domingo, 26 de janeiro de 2025

Vereda da Poesia = 206

Trova de
MARIA THEREZA CAVALHEIRO
São Paulo/SP , 1929 – 2018

De meu peito arranquei tudo
que de ilusão ainda houvesse,
e ela então, mato miúdo,
com o tempo de novo cresce! 
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Poema de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Velho Teatro

Velho teatro abandonado,
que tantos sucessos houve,
palco de um tempo passado…

Hoje só restam cadeiras vazias,
quebradas, num canto jogadas,
memórias daqueles dias
de glórias conquistadas.

A parede carcomida
com cartazes, página rasgada
no livro de uma outra vida,
num passado condenada.

Na estação da saudade
cinzas de um fado,
testemunhas da verdade.
= = = = = = = = =  

Quadra de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Tem horas que é caco de vidro 
Meses que é feito um grito 
Tem horas que eu nem duvido 
Tem dias que eu acredito.
= = = = = = 

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...
= = = = = = 

Trova de
AMARYLLIS SCHLOENBACH
São Paulo/SP

Contra a angústia e o contratempo,
eu vivo de sobreaviso...
Pelos meandros do tempo,
perdeu-se meu pobre riso!
= = = = = = 

Poema de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Há um tempo

Há um tempo em que é preciso
abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que
nos levam sempre aos mesmos lugares …
É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos...
= = = = = = = = = 

Poema de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Dois Tempos

Eu ficava à janela olhando o trem.
Qual seria o seu destino?…
Era um fascínio imaginar, em fantasia,
quanta gente que partia,
enquanto eu ficava à janela 
olhando o trem.

Hoje voltei. Quis rever meu mundo antigo.
Talvez o anseio de buscar abrigo,
ou a esperança de encontrar comigo,
ou simplesmente ver o trem passar.
Daquela antiga estação,
do meu velho casarão…
nada encontrei, porém.
Onde está a vida que eu achava linda?
Afinal, o que será que resta ainda
de quem ficava à janela olhando o trem?… 
= = = = = = 

Poema de
EMILY DICKINSON
Amherst/EUA, 1830 – 1886

Dizem que o tempo...

Dizem que o tempo ameniza
Isto é faltar com a verdade
Dor real se fortalece
Como os músculos, com a idade

É um teste no sofrimento
Mas não o debelaria
Se o tempo fosse remédio
Nenhum mal existiria
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Recordo Ainda

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
= = = = = = 

Trova de
JESSÉ F. NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Tempo em louca disparada,
- isso me causa terror -
a vida na autoestrada
pisa no acelerador.
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Soneto de
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
Teresina/PI

Se

Se o tempo é sentinela lá nos cimos,
e permite a acumulação de dores,
sem fazer festas nem sequer rumores,
quando em adeuses todos nós partimos...

Se o tempo é o rei dos sentenciadores
e assim nos vê (mas creio que não vimos),
por que é que dele, embora assim, não rimos
como quem ri dos campos e das flores?

Se o tempo não pensa... Nem conforma,
do nascimento à morte a um bom destino,
a vida - onde o sofrer é sempre norma...

Só enxergo um caminho que conforte:
- Voltar ao nosso tempo de menino,
que foi quando tivemos melhor sorte.
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Poema de
CARLOS LÚCIO GONTIJO
Santo Antonio do Monte/MG

Tempo Rei

Meus pés não encontram rastros no caminho
Minha rua não é mais cadinho de meus passos
Calçada nua que trocou
paralelepípedo por asfalto
Na casa em que morei não há mais samambaias
Dando saias verdes ao alpendre que me recebia
Onde logo eu via o rosto redondo de minha mãe
A vida vai compondo gosto novo para as gerações
Porções de desgosto agora moram em mim
O tempo realmente é invencível rei
Tudo o que eu pensei um dia dominar ou saber
O tempo cuidou de me provar que nada sei!
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Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
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Marcia Tiburi (O Desejo do Tempo)

Os antigos gregos tinham em Chronos, deus do tempo, a imagem do pai todo poderoso devorador dos filhos. Ele criava, ele mesmo aniquilava. O tempo cronológico é apenas o tempo que passa. Mas a experiência do tempo não passa tão simplesmente, somos nós que passamos por ela. Nos constituímos, em nossa interioridade, a partir dela. Como dizia Santo Agostinho, o tempo é algo complexo demais, sendo muito difícil para cada um explicá-lo. Tanto quanto é fácil de entender, pois estamos nele desde sempre. O tempo nos possui e não o contrário.

UM DIA DE CADA VEZ

É melhor viver um dia de cada vez? É provável que ouçamos ou pronunciemos esta frase em vários momentos da vida. Quando incertezas e desesperanças se põem em cena é a reflexão sobre o tempo (seja ele dito na forma dos dias, das horas, do tempo ao tempo) que sustenta nossas ponderações. Ou na básica ansiedade que move o cotidiano, quando não compreendemos as próprias direções, quando, sem perspectiva ou foco, parece que não buscamos nada. Ansiosos quando queremos muito, nem sempre sabemos bem o que queremos. E nos angustiamos porque estamos no tempo, medido, e não na eternidade, desmedida. A vida exige solução, mas o tempo é o limite de toda vontade. Por isso, ele também é possibilidade.

A frase traz uma sabedoria básica na forma de um conselho sobre o uso e a compreensão do tempo, do qual depende o desejo, nome que se dá ao modo de nos relacionarmos ao futuro, o nosso e o que compomos junto de outros. A frase nos diz sobre um modo de tratar com a frustração comum na sociedade de hoje: a da ausência do desejo que diz respeito a uma incapacidade de criar projeto de vida. Ou seja, o que fazer da vida dentro de seu limite. “Um dia de cada vez” significa: “vá com calma, aproveite o tempo presente”, mas por outro lado, também diz “esqueça a totalidade da vida”. Aí conhecemos o conflito com a “temporalidade” sobre o qual vivemos cegos. Se pensarmos em termos de vantagens, talvez não seja frutífero ter em mente a vida inteira, o todo do que podemos fazer com o tempo que dispomos, pois não há certeza sobre o que virá. Porém, sem pensar no todo da vida, que é o tempo que temos para viver, talvez fique difícil orientar-se dentro dela. Sem sabermos do nosso tempo, estamos perdidos de nós mesmos, sem futuro. A dimensão do tempo é mais que psicológica e metafísica, ela é também prática. Põe-nos diante de nossa liberdade de decisão, define o destino, ou o tempo, que devemos construir.

 A experiência do tempo pode ser uma experiência de angústia, de que algo desconhecido nos espreita. Só o desejo é a cura desta sensação de opacidade da vida. O desejo não é tormento, mas o caminho para sair dele. Ela não vem do nada. Nasce do tempo experimentado em seu limite, do fato de que há a consciência perturbadora da existência que é a morte. Enquanto esperamos seguimos a “viver um dia de cada vez”. No tempo que é sempre medida, a soma dos dias, compõe o sentido da vida, o valor da eternidade.

OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA

Assim como damos “limites” às crianças para que possam orientar seus desejos, seus quereres e poderes, nós, mesmo adultos, deveríamos nos reorientar no nosso limite com a vida, a que chamamos tempo. O tempo, todavia, não é a mera duração da vida. A duração é só o tempo do relógio, ela se parece mais com o espaço que percorrem os ponteiros no mostrador. Nosso modo de compreender o tempo é o que nos orienta na vida: o tempo do trabalho, o tempo do lazer, o tempo do conhecimento, do amor, o tempo interior, o tempo domesticado pela vida orientada e administrada que vivemos. O tempo é um radar que nos ensina aonde ir, nossas urgências, os caminhos que precisamos escolher diante da impossibilidade de seguir todos.

 A frase sobre o dia a dia a ser vivido de um em um, nos serve de antídoto quando vivemos esta frustração tão específica que é a do tempo que não aprendemos a experimentar em seus dois polos, o do todo fora de nós (a família, a sociedade, a história, o planeta) e o do que se elabora em nossa interioridade. De um lado, vivemos o nosso tempo pessoal, o tempo de cada individualidade, de cada um que experimenta seu corpo, seu sentimento, medos, anseios, possibilidades, e sua noção de morte. O tempo individual é sempre o tempo da insegurança. Buscamos os outros: filhos, maridos, amigos, trabalho, para participarmos do tempo coletivo onde, ao partilharmos a insegurança com as demais individualidades, a eliminamos. Para tudo isso é preciso sempre muita atenção sobre o que estamos vivendo.

A AVAREZA DO TEMPO

Por outro lado, todos aqueles que sabem o valor do tempo, costumam pensá-lo em analogia com o dinheiro: tempo é dinheiro. Quem dispensa tempo, dispensa dinheiro ou, em termos mais técnicos, dispensa lucro. Mas o que é o lucro senão a vantagem que temos em relação aos outros, ao trabalho, à vida? O lucro é um “a mais”, mas a vida não vai nos dar mais tempo. Logo, tempo não é necessariamente dinheiro, mas justamente o que nos logra se a vida não foi bem vivida. Se o avaro economiza dinheiro, quem economizar tempo não poderá ser avarento, a rigor, o tempo é algo que sempre se multiplica. O tempo se multiplica na generosidade. É uma questão de organização. O desejo só surge como mensagem na garrafa àquele que entendeu a função de seu tempo próprio no tempo coletivo.

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MÁRCIA ANGELITA TIBURI nasceu em Vacaria/RS, em 1970. Graduada em filosofia (1990), e em artes plásticas (1996); mestre em Filosofia (1994) e doutora em Filosofia (1999) com ênfase em Filosofia Contemporânea. Publicou diversos livros de filosofia, entre elas as antologias As Mulheres e a Filosofia,  O Corpo Torturado, e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero, Seis Leituras sobre a Dialética do Esclarecimento. Em 2008 publicou Filosofia em Comum - para ler junto. Em 2010 publicou o infantil Filosofia Brincante e Diálogo/Desenho, em 2011 Olho de Vidro, a televisão e o estado de exceção da imagem , também os romances Magnólia em 2005 indicado em 2006 ao Jabuti de melhor romance e o segundo volume da série Trilogia Íntima chamado A Mulher de Costas em 2006. Em 2009 finalizou com o romance O Manto, a série intitulada Trilogia Íntima. Escreveu para várias revistas e jornais e desde 2008 é colunista da Revista Cult. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, professora convidada da Fundação Dom Cabral. Realiza palestras sobre filosofia, ética e educação e temas relacionados.

Fontes:
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sábado, 25 de janeiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 15 *

 

Renato Frata (Tintas da felicidade)

A Natureza como mãe zelosa, deixou que suas crianças brincassem como se deve: livres, leves, soltas e belas, pelo imenso céu. Eram vários os seus filhos: o Crepúsculo orgulhoso, o Sol majestoso e uma renca de Nuvens multiformes que se espalhavam pelo quintal infinito, pois naquele dia que se ia para a tarde, aproveitaram do acaso que pendia para o ocaso, deixaram de brincar de pega-pega e se puseram, em conjunto, matutar qual seria a próxima brincadeira, quando o Sol sugeriu:

- Vamos brincar de búricas?

- Não, - disse o Crepúsculo - já o fizemos. O tempo está especial para outra brincadeira.

– Que tal se nós - disse a Nuvem próxima do Sol - nos enfeitássemos como a num baile de gala? O Crepúsculo que é sensível, poderá servir de costureiro e o irmão Sol, com sua majestade, poderá nos maquiar... dando-nos aspectos especiais como as mulheres fazem em dia de festa – e riu...

– Eu topo – respondeu o Sol e imediatamente, pegou seu grande estojo de guache, ajeitou a paleta e pincéis e danou a pintar, uma a uma as irmãs Nuvens. 

Ele usou de sua arte genial com pinceladas que só ele, o Sol, com sua potência conseguiria, e colocou em umas a tonalidade sombria do azul. Em outras agindo com o mesmo capricho concedeu um esverdeado incomum, resplandecente; àquelas do canto, ele tratou de pintar com um amarelo chamativo esplendoroso e a as que estavam meio espalhadas, aqui e ali, conseguiu avermelhá-las do claro e do escuro puxado para o marrom, deixando-as tão belas, mas tão belas, que se não as olhassem bem, não as reconheceria como as próprias irmãs. E foi tão rápido e tão certeiro com seus pincéis que elas modificadas em sua concepção de nuvens, nunca imaginariam que um dia poderiam se vestir de cores tão lindas. 

– Sol, - disseram em coro - você fez maravilha, é um artista, burila as cores como exímio pintor! Obrigada e parabéns, conseguiu nos fazer felizes. Olha, veja como você nos fez belíssimas!

O Crepúsculo, entusiasmado, raspou a garganta limpando-a de um pigarro, e falou: - Concordo. Vocês estão lindas, maravilhosas com a pintura do Sol, mas gostaria de dar um retoque aqui se me deixarem. Posso? 

– Claro, - responderam - para melhorar, vale tudo!

Ele então as espalhou pelo céu sem as distanciar do Sol e disse: umas ficarão na parte superior, outras no horizonte e as demais à esquerda e à direita a se perderem de vista na amplidão do céu compondo um conjunto simétrico e constante. Sabem para quê? – antes de que alguém respondesse, continuou: – Assim dispostas ao redor do sol poente darão para quem as olhar um visual tão lindo e espetacular que descobrirão sem o perceber, o significado mágico da palavrinha MARAVILHA, muitas vezes despercebida pelos humanos.

– Que lindo, irmão, - disse o Sol - então daremos a essa brincadeira o nome de Crepúsculo Outonal, e ficaremos por instantes à mercê de olhos que se dispostos a nos olhar, conceberão o conjunto que nós, seres celestes, conseguimos quando bem usamos as tintas da felicidade.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Humberto de Campos (O Rio Purús)

(De uma frase de Dumas Filho)

À pequenina mesa de chá que Mme. Peixoto Leroux me reservara naquela primeira reunião dos seus íntimos, sentavam-se, à sombra das mangueiras seculares da sua linda chácara da Tijuca, o desembargador Abelardo, a jovem Mme. Costa Retore e, mais alegre que todos nós reunidos, a encantadora baronesa de São Bonifácio, recentemente chegada de Londres. Risonha, graciosa, inteligente, a loura titular tomou conta, logo, de todos nós, guiando a palestra com a habilidade com que dirige, às vezes, à tarde, pelas estradas da Gávea, o seu grande automóvel de seis lugares. Ligando os assuntos como quem liga, uma a uma, e continuamente, as pérolas do mesmo colar, a baronesa indagou, de repente:

- É verdade, que noticias me dão vocês da Lilita Wilson?

O desembargador, que é entendidíssimo em novidades de salão, alcova e cozinha, acudiu, pronto:

- Casou-se, outra vez. Logo que lhe morreu o primeiro marido, casou-se com o Alberto Manzoni, de São Paulo. Com a morte deste, na guerra, contraiu terceiras núpcias aqui mesmo.

- Com o Alexandre?

- Não; com o Viana Moreira, do Rio Grande do Sul.

A baronesa, sem mostrar espanto, sorriu, e, após um gole de chá e de uma torradinha minúscula, que lhe encheu toda a boca, lamentou, penalizada:

- Coitadinha! Até parece, já, o rio Purús, descrito por Euclides da Cunha!

- O rio Purús? - estranhei, pousando a chávena.

E a minha amiga, perversa.

- Então? Ela tem mudado tanto de leito!...

Uma folha amarela que se despregara da mangueira pôs termo à conversa, caindo, certeira, aos rodopios, como uma flecha vegetal, na xícara vazia da baronesa...
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = 205 = Maria Thereza Cavalheiro



Artur de Azevedo (Um cacete*)

* Cacete = chato, maçante, importuno.
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Uma noite em que o Siqueira saía do Lírico, viu de longe o Rubião, no Largo da Carioca, e quis fugir, mas não teve tempo: O Rubião avistou-o e correu para ele.

- Ó Siqueira! Vem cá! Não fujas! Que diabo! Não te vejo há um século!

- Adeus, Rubíão; como vai isso?

- Parece que fugias de mim!

- Eu?! Que lembrança!

- Não, que, para te falar com franqueza, ando muito ressabiado: o outro dia... quando foi?... terça-feira... ora, espera! foi quarta-feira... não!... enfim, terça, ou quarta-feira, o Honorato viu-me e fugiu!

- Fugiu?!

- Como o diabo da cruz! E tomou um bonde que passava! Bem sei porque isso e... estou pobre... não tenho mais vintém.

O Siqueira teve ímpetos de lhe dizer: "Não, não é porque estejas pobre; é porque és muito cacete", mas conteve-se.

- Mas tu, Siqueira, tu, não creio que fujas de mim pelo mesmo motivo. .

- Mas eu não fugi!

- Antes assim. De onde vens?

- Do Lírico.

- És um homem feliz.

- Porquê?

- Porque podes ir ao Lírico. Tu sabes como eu sou doido por música; pois bem: desde 1871... não! Ora, espera!.. desde 1872... ou 1873... enfim, há trinta e tantos anos, nunca mais ouvi uma ópera!

- Que estás dizendo?

- A verdade. Não sei o que é Tamagno, nem Gayarre, nem Caruso, nem nada! A última ópera que ouvi, ainda no Provisório, no Campo de Sant'Ana, foi a Força do Destino.

O Siqueira estendeu a mão para despedir-se, mas o Rubião agarrou-o por um botão do sobretudo, e continuou:

- Ah! naquele tempo eu não só ia ao teatro, como era amigo dos artistas... Fiz muita amizade com um deles, justamente naquele tempo... 1871 ou 1872... era um baixo, mas que baixo! Não creio que voltasse nunca ao Rio de Janeiro um baixo com uma voz daquelas! Era de primo cartelo!

- Como se chamava?

- Chamava-se... ora espera... Chamava-se...

E o Rubião meditou durante dois minutos, a procurar o nome do cantor sempre agarrado ao botão do Siqueira.

- Bem! depois me dirás... Adeus, Rubião!

- Espera, homem de Deus! Tenho o nome debaixo da língua! Ora, senhor! Um artista com quem eu ceava todas as noites! Por falar em cear: não te apetece agora um chocolate?

- O que me apetece é dormir.

- Ainda é cedo. Vamos ali ao Paris.

O Siqueira não teve remédio senão ir tomar chocolate com o Rubião.

- Ora, que coisa esquisita! - dizia o maçador enquanto bebia. - Não me posso lembrar do nome do baixo!

- Deixa lá o baixo e anda com isso, que são horas.

- Onde estás morando?

- Na Rua da Imperatriz.

- Ainda no mesmo sobradinho?

- Ainda.

Quando acabaram de tomar o chocolate, que o Siqueira pagou, vieram ambos de novo para o Largo da Carioca.

- Bom! Agora adeus, Rubião!

- Que diabo! Eu não queria separar-me de ti antes de me lembrar do nome do baixo. Não imaginas a aflição que isto me causa!

E quis de novo agarrar o outro pelo botão, mas desta vez o Siqueira protestou:

- Deixa o botão!

- Sabes que mais? A noite está fresca... vou levar-te até a porta de casa... Talvez que em caminho eu me lembre do nome do baixo.

Siqueira quis evitar que ele realizasse a ameaça, mas não houve meio, e o pobre rapaz foi cruelmente caceteado até à Rua da Imperatriz.

À porta de casa, já o trinco estava na fechadura, e o Rubião procurava lembrar-se do nome do cantor.

- Eu desespero! Enfim, amanhã mando-te o nome dele num cartão postal... Adeus, Siqueira!

- Adeus, Rubião!.

- Olha!

- Não! Adeus!.

E a porta bateu com força.

O Siqueira suspirou, subiu a escada e foi para o seu quarto, despindo-se, deitou-se, e adormeceu logo, pois estava realmente com sono; mas não se tinha passado talvez meia hora, que despertou sobressaltado com o barulho que faziam, batendo à porta da rua.

- Ó Siqueira! Ó Siqueira! Chega à janela!... – gritava uma voz.

O Siqueira deu um pulo da cama, embrulhou-se num cobertor, abriu a janela e viu no meio da rua o Rubião, que disse:

- Olha, o nome do baixo era Ordinás! Boa noite.
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Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo, jornalista, poeta, contista e teatrólogo, nasceu em São Luís/MA, em 1855, e faleceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1908. Aos oito anos Artur já demonstrava pendor para o teatro, brincando com adaptações de textos de autores. Muito cedo começou a trabalhar no comércio. Depois foi empregado na administração provincial, de onde foi demitido por ter publicado sátiras contra autoridades do governo. Ao mesmo tempo lançava as primeiras comédias nos teatros de São Luís. Aos quinze anos escreveu a peça Amor por anexins, que teve grande êxito, com mais de mil representações no século passado. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, no ano de 1873, e logo obteve emprego no Ministério da Agricultura. Dedicou-se também ao magistério, ensinando Português. Mas foi no jornalismo que ele pôde desenvolver atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrólogos brasileiros. Fundou publicações literárias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades, onde seus companheiros eram Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio, Olavo Bilac e Coelho Neto. Foi um dos grandes defensores da abolição da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramáticas e em peças dramáticas, como O Liberato e A família Salazar, proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o título de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artísticos, principalmente sobre teatro, nas seções que manteve, sucessivamente, em diversos jornais.. Multiplicava-se em pseudônimos: Elói o herói, Gavroche, Petrônio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. Embora escrevendo contos desde 1871, só em 1889 animou-se a reunir alguns deles no volume Contos possíveis, dedicado pelo autor a Machado de Assis, que então era seu companheiro na secretaria da Viação e um de seus mais severos críticos. Em 1894, publicou o segundo livro de histórias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia, constituídos de histórias deixadas por Artur de Azevedo nos vários jornais em que colaborara. Suas comédias fixaram aspectos da vida e da sociedade carioca. Teve em vida cerca de uma centena de peças de vários gêneros e extensão encenadas em palcos nacionais e portugueses. Outra atividade a que se dedicou foi a poesia. Foi um dos representantes do Parnasianismo, pelo temperamento alegre e expansivo, não tinha nada que o filiasse àquela escola. É um poeta lírico, sentimental, e seus sonetos estão perfeitamente dentro da tradição amorosa dos sonetos brasileiros.

Fontes:
Artur de Azevedo. Contos publicados em 1897. Disponível em Domínio Público
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sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Daniel Maurício (Poética) 85


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O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros. Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc. Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Eduardo Martínez (Coitado, o palhaço infeliz)

José não se recordava de ter tido nem sequer um dia de felicidade. Talvez no tempo de gestação da mãe, que pariu o rebento quase aos dez meses. Seria isso a prova cabal de que o então bebê não queria sair do aconchego do ventre e cair neste mundo? É uma possibilidade, mas que precisaria ser provada e, como o gajo não se recordava de nenhum acontecido antes dos seus dois anos, seria tarefa infrutífera para qualquer pesquisador. 

Aos 12 anos, José até pensou em ser mágico, mas lhe faltava talento para tal. Na verdade, tinha a opção de virar trapezista que nem os pais. No entanto, o garoto sofria de vertigens quando tentava se equilibrar até mesmo no meio-fio. Acabou virando palhaço, o palhaço que nunca ri, como se fosse a reencarnação do próprio Buster Keaton, só que numa versão ainda mais tristonha.

A despeito das feições de desânimo, José fazia sucesso e, não raro, era aplaudido de pé pelo público, que, muitas vezes, ia ao circo apenas para ver o palhaço Coitado, cuja fama se espalhou por toda a região, chegando até a capital. O alvoroço era tamanho, que as filas dobravam os quarteirões. 

O dono do circo, Don Pedrito, um espanhol domador de leões e tigres, aposentado desde que perdeu um dos braços em uma contenda com as feras, não queria mais saber de animais muito antes de ser proibido por lei. No máximo, Filó, uma cadela poodle de quase 30 anos, que parecia ter encontrado a fórmula da eternidade. No mais, gente de diversos lugares, principalmente dos Bálcãs, sabida região de ciganos. 

Aos 30 anos, o famoso palhaço estava com os alforjes abarrotados de dinheiro. Não que não fosse também enganado por Don Pedrito. Todavia, como o empresário juntou fortuna com as apresentações do seu mais ilustre funcionário, não tinha como negar-lhe pagamento acima dos demais empregados. 

Certa feita, o circo fez temporada em Samambaia, no Distrito Federal, onde ficou por quase dois meses. O sucesso continuou atraindo o público, que ia para conhecer o famoso palhaço Coitado. E foi justamente em uma dessas apresentações, quando as gargalhadas ecoavam sob a lona, que José, olhar tristonho por detrás da pintura, sorriu pela primeira vez diante de uma bela jovem. 

A princípio, a plateia não entendeu aquilo, até que, talvez assustada, a mulher chorou. José, estupefato, ouviu o silêncio do público. Instintivamente, estendeu sua mão para a garota, que retribuiu o gesto. Os dois choraram copiosamente, enquanto a plateia voltou a gargalhar tanto, que chegaram a chorar de tanto rir, para admiração do Don Pedrito.

Com seu tino comercial afiado, o dono do circo, assim que o espetáculo terminou e o público se dispersou, percebeu que José e Luciana, a tal chorona, estavam em um canto trocando olhares tristonhos. Não teve dúvida, propôs um contrato ali mesmo, que a beldade aceitou.

Luciana e José se casaram no mês seguinte e continuam trabalhando no mesmo circo. Aliás, apesar de serem explorados pelo espanhol, são os artistas mais bem-pagos da companhia. E, todas as manhãs, assim que os outros artistas passam pelo casal, costumam cumprimentá-los, enquanto Don Pedrito, que sabe que o espetáculo não pode parar, sempre lança a mesma pergunta:

— E aí, José, qual é o sofrimento de hoje?
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Feldman (Godofredo)

Era uma noite típica no Condomínio Parque das Flores, e a sala de reuniões estava cheia. Moradores de todas as idades se acomodavam nas cadeiras, ansiosos para discutir as reformas necessárias no condomínio. Mas, como sempre, havia uma nuvem ameaçadora pairando sobre a reunião: Godofredo, o morador do prédio que era um “chato de galochas”.

Dona Rita, a síndica, começou a reunião com um sorriso nervoso.

— Boa noite a todos! Hoje, vamos discutir a reforma da piscina. O que vocês acham de reformá-la e deixar mais agradável?

— Olha, eu não sei se isso é uma boa ideia — interrompeu Godofredo, levantando a mão como se estivesse em sala de aula. — A piscina já é um foco de problemas!

— Como assim, Godofredo? — perguntou Marta, uma mãe de dois filhos. — A piscina é um lugar de lazer!

— Exatamente! E onde tem lazer, tem acidente! — rebateu Godofredo, cruzando os braços. — E quem vai limpar todo aquele cloro?

— A gente contrata alguém, Godofredo! — disse Jorge, o morador mais jovem, com um sorriso cansado.

— E quanto isso vai custar? — Godofredo insistiu. — Aposto que vai aumentar o nosso condomínio!

Marta, já sem paciência, respondeu:

— Godofredo, uma piscina reformada pode aumentar o valor dos apartamentos!

— Ah, mas será que alguém vai querer comprar um apartamento em um prédio com piscina? — questionou Godofredo, provocando risadas nervosas entre os presentes.

Dona Rita tentou mudar de assunto.

— Ok, vamos para o próximo item: a reforma do salão de festas. O que vocês acham?

— Eu sou contra! — gritou Godofredo. — O salão já é um lugar cheio de barulho. Reformar só vai piorar!

— Mas o salão está caindo aos pedaços! — ressaltou Ana, uma adolescente que estava na reunião. — Não dá pra fazer festas lá!

— E quem disse que precisa de festas? — retrucou Godofredo. — As festas só atraem mais gente barulhenta!

Carlos, um senhor simpático, tentou apaziguar a situação:

— Godofredo, também precisamos nos divertir, não acha?

— Divertir-se é só uma forma de gastar dinheiro! — disse Godofredo, com um tom de desdém. — E depois, vem a limpeza!

— Godofredo, você é o único que vê tudo pelo lado negativo! — exclamou Dona Rita, já exasperada.

— Não, não sou! Eu sou o único que vê a verdade! — defendeu-se Godofredo, com um gesto dramático.

Dona Rita, tentando manter a ordem, passou para o próximo tópico.

— Vamos discutir a reforma do elevador. Ele está muito antigo e precisa de melhorias.

— E se ele quebrar durante a reforma? — perguntou Godofredo, levantando a mão novamente. — E se a gente ficar preso lá dentro?

— Godofredo, isso é um risco que corremos com o elevador velho também! — respondeu Jorge. 

— Mas a situação atual é familiar. A reforma pode trazer riscos desconhecidos! — insistiu Godofredo.

— Riscos desconhecidos? — riu Marta. — Você assiste muitos filmes de terror, Godofredo?

— E você não deveria subestimar o que não conhece! — retrucou Godofredo, ofendido.

Ana, já cansada, interveio:

— Godofredo, você é como um aplicativo de previsão do tempo que só diz que vai chover! Às vezes, precisamos de sol!

Todos riram, mas Godofredo não se deixou abalar.

— E quem vai pagar a conta das reformas? — continuou ele. — Aposto que vai ser a gente! 

Carlos, tentando mudar o clima, sugeriu:

— Que tal fazermos uma vaquinha para as reformas?

— Uma vaquinha? — exclamou Godofredo. — Isso é um plano horrível! E se a vaca não der leite?

— Godofredo, você sabe que isso é uma expressão, certo? — disse Jorge, rindo.

— É, mas eu não gosto de expressões! Elas complicam a comunicação! — respondeu Godofredo, como se fosse o porta-voz da lógica.

Dona Rita, já sem saber como lidar, anunciou:

— Ok, se todos concordam com a reforma do salão, vamos votar.

— Ah, mas eu sou contra! — gritou Godofredo. — E quem vai garantir que a reforma vai ser bem feita?

— Nós vamos acompanhar, Godofredo! — afirmou Marta. — E temos um arquiteto!

— E se o arquiteto não souber o que está fazendo? Estamos todos perdidos! — disse Godofredo, gesticulando dramaticamente.

— Godofredo, você sempre vê o lado ruim de tudo! — exclamou Carlos, já irritado. — A gente precisa de melhorias!

— Com certeza, você é o único que não quer! — respondeu Marta.

Dona Rita, percebendo que a reunião estava se transformando em um debate sem fim, decidiu tomar uma atitude drástica.

— Olha, Godofredo, talvez seja melhor você não participar mais dessa reunião.

— Como assim? — disse Godofredo, perplexo.

— Você está expulso! — anunciou Dona Rita, com um sorriso firme. — Na próxima, vamos deliberar sem você!

Godofredo ficou em silêncio, mas seu olhar demonstrava que ele ainda ia arranjar um jeito de contestar essa decisão.

— Vocês vão se arrepender! — foi a última coisa que ele disse, enquanto saía da sala, deixando os moradores aliviados.

Mas não parou por aí, quando a reunião terminou, com seu ar de resistência, ele se dirigiu ao parquinho onde alguns moradores estavam, e aproximando-se de um grupo.

— Olá, vizinhos! Vocês têm um momento para falar sobre as reformas?

— Godofredo, estamos tentando aproveitar o dia. O que você quer? – Marta balançou a cabeça.

— É só uma conversa rápida. Eu acho que precisamos nos unir contra essas reformas. Elas vão acabar com a tranquilidade do nosso condomínio!

— Como assim, Godofredo? O que há de errado com as reformas? – disse Carlos, curioso.

— Pensem bem! A piscina vai ser mais barulhenta, o salão de festas vai atrair mais gente estranha e, no final das contas, vamos gastar um monte de dinheiro! – Godofredo gesticulava.

— E o que você sugere? Ficar tudo como está?

— Exatamente! O antigo é seguro! O novo é um risco! Vamos preservar a nossa paz!

Jorge interveio. 

— Mas Godofredo, a paz que você defende é a mesma que a gente já não tem? O salão está caindo aos pedaços!

— E se a reforma trouxer barulho, e se o elevador quebrar? Vamos ficar presos lá dentro! Olhem, eu sei que vocês pensam que sou chato, mas eu só quero o melhor para todos nós! – Godofredo falou com um olhar dramático

Marta, cruzando os braços, disse: — O melhor é ter um espaço agradável para as crianças brincarem e para a gente se reunir. Não dá para viver no passado!

Godofredo insistiu: — Mas e se essas crianças fizerem barulho? E se os pombos voltarem? Vocês não estão pensando nas consequências!

— Godofredo, você sempre traz os pombos para a conversa! – disse Carlos, sorrindo.

— E quem vai limpar isso? Pensem no trabalho extra!

Ana falou brincando: — Godofredo, você deveria ser advogado. Tem talento para convencer as pessoas a não fazer nada!

— Então, o que me dizem? Vamos juntos? Podemos fazer um abaixo-assinado!

— E colocar “não à diversão” no título? – disse Marta, rindo.

Carlos entrou na brincadeira: — Ou “protetores dos pombos”?

— Não, não! É sério! Precisamos nos unir!

— Godofredo, a verdade é que a maioria já decidiu. Você pode tentar, mas a mudança vai acontecer, com ou sem você.

Godofredo suspirou: — Então, vocês vão me deixar sozinho nessa?

Marta falou com deboche — Não, Godofredo. Você sempre terá a companhia dos pombos!

Os moradores riram, enquanto Godofredo, derrotado, cruzou os braços e observou o grupo se afastar, ainda conversando animadamente sobre as reformas. Ele murmurou para si mesmo, já pensando em seu próximo plano para tentar mudar a opinião dos vizinhos.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.


Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: I. A. Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing