimes. Um gnóstico dizia que é preciso passar pela mulher como pelo fogo. Nós imbecilmente ficamos a assar. Ao demais o Eliphas Levi já teve uma frase lapidar - "Queres possuir? Não ames! Nós, sem inteligência, em vez de possuir, somos possuídos. A inteligência é um perigo no amor."

- Paradoxal!

- Conforme. Qual de nós não almeja, não sonha com o tipo da amante ideal? Qual de nós, porém não sofreria se amasse o tipo da amante ideal?

- A questão é saber qual a amante ideal, após três meses...

- A amante ideal! suspirou Júlio Bento.

- É a esposa, sentenciou o velho solteirão Andrade.

- A esposa, meu caro amigo, desde a Grécia, é a mãe dos nossos filhos. Não a sobrecarreguemos... Moisés, segundo a legenda, forjou o anel do Amor. E tais foram as complicações, que logo teve de forjar com pressa um outro: o anel do Esquecimento. Nenhum dos dois é a aliança matrimonial...

Júlio Bento ficara pensativo. E de repente:

- Como o Alencar fala a verdade. Eu já tive a amante ideal.

Houve na roda um alegre sobressalto.

- Tu?

- Como era ela?

- E deixaste-a fugir?

Júlio Bento, sem tristeza, suspirou.

- Sim. Apenas só depois é que soube... E até agora, francamente, não compreendo, não atino, não sinto bem... Que aventura! Imaginem vocês...

Acendeu outro charuto e, impaciente, continuou:

- Há uns cinco anos encontrei no teatro uma encantadora mulher. Pálida, da cor dos jasmins, dois olhos verdes, pestanudos, uma longa cabeleira de ébano, alta, magra. Estava no camarote pegado ao meu, só, vestida de preto. Olhou-me duas vezes. Da segunda havia muitas intenções. Fiquei desejoso de a conhecer, de falar-lhe. Mas, evidentemente, não era uma qualquer mulher. Saiu em meio de um ato e eu fiquei com a família, não sei por que, raivoso. Quatro dias depois ia pela rua do Ouvidor, quando a vi que vinha a sorrir. Tinha uma linda boca. Cumprimentei-a. Continuou a andar. Segui-a. Voltou-se uma só vez e logo meteu-se pela rua Gonçalves Dias. Continuei a acompanhá-la. Ela ia pelo meandro de ruas estreitas e comerciais. Enfim, num beco deserto, entrou por uma porta. Quando passei pela porta, ela estava no corredor. Timidamente disse-lhe:

- Desculpe se a acompanhei...

- Entre, fez ela com a voz calma. Não podíamos falar em ruas de movimento. Não seria conveniente nem para mim nem para você.

Fez uma pausa, murmurou: Simpatizei muito com a sua pessoa.

- E eu, então!

Ela riu:

- Sempre que as mulheres querem, os homens simpatizam ao menos uma vez.

Agarrei-a, ela ofereceu-me a boca, que cheirava a rosa, e gulosamente mordeu-me. Depois, desprendendo-se:

- Agora vá embora!

- Mas isso não pode ficar assim. Onde a posso encontrar?

- Na minha casa é impossível neste momento...

- Como se chama?

- Adelina. Até outro dia...

- Há outras casas. Por aqui mesmo...

- Hoje não.

- Por quê?

- Ninguém tem mais vontade do que eu... Amanhã, se quiser. Serve-lhe às duas horas da tarde, num automóvel defronte do terraço do Passeio Público?

Concordei. No dia seguinte rolávamos, às duas da tarde, para a Quinta da Boa Vista e essa mulher era de um ardor, de uma paixão alucinantes. Apenas não saiu do automóvel e no automóvel estivemos até às seis horas. Ao deixá-la, Adelina disse-me apenas:

- Moro numa pensão da rua da Piedade. Quando quiser, escreva-me.

- E não posso lá ir?

- Se quiser, durante o dia.

A minha curiosidade conseguiu saber aquilo que ela não dizia, mas de que não fazia mistério. Chamava-se Adelina Roxo. Era casada, separada do marido. Vivia mantida por um velho diretor de banco, que lhe dava larga vida. O seu modo era tão esquisito, tão diverso das outras mulheres quando desejavam, que me abstive de a procurar oito dias. Quando as mulheres são sinceras, os homens são "cocottes".

O "chique" é a essência do amor. Apenas verifiquei a inutilidade do processo e apertou-me o desejo. Queria aquela volúpia e queria também conhecer a mulher. Escrevi, pela manhã, uma carta sem assinatura, e lá fui. Recebeu-me deliciosamente. Tinha três salas admiráveis. O gabinete de vestir era mobiliado de sândalo com incrustações de marfim. Os tapetes altos de seda turca contavam em azul sobre fundo rosa suratas do Alcorão. Um cheiro de rosas errava no ar, e ela despindo um "chartcha" de seda pesada apareceu-me através de um tecido de Brussa com a pulcra delicadeza de um lírio à sombra. Amei-a furiosamente. Ela era das que, entregando-se, infiltram nos mortais ainda mais desejo. E se eu a amei, ela teve todas as etapas do delírio desde o frenesi ao desmaio. Ao sair esperei alguma frase, um pedido, uma súplica. Nada. Não me demorou, beijou-me com a alma. E não disse uma palavra.

Era diversa, integralmente diversa das outras. Certo gostava de mim, gostava com um calor que eu não sentira em nenhum outro corpo. Mas todas as mulheres querem saber coisas, perguntam onde vamos, indagam se as amamos muito, se será para sempre, e não deixam de reter mais alguns momentos a criatura... Ela não teve um só gesto nem uma das frases banais, mas que estamos acostumados a ouvir.

Claro que voltei. Conversávamos. Ela, sem pedantismos, sabia muito mais do que eu. Viajara a Europa inteira, falava várias línguas, conhecia os poetas de diversos países, que lia em encadernações de antílope com fechos de ouro lavrado. Mas, rindo com infinita alegria, prendendo com a sua clara voz, o seu olhar de brasa verde, o seu corpo de jasmim, jamais perguntou pela minha vida. E também não me disse uma palavra a respeito da sua, e também não me pediu nada. Sabem vocês como as mulheres gostam de contar a própria vida aos amantes. É um duplo exercício de mentira e de tortura. Sabem vocês, como ao cabo de uma semana não se pode dar um passo sem ter a senhora apaixonada a perguntar-nos os detalhes mínimos do dia. Ela abstinha-se desses atos, naturalmente. E, talvez por isso, se o meu desejo aumentava, a minha desconfiança irritada crescia. Nem o meu nome ela perguntara - nome que, de resto, devia saber. Tratava-me de "Meu pequeno", meu "guru". Um dia disse-lhe:

- Não sabes o meu nome?

- Não.

- Mas eu assino as cartas...

- Ah! sim, as cartas... Mas não quero o teu nome, quero-te a ti. Que me importa que te chames João, Antônio ou mesmo Júlio?...

- O tratamento de "guru", entretanto...

Ela deu uma grande risada.

- Ah! essa palavra é de um grande poema de amor, o "Ramayana". É uma palavra de carinho, de afeição que não tem tradução. Achei-a simpática. Só a ti no mundo eu chamo assim. Porque só a ti no mundo eu amo, meu pequeno...

- Enfim, um homem casado transformado em "guru"...

Eu dizia para forçá-la a perguntar-me as coisas. Foi em vão. Em virtude de tanta liberdade, como sou humano entre os lamentáveis humanos, aproveitei-a para traí-la. Traí-la? Pode-se trair uma mulher que não nos toma contas? Tive várias intrigas amorosas, que me deram enormes incômodos e fizeram-me enormes despesas. Todas essas mulheres amavam-me como loucas e eu as deixei sem que elas mudassem. Alguns negócios forçaram-me a ausentar da cidade.

- É uma aventura mortal! dizia a mim mesmo para convencer-me.

E ao chegar das viagens, lá ia entre desejoso daquele amor impossível de pôr em dúvida e um vago mal-estar, uma inquietação. Afinal, teria ou não interesse por mim? Tinha, era evidente que tinha. Mas não era bem esse alheamento da vida comum. Talvez forçasse a indiferença para não contar os mistérios da sua existência. Mas, respondia sempre com franqueza a tudo quanto lhe perguntava! Talvez tivesse outro amante. Inquiri, observei. Não. Além do velho banqueiro, só a mim...

Os nossos encontros faziam-se intermitentes. Semanas havia que estávamos juntos todos os dias. Depois passávamos semanas sem nos vermos. Era natural que essa mulher, diante de uma ausência prolongada, procurasse falar-me, escrevesse, passasse um telegrama ao menos. Pois nada. E recebia-me com a mesma ternura, o mesmo sincero amor, sem uma pergunta. Às vezes resolvia não a procurar mais. Encontrava-a, porém, na rua, e a irradiação do desejo era tão forte, que tivesse eu o mais urgente negócio, largava tudo para segui-la. Ela também ficava trêmula, com as mãos frias. Tomávamos o primeiro automóvel e era um verdadeiro frenesi.

Diante da sua absoluta discrição, era forçado a ser discreto. Nunca trocamos uma palavra a propósito do velho diretor do banco. E a necessidade de contar a minha vida se fazia nula com o acanhamento que produzia o seu ar de não querer saber. Uma vez gabei-lhe os olhos. Eram macios e ardentes.

- Herança, meu pequeno.

- Como?

- Eu sou descendente de armênios. Minha avó devia tapar os olhos. Eles ficaram com mais luz e mais doçura. São olhos de serralho...

- Curioso. Por que não me contas a tua vida?

- Porque não vale a pena.

- Mas não perguntas pela minha?

- Para não te aborrecer. Eu sou a tua escrava. Dei-te o meu desejo e o meu coração. Não tenho o direito de perguntar. Estamos assim tão bem...

Ela falava com tanta brandura, as suas mãos de jasmim pousavam tão docemente sobre os meus olhos, que senti uma infinita pena de mim mesmo, e calei-me... Sim, de fato, para que falar, para que mentir, quando não mentíamos ao nosso desejo? Vivemos assim largo tempo. Se não ia à sua casa e a via na rua - era fatal, soçobrávamos na volúpia. Às vezes o desejo era tão forte e imediato, que ela entrava em qualquer porta e ali mesmo as nossas bocas se ligavam vorazes - antes de seguirmos para a luxúria ardente dos seus aposentos.

Possuía-me e entregava-se como jamais pensara que fosse possível!

Conservara durante anos a mesma chama, a mesma maravilhosa chama. Sem uma intimidade, sem detalhes da vida comum, sem me interrogar, sem chegar a esse momento habitual em que dois amantes são iguais a duas criaturas comuns. Eu a consideraria exasperante, se talvez por isso - o meu desejo nunca tivesse força de resistir.

Enfim, há três meses tive de ir à Bahia. Ia demorar, pelo menos, trinta dias. Podia dizer-lhe. Mas o meu orgulho resistiu. Passei a tarde com ela, aliás, e quando consultei o relógio, ainda esperava uma pergunta, que não veio. Parti. Não escrevi. Não escrevi, posto que pensasse nela. Era o que eu julgava uma vingança. Ao chegar, não resisti e fui vê-la. Recebeu-me a dona da pensão, uma velha francesa.

- Bem dizia madame que o senhor tornaria...

- Onde está ela?

- Oito dias depois daquela tarde, ela caiu doente, muito mal. Esteve assim três dias. Afinal, os médicos acharam necessário uma operação. Era apendicite. Saiu daqui para ser operada no Hospital dos Ingleses. Mas antes de sair, chamou-me. Lembro-me bem das suas palavras, 'la pauvre"!

"Madame Angéle, eu vou morrer, sinto que vou morrer. Quando o meu pequeno aparecer, diga-lhe que não fique triste, mas que eu morrerei pensando nele como o meu único bem..."

- Então?

- "Pauvre petite!". Morreu na mesa de operações...

- Mas onde a enterraram?

- Não sei, não acompanhei. Talvez perguntando ao Sr.Herbrath...

Desci, quase a correr, para não mostrar à velha francesa as minhas lágrimas. Todo esse longo, o único longo amor da minha vida, surgia aos olhos do meu desejo como um sonho. Tinha sido uma ilusão, a imensa ilusão. E desaparecera, de modo que nem mesmo lhe sentira o amargor, nem mesmo lhe compreendia o fim, pensando na última tarde que fora a primeira, sempre primeira, sempre nova, sempre a que afasta para depois a tristeza...

Na rua, eu era como o homem que, tendo tido uma entrevista de amor em que amou com fúria - procura encontrar de novo aquela que não teve tempo de conhecer bem, com a ânsia dos vinte anos.”

O criado de Ernesto entrou nesse momento com o café e largos copos de cristal, onde gotejou uma famosa "fine" de 1840. Júlio recebeu o copo, virou-o. Se estivéssemos em tempo de emoções, a sua história poderia ter comovido. Mas não estamos. Otaviano é que disse com indiferença:

- Curioso!

- Nunca me pediu nada, nunca lhe dei nada, nunca me perguntou nada, continuou Júlio Bento, com a voz surda. O sentimento que conservo por ela é o mesmo: um louco desejo e uma certa humilhação...

- Porque tu és da vida comum e ela era o amor, respondeu Alencar. O amor é o desejo acima da vida. Talvez nunca tivesse dito sem o sentir uma tão profunda frase. Nenhum de nós nascidos e vividos na mentira e na tortura da mulher, compreenderia essa amante que existiu, como todas as coisas irreais. Mas, se nos fosse dado compreender - aos homens como às mulheres, todos nós invejaríamos a tua sorte e o prazer superior dessa suave perfeição. Para conservar o desejo é preciso não mentir, não pedir e não saber. Ela foi a amante ideal, a única sincera.

Nesse momento o criado voltou a prevenir Bento de que uma senhora estava à sua espera num automóvel, a chorar.

- É a Hortência! bradou Bento. Nem aqui me deixa! Por Deus, não lhe contem essa aventura. Teria ciúmes da morta. É insuportável!

E como todos os homens neste mundo, precipitou-se ansioso para a amante, igual às outras.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Contos, in https://pt.wikisource.org/wiki/A_Amante_Ideal

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Varal de Trovas n. 580

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 81

Numa instituição fui solicitado a preencher um cadastro.  Achei estranho pois minha demanda não ensejava nenhum informe adicional.  Às perguntas costumeiras, nome, data de nascimento, vieram também indagações de cor dos olhos, número do calçado, grau da lente dos óculos, fundura do nariz, largura da boca.  E mais.  Profissão? Romeiro da cultura.  Função?  Disseminador. Outras atividades?  Escrevinhador. 

Pensei nas respostas às perguntas.

Disseminador de cultura é  um prazer arraigado. Escrevinhador é necessidade constante. Ambos habitam meus dias.  Habitamo-nos.

No meu posto de buscador, pesquisador, observador, vou aprendendo a fazer e estimular a cultura - atendendo ao sentido literal da palavra "cultivare ", ali do latim.  E cultivo é planta, é busca, entendimento, incentivo e disseminação.  

Envolto nesta teia de vez em quando lembro Bob Marley: "Um povo sem conhecimento, origem e cultura é uma árvore sem raízes".

Fonte: 
Texto enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Coroa na escola)

Ele pensou, repensou, resolveu fazer o vestibular para o curso de Direito. Não pôde estudar quando jovem, porque desde cedo precisou trabalhar para ajudar no sustento dos pais idosos e de dois irmãos menores, que graças ao seu sacrifício puderam frequentar regularmente a escola e conquistar seus diplomas universitários.

Aos 52 anos, com dois filhos e uma filha bem encaminhados, decidiu enfim levar avante o que não pudera realizar quando moço: de escala em escala, trabalhando de dia e estudando de noite, terminou o primeiro e o segundo graus. Em seguida, sem cursinho, inscreveu-se para o vestibular.

Contava mais com a tarimba acumulada ao longo da vida do que propriamente com a base escolar. Antigo contador prático (atividade iniciada como aprendiz de escritório quando contador era ainda chamado de “guarda-livros”), inteligência acima da média, grande experiência profissional, ampla cultura geral resultante do acentuado gosto pela leitura, o coroa de 52 anos peitou os jovens concorrentes e acabou classificando-se em primeiro lugar. Chegou a ser notícia em alguns jornais.

Estudou Direito na mesma universidade onde a filha caçula fazia o curso de História. Iam juntos para as aulas todas as noites, trocando ideias sobre provas, trabalhos etc. Pai e filha como se fossem irmãos, anulando pela alegria do estudo a diferença de idades. Ele todo serelepe com a sua pasta de livros. 

Essa é uma história que acompanhei de perto, embora o protagonista vivesse em outra cidade, bem distante daqui. Mas sei de muitos outros casos de pessoas que começaram a vida estudantil depois dos filhos. No início ficavam meio sem jeito, contudo logo se misturavam com a moçada e era como se houvessem renascido. Você talvez tenha alguém assim na sua família.

E o curioso é que os coroas quase sempre se saem muito bem nos cursos. Se lhes faltou escolaridade na infância e na juventude, em compensação ganharam rica experiência em uma longa e árdua vida de trabalho. 

Em nossa região histórias como essa foram sempre bastante comuns. Pessoas que vieram para aqui na época do pioneirismo e que se entregaram totalmente à luta pela construção de um patrimônio para a família. Só depois de vencerem a dura etapa da formação de um pé de meia e do encaminhamento dos filhos é que finalmente puderam entrar numa escola, quase todos se destacando entre os melhores alunos de suas turmas – certamente pela maturidade, pelo conhecimento de vida prática e pela maior consciência do valor do estudo.

Aquele homem de 52 anos, que tirou o primeiro lugar no vestibular de Direito, foi assim.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-4-2023)

Fonte:
Obtido no facebook do autor.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LIII

Pela rua já serena 
Vai a noite 
Não sei de que tenho pena, 
Nem se é pena isto que tenho... 

Pobres dos que vão sentindo 
Sem saber do coração! 
Ao longe, cantando e rindo, 
Um grupo vai sem razão... 

E a noite e aquela alegria 
E o que medito a sonhar 
Formam uma alma vazia 
Que paira na orla do ar...  
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pois cai um grande e calmo efeito
De nada ter razão de ser
Do céu, nulo como um direito,
Na terra vil como um dever.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele esta feito
É que tens para me dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram 
Quando estás a olhar-me assim?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Pudesse eu como o luar
Sem consciência encher
A noite e as almas e inundar
A vida de não pertencer!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Qual é a tarde por achar  
Em que teremos todos razão  
E respiraremos o bom ar  
Da alameda sendo verão,  

Ou, sendo inverno, baste 'star  
Ao pé do sossego ou do fogão?  
Qual é a tarde por voltar?  
Essa tarde houve, e agora não.  
  
Qual é a mão cariciosa  
Que há de ser enfermeira minha — 
Sem doenças minha vida ousa —  

Oh, essa mão é morta e osso...  
Só a lembrança me acarinha  
O coração com que não posso. 
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.

Fonte:
Poesias em Domínio Público

Jaqueline Machado (O Gato malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado)

"O mundo só vai prestar para nele se viver, no dia em que a gente ver um gato maltês casar com uma alegre andorinha, saindo os dois a voar: O noivo e sua noivinha, Dom Gato e Dona Andorinha“

Este é um trecho da fábula escrita por Jorge Amado, e publicada em 1976.

Eis que o tempo inventou de fazer uma promessa para a donzela manhã. Prometeu dar-lhe uma rosa azul, se ela lhe contasse uma história bonita.

Ela escolheu contar uma bela história de amor entre o Gato Malhado e a Andorinha Sinhá.

Gato Malhado era um gato já ancião, ranzinza e sem piedade. Certa vez, todos os animais que estavam a refestelar-se alegremente no parque, fugiram do gato a fim de escaparem de suas vilanias, quer dizer, nem todos: uma jovem andorinha permaneceu num galho de uma árvore. Os dois começaram a discutir.

Desde então, se apaixonaram. Um passou a viver nos pensamentos do outro.

O Gato voltou ao parque, os dois se aproximaram, e daí em diante passaram a conversar civilizadamente, e passearem juntos.  No período do término do verão, o Gato declarou o desejo de casar com a bela Andorinha. Ela respondeu que as andorinhas não se casam com gatos. E, em seguida, desapareceu.

A bicharada descobriu o amor que existia entre o Gato e a Andorinha, e logo começaram a criticar.

Algum tempo se passou. Era Outono, e o Gato soube da notícia de que a sua amada estava de casamento marcado com o Rouxinol,  que era amigo dela. O Gato Malhado entristeceu-se profundamente. Era tanta a tristeza do Gato Malhado, que ele decidiu caminhar até ao Fim do Mundo. Este viu a Andorinha, pela última vez no casamento. Ela também o viu. Na cara dela via-se também tristeza, pois gostava do Gato, mas fora obrigada a casar com o Rouxinol.

A Andorinha Sinhá deixou cair uma pétala de rosa do seu buquê sobre o  Gato, a qual ele colocou  no peito, parecendo uma gota de sangue.

Quando o gato saiu de lá, a pétala brilhou e o encaminhou até ao Fim do Mundo.

Assim, a Manhã recebeu a rosa azul do Tempo.

 A fábula retrata muito uma realidade humana ainda vigente no mundo atual, onde regras sem sentido se opõem aos sonhos, às vontades e aos amores. Na verdade, a realidade deveria ser o oposto disso. Os amores e os ideais sadios é que deveriam estarem à frente de tudo.

Pensando nisso, disse o autor: “Temos olhos de ver e olhos de não ver, depende do estado de coração de cada um”.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Tadinha!)

BASTAVA A LARISSA fazer qualquer coisa errada, lá vinha alguém passando a mão na cabeça:

— Tadinha!

A coisa começava cedo, na hora do matinal:

— Pão?

— Só com manteiga.

— Torradas?

— Me dá aflição nos dentes.

— Café?

— Sem leite e com muito açúcar.

— Ovos?

— Cozidos e bem salgados. Não gosto desses mexidos que a empregada faz. Me dá nojo!


A avó Lola se mostrava totalmente contra a realização de todas essas vontades e caprichos. E sempre que podia deixava bem clara e patente a sua impertinência quanto a isso:

— Não está exigindo muito para uma pessoinha da sua idade, Larissa?  – Berrava, insatisfeita com as descomedidas da neta. – Nunca vi uma menina cheia de manias e não me toques.

Ao contrário dela, o avô Genésio, relutante e gentil, comungava com os pensamentos da menina e a defendia ferrenhamente de unhas e dentes:

— Tadinha, Lola!!!

— Tadinha coisa nenhuma. No meu tempo, meus pais não me davam escolhas. Eu que não aprontasse algo, pra ver se a fivela do cinto não comia nos costados. Mandava pra dentro o que tivesse na mesa, ou ficava de castigo, com os joelhos no milho...

— No seu tempo não existia eletricidade nem água encanada, Lola. Tampouco forno de micro-ondas. Estamos, minha velha, na era da tecnologia. Luz de velas, só em filmes de terror dos idos de Hitchcock.

— Pode até ser. Não discordo de você, meu esposo. Mas concorde comigo, pelo menos nesse ponto. Certas frescuras afloram desde os primórdios tempos em que a sua bisa andava de bicicleta de uma roda só e se pegava moscas com mel. 

No almoço, a mesma cena se repetia. Chegava a dar asco em quem estivesse por perto:

— Arroz?

— Tira esses “trocinhos” vermelhos.

— São tomates. Faz bem pra saúde.

— Não pra minha!

— Carne?

— Sem pelancas...

— Farinha?

— Gruda nos dentes.

— Pegue a colher...

— Só como com garfo e faca.

— Água, Melissa?

— Quero refrigerante. Não gosto de água. Estufa a barriga e me faz parecer gorda e balofa.

A avó Lola, gente antiga e de ideias antiquadas e retrógradas, não desistia de sua empreitada. Ralhava com vontade. Marcava em cima do lance. Sem dó nem piedade. Brigava mesmo. Genésio, porém, embora passasse dos oitenta –, seguia por caminhos extremamente complacentes e apaziguadores. Lutava contra todos para ficar ao lado de Larissa, a única netinha e realizar seus desejos mais corriqueiros e absurdos:

— Tadinha, Lola!!! Deixa de implicar com essa criança. Que coisa! Nem parece que já passou por essa idade!...

— Sei que passei, como todos passamos. Todavia, no meu tempo de mocinha, ai de mim se...

Assim acontecia o tempo inteiro. No lanche das três, na mesa de jantar, no banho, e, à noite, na hora de sentar na sala para ver a novela na televisão em preto e branco. Igualmente, ao se recolher ao quarto para dormir, ou logo noutro dia cedinho ao acordar e se aprontar para o grupo escolar. Não diferenciava em nada as idas ao que hoje chamam de “shopping” para comprar roupas, sapatos e objetos de maquiagem. 

Se a mocinha desse o contra, pronto –, aparecia a avó falando pelos cotovelos. Passos atrás, pintava o avô (com seus vagarosos de gente que estava com a vida ganha), brabo, trepado nos cascos, fazendo valer os direitos e deveres da guria, rezando a sua cartilha, pelejando para que os pais verdadeiros Anahí e Gaudêncio deixassem por menos e se curvassem aos impulsos da pequena. O tempo seguiu sem maiores contratempos. Larissa cresceu. A avó Lola e o avô Genésio morreram. O pai (tal como a falecida mãe, dona Lola), seguia a sua linha de pensamentos em oposição aos demais. Enérgico, não dava tréguas.  

Um dia, pintou o primeiro namoradinho:

— Onde já se viu, Anahí, deixar a nossa filha namorar um moleque esquisito igual a esse? Reparou nos cabelos? Nos brincos nas orelhas? Como se não bastasse, piercings na língua, nos olhos, sem falar nas tatuagens, aqui e ali!? Nem escrever esse filho de uma égua sabe direito...

— Tadinha, Gaudêncio!!! Nossa donzela fez treze anos ainda ontem!... não é mais aquela garotinha que se escondia pelos cantos da casa, fazia xixi... e eu, ou você, ou seus pais. carecíamos trocar as fraldas...

O tempo inexorável continuou sem mudanças. A menina, debutou. Quinze anos. Fizeram uma festança inesquecível para comemorar a data. Então, um belo dia, apareceu, não se sabe como, grávida. Escondeu a besteira da prenhez o quanto deu das vistas de todos. Entretanto, no dia em que a barriga imensa decidiu saltar para fora, mostrando o imprevisto da fatalidade e empurrando o nascimento de um novo ser para a vida plena, tudo ao redor dela se fez tarde, muito tarde demais. Gaudêncio, foi à loucura. Explodiu, furioso e transtornado:

— Nossa filha barriguda, Anahí?

— Aconteceu, Gaudêncio, aconteceu! Tadinha!!!

— Vagabunda. Culpa sua e, antes, de meus pais. Viu no que deu os paninhos quentes? Não quero essa infeliz aqui em casa. Rua, rua com ela. Que vergonha, que vexame para a família! Sabe, ao menos, quem é o desgraçado do salafrário que embuchou essa desmiolada? Quero matar esse amaldiçoado como se mata um porco. Diga, quem é o pai? Quem é o miserando?

Dona Anahí desesperada, inventou uma mentira de última hora. O verdadeiro pai da criança, o moleque esquisito, escafedera. “Graças aos céus”. Jogaria com a sorte. Se desse errado... 

— O pai da criança, Gaudêncio é o tio dela, seu irmão Felipe, de dezessete anos, o caçula que veio morar aqui em casa, logo após o falecimento de seu Genésio e dona Lola. E agora? Você sairá à cata e matará seu próprio sangue? Tem realmente coragem de tirar a vida do seu irmão e botar nosso bebê (agora com seu neto recém-nascido, quer você queira, ou não), junto com a nossa filhinha que você ama incondicionalmente do fundo da alma, sem mais nem menos para fora de casa e vê-la jogada como um bicho pelas sarjetas da vida desumana e cruel? Tadinha!!!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 5)

 

Alba Christina Campos Netto (História de suspense)

Já era tarde quando Antônio telefonou.

- Recebi seu conto para a revista. Está bom, mas...

- Mas... o que?

- Para dizer a verdade não gostei. Está chato, sabe? Não é que não esteja bom, mas aquilo não é Você ... Entende, não?

- Sim, entendo.

- Você pode substituí-lo?

No momento estava difícil imaginar histórias. Mil e uma ocupações tomavam-me o tempo.

- Você tem muita pressa?

- Ora, se tenho... gosto de ler suas histórias.

- É que me sobra pouco tempo, agora que tenho o bebê... Mas conte comigo.

- Está bem. Dou dez dias de prazo.

- Bom. Se eu não puder levar, você pode vir buscar?

- Ah, que pergunta...

No dia seguinte fiquei pensando no assunto. A empregada havia faltado e o serviço acumulou. Minha máquina estava emprestada. As ideias fugiam-me da cabeça. e eu queria me livrar logo daquele encargo. Além de tudo, precisava aproveitar enquanto Cláudia dormia, para escrever o bendito conto.

Foi então que me lembrei: havia deixado meus óculos em casa de Betty, quando fui ver televisão. E agora? Tinha de ir buscar.

Nem bem saí de casa, reparei que um velho me seguia. De onde surgiu, não reparei. Fui andando, e ele atrás de mim. No ponto do ônibus olhava-me, com olhar insistente. Em dado momento começou a sorrir.

Era um tipo de homem do povo, vestido com simplicidade. Baixinho, magro, feio, mas tinha olhos brilhantes, que chamavam a atenção. Resolvi entrar numa loja. Andei, olhando os balcões, fugindo das vendedoras que vinham procurar servir. Passei nisto uns vinte minutos - o tempo que julguei necessário para o velho ter sumido - quando vi que a loja dava saída para a outra rua, onde também passava um ônibus para a casa de Betty.

- Ótimo, pensei.

Havia uma fila grande. Esperei uns minutos, e quando o ônibus chegou, vi com surpresa, que lá estava o velho outra vez, atrás de mim. Comecei a ficar com medo.

O ônibus parou, foram todos entrando, e quando o velho acabou de entrar, o fiscal mandou fechar a porta.

Apressei-me a passar a borboleta, mas assim que me sentei, o velho sentou-se ao meu lado.

Pensei que iria me dirigir a palavra, mas ele continuava mudo, os olhos brilhando, fixos em mim.

Quis voltar. A rua onde Betty morava era meio deserta, e eu não poderia me aventurar, com um desconhecido louco me perseguindo. Mas para meu sossego, ele desceu do ônibus bem antes de mim.

Contei a Betty o sucedido.

- Preciso de um copo d'água. Estou cansada, até...

- Mas também esses tarados... Outro dia um veio da cidade até aqui, me seguindo.

- Pois, é. Ainda bem que desistiu, viu que não sou de nada.

Na saída Betty acompanhou-me até o portão.

- Cuidado, hein, por essa rua deserta.

Segui, muito confiante, ao ponto do ônibus. Não havia ninguém na rua, felizmente. O ônibus chegou, parou, e quando eu ia subindo, vejo que alguém subia também. E quem poderia ser senão o velho personagem do dia?

O mais depressa que pude, procurei lugar perto de alguém, para evitar que ele se sentasse de novo ao meu lado. Tive vontade de pedir a alguém no ônibus que me acompanhasse até em casa. Mas alguns minutos depois, sem que eu percebesse, ele já havia desaparecido. Daí por diante, eu olhava de todo lado. Pelo caminho para casa ia vendo se tinha gente em volta, a quem pudesse pedir socorro. Mas o velho desistira, mesmo. Nem sinal.

Continuei meu caminho sossegada, e quando ia abrindo o portão de casa, ouvi uma voz suave, me chamando;

– Por favor, moça, preciso só dizer uma palavrinha.

Fiquei dura ao ver novamente o velho.

– Não tenha medo, minha filha. Só queria pedir um favor, importante. Conhece o Mendonça, seu vizinho, aquele daquela casa? - e apontou a casa da esquerda.

- Conheço, disse trêmula.

- Pois vá à casa dele hoje mesmo. Ele vai para a Europa a semana que vem. É preciso impedir essa viagem a todo custo. Diga à esposa dele que de modo algum o deixe viajar. Entendeu bem? Ele não deve embarcar de modo algum.

- Só isso, perguntei, morrendo de medo, louca para entrar em casa e vê-lo sumir.

- E se algo acontecer, continuou ele, avise a esposa que procure dentro do baú velho, embrulhado num papel verde, embaixo das fotografias da família...

Aquela conversa misteriosa foi me fazendo ficar gelada, e devo ter virado sorvete quando vi que o velho sumira, como por encanto. Tamanho pavor se apoderou de mim, que nem entrei em casa, pois não havia ninguém. Corri para a casa do dr. Mendonça, onde entrei esbaforida. Fui contando toda a história a dona Adélia, que não se mostrou assustada.

- Que brincadeira de mau gosto. 

– Mas quem seria? Para saber que o dr. Mendonça vai a semana que vem para a Europa, para falar no baú com as fotografias da família?

- Ora, alguém que deve conhecer o Mendonça, ou saber da vida dele. Quanto ao baú velho com fotografias de família, quase todo mundo tem. não é? Beba um copo d'água e não pense mais nisso.

Mesmo assim, pedi que me acompanhasse de volta.

Passaram-se, os dias e o dr. Mendonça embarcou. Eu ainda pensava no velho, com medo que ele aparecesse para ajustar contas. Estava com aquela ideia fixa, quando, uma tarde, vi que a casa ao lado estava cheia de gente. Uma irmã de dona Adélia veio me chamar, dizendo que dona Adélia recebera um cabograma, avisando que o dr. Mendonça havia falecido a bordo, de um colapso cardíaco.

Entrei com as pernas bambas. Dona Adélia olhava-me alucinada. Nenhuma de nós sabia o que dizer. Nem murmurar "meus sentimentos", ou coisa parecida, eu pude.

- E o que mais disse ele? perguntou-me. Que procurasse no baú velho, não foi?

- Sim, disse eu, arrepiada.

- Venham comigo, disse dona Adélia levantando-se da cadeira, e puxando as irmãs e amigas pela mão.

Eu as segui, por solidariedade, ou por curiosidade, não sei. Entramos num quarto, lá no fundo do quintal, onde havia montes de coisas velhas guardadas: livros, vestidos, móveis antigos, uma porção de quinquilharias, e o velho baú.

Abriu-o, depois de tirar de cima um montão de revistas empoeiradas.

- Cartões de Natal, participações de noivado, convites de casamento, para que guardar tudo isso, Adélia?

- Aqui estão as fotografias. E aqui o embrulho verde.

Fui ficando tonta, enquanto dona Adélia desembrulhava.

– Ora, nada demais, o retrato de meu avô, falecido há vinte anos. Já está meio apagado. 

Todas devem ter ficado horrorizadas ao olhar para mim - ao reconhecer no retrato o velho que me havia seguido, dei um grito, e teria caído se uma senhora não me segurasse.

Mas Cláudia já está acordando, eu preciso ir vê-la. Felizmente terminei o conto. Há uma hora estou escrevendo, e eis tudo que pude imaginar. Só resta esperar a revista sair, e ver se Antônio realmente preferiu esta história à outra.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIII

 VERSOS À CARA
 
MOTE:
Sem ter chicote nem vara,
manda-me a minha razão
atirar versos à cara
dos que me roubam o pão!
Antonio Aleixo
Vila Real de Santo Antonio/Portugal, 1899 – 1949, Loulé/França

GLOSA:
Sem ter chicote nem vara,
eu tento fazer justiça,
de uma forma simples, clara,
menosprezando a cobiça!
 
Pensando, assim, concentrado,
manda-me a minha razão
(por ser eu apaixonado)
responder com o coração.
 
É uma maneira bem rara,
revidando os malfeitores
atirar versos à cara,
transformando-os em leitores!
 
É com minha poesia
que os trarei de volta ao chão,
pondo fim a glutonia
dos que me roubam o pão!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   NOSSOS VINHOS
 
MOTE:
 Andando pelos caminhos
da vida ao alvorecer,
lembrei-me de nossos vinhos,
bebidos ao bel prazer!
Carmen Pio
Porto Alegre/RS

GLOSA:
Andando pelos caminhos
do meu hoje, tão contente,
eu visto os sonhos de arminhos
e enfeito a vida da gente!
 
Eu sinto em mim, a fragrância
da vida ao alvorecer
que explode, então, nessa ânsia
de vontade de viver!
 
Recordações são carinhos
realizando desejos...
lembrei-me de nossos vinhos,
lembrei-me de nossos beijos!
 
Fiquei ébria de paixão,
ao recordar o beber
dos vinhos do coração,
bebidos ao bel prazer!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   SEMEANDO ROSAS
 
MOTE:
Nas horas mais dolorosas,
teimosos, no seu lirismo,
há poetas semeando rosas
entre as rochas de um abismo!
Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:
Nas horas mais dolorosas,
cheias de melancolia
surgem poesias preciosas
falando de nostalgia!
 
Os poetas, são assim,
teimosos, no seu lirismo,
à tristeza dão um fim,
num eterno sincronismo!
 
As aragens tão cheirosas
provam de um modo profundo:
há poetas semeando rosas
nos quatro cantos do mundo!
 
As rosas crescem faceiras
nascidas do romantismo,
entre campos e ladeiras,
entre as rochas de um abismo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   NOSSAS MANHÃS
 
MOTE:
De manhã, sugando amores,
nesses teus lábios de paz,
provo todos os sabores,
nos sabores que me dás.
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:
De  manhã, sugando amores,
teus carinhos divinais
têm o perfume das flores
e o gosto de quero mais!
 
Eu sacio os meus  desejos
nesses teus lábios de paz,
pois o néctar dos teus beijos,
meus anseios, satisfaz!
 
Eu vejo todas as cores
nesse meu mundo encantado;
provo todos os sabores,
nele, eu amo e sou amado!
 
Esse momento tão lindo
só felicidade traz
e me embriago, sorrindo,
nos sabores que me dás.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   MEUS  VERSOS
 
MOTE:
Versos soltos ou fragmentos
são as trovas que componho
que amenizam meus tormentos
e dão mais vida ao meu sonho!
Joamir Medeiros
Natal/RN

GLOSA:
Versos soltos ou fragmentos
eu escrevo nos meus versos,
são cânticos ou lamentos
que ecoam nos universos!
 
Com muita imaginação,
são as trovas que componho
pois brotam do coração
e nelas, minha alma, ponho!
 
São bonitos pensamentos
que a trova me faz criar,
que  amenizam meus tormentos
e até me ensinam a amar!
 
Sendo eu, um trovador
nunca , me quedo, tristonho;
as trovas levam a dor
e dão mais vida ao meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.