domingo, 2 de junho de 2024

Artur de Azevedo (Vi-tó-zé-mé)

Vi-tó-zé-mé? Que quer isso dizer? Perguntará o leitor, imaginando que escrevi esse título em algum idioma bárbaro e desconhecido.

Tenha o leitor um pouco de paciência; não vá procurar no final do conto a explicação do título, que será plenamente justificado, por mais estranho que pareça.

Durante os primeiros dois meses da revolta de 6 de setembro, fui vizinho de uma família, que eu não conhecia, composta de marido, mulher e um filhinho de pouco mais de dois anos, encantadora criança que fazia a delícia dos meus olhos quando todas as tardes, azoado (atordoado) pela artilharia e pelos boatos, voltava à casa para jantar.

Poucos dias depois de declarada a revolta, comecei a notar que os pais do menino se retiravam da janela quando eu me aproximava e volviam ao peitoril quando só pelas costas me podiam ver, evitando, ao que parecia, o cerimonioso cumprimento que eu lhes fazia dantes.

Atribui o fato a alguma intriga de vizinhança, e, como não os conhecia nem eles me interessavam, não me importei absolutamente com isso. Como de nenhuma vergonha me acusa a consciência, tenho por hábito não dar a mínima importância ao juízo – bom ou mau – que os estranhos possam fazer da minha pessoa. É uma questão de temperamento.

Quem me fez cismar foi a criança. Essa estava quase todas as tardes à janela, e, quando eu passava, dizia-me com uma vozinha esganiçada e penetrante:

Vi-tó-zé-mé.

Debalde tentei apanhar o sentido dessas quatro sílabas misteriosas, que eu ouvia diariamente, à mesma hora, e acabaram, como já disse, por me dar que pensar, não obstante partirem dos lábios inconscientes de uma criancinha.

E isto durou mais de um mês.

Ao cabo desse tempo vieram as andorinhas da Empresa Geral de Mudanças, e os meus vizinhos abalaram para outro bairro, deixando-me a curiosidade fortemente excitada por aquele vi-tó-zé-mé enigmático e cronométrico.

Há dias achava-me num bonde, quando de repente o pai da criança, que eu perdera inteiramente de vista, entrou no veículo, sentou-se ao meu lado e cumprimentou-me com muita amabilidade, pronunciando o meu nome.

Bem que o reconheci: entretanto, obedecendo a um ressentimento muito natural, correspondi com certa frieza ao seu cumprimento, o que o levou a perguntar-me, sorrindo:

— O senhor não se lembra de mim?

— Confesso que não.

— Veja bem.

— Tenho uma ideia vaga...

— Fomos vizinhos. Morávamos na mesma rua – o senhor no número 55 e eu no 49 – quando rebentou aquela maldita revolta cujas consequências ainda estamos sofrendo...

— Ah! sim... agora me lembro...tem razão...

E não pude me conter.

— Por sinal que tanto o senhor como sua senhora se retiravam bruscamente da janela quando me viam.

O pai da criança baixou os olhos, suspirou, e, pôs-se com a ponteira da bengala e empurrar um fósforo apagado para uma das frestas do soalho do carro. Depois, levantou a cabeça, suspirou de novo, e disse-me com uma expressão dolorosíssima na voz e no olhar.

— É verdade... Praticávamos essa grosseria... Desculpe... eram coisas de minha mulher... Que quer o senhor? – Eu tinha a fraqueza de me deixar dominar...

E o homem procurou num sorriso uma atenuante para a seguinte revelação.

— Ela não podia vê-lo.

— Ah!

— Não podia vê-lo, não, senhor, e então exigia que saíssemos ambos da janela para evitar o seu cumprimento. Eu, com medo de um escândalo, fazia-lhe a vontade... Ora, aí tem o senhor!

— Não me podia ver? Mas... por quê?

— Asneiras. Não podia vê-lo, porque o senhor era um florianista intransigente e ela uma custodista exaltada.

— Ainda bem, disse eu, sorrindo.

— Conhecia os seus escritos... ouvia-o conversar, e... e não podia vê-lo!

— Com efeito!

— O senhor não faz ideia até que ponto a pobrezinha levava o seu fanatismo por aquela revolta que nos desgraçou. Imagine que havia um homem, um bom homem, um pai da vida, que há cinco anos nos vendia ovos... ovos frescos, deliciosos, mais baratos que no mercado...

— Pois bem: deixamos de ser fregueses desse pobre-diabo; ela despediu-o porque ele se chamava Floriano... Coitada! – tinha essas coisas mas era uma excelente criatura. Não há dia em que eu não chore a sua morte!

— Ela morreu?!

— Morreu, sim, senhor... ou por outra: mataram-na, porque naquele corpo havia seiva para cem anos.

E o viúvo enxugou uma lágrima que lhe rolava na face.

— E quer saber o que a matou? Uma bala atirada pelos revoltosos! Foi uma das vítimas dessa guerra estúpida que tanto a entusiasmava! – Um dia estava debruçada tranquilamente à janela, quando, de repente –, pá! mesmo aqui...

E o pobre homem levou a mão à testa.

— Não sobreviveu dois minutos. Quando lhe quis acudir, já era tarde: estava morta! 

E com a voz embargada pelos soluços.

— Deixou-me um filhinho, coitada! – um filhinho a quem faz mais falta que a mim próprio...

Para que o infeliz marido chorasse à vontade, conservei-me silencioso durante cinco minutos; passado o acesso, perguntei pelo menino.

— Está bem, obrigado... Mora no colégio... é pensionista... e vai indo.

— Lembra-me bem do menino, porque todas as tardes – quando eu passava e ele estava janela – dizia-me alguma coisa que eu não podia perceber e, por isso mesmo, tal impressão me causou, que nunca me esqueceu.

— Que era?

— Vi-tó-zé-mé.

— Ah! já sei...

— Sabe?

— Coisas da falecida... Era para o moer... Ela ensinava o filho a gritar todas as vezes que o senhor passava: “Viva Custódio José de Melo!” E ele, coitadinho, na sua meia língua dizia: “Vi-tó-zé-mé!”

— E aí está explicado o título.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado originalmente em 1897. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 30

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 113

Sabe aquele riacho estrondoso que desce lá da serra levando tudo pela frente? Pois é... Assim anda a vida. As notícias de hoje são como torrentes que arrastam as de ontem, porque as de hoje amanhã já se foram também. 

Doida, doidivana, adoidada vida. Anda em disparada. E lembrar que não era assim. Belos dias de calmaria, de sossego, de suspiros serenos, de vislumbres, de imagens, de piqueniques nalgum cantinho do interior, das festas de igreja lá na vila, das bochas ali na cancha, do futebol na várzea, inesquecidas domingueiras. 

Hoje? Pensar, hoje? Para a vida não há tempo de pensar hoje. Ela corre célere, celerada. Automatismo puro. E eu me perguntando, o que houve com você, vida, parece que estás sempre com pilha nova? 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Arthur Thomaz (O beijo e a montanha)

 
Nilsen cresceu em condomínio de classe média, com uma segurança que permitia muitas brincadeiras infantis. As famílias organizavam muitas festas de aniversário. 

Na festa em que comemorava 10 anos, tudo corria tranquilamente, até que na hora das despedidas, um primo adolescente veio em sua direção para o clássico beijo de até logo.

Percebeu, com horror, que ele era portador de acne e que iria encostar o rosto no seu. Aquelas acnes, em sua mente, transformaram-se em enormes montanhas de pus.

Sem conter a expressão de asco, viu-se soterrada por aquele Everest desmoronando sobre seu rosto, e ainda por um descuido, o primo escorregou e seus lábios tocaram parte dos dela.

Aquele hálito de brigadeiro com refrigerante inundou seu cérebro, fazendo-a correr enojada ao banheiro mais próximo, onde vomitou incessantemente e lavou o rosto e a boca, ao menos, 30 vezes.

À noite teve pesadelos com montanhas de pus, atolando-se em areia movediça daquela substância horripilante. O cheiro de brigadeiro misturado a refrigerante infiltrou-se em algum recôndito local em seu cérebro, de onde nunca mais saiu.

Evitou festinhas e jamais esteve perante a este primo. Na adolescência, vivia em consultórios de dermatologistas para evitar qualquer possibilidade de ter acne.

Enfim, a faculdade de Veterinária em outra cidade, longe do tal primo.

Nunca sequer aventou a hipótese de beijar uma pessoa, mas em uma festa na república de colegas de turma, beberam como era de costume nessas reuniões, e evitando beijar, relacionou-se sexualmente com um rapaz, que alcoolizado, preocupou-se apenas em consumar o ato para voltar logo ao lado dos amigos, sem sequer ter reparado que era a primeira vez dela.

Para ela, foi um alívio em não ter tido que beijar uma boca estranha e nem encostar seu rosto em alguém potencialmente portador de acne.

Mas nela ainda havia o temor de um dia apaixonar-se e ter que trocar beijos e carícias, porque, afinal, a imagem das montanhas de pus permaneciam em suas lembranças.

Foi convidada por uma colega de faculdade a assistir a um jogo de polo a cavalo. Era um amistoso contra La Dolfina, um famoso time argentino.

Notou, apesar de corado pelo esforço, que o cavaleiro do time brasileiro possuía um rosto liso. Lembrou da palavra rubicundo e riu intimamente.

No intervalo do jogo, aproximou-se do local onde estavam os cavalos e ofereceu uma cenoura a um deles. O jogador perguntou o porquê ela tinha uma cenoura na bolsa, já sorrindo pelo inusitado da situação.

Sem graça, ela respondeu que trouxera também frutas, porque avisaram-na que tudo era caro neste ambiente hípico e que ainda era estudante sem muito dinheiro.

Ele sorriu e convidou-a para almoçar no caríssimo restaurante do clube. Bem apessoado, aparentando ter uns 40 anos, muito atencioso, mostrou-se encantador aos olhos dela.

Ela, fitando insistentemente as faces do acompanhante, lembrou da dermatologista, que dizia ser a acne muito mais rara em adultos e sentiu-se segura.

Empresário, ele possuía também um pequeno haras, onde criava e treinava cavalos para o jogo de Polo.

Nilsen, agora esposa do “face lisa”, como carinhosamente o chamava, tornou-se uma veterinária especializada em éguas e cavalos de polo. Seus dois filhos tiveram acne na adolescência, sem que isso a traumatizasse novamente.

Na hora da intimidade, quando no esforço do amor, o rosto dele ficava corado, ela adorava provocá-lo chamando-o de rubicundo, o que causava muitas risadas. Ele, então, zombava carinhosamente das histórias que ela lhe contara a respeito da “terrível” acne.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Avôhai)


Compositor: Zé Ramalho

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh, meu velho e invisível
Avôhai
Oh, meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina, eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada, eu me calei

E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar

Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar
Não reclamar!

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!
Avôhai!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Avôhai: Uma Ode às Raízes e à Sabedoria Ancestral
A música 'Avôhai' de Zé Ramalho é uma homenagem poética e carregada de simbolismo ao avô do cantor, figura que representa sabedoria, tradição e a conexão com as raízes familiares e culturais. O termo 'Avôhai' é uma junção das palavras 'avô' e 'pai', indicando a importância do avô na vida do artista, como um segundo pai ou até mesmo um guia espiritual.

A letra descreve o avô com imagens rústicas e místicas, como um homem de 'botas longas' e 'barbas longas', adornado com um colar de ouro, sugerindo uma figura quase mítica, que carrega consigo a história e a cultura de seu povo. A menção à 'neblina turva e brilhante' e à 'amanita matutina' (um tipo de cogumelo) pode ser interpretada como uma alusão a estados alterados de consciência ou sabedoria transcendental, que o avô parece possuir.

A música também aborda a relação entre a vida e a morte, a sabedoria e a ignorância, e a importância de enfrentar os medos e desafios da vida. A referência à 'pedra de turmalina' e ao 'terreiro da usina' onde o cantor cresceu, trazem o ouvinte para o ambiente físico e cultural do Nordeste brasileiro, onde Zé Ramalho foi criado. 'Avôhai' é uma celebração da ancestralidade e do legado que as gerações mais velhas deixam para as mais novas, um convite para honrar e lembrar das origens.

Aparecido Raimundo de Souza (O escuro alimento)

A MEDIOCRIDADE, conhecida também como uma coisa leviana ou corriqueira, é igualmente assemelhada a um terreno inóspito de areia movediça, ou seja, um determinado local onde um fenômeno natural (tipo uma praia deserta ou mesmo uma área frequentada por grande número de pessoas), tem a sua superfície embebida em água. Por conta de tal entrave, não oferece a resistência devida e necessária para quem se acha em posição de risco iminente. Assim sendo, contribui unicamente para que os menos desavisados (sejam elas pessoas, animais ou qualquer outro tipo de vida que respire) se vejam sumariamente tragados.

Grosso modo, um portento assombroso que pode nos afundar num abrir e fechar de olhos, e em consequência, nos aprisionar, impedindo os nossos passos de seguirem o horizonte delineado, o porto seguro. Visto por uma ótica mais estranha. Privando os nossos objetivos de deslancharem, de irem e virem e de alcançarem o verdadeiro e tão sonhado potencial que todos nós carregamos por força do Criador. Em outras palavras, uma voragem insólita e inesperada desviando para uma rota-alternativa e sem volta os nossos empenhos previamente delineados. 

Se tratando de jornada de existência desconhecida, muitas vezes nos encontramos em um itinerário que parece monótono e sem brilho. Será que a exiguidade, como a areia movediça se faria inevitável, ou melhor posto, poderia ser ela, de alguma forma, simplesmente evitada? Apesar de difícil, vamos tentar explorar o alvo de uma forma bem amena. A mediocridade ou a parvidade não seria apenas uma condição. Ela se faria como uma escolha “não escolhida.” Partindo daí, se manifestaria quando nos contentássemos com o mínimo, ou quando aceitássemos a mesmice e abandonássemos os desafios ainda não buscados. 

O segredo de uma existência falha e traiçoeira, é marcado por alguns comportamentos e atitudes. Quais seriam? Vejamos os mais chatos: O “Conformismo” lidera o ranking. Com isso, a mediocridade floresce, ganha vida e força, se robustece, quando nos agasalhamos com o “status quo.” Não buscamos, como deveríamos, o crescimento, bem ainda, não questionamos, não nos esforçamos, aliás, não fazemos nada... simplesmente aceitamos sem pestanejar, não movendo uma palha, para melhorar o quadro hostil bem ali à nossa frente. Quando nos acomodamos albergados na zona de conforto e deixamos de explorar novos horizontes, o obscuro desordenado imediatamente entra em cena e ganha terreno. 

Se continuarmos inertes, feitos pobres e tristes pacóvios, por certo, mais hoje, ou amanhã, sucumbiremos. Há um outro   ponto a ser trazido à baila. A “Falta de paixão.” Uma vida mal vivida, sem a vitalidade da vicissitude, carece de paixão. Muita paixão. De preferência uma devoção eufórica e avassaladora. Um dos nossos piores problemas está bem aqui diante de nossos narizes. Não nos dedicamos com fervor a nada. Levamos na flauta. Fazemos o mínimo necessário para sobreviver, porém, não nos apaixonamos idolatradamente por nossos projetos, relacionamentos ou sonhos.

Mesma estrada de retorno incerto, amamentamos como a um recém-nascido, a “Ausência de Autenticidade.” A burrice cavalar, nos leva a esconder a nossa verdadeira essência. Tememos ser diferentes e, em razão disso, nos camuflamos mergulhados em meio de uma multidão desenfreada e sem objetivos vorazes e sôfregos. Perdemos, com essa fraqueza, o âmago e, de lambuja, a plenitude. Deixamos de lado a autenticidade e, por conta, nos tornamos meras cópias desbotadas. “Medo do fracasso.” O receio de falharmos nos impede de arriscar. Preferimos não tentar coisa alguma, a enfrentarmos a possibilidade de não atingirmos, em cheio, o sucesso. Permanecemos, pois, onde o risco é mínimo, ou acredite se quiser, quase insignificante. 

“Resistência a mudanças. ” O anódino (insignificante), como todos devem saber, é balsâmico E por qual motivo é assim? Pelo fato de não queremos mudar, de não planejamos ir em frente. A mutação, ou a conversão, acima de qualquer coisa, exige esforço hercúleo e enfrentamento. Optamos pelo menor combate, qual seja, mantermos por comodidade, simplesmente deixarmos as coisas como estão, mesmo que isso signifique uma decisão simples conhecida como “estagnação.” Entre mortos e feridos, como escapar desse carreiro temerário? Como transformar uma existência despicienda em algo mais eficaz e duradoura e logicamente significativa? 

Se os meus senhores e as minhas senhoras me permitirem, darei algumas sugestões. “Autoconfiança.” Reconhecer quando estamos caindo no inócuo (inofensivo) inoperante seria o passo mais propício. Devemos estar sempre atentos aos sinais de conformismo e falta de paixão. A autoconsciência é o passo robusto, na verdade, o passo avultado e mais indicado para a verdadeira mudança. No mesmo seguimento, “Definir metas inspiradoras.” Também tal atitude não pode deixar de ser vista e revista. O que seriam metas inspiradoras? Simples! Estabelecermos ou criarmos situações inusitadas que empolguem, ou que balancem literalmente a roseira. 

O arrebatamento quando ponderoso (importante) e suasório (convincente), costuma dar bons resultados. Devemos também sonhar grande e traçar uma estrada direta e sem curvas, para abocanharmos os objetivos pretendidos. É de bom alvitre lembrarmos sempre que a moderação vulgar não sobrevive quando há uma visão clara e objetiva do que realmente temos como favoritismo. Outro ponto fundamental. “Superar os medos.” Aceitamos com fé e coragem que o fracasso faz parte do processo. Todavia, nunca deixarmos que o receio se achegue e paralise a nossa mente, ou tolha os nossos   movimentos, ou no pior dos mundos, tente pintar de outras cores, o nosso cotidiano. 

Precisamos aprender de uma vez por todas com os erros e continuarmos avançando. Sempre em frente. Passos à retaguarda, nem para tomar impulso. “Carecemos, outrossim, sermos autênticos.” Abandonarmos as máscaras. Mostrarmos como somos, com todas as nossas imperfeições e peculiaridades. A autenticidade é uma fonte libertadora e inesgotável que nos afasta para bem distante da submissão. “Abraçar a mudança.” A vida, meus caros e nobres amigos, é dinâmica. Por assim, se faz mister estarmos dispostos a mudar, a aprender, a crescer. Sobretudo, a nos expandirmos. 

A avareza de espírito, a sovinice, ou até mesmo a ignorância em sua forma mais apurada, não sobrevivem em um coração de portas abertas, menos ainda frenteada a uma alma limpa e cristalina em ritmo constante de transformação total. Termos, acima de tudo, haja o que houver, a certeza amadurecida de que a somiticaria (avareza) é uma escolha. Nós todos podemos, a qualquer tempo, optar por seguirmos um itinerário monótono ou, em via paralela, trilharmos por uma senda mais longa, usque (expressão em direito que significa até) desafiadora, majestosa e significativa. A decisão final, aquela que nos levará ao sucesso, glorioso estará sempre, seja em que circunstancia for, em nossas mãos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Eduardo Affonso (Herói da resistência)

Houve um tempo em que telefone telefonava e máquina fotográfica fotografava.

As coisas eram unívocas, com jurisdições demarcadas, como que regidas por uma religião.

Em algum momento algo se rompeu, e telefones começaram a fazer contas, mandar cartas, tocar música, tirar fotos.

Por que o telefone, não o ferro elétrico? Jamais saberemos.

O ferro elétrico é de um tempo em que máquina de escrever escrevia, carteiro entregava cartas e computador computava.

Então, como se tivessem surtado, computadores começaram a escrever, enviar e entregar cartas, as máquinas de escrever silenciaram, os carteiros tiraram um peso dos ombros e um pouco da alegria dos cachorros.

Relógios marcavam as horas, não batimentos cardíacos.

Cinemas passavam filmes, não encenações de milagres.

Impressoras imprimiam, copiadoras copiavam, aparelhos de fax enviavam fax – hoje, nestes tempos de transgêneros, uma multifuncional dá conta de tudo sozinha.

O micro-ondas já doura e gratina.

O liquidificador, que só liquidificava, mudou o nome para mixer e agora corta, amassa, mistura, processa, rala, pica, bate, tritura, e por pouco não chuleia, caseia e prega botão.

Só o ferro elétrico continua apenas passando roupa.

Ele resiste, solitário, à degeneração dos costumes.

Até os óculos enxergaram que o fim estava próximo, com as lentes descartáveis, e começaram a fotografar, filmar, ensinar o caminho, mandar e-mail.

Em vão.

Os óculos morrerão como morreram o monóculo, o pincenê, o telex, a antena interna, pager, disquete, fita k7, orelhão, ficha de orelhão, lâmpada incandescente, mimeógrafo, bala Soft, goma arábica, revólver de espoleta, anágua, bomba de flit, Emulsão de Scott, cinto de castidade.

Fogões não precisam mais de fogo.
Geladeiras degelam sozinhas.

Quando nada mais for o que era, nos restará o ferro elétrico como prova de fidelidade aos princípios, como exemplo de dedicação exclusiva, de fé inabalável no destino.

Pode soltar vapor pelas ventas, ter dezoito temperaturas, base de teflon, recipiente para amaciante, design aerodinâmico, funcionar com energia solar, não importa.

Não há ideologia de gênero que o faça tirar fotos.
Mandar mensagens de voz.
Pagar contas.
Curtir comentários.

Quando nenhum tecido amarrotar, ou quando roupa amarrotada virar moda, o ferro de passar cairá de pé.

Deixará o mundo pela porta da frente, de cabeça erguida e com a consciência tranquila de jamais ter se rendido.

(publicado originalmente em agosto de 2017)

Eliana Palma (Microcontos) = 3 =

Não suportava mais a fibromialgia. A infiltração de anestésico a fez sorrir, aliviada, pouco  antes que o choque anafilático eliminasse a dor... definitivamente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Voluntariosos, não davam o braço a torcer. Trocaram o amor pelo orgulho. Hoje, duas famílias desfeitas sofrem com o reatar da paixão antiga!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sentira o carocinho há tempos. Não doía. Deixou para lá! Calva e sem curvas, lamenta a negligência!!!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Depois da “barriga de aluguel”, a casa nova e o coração vazio…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trocou a mulher velha e gorda pela gatinha coquete. O coração safenado não resistiu à emoção da primeira noite!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sempre se achara diferente dos irmãos; loira, sardenta; os outros, morenaços como o pai. E a voz da vizinha não saía da cabeça: "você é a cara do ex-namorado de sua mãe"...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma vida de paixão à distância. Enviuvou. Esperou impaciente o tempo do luto, e foi atrás do grande amor. Errara o timing. Ele morrera uma semana antes!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Embirrou que queria o carro da moda. O marido não podia, mas ela exigiu. Saiu da agência tão feliz que os olhos se encheram de lágrimas. Nem viu o ônibus acelerado...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fez um book caprichado: muito photoshop, reclamações e correções. E as perguntas invariáveis: "é sua filha"?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Queria ser famoso no mundo da literatura! Contratou um escritor competente e pagou caro pela edição. Só no dia do lançamento deu-se conta de que nada era seu: nem o nome do autor, na capa...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Custou para entrar na equipe. Subornou o técnico! No primeiro jogo a falta de habilidade o fez cair, e o estalo no tornozelo o deixou fora das quadras para sempre!!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Chovia torrencialmente. Um homem, ao lado da estrada, fez sinal para parar. Obedeceu, e a pista foi tomada por enorme carreta, na contramão. Não havia ninguém no acostamento a quem pudesse agradecer...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Do alto, olhava montanhas e vales feitos de nuvens. Estranhou o verde abrupto, e nem ouviu a explosão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Não faria exames de prevenção; e se aparecesse alguma coisa? Não fez. Apareceu. Esparramou-se e levou-a!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Boa pessoa, não acreditava no além. Na hora da passagem, em meio a vultos luminosos, julgou ouvir: "Eu não disse?”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sol forte, brisa fresca e mar azul. Tinha fome, mas decidiu dar um mergulho antes. Ainda no ar, ao saltar da popa, divisou o triângulo cinzento, na flor da água, também em busca do almoço...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Nunca trabalhara, seguindo o exemplo paterno. Na calçada, sob a chuva, em meio aos últimos pertences despejados, amaldiçoava a sabedoria do avô: —"Pai rico, filho nobre, neto pobre"!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sonhava em ter asas! Mas, ao menos, não tinha raízes... Custou a subir no penhasco e, finalmente, voou...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Seu sonho era ser cantor, mas a voz não ajudava. Comprou horários e jabás, mas nada de a carreira decolar. Um dia, ouviu seu empresário cantarolar e trocou os papéis. Hoje, contando muito dinheiro acordou!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Adotaram-no pequenino, sem se importarem com a procedência. Após a festa de 18 anos, a execução dos ricos pais adotivos no aflorar dos genes assassinos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Casou-se com o mais pobre da turma, sob o escárnio dos amigos da roda. Trabalho, poupança, foco, a melhor vida do grupo e a inveja dos demais.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sempre fora bela, mas a idade chegava e não cessavam os procedimentos estéticos. E o amigo alemão se recusava a contar a ela o motivo de querer conservar a imagem!

Fonte: Maria Eliana Palma. Momentos em prosa e verso. Maringá, 2016. Entregue pela autora.

Recordando Velhas Canções (Força Estranha)


Compositor: Caetano Veloso

Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O Sol ainda brilha na estrada, e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando
Outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o Sol me ensinou
O Sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos
Na fronte do artista
O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o Sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando
Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o Sol
E o Sol sobre a estrada, é o Sol sobre a estrada, é o Sol

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Eternidade e o Momento: A Força da Arte em 'Força Estranha'
A canção 'Força Estranha', interpretada por Caetano Veloso, é uma obra que contempla a relação entre o tempo e a existência, a arte e a vida. A letra, rica em imagens poéticas, sugere uma reflexão sobre a passagem do tempo e a percepção de momentos que, embora efêmeros, são eternizados pela arte.

No primeiro verso, a visão de um menino correndo e o tempo 'brincando' ao seu redor evocam a ideia de que a vida é um ciclo contínuo e que o tempo é um elemento lúdico, mas também inexorável. A menção aos pés no riacho que nunca foram retirados e ao Sol que brilha na estrada por onde nunca se passou, pode ser interpretada como a imersão do eu lírico na corrente da vida e na luz da criação artística, sem se deixar levar pela pressa ou pela necessidade de seguir um caminho pré-determinado.

A 'força estranha' que leva o eu lírico a cantar é uma metáfora para a inspiração e a necessidade intrínseca de expressão artística. A repetição do refrão enfatiza a intensidade dessa força que impulsiona o artista a criar, a despeito do tempo que não para e das adversidades. A música, portanto, celebra a arte como uma manifestação atemporal e poderosa, capaz de capturar a essência da vida e de resistir ao próprio tempo.

Marcelo Spalding (A Ambientação nos Textos)

A AMBIENTAÇÃO EM TEXTOS HISTÓRICOS

Quem se aventura a escrever um texto histórico deve ter alguns cuidados com o enredo e a ambientação, pelo bem da verossimilhança. O curioso é que em relação ao enredo alguns artistas fazem o que se chama metaficção historiográfica, combinando de modo irreal os fatos da história e por vezes, inclusive, modificando-os. Se isso no começo espantou os leitores e espectadores, hoje é considerado característica da cultura pós-moderna.

Mesmo nesses casos, porém, é fundamental que a ambientação seja verossímil. Por mais que o artista esteja recriando os fatos da Segunda Guerra, como Tarantino em Bastardos Inglórios, não pode de uma hora para outra aparecer alguém com um telefone celular, ou alguém ouvindo Lady Gaga, ou alguém comentando sobre Barack Obama, ou alguém de minissaia.

Nesse sentido, para escrever um texto histórico procure se informar sobre a cultura da época: os costumes, a moda, a gastronomia. Mas, quando possível, procure se informar com textos e documentos da época, não a partir de textos de outros escritores sobre a época, pois sempre que um autor contemporâneo resgata o passado, ele o faz com o olhar contemporâneo.

Claro que alguns se esforçam para tornar a ambientação mais realista, outros não se preocupam com isso (como os blockbusters históricos de Hollywood, em que as mulheres da Idade Média têm cabelos bem cortados, sobrancelhas aparadas e axilas depiladas), mas é impossível dissociarmos totalmente o tempo em que vivemos, seus valores, seu passado, seus aprendizados, do tempo representado.

Lembre-se, por fim, de que a língua também é parte da cultura e também se modifica com o tempo. O próprio vocabulário das personagens precisa ser adequado à época: tenha cuidado com gírias, regionalismos ou construções comuns hoje, mas não utilizadas na época de ambientação do texto.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A AMBIENTAÇÃO EM TEXTOS FUTURISTAS

A criação de textos futuristas é sempre muito instigante? embora não seja nada fácil. Ocorre que a ambientação de um texto futurista parte da realidade atual, modificando-a de acordo com a proposição do autor: por exemplo, se no futuro viveremos todos vigiados por um Big Brother; ou se no futuro não teremos mais água; ou se no futuro voaremos como pássaros.

Como exercício, imagine o mundo de hoje. Agora faça uma ou outra modificação importante nas leis de hoje (sociais, físicas, econômicas, políticas). E desloque sua história para 50 ou 100 anos adiante. Pronto, pense em quanta coisa mudou em função desse deslocamento.

Alguns escritores, como Júlio Verne, foram saudados como visionários por terem escrito sobre invenções que futuramente se confirmariam. Outros influenciaram as próprias pesquisas e o desenvolvimento tecnológico com seus textos, como Asimov. Modernamente, porém, percebemos que há uma grande quantidade de textos futuristas que se inspiram em pesquisas e relatos já publicados, explorando-os de forma poética e reflexiva em seriados, livros e filmes.

O filme Gattaca, por exemplo, lida com a complexa questão da engenharia genética e seus dilemas éticos. Esta é uma pesquisa avançada, e se não há ainda uma manipulação genética como a proposta no filme é mais por questões legais do que questões tecnológicas. Já Minority Report traz uma temática bastante fantasiosa ? a possibilidade de se prever crimes ?, mas com uma ambientação muito cuidadosa, baseada em pesquisas de ponta, como holografia, realidade aumentada, transportes individuais automatizados, reconhecimento facial, etc. Além disso, o filme cria uma ambientação social muito verossímil, com a tecnologia sendo usada para aumentar a segurança do cidadão, ainda que para isso viole sua liberdade e privacidade (neste aspecto, não poderia deixar de citar o seriado brasileiro 3%). Em histórias como Gattaca ou Minority Report, o futuro parece melhor ou mais organizado (embora os homens, por questões sociais, possam torná-lo aparentemente pior). Pode- mos dizer que essa é uma visão utópica, a do futuro como algo promissor, comum especialmente por aqueles que acreditam nas maravilhas da tecnologia.

Outra visão que se reflete na ficção futurista é a visão distópica, em que a humanidade é destruída em função de guerras, invenções tecnológicas, doenças, etc. Matrix e O Livro de Eli são exemplos de filmes distópicos, sem falar nos clássicos romances Admirável Mundo Novo e 1984. Particularmente me parece melhor evitar o maniqueísmo, cuidando o futuro catastrófico (já um tanto clichê) ou o futuro paradisíaco (até porque você precisa de um conflito).

Fontes:

quarta-feira, 29 de maio de 2024

José Feldman (Versejando) 139

 

Jaqueline Machado (O presenteador)

O jovem disse a um velho sábio:

- Sou um viajante sonhador. Em cada lugar que chego, compro presentes para oferecer às pessoas que amo. Junto dos presentes, ofereço minha transparência e verdade. Mas elas acham que quero algo em troca. Por que isso acontece?

 - “As pessoas não acreditam mais em gentilezas. Acostumaram-se a um estilo de vida onde nada mais parece ser genuíno, gratuito e verdadeiro. Não veem você como um presenteador, mas como um manipulador. Só que manipuladores forçam, e você apenas oferece... E apesar das decepções deve permanecer assim.

“Porque tudo que é manipulado, calculado demais, foge à essência natural das coisas. 

“Tudo o que fere o livre arbítrio, não é da vontade de Deus. 

“Nem trabalho, nem amizade, nem amor. Nem outra coisa alguma. 

“Absolutamente nada deve ser forçado. 

“Se a pessoa recusa o seu presente, não o ofereça mais. 

“Nada pode ser exigido. O estranho é saber que muitos dos que se negam receber presentes da vida, são merecedores de tais dádivas, mas por algum motivo se sabotam.   

“E quando o que é sincero, por razões de orgulho e desconfiança parece ser falso, a Vida, zangada, vem e desfaz milagres e alianças que deveriam ser reconhecidas, celebradas e intensamente vividas junto dos anjos e dos homens.

“Em casos de negações, o merecedor vira pecador. 

“E o presente que era para ser de alguém, é tirado de suas mãos. E oferecido a quem merece mais. 

“É por motivos como estes que muita gente se perde do caminho da felicidade. 

“Vá em paz, meu bom garoto. Siga o seu caminho. E não deixe de viver de acordo com as regras de sua essência.” 

O rapaz, feliz, em sinal de reverencia beijou as mãos do ancião e com sua mochila cheia de lembrancinhas seguiu as trilhas de seu destino...

Fonte: Texto enviado pela autora

Eduardo Martínez (Santana e o furto em residência)

O plantão da delegacia estava abarrotado, mas o agente Ricky Ricardo precisou designar dois policiais para um local de furto em residência. Chamou o Pedro, um dos mais competentes da delegacia. No entanto, para acompanhar o colega, estava sem melhores opções e, por isso, mandou o Santana. Que lástima! Fazer o quê?

Os dois agentes, já na viatura a caminho do local de crime, tiveram que enfrentar um engarrafamento. Pedro, ao volante, procurava encontrar uma brecha entre os carros para chegar logo, enquanto o Santana, com aquela vontade louca de acender mais um cigarro, abriu a janela da viatura. As baforadas começaram a sair da chaminé instalada entre o nariz e o queixo do antigo policial. 

Quase meia hora após, eis que os canas estacionaram em frente a uma casa na parte mais nobre da cidade. Pedro, mais ágil e proativo, desceu do veículo para desenrolar aquela situação. Quanto ao Santana, com os costumeiros movimentos de bicho-preguiça, ainda quis acender outro cigarro antes de descer da viatura. 

Pedro, serelepe que nem esquilo, sacou um pequeno caderno e uma caneta do bolso a fim de começar a anotar os detalhes para começar as investigações. Também precisava averiguar possíveis pontos de vestígios deixados pelo ladrão para que a seção de perícia fosse acionada. Quando o policial estava conversando com a dona da residência, eis que o Santana surge. Pedro, que já conhecia o modus operandi do colega, se afastou para procurar alguma pista, enquanto Santana e a vítima conversavam.

— Por onde o ladrão entrou?

— Por aquela janela.

— Hum... O ladrão entrou por aquela janela?

— Sim.

— Entrou por aquela janela?

— Isso.

— O ladrão entrou por aquela janela, né?

— Foi o que eu disse.

— Hum... Então, a senhora está me dizendo que o ladrão entrou por aquela janela ali?

Após quase 10 minutos naquela lenga-lenga, a mulher começou a se irritar com o Santana. Pedro, percebendo a situação, tratou logo de puxar o colega pelo braço e ir embora, mesmo porque sabia que precisava retornar o mais rápido possível para a delegacia, pois Ricky e Evelina estavam sozinhos para atender aquele mundaréu de gente. Mal entraram na viatura, o Santana, com a cara mais cínica do mundo, ainda quis se fazer de desentendido.

— Você viu aquela mulher, Pedro? Que estresse foi aquele? Esse mundo está mesmo perdido!

Fonte: Fonte> Blog do Menino Dudu – 27.05.2024

Recordando Velhas Canções (Saudosa Maloca)


Compositor: Adoniran Barbosa

Se o senhor não está lembrado
Dá licença de contar
Que aqui onde agora está
Esse adifício alto
Era uma casa velha, um palacete abandonado
Foi aqui, seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca

Mas um dia
Nem quero me lembrar
Veio os homis co as ferramentas
Que o dono mandou derrubar
Peguemo tudo a nossas coisas
E fumos pro meio da rua apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía, doía no coração

Mato Grosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os homis tá ca razão, nós arranja outro lugar
Só se conformemos
Quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor

E hoje nós pega paia nas grama do jardim
E pra esquecer, nós cantemos assim

Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas

Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Melancolia e Resistência em 'Saudosa Maloca'
A música 'Saudosa Maloca', composta pelo icônico Adoniran Barbosa, é uma crônica cantada que retrata a realidade dos moradores de uma maloca, ou seja, uma habitação improvisada e precária, que é despejada para dar lugar a um 'adifício arto', um edifício alto. A letra é um relato nostálgico e triste de um dos moradores que, junto com seus companheiros Mato Grosso e Joca, é forçado a deixar o lugar que chamavam de lar.

A canção é marcada por uma melodia que transmite a melancolia da situação, mas também a resignação dos personagens diante da realidade. A expressão 'Deus dá o frio conforme o cobertor' é uma metáfora que ilustra a aceitação da condição de vida e a capacidade de adaptação dos menos favorecidos. A música também reflete a urbanização acelerada e a consequente marginalização de pessoas de baixa renda, que são deslocadas sem consideração pelas suas histórias e memórias.

'Saudosa Maloca' é um retrato social que denuncia as injustiças e a desigualdade, mas também celebra a resiliência e a solidariedade entre aqueles que compartilham do mesmo destino. Adoniran Barbosa, conhecido por suas composições que retratam o cotidiano paulistano, utiliza a linguagem coloquial e elementos do samba para dar voz aos sentimentos e desafios enfrentados pelos personagens da música.

Sílvio Romero (O rei Andrada)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei de nome Andrada, que tinha três filhas, e lhes disse que o que sonhassem lhe contassem todos os dias pela manhã. 

Uma delas, logo no dia seguinte, contou ao rei um sonho que foi o seguinte: “Sonhei que havia de mudar de estado nestes poucos dias, e cinco reis haviam de me beijar a mão, e entre eles el-rei meu pai.” 

O rei ficou muito zangado com a filha e lhe ordenou que, se de novo sonhasse aquilo, não lhe contasse mais, senão a mandaria matar. 

A moça tornou a sonhar coisa semelhante, e pela manhã, apesar de lhe rogarem as irmãs, ela contou o sonho ao pai. Ele mandou matá-la, e cortar-lhe o dedo mindinho que os matadores lhe deviam trazer.

Os criados do rei levaram a princesa para um ermo, e tiveram pena de a matar; cortaram-lhe somente o dedo, que levaram ao rei, deixando a moça nas brenhas. 

Ela começou a caminhar, e, muito longe, encontrou um buraco, e entrou por ele dentro, e, quanto mais entrava, mais o buraco se alargava até que ela foi dar num rico palácio. Aí ela tinha o almoço, a janta, e a ceia, sem ver ninguém, porque o palácio era encantado. Apenas ela ouvia, de um quarto que estava fechado, falar um papagaio. 

Depois de alguns dias, apareceu-lhe um lindo moço que lhe deu a chave do quarto, e disse que o abrisse e respondesse ao papagaio coisa que fizesse sentido ao que ele dissesse. O moço desapareceu. 

A princesa abriu o quarto, e o papagaio, que era muito grande e bonito, e das asas douradas, ficou muito alegre, sacudindo-se todo, e disse:

“Como vem a filha
Do rei Andrada
Tão bonita,
Tão formosa,
E tão ornada!”

— Ó meu papagaio dourado,
Eu das tuas ricas penas
Pretendo fazer um toucado.

Aí o papagaio desencantou-se no lindo moço que antes lhe tinha aparecido. O moço mandou logo vir um padre e se casou com a princesa, mandando convidar cinco reis, que no cortejo beijaram a mão de sua noiva. 

No meio deles veio o rei Andrada. Todos os outros beijaram a mão da princesa, e, quando chegou a vez do rei Andrada, a nova rainha não lhe quis dar a mão; pelo que ele ficou muito injuriado, e foi queixar-se ao rei seu amigo, e dono da casa. 

O noivo, indo perguntar a razão daquilo, a moça lhe contou a sua história, o que sabendo o rei Andrada foi pedir perdão à sua filha.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1885. Disponível em Domínio Público.