segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

José Feldman* (Os Ratinhos da Sala 006)

Numa Universidade, a sala de aula 006 tinha uma fama peculiar. Não era pela dificuldade das matérias, nem pelos professores excêntricos. Era pelo ar-condicionado, que, ao invés de refrescar, se tornou o centro das atenções. 

No alto, junto ao teto, morava um casal de ratos, que decidiu fazer do ventilador seu lar.

Era uma manhã ensolarada, e a turma de Introdução à Teoria do Caos se preparava para mais uma aula com a Professora Rivalda, uma mulher de cabelo desgrenhado e uma paixão inabalável por teorias bizarras. Assim que os alunos se acomodaram, notaram algo incomum: os rabos dos ratos balançavam suavemente para frente e para trás, como se estivessem dançando ao som de uma música invisível.

— Olhem! — exclamou Ana, a aluna mais observadora da turma. — Tem ratos no ar-condicionado!

A sala toda virou os olhos para o teto. Os rabos dos ratos pareciam ter vida própria, e a atenção dos alunos se desviou completamente da palestra sobre o caos. A professora, sem perceber, continuou sua explicação sobre como o caos pode ser encontrado até nas coisas mais cotidianas.

— E como a teoria do caos nos ensina que pequenas mudanças podem ter grandes consequências… — ela disse, mas a turma só conseguia pensar nos ratos.

— Olha como eles se movem! — sussurrou João, o engraçadinho da turma. — Parece que estão fazendo uma coreografia!

Os alunos começaram a imitar os movimentos dos rabos com suas próprias mãos, enquanto a professora, sem entender o que estava acontecendo, continuava a falar sobre o efeito borboleta. 

— Se uma borboleta bate suas asas na China… — começou, mas foi interrompida por um grito de Maria, que estava na janela.

— Eles estão se aproximando!

Na verdade, os ratos estavam apenas se espreguiçando, mas a turma entrou em pânico. Alguns alunos começaram a fazer piadas, enquanto outros tiravam fotos dos rabos balançantes. A sala virou um verdadeiro pandemônio.

— E se eles caírem? — perguntou Lúcia, com uma expressão de preocupação. — E se forem gigantescos?

— São apenas ratos comuns! — respondeu João, rindo. — Mas se eles caírem, pelo menos teremos um espetáculo ao vivo!

A professora finalmente percebeu a distração da turma e olhou para o teto. Com um olhar confuso, ela disse:

— O que vocês estão olhando? Isso não faz parte da aula!

Mas, ao olhar para os rabos balançando, ela também não pôde deixar de rir. O ar-condicionado tinha se tornado um cenário mais interessante do que sua aula sobre caos e desordem.

— Muito bem, vamos aproveitar a situação! — disse ela, com um brilho nos olhos. — Que tal uma discussão sobre o que o comportamento dos ratos pode nos ensinar sobre a ordem e o caos?

Os alunos começaram a debater animadamente, enquanto os ratos, sem saber que eram estrelas, continuavam sua dança acrobática. Um deles, que parecia mais ousado, desceu um pouco mais perto da borda do ar-condicionado, como se estivesse pronto para um salto.

— E se ele pular? — perguntou Ana, cheia de expectativa.

— Vai ser a primeira apresentação de ratos da história da universidade! — brincou João, fazendo todos rirem.

Finalmente, o ousado rato decidiu descer, mas, ao chegar na borda, hesitou. O silêncio na sala era palpável, todos segurando a respiração. Com um movimento súbito, ele pulou, mas, em vez de cair no chão, foi direto para o colo de um estudante que estava distraído mexendo no celular.

O grito do estudante ecoou pela sala, fazendo a professora quase perder o equilíbrio. O rato, assustado, correu de volta para o ar-condicionado, enquanto a turma explodia em risadas.

— Isso é caos! — gritou a professora, agora realmente empolgada. — Esse é o verdadeiro efeito borboleta!

A aula, que deveria ser sobre teoria, se transformou em um festival de risadas e histórias absurdas sobre ratos e suas aventuras. No final, todos concordaram que a sala 006 tinha se tornado um lugar mágico, onde até os ratos tinham o poder de transformar o tédio em diversão.

E assim, a fama dos ratos se espalhou pela universidade, fazendo com que todo semestre novos alunos se inscrevessem apenas para ver o espetáculo dos rabos balançantes. E quem diria que um ar-condicionado poderia ser o ponto de partida para tantas risadas e aprendizados sobre a vida?

E assim, entre risos e rabos balançantes, a aula sobre o caos se tornou um clássico da Universidade, eternizando os ratinhos da sala 006 na memória de todos.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Sammis Reachers* (Seu Onório – E o peixe que faz piscar o Universo)


Todos os dias, com sábados e domingos neles, ele aguarda as 17h e sai do Bairro Antonina, no município fluminense de São Gonçalo, numa viagem de dois ônibus até a praia de Gragoatá, em Niterói. Escolhe uma posição aleatória no grande calçadão que separa as praias de Boa Viagem e Gragoatá, sempre o ponto mais vazio da noite. Em seguida, lança sua linha de mão – pois jamais gostou de varas de pesca – e aguarda acontecer.

Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?

Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.

Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.

Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!

Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo depois de três anos de um luto travestido de eternidade. 

Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.

Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.

Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:

– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis. 

Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.

– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.

– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!

– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!

– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!

– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.

– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.

– Está na hora de você voltar, meu amor.

– Não, não! Que é isso meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!

– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.

– Não, não, meu amor, eu te imploro!

– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo. 

Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.

Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.

E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
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* Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:  Sammis Reachers. Fabulário Índigo. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2024. Enviado pelo autor.
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Humberto de Campos* (A Pérola)


(APÓLOGO PERSA)
Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.

Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a tromba monstruosa, - equóreo (relativo ao mar alto) traço de união colocado entre o mar e as nuvens, - parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou, irônica:

- Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?

Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:

- Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando por nós. Ouves?

A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a terra, embaixo reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava (sofria lamentos), num tumulto de vozes desesperadas.

Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:

- Lá em baixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço (cume) de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!

- Meu Deus!... gemeu a gota d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele extermínio próximo.

Nesse instante, um trovão contínuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade, aparecia de novo, ao sol, a face tranquila do mar.

Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas…
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* Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba (hoje, Humberto de Campos), no Maranhão, em 1886. Ficou órfão de pai com sete anos de idade. Mudou-se com a família para São Luís, onde se empregou no comércio. Com 17 anos passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e depois na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, uma coletânea de versos, intitulado “Poeira”. Em 1912 mudou-se para o Rio de Janeiro empregou-se no jornal “O Imparcial”, e começou a se destacar no meio literário. Em 1919 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Deputado federal pelo Maranhão, inspetor de ensino e Diretor interino da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em 1933, com a saúde já abalada, publicou o livro que se tornou o mais importante de sua carreira, “Memórias”, no qual reúne suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Escreveu poesias, contos, ensaios, crônicas e anedotas. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1934.

Fontes: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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Célio Simões* (O nosso português de cada dia) “Em banho-maria”


Na culinária, o BANHO-MARIA é um método onde a comida não entra em contato direto com o fogo, experimentando um cozimento mais lento. Seja salgado ou doce, o alimento fica em um recipiente, que é colocado dentro de outro maior, onde já existe água fervendo ou prestes a ferver. Trata-se, portanto, de um preparo realizado pelo calor de forma indireta, de modo lento, progressivo e uniforme. 

Nos laboratórios químicos e na indústria de transformação, o Banho Maria ganha status de método científico, utilizado para o aquecimento gradual de qualquer substância líquida ou sólida, sempre com o uso de dois recipientes. 

E qual a razão do tal banho ter o nome de Maria e não o de outra mulher, entre as centenas de belos nomes femininos que existem? Seria uma homenagem especial àquela que os católicos e a própria Igreja reverenciam como a Abençoada Virgem Maria, aquela que é considerada a “Rainha do Céu e da Terra”, a venerada “Nossa Senhora – a Mãe de Deus”, assim chamada desde o período medieval e como tal reconhecida desde o Concílio de Éfeso, no remoto ano de 431? Desta vez não. 

Reza a lenda que se trata de uma alusão à alquimista Maria conhecida como Maria Hebraica, Maria Judia ou Maria Profetisa, que seria inclusive irmã de Moisés. Foi ela quem inventou o processo de cozinhar lentamente, mergulhando um recipiente na água fervente contida em outro maior. Concebeu também várias bases teóricas para a alquimia, que mais tarde evoluiu triunfalmente para a química. 

Em Portugal, “em Banho Maria” é igualmente uma expressão popular e se refere às toalhas de praia que nossos patrícios utilizam, tendo como significado esperar numa boa, ficar flutuando no tempo, de vez que atualmente, as idas ao mar fazem parte indissociável do verão dos portugueses. Trata-se de um singelo ritual do bom tempo, aonde alguém vai à praia, estende uma toalha, dá um mergulho e volta para se enxugar. Uma rotina que é praticada com frequência e que permite “ficar em Banho Maria”, derreado na toalha de praia, até que o corpo ganhe um perfeito bronzeado de verão. 

Por outro lado, devido ao Banho Maria ser um processo lento, a expressão “deixar em Banho Maria” ou “levar em Banho Maria” com o tempo também passou a ser usada para indicar que alguém está enrolando, procrastinando, engazopando ou embromando outra pessoa ou em uma situação em que ela vai permitindo indevidamente que algo aconteça, vai incorrendo em erro, vai sendo enganado, iludido ou logrado em sua boa-fé, sem qualquer reação. 

Costuma ser usada nos relacionamentos amorosos, quando um pretendente não quer nada de sério com uma mulher, mas não a dispensa, deixando-a como opção, à qual pode recorrer sempre que quiser. É muito comum, na linguagem coloquial, ouvir que “alguém ainda não decidiu se vai levar adiante aquele projeto ou vai deixá-lo cozinhando em Banho Maria”. Ou, ainda, no escrutínio dos bisbilhoteiros: “…todo mundo vê que fulano está levando sicrana em Banho Maria, pois até agora, nada de casamento…”. 

A música e a literatura não deixaram de se valer dessa curiosa expressão, incluindo-a em textos e canções, como fez Joyce Moreno na música intitulada “Banho Maria”, cuja letra é significativa: “só sei, quando a gente se abraça // a paixão se ameaça // fica sempre a ferida // eu sei que o seu medo da morte // não é assim tão forte // como o medo da vida // se é cedo o café bem quente // o abraço morno, banho de água fria // se é tarde, a amarga dose, a canção // o prato em Banho Maria”. 

O escritor Ildefonso Guimarães, que na juventude morou em Portugal e abrilhantou a Cadeira n.º 5 da Academia Paraense de Letras, um dos maiores ficcionistas que o Pará já teve, em seu excelente romance “Os Dias Recurvos”, narra a impaciência do delegado de polícia obidense Tenente Fontelles, no ingente esforço de convencer o telegrafista Zé Cosme, ambos maçons convictos, a passar uma mensagem urgente ao interventor Magalhães Barata, avisando-lhe que os sargentos do 4.º Grupo de Artilharia de Costa do Exército, sob a liderança de um certo Coronel Pompa, haviam se sublevado, aprisionado toda a oficialidade e incondicionalmente aderido à Revolução Constitucionalista de 1932 de São Paulo. 

Eis o diálogo, na página 112 da magnífica obra: – “Não se trata disso, seu Cosme; não ponha a Ordem nessa questão, porque acima de tudo está o seu dever de cidadão brasileiro e esse é também um princípio maçônico: o dever para com a Pátria” (o tempo voa, este sacana está querendo me cozinhar em Banho Maria). O senhor vai passar já e já esta mensagem, ou eu não me chamo Fontelles”. 

Na política, é trivial candidatos eleitos ficarem “cozinhando o galo”, “empurrando com a barriga”, embromando, retardando providências, demorando a fazer algo que poderiam ter feito e simplesmente não fazem, sendo acusados de estarem levando a administração em “Banho Maria”. 

Finalmente, existe o “Banho Maria Invertido”, utilizado para o resfriamento rápido de alimentos, trocando-se a água fervente por água com gelo ou muito gelada. O apreciado “molho holandês”, que consiste em uma mistura de manteiga e gema de ovos com um toque cítrico, de textura leve e muito saboroso, é conseguido com esse método.
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(*) Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fonte: Uruá Tapera. 04 junho 2024
https://uruatapera.com/em-banho-maria/
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domingo, 15 de dezembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 04

 

José Feldman* (Pafúncio e o Festival de Música)


Em uma cidade onde a música ecoava em cada esquina, o jornalista Pafúncio, conhecido por suas habilidades em transformar qualquer evento em um caos, estava a caminho do Festival de Música “Sons e Sorrisos”, um evento que prometia ser o maior do ano e que reuniria artistas de todos os gêneros, desde pop até pagode.

Ao chegar ao festival, Pafúncio se deparou com uma multidão vibrante, repleta de fãs de todas as idades. Ele estava vestido de maneira peculiar: uma camiseta de uma banda de rock dos anos 80, calças largas e um chapéu colorido que parecia ter saído de um desfile de carnaval. Com seu bloco de notas em mãos e uma caneta que parecia mais uma espada, ele estava pronto para capturar as melhores histórias.

O festival começou com uma apresentação de uma banda de rock local chamada “Os Gritadores”. 

Pafúncio, que nunca tinha entendido o apelo do rock pesado, decidiu que era a oportunidade perfeita para fazer uma pergunta inusitada. Após o show, ele se aproximou do vocalista e disparou: “Se a sua música fosse um lanche, qual seria e por quê?” 

O vocalista, pego de surpresa, pensou por um momento e respondeu: “Um hambúrguer gigante, porque é cheio de camadas e é saboroso!”

Pafúncio, com um sorriso no rosto, anotou a resposta e a transformou em uma manchete: “Os Gritadores Revelam: Música é como Hambúrguer – Saborosa e Indigesta!” O jornalista seguiu seu caminho, rindo da sua própria criatividade.

A próxima atração era um famoso DJ chamado “DJ Tico-Tico”, conhecido por suas mixes eletrônicas e por fazer as pessoas dançarem até o amanhecer. 

Pafúncio, sempre em busca de uma boa história, decidiu que precisava saber o que havia por trás de suas batidas contagiantes.

“DJ Tico-Tico, se você tivesse que escolher entre tocar em um festival ou fazer um show para um grupo de gansos, o que você escolheria?” 

O DJ, sem perder o ritmo, respondeu: “Gansos! Eles têm um ótimo senso de tempo!”

A cada apresentação, Pafúncio se tornava mais ousado. Ele decidiu que iria entrevistar os fãs, perguntando: “Qual é a música que faz você dançar como se ninguém estivesse olhando?” 

Uma jovem respondeu: “Aquela que toca no rádio, mas que eu nunca sei o nome!” 

Pafúncio, sem perder tempo, escreveu: “Fã Confessa: Música que não se lembra é a melhor para dançar!”

Enquanto o dia avançava, Pafúncio encontrou um estande de comida que vendia os mais variados petiscos, desde hambúrgueres até churros. Ele, sempre com fome, decidiu experimentar um churro gigante com recheio de nutella. Enquanto mordia o churro, um pedaço escorregou e acertou o nariz de um famoso cantor que estava passando por ali. 

O artista, surpreso, olhou para Pafúncio e disse: “Isso é uma nova forma de me fazer sentir doce?”

Pafúncio, em sua típica falta de jeito, respondeu: “Claro! Aqui no festival, a comida e a música estão sempre se misturando!” 

A plateia, que já estava atenta, caiu na risada, e Pafúncio, sentindo-se o centro das atenções, decidiu que sua próxima missão seria entrevistar o cantor.

Após algumas tentativas hilárias, Pafúncio finalmente conseguiu se aproximar do cantor. Ele fez a pergunta que estava martelando em sua cabeça: “Se você pudesse criar uma nova dança para a sua música, como ela se chamaria?” 

O cantor, com um sorriso maroto, respondeu: “A dança do churro! Porque quem não ama um petisco enquanto se diverte?”

No final do festival, Pafúncio tinha tantas histórias que poderia escrever um livro. Ele voltou para a redação com um sorriso no rosto e uma barriga cheia de churros, pronto para transformar suas experiências em uma matéria que deixaria todos rindo. 

E assim, o jornalista continuou sua jornada, sempre em busca da próxima fofoca e da próxima risada.

Fontes 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
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Lígia Messina* (Almas errantes)

Aldo, pai de Georgina, gostava de contar histórias fantásticas. Nos serões, depois do jantar, ele se empolgava em narrar fatos intrigantes de amor e almas do outro mundo. Uma dessas histórias ela jamais esqueceu: de Ana Helena e o mestiço José Maria.

Vivia em São Luiz Gonzaga um rico fazendeiro que tinha uma filha em idade de casar. Ana Helena era uma guria bonita de cabelos vermelhos como o céu no entardecer, olhos esmeralda como a campina, pele branca quase translúcida e faces rosadas. José Maria (era assim chamado pelos padres, pois não sabiam quem eram seus pais, então era filho de José e de Maria), meio índio meio branco, forte como o corcel negro que cavalgava em pelo e livre como o vento do Rio Grande.

O pai de Ana resolve que ela vai se casar com o filho mais velho de seu amigo de infância, que vive lá em São Miguel. Naqueles tempos, tudo se arranjava, principalmente casamentos. Na época aprazada, Ana Helena e sua mãe seguem para São Miguel acompanhadas por muita bagagem e duas mucamas.

Luiz, o noivo, espera ansioso para comprovar a beleza da futura esposa, tão decantada por seu pai. José Maria, atrás do patrão, aguarda para carregar as malas.

Ao descer da carroça, os olhos de Ana são atraídos para o belo mestiço, e ambos mergulham no verde olhar da moça e nos olhos negros do rapaz. Apaixonam-se. Amor à primeira vista.

Não demorou muito para conseguirem escapulir e se encontrar na velha Igreja dos Jesuítas. Trocam juras de amor eterno, pensam em fuga, querem ir para bem longe. Mas são descobertos.

Luiz manda o capataz amarrar o mestiço pelos pés no seu próprio corcel, que dizem ter vindo lá das arábias (Há... vai saber). Começam a açoitar o cavalo, José Maria então brada angustiado:

- Vai, meu velho, corre! Foge do açoite!

O cavalo obedece ao comando do dono, deixando cair grossas lágrimas de pavor de seus olhos negros e redondos. O corpo do rapaz foi jogado no Rio Jacuí e suas águas o envolveram em carinhoso abraço. O cavalo nunca mais foi visto.

Ana Helena, enlouquecida, sobe na mais alta torre da Igreja e se joga para a morte. Este foi o fim trágico dos dois amantes.

No entanto, conta a lenda que, quando o sol se põe e o vento assovia nas ruínas da igreja, veem uma moça vestida de branco, tendo sob o vestido saias multicoloridas. Dá a impressão de que desliza sobre o arco-íris. E um rapaz de pele trigueira desmonta do corcel negro, a encontra, e juntos, de mãos dadas, chegam ao pé do altar. Ali realizam na morte o sonho que não concretizaram em vida.
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* Lígia Messina nasceu em 1946, em Porto Alegre/RS. Formou-se professora normalista em julho de 1968. Casou-se com um médico militar pernambucano em janeiro de 1972, que havia conhecido por correspondência. Após o casamento, foi morar em Recife. Depois foi para o Rio de Janeiro, pela necessidade de trabalho do marido. Foi morar em Belém/PA, onde ficou por quase 20 anos. Formou-se em Pedagogia, com duas habilitações (supervisão e administração escolar) em 1982. Pedagoga com mais de dez publicações em poesia e prosa.

Fontes: Alda Paulina Borges et al. Contos contemporâneos. (Oficina de Criação Literária Alcy Cheuiche). Porto Alegre/RS: AGE, 2016.
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Vereda da Poesia = Padre Celso de Carvalho



José Luiz Boromelo* (Cafezinho)


O dia prometia. Sol de verão derretendo o asfalto, o trânsito a passo de tartaruga, as vagas engolidas pela imensidão de para-brisas, a cabeça latejando pela noite mal dormida, a preocupação com as contas vencidas. Mas ele precisava dar um jeito. O dinheiro já havia acabado e o mês ainda estava pela metade. Pensava na viagem prometida à esposa e nos livros caros dos filhos. O bolso estufado de boletos indicava que os compromissos assumidos esperavam por uma resolução. Para ontem, aliás. Depois de algumas voltas pelo quarteirão conseguiu, com muito custo, enfiar o veículo num espaço apertado. Saiu rapidamente sem colocar o cartão do estacionamento, que naquele momento pouco importava. Caminhou apressado, pensando numa maneira de convencer o gerente da agência bancária a lhe conceder um empréstimo de emergência, mesmo com o saldo da conta corrente no vermelho há muito.

 Acompanhou pacientemente o ponteiro do relógio em sua volta completa para finalmente ser atendido. Fez cara de tristeza, exibiu uma aparência preocupada, prometeu restringir o uso do cartão de crédito, aceitou prontamente o seguro de vida “oferecido” pelo banco para finalmente ouvir a boa notícia: seu pedido fora autorizado. Nem quis saber das taxas de juros estratosféricas ou da longevidade das parcelas. O que ele queria mesmo era pagar as contas atrasadas.

Agora o homem já se sentia mais aliviado, momentaneamente sem o peso da angústia nos ombros. O estômago vazio roncava pedindo atenção, pois fora colocado obrigatoriamente em segundo plano. A preocupação voltou-se para o carro deixado na rua. De longe avistou um policial de trânsito com seu bloco de multa nas mãos. Pensou em passar ao largo, dar um tempo e ignorar a situação, mas tinha outros compromissos. Disfarçou o quanto pôde fingindo falar ao celular enquanto se aproximava do veículo. Tremeu ao ouvir uma voz questionando a propriedade do automóvel, apontado com o dedo em riste. Hesitou por alguns instantes, tempo necessário para tentar alguma saída honrosa.

 Sentiu um aroma agradável de café fresco que vinha da panificadora em frente e logo colocou em prática sua desenvoltura argumentativa, sem deixar de repetir a cena representada ao gerente do banco. Cabisbaixo, desfiou uma por uma suas dificuldades, acrescentando exageradamente detalhes com o intuito de comover a autoridade ali presente. Certo de que seu teatro fora convincente o suficiente, cometeu o último erro quando inadvertidamente convidou o policial a tomar um cafezinho. Quase acabou preso, o carro levou uma multa por estacionamento irregular e ouviu poucas e boas por sua petulância. Irritou-se com o controle remoto do alarme que não funcionava mais. Nem poderia, pois estacionara seu veículo do outro lado da avenida. Resolveu então experimentar o bendito cafezinho sem pressa, devidamente acompanhado por um merecido sanduíche natural. Dinheiro na conta, carro sem multa e barriga cheia. Sorriu ao lembrar que apesar de tudo, o dia não havia sido tão ruim assim.
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* José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

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Estante de Livros (Resumos de 10 contos de O. Henry*)


1. O presente de Natal
Um conto comovente que narra a história de Jim e Della, um jovem casal pobre que deseja dar presentes especiais um ao outro no Natal. Della decide vender seus longos cabelos para comprar uma corrente de relógio para o relógio de Jim. Enquanto isso, Jim vende seu relógio para comprar um conjunto de pentes para os cabelos de Della. Quando se encontram para trocar os presentes, percebem a ironia de suas ações, revelando o amor sacrificado que têm um pelo outro.

2. A história do homem que não tinha nada
Este conto foca em um homem chamado John, que vive uma vida humilde e sem posses. Em sua jornada, ele se depara com diversas situações que o testam. Através de seus encontros, John descobre que a verdadeira riqueza não está nas posses materiais, mas nas experiências e nas relações humanas. O final surpreendente revela que, apesar de sua pobreza, ele possui um tesouro emocional que o torna mais rico do que muitos.

3. A última folha
No enredo, duas jovens artistas, Sue e Johnsy, vivem juntas em Greenwich Village. Johnsy contrai pneumonia e perde a vontade de viver, acreditando que vai morrer quando a última folha de uma parreira do lado de fora de sua janela cair. Um velho pintor, Behrman, decide ajudá-la. Ele pinta uma folha falsa na parreira, que a faz acreditar que ainda há esperança. No entanto, ele acaba pegando pneumonia e morre, revelando o sacrifício que fez para dar à jovem a vontade de viver.

4. A rosa da Pérsia
Neste conto, um jovem chamado Ali, que se disfarça de príncipe persa, visita uma loja de flores em Nova York. Ele se apaixona por uma bela florista chamada Rose. Para impressioná-la, ele inventa uma história sobre sua riqueza e posição social. No entanto, quando a verdade vem à tona, Rose revela que não se importa com o status e também nutre sentimentos por Ali. O conto explora a ideia de que o amor verdadeiro transcende as aparências e as posses.

5. Um amor de estudante
Este conto narra a história de um jovem estudante que se apaixona perdidamente por uma colega de classe. Ele descobre que ela é uma talentosa pianista, mas que vive em dificuldades financeiras. O estudante decide fazer sacrifícios para ajudá-la, mesmo que isso signifique comprometer seus próprios sonhos. O conto enfatiza a beleza do amor altruísta e os desafios que os jovens enfrentam em busca de seus objetivos, mostrando como o amor pode inspirar grandes gestos de generosidade.

6. A loteria da Babilônia
Neste conto, O. Henry apresenta uma visão fantástica de uma cidade onde tudo é regido por uma loteria. Os cidadãos são constantemente surpreendidos por sorteios que determinam eventos em suas vidas, desde o que comer até quando morrer. A história explora a ideia de destino e sorte, refletindo sobre a aleatoriedade da vida. O final, inesperado e irônico, revela que a verdadeira sorte pode ser uma questão de perspectiva.

7. A casa do juiz
O conto gira em torno de um juiz aposentado que vive em uma casa cheia de recordações de sua carreira. Um jovem advogado visita o juiz para pedir conselhos sobre um caso. Durante a conversa, o juiz compartilha histórias de seus anos no tribunal, revelando as nuances da justiça e da moralidade. Através de suas memórias, o contador de histórias reflete sobre as falhas do sistema legal e a complexidade do caráter humano, levando o leitor a questionar o que realmente define a justiça.

8. As aventuras de um fotógrafo
Neste conto, um fotógrafo de rua se vê em situações inusitadas enquanto tenta capturar a essência da vida urbana. Ele encontra personagens excêntricos e momentos engraçados, sempre com sua câmera em mãos. Através de suas interações, o fotógrafo descobre que cada pessoa tem uma história única e que a beleza da vida está nas pequenas coisas. O final do conto destaca a importância de valorizar as experiências cotidianas e as conexões humanas.

9. O advogado do diabo
Um advogado ambicioso se vê em um dilema moral quando é chamado para defender um homem acusado de um crime hediondo. À medida que investiga o caso, ele descobre que seu cliente é, na verdade, um homem bom que cometeu o crime em um momento de desespero. O advogado deve decidir entre sua carreira e sua consciência. O conto explora a ética na profissão e as complexidades da natureza humana, culminando em uma reviravolta que desafia as expectativas do leitor.

10. O homem que sabia demais
Neste conto, um homem comum se vê no meio de uma conspiração internacional. Ele descobre informações confidenciais que podem ter sérias consequências. À medida que tenta desvendar a trama, ele se depara com perigos e dilemas morais. O conto examina a ideia de conhecimento e responsabilidade, mostrando como a vida pode mudar drasticamente quando se tem informações que podem afetar outros. O final surpreendente deixa o leitor refletindo sobre as implicações do que sabemos e do que escolhemos ignorar.

Esses resumos oferecem uma visão geral das histórias, seus temas e personagens, destacando a genialidade de O. Henry em capturar a complexidade da vida humana com humor e ironia.
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**O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, nasceu em 11 de setembro de 1862, em Greensboro, Carolina do Norte/EUA. Ele teve uma infância marcada por várias mudanças, já que seu pai era um médico e sua mãe morreu quando ele era jovem. Em sua juventude, trabalhou em diversas funções, incluindo como balconista e farmacêutico. Em 1896, após ser acusado de desvio de fundos em seu trabalho como caixa em um banco, ele se mudou para a América do Sul, onde começou a escrever. Ao retornar aos Estados Unidos, ele adotou o pseudônimo O. Henry e começou a publicar contos em revistas, ganhando fama por suas narrativas envolventes e reviravoltas surpreendentes. O. Henry teve uma vida pessoal tumultuada, marcada por problemas financeiros e saúde. Ele faleceu em 5 de junho de 1910, em Nova York, mas deixou um legado duradouro na literatura com suas histórias que capturam a essência da vida urbana e a natureza humana.
Obras Relevantes: Heart of the West, 1907; The Caballero's Way, 1907; The Gift of the Magi, 1905; Four Million, 1906; The Last Leaf, 1907.
O. Henry é lembrado por seu estilo ágil e por suas histórias que frequentemente apresentam finais inesperados, tornando-o um dos mestres do conto curto na literatura americana.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 04

 

José Feldman (O Lado Cômico das Salas de Espera)

Ah, as salas de espera! Esses pequenos microcosmos onde a paciência é testada e as conversas são tão variadas quanto os tipos de revistas deixadas à disposição. Entrar em uma sala de espera é como abrir um livro de contos, onde cada personagem é uma história esperando para ser contada.

Imagine a cena: você entra, e logo é recebido pelo cheiro característico de desinfetante misturado com café amargo. As cadeiras, dispostas em fileiras, parecem mais um jogo de Tetris mal resolvido. Algumas estão ocupadas por pessoas que, claramente, têm mais histórias do que você pode imaginar. A primeira delas é a senhora de cabelos brancos que traz em sua bolsa tudo o que poderia ser necessário em uma emergência: um lanche, uma garrafinha de água, e, por que não, um livro de receitas! Ela envia um olhar curioso para você, e você se pergunta se deve acenar ou simplesmente focar na sua revista de moda de 1998, que está mais desatualizada que a previsão do tempo para o próximo mês.

À sua direita, um homem de terno, que poderia facilmente ser confundido com um agente secreto, está nervosamente digitando em seu celular. Não se sabe se ele está respondendo a e-mails importantes ou se está apenas tentando achar um meme que explique sua situação atual. O que realmente faz você rir é que, em algum momento, ele ergue os olhos e dá uma rápida olhada ao redor, como se estivesse verificando se alguém o está espionando. O que ele não percebe é que todos ali já se tornaram especialistas em decifrar expressões faciais enquanto aguardam sua vez.

No canto, um grupo de crianças se contorcendo em suas cadeiras, cada uma mostrando sua habilidade inata de fazer barulhos estranhos. Enquanto uma delas tenta imitar o som de um motor de carro, outra começa a cantarolar uma música que você não consegue identificar, mas que, de alguma forma, se encaixa perfeitamente na trilha sonora daquela sala. Os pais, com a expressão de quem está prestes a ganhar o prêmio de "Paciência do Ano", tentam controlar a situação, mas a batalha parece perdida. Afinal, quem pode competir com a energia contagiante de uma criança?

Em um canto mais afastado, um homem idoso está sentado em silêncio, observando tudo. Ele parece um filósofo à espera de uma epifania. Quando você olha para ele, ele ergue uma sobrancelha, como se dissesse: "Essa é a vida, meu jovem. Aceite-a". E você se pergunta se ele está ali esperando uma consulta médica ou se apenas decidiu fazer uma pausa na rotina para refletir sobre o sentido da vida — ou sobre o que vai almoçar depois.

E como esquecer das revistas? Ah, as revistas! Revistas de beleza, saúde, viagens e, claro, aquelas que têm pelo menos cinco anos de defasagem. Você se pega folheando uma que ensina como fazer um penteado da moda, enquanto a única coisa que você consegue pensar é que seu cabelo está preso em um coque improvisado e que você não tem a menor ideia do que está fazendo. É um exercício de autoafirmação: "Sim, eu poderia ser a próxima influenciadora digital, se não fosse por esta sala de espera e por este coque desastroso".

E, claro, há sempre o clássico "sistema de chamadas" que, em algum momento, decide brincar de esconde-esconde. O nome é chamado, mas a pessoa está tão absorta em seus pensamentos ou na tela do celular que, por um breve momento, o mundo para. Você observa o agente secreto, a senhora com a bolsa mágica e as crianças, todos em um estado de suspense coletivo, torcendo para que o chamado não seja seu. Quando finalmente a pessoa se levanta, todos exalam um suspiro coletivo, como se tivessem acabado de assistir a um clímax emocionante de um filme.

A sala de espera, com suas peculiaridades, é um reflexo da vida: cheia de personagens, histórias e momentos de espera que, à primeira vista, podem parecer comuns, mas que, quando observados de perto, se revelam um espetáculo digno de ser apreciado.

E assim, enquanto o tempo se arrasta e o relógio parece ter decidido entrar em modo de férias, você percebe que, apesar da ansiedade da espera, há sempre algo surpreendente ao seu redor. 

A sala de espera é, afinal, um lugar onde o cotidiano se transforma em um espetáculo, e o comportamento das pessoas estão sempre à espreita, esperando para serem descobertas.
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Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

O. Henry* (Maio, Mês Matrimonial)

Por favor, surrai o poeta quando ele vos quiser cantar as delícias de maio. É um mês presidido por espíritos malignos e insensatos. Duendes e diabretes assombram os bosques floridos; Puck e seu séquito de anões estão ativos na cidade e no campo.

Em maio, a Natureza nos brande um dedo admoestador para advertir-nos de que não somos deuses, mas membros enfatuados de sua grande família. Recorda-nos que somos irmãos do burro e do clã dos mariscos condenados à sopa, que somos descendentes em linha reta do amor-perfeito e do chimpanzé, e apenas primos-irmãos das rolas arrulhantes, dos patos grasnadores, das empregadas domésticas e dos policiais dos parques.

Em maio, Cupido atira às cegas — milionários casam-se com estenógrafas; judiciosos professores cortejam mascadoras de goma, de aventais brancos, que servem nos balcões dos lanches rápidos; diretoras de escola retêm os meninos maiores depois das aulas; rapazes com escadas atravessam furtivamente gramados onde Julieta espera, em sua janela de rótula, com o telescópio embrulhado; casais que saem para um passeio voltam matrimoniados; velhos de polainas brancas passeiam nas imediações da Escola Normal; mesmo os homens casados tomam-se sem querer carinhosos e sentimentais, dão palmadinhas nas costas das esposas e resmungam: "E então, minha velha?"

Maio, que não é deusa, mas Circe fantasiada para o baile em honra da linda debutante, o Verão, nos torna a todos estouvados. 

O velho Mr. Coulson resmungou um pouco, e depois aprumou-se na cadeira de inválido. Sofria terrivelmente de gota em um dos pés, e era dono de uma casa perto de Gramercy Park, de meio milhão de dólares e de uma filha. E tinha uma governanta, Mrs. Widdup. O fato e o nome merecem, cada qual, uma sentença. Têm-nas.

Quando maio cutucava Mr. Coulson, ele se tornava irmão mais velho das rolas. Na janela junto da qual se sentava, havia jardineiras com junquilhos, jacintos, gerânios e amores-perfeitos. A brisa trazia-lhes os aromas para dentro do aposento. Imediatamente travava-se luta renhida entre as fragrâncias das flores e o eflúvio eficiente e ativo do linimento para gota. O linimento levava a melhor; mas não antes de o perfume das flores esmurrar o nariz de Mr. Coulson. A obra fatídica de maio, falsa e implacável feiticeira, fora levada a cabo.

Através do parque, chegavam ao órgão olfativo de Mr. Coulson outros cheiros inegáveis, característicos e registrados da primavera, exclusivos da Grande-Cidade-Sobre-o-Metropolitano, Cheiro de asfalto quente, de cavernas subterrâneas, de gasolina, patchuli, casca de laranja, gás de rua, gurabas de Albany, cigarros egípcios, cimento, e tinta fresca de jornais.

A brisa que soprava era doce e branda. Pardais esvoaçavam felizes por toda a parte. Jamais confiai em maio.

Mr. Coulson retorceu as pontas do bigode encanecido, maldisse o pé, e esmurrou a campainha posta na mesa a seu lado.

Surgiu Mrs. Widdup. Era uma quarentona loira louçã, lépida e ladina.

— Higgins saiu, sir — disse, com um sorriso reminiscente de massagens vibratórias. — Saiu para postar uma carta. Deseja alguma coisa, sir?

— Está na hora do acônito — respondeu o velho Mr. Coulson. — Pingue as gotas para mim. Ali está o vidro. Três gotas. Em água. Maldito Higgins! Ninguém desta casa se importará se eu morrer nesta cadeira por falta de cuidados.

— Não diga isso, sir — retrucou. — Alguém se importará muito mais do que se possa imaginar. Disse treze gotas, sir?

— Três — retorquiu o velho Coulson.

Tomou a dose e a seguir a mão de Mrs. Widdup. Ela corou. Oh, sim, é fácil de fazer. Basta prender a respiração e comprimir o diafragma.

— Mrs. Widdup — disse Mr. Coulson —, a primavera chegou de vez.

— Não é mesmo? — replicou Mrs. Widdup. — O ar está realmente quente. Vêem-se anúncios de cerveja em toda esquina. O parque está cheio de flores amarelas, rosas e azuis; e eu sinto dores agudas nas pernas e no corpo todo.

— "Na primavera" — citou Mr. Coulson, retorcendo o bigode — "a fantasia de um j...", quero dizer, "de um homem inflama-se com pensamentos de amor."

— Que coisa! Não é mesmo? — exclamou Mrs. Widdup. — Parece que está no ar!

— “Na primavera” — continuou o velho Mr. Coulson — “a mais viva íris reluz sobre a lustrosa pomba.”

— São mesmo ardentes, os irlandeses — suspirou Mrs. Widdup, pensativa,

— Mrs. Widdup, — tornou Mr. Coulson, fazendo uma careta ao sentir uma pontada no pé gotoso — esta seria uma casa muito solitária sem a senhora. Sou um..., quero dizer, sou um homem de idade... mas tenho apreciável fortuna. Se meio milhão de dólares em títulos do governo e o afeto verdadeiro de um coração que, embora não pulse mais com os primeiros ardores da mocidade, ainda assim palpita de genuíno...

O estrondo de uma cadeira derrubada junto ao reposteiro do quarto contíguo interrompeu a venerável inconsciente vítima de maio. No aposento entrou Miss Van Meeker Constantia Coulson, trinta e cinco anos, alta, ossuda, conservada, nariz emproado, insensível, bem-educada, perfeito espécime do estilo de Gramercy Park. Ela levou aos olhos seu lornhão (armação sem hastes) . Mrs. Widdup inclinou-se num átimo e pôs-se a arranjar as ataduras do pé gotoso de Mr. Coulson.

— Pensei que Higgins estivesse aqui — disse Miss Van Meeker Constantia.

— Higgins saiu — explicou-lhe o pai — e Mrs. Widdup atendeu ao meu chamado. Assim está melhor, Mrs. Widdup, muito obrigado. Não, não preciso de mais nada.

A governanta retirou-se, corando sob o olhar frio e inquiridor de Miss Coulson.

— Este tempo de primavera é maravilhoso, não acha, minha filha? — disse o velho, conscientemente consciente.

— É isso mesmo — replicou Miss Van Meeker Coastantia Coulson, algo sibilinamente, — Quando começam as férias de Mrs. Widdup, papai?

— Creio que ela disse daqui a uma semana — respondeu Mr. Coulson. Miss Van Meeker Constantia deteve-se por um minuto junto à janela, a contemplar o pequeno parque, banhado pelo brando sol da tarde. Com olhos de botânica inspecionou as flores — as mais poderosas armas de maio insidioso. Com os pulsos gélidos de uma virgem de Colônia, repeliu o ataque da suavidade etérea. As flechas do sol aprazível caíram por terra, enregeladas, da fria panóplia do seu peito insensível. A fragrância das flores não despertava sentimentos ternos nos recessos inexplorados de seu coração adormecido. O pipilar dos pardais a aborrecia. Ela zombava de maio.

Embora Miss Coulson fosse impenetrável à estação, era bastante arguta para avaliar-lhe o poder. Sabia que homens idosos e mulheres de cintura grossa saltavam como pulgas amestradas ao som da ridícula música de maio, gaio mês zombeteiro. Já ouvira falar, antes, de velhos e tolos cavalheiros que desposavam suas governantas. Que coisa humilhante, afinal de contas, o tal sentimento chamado amor!

Na manhã seguinte, às 8 horas, quando chegou o entregador de gelo, a cozinheira avisou-o de que Miss Coulson queria falar-lhe no portão.

— Ora, ora, não é que estou ficando irresistível? — disse o entregador, admirado de si próprio.

Como concessão, desenrolou as mangas da camisa, largou os ganchos junto de uma seringueira, e entrou. Quando Miss Vau Meeker Constantia Coulson o interpelou, ele tirou o chapéu.

— Há uma entrada nos fundos deste porão — disse Miss Coulson — que pode ser atingida pelo terreno baldio vizinho, onde estão escavando os alicerces de um edifício. Quero que traga por esse caminho, dentro de duas horas, 500 quilos de gelo. Pode contratar um ou dois ajudantes. Vou mostrar-lhe onde deve ser depositado o gelo. Quero que me entregue 500 quilos diariamente, da mesma maneira, nos próximos quatro dias. A companhia pode debitar a despesa na nossa conta habitual. Tome isto pelo seu trabalho adicional.

Miss Coulson estendeu-lhe uma nota de dez dólares. O entregador inclinou-se, e segurou o chapéu com ambas as mãos atrás das costas.

— Com a sua licença, senhora. Será um prazer servi-la em tudo quanto desejar.

Pobre mês de maio!

Por volta do meio-dia, Mr. Coulson derrubou dois copos que estavam sobre a mesa, quebrou a mola da campainha, e gritou por Higgins, tudo ao mesmo tempo.

— Traga-me um machado — ordenou, sarcasticamente —, ou encomende um pouco de ácido prússico, ou chame um policial para me matar. Prefiro isso a perecer gelado.

— Parece mesmo estar esfriando, sir — replicou Higgins. — Eu ainda não havia reparado. Vou fechar a janela.

— Feche — disse Mr. Coulson. — É a isso que chamam de primavera? Se continuar assim, voltarei para Palm Beach. Esta casa parece um necrotério.

Mais tarde, apareceu Miss Coulson, a indagar solícita como ia passando o pé gotoso.

— Constantia — inquiriu o velho —, como está o tempo lá forá?

— Limpo — respondeu Miss Coulson —, mas friozinho.

— Parece inverno brabo — tornou Mr, Coulson.

— Um exemplo de "inverno adormecido no colo da primavera" — disse Constantia, olhando distraidamente pela janela —, embora a metáfora não seja de muito bom gosto.

Um pouco mais tarde, ela se esgueirou pelo lado do pequeno parque e foi até a Broadway fazer umas compras.

Mais tarde ainda, Mrs. Widdup entrou no quarto do inválido.

— Chamou, sir? — perguntou, exibindo várias covinhas. — Pedi a Higgins que fosse à farmácia e julguei ter ouvido a campainha.

— Não, não chamei — respondeu-lhe Mr. Coulson.

— Receio tê-lo interrompido ontem — continuou Mrs. Widdup — quando estava para me dizer algo.

— Por que está fazendo tanto frio nesta casa, Mrs. Widdup? — atalhou o velho, severamente.

— Frio, sir? — disse a governanta. — De fato, já que me chama a atenção, parece mesmo que esse quarto está muito frio. Mas lá fora está quente e agradável como em junho. Em dias assim, o coração da gente parece querer pular para fora da blusa! E a hera toda viçosa nas paredes da casa, e os realejos a tocarem, e as criancinhas a dançarem nas calçadas… é o tempo próprio para confessar o que nos vai no coração! Ontem o senhor dizia...

— Mulher! — trovejou Mr. Coulson —, a senhora é uma tonta! Pago-a para tomar conta desta casa. Morro de frio no meu próprio quarto e a senhora me chega com uma conversa despropositada sobre heras e realejos. Vá buscar-me um sobretudo imediatamente. E veja que todas as portas e janelas estejam fechadas. Uma velha gorda, irresponsável e obtusa como a senhora a tagarelar sobre primavera e flores em pleno inverno! Quando Higgins voltar, diga-lhe que me traga um grogue quente. E agora suma-se daqui!

Quem poderá, todavia, vencer a impudência vivaz de maio? Maroto que é, e perturbador da paz dos homens de bom senso, nem a esperteza de uma virgem prudente, nem um depósito de gelo o fará empalidecer na luminosa galáxia dos meses.

Ah, sim, a história ainda não terminou.

Passou-se uma noite, e na manhã seguinte Higgins ajudou o velho Coulson a levar sua cadeira até a janela. A gelidez do quarto desaparecera e pela janela aberta chegavam perfumes divinais e odores amenos.

Mrs. Widdup entrou apressadamente e postou-se junto à cadeira. Mr. Coulson estendeu sua mão ossuda e tomou a mão rechonchuda da governanta.

— Mrs. Widdup — disse —, esta casa não seria um lar sem a senhora. Possuo meio milhão de dólares. Se isso, e o verdadeiro afeto de um coração não mais no verdor da idade, mas ainda cálido, puder...

— Já descobri a causa do frio — atalhou Mrs. Widdup, inclinando-se para a cadeira. - Foi gelo, toneladas de gelo, no porão e na casa da fornalha, por toda parte. Fechei os registros pelos quais o frio subia até o seu quarto, Mr. Coulson, pobrezinho! E agora els-nos em maio outra vez.

— Um coração fiel — tornou o velho Coulson, algo divagantemente — que a primavera fez reviver, e... que dirá minha filha, Mrs. Widdup?

— Nada receie, sir — replicou ela, alegremente. — Miss Coulson fugiu com o entregador de gelo ontem à noite!
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*O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, nasceu em 11 de setembro de 1862, em Greensboro, Carolina do Norte/EUA. Ele teve uma infância marcada por várias mudanças, já que seu pai era um médico e sua mãe morreu quando ele era jovem. Em sua juventude, trabalhou em diversas funções, incluindo como balconista e farmacêutico. Em 1896, após ser acusado de desvio de fundos em seu trabalho como caixa em um banco, ele se mudou para a América do Sul, onde começou a escrever. Ao retornar aos Estados Unidos, ele adotou o pseudônimo O. Henry e começou a publicar contos em revistas, ganhando fama por suas narrativas envolventes e reviravoltas surpreendentes. O. Henry teve uma vida pessoal tumultuada, marcada por problemas financeiros e saúde. Ele faleceu em 5 de junho de 1910, em Nova York, mas deixou um legado duradouro na literatura com suas histórias que capturam a essência da vida urbana e a natureza humana.
Obras Relevantes: Heart of the West, 1907; The Caballero's Way, 1907; The Gift of the Magi, 1905; Four Million, 1906; The Last Leaf, 1907.
O. Henry é lembrado por seu estilo ágil e por suas histórias que frequentemente apresentam finais inesperados, tornando-o um dos mestres do conto curto na literatura americana.

Fontes: O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.
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