domingo, 25 de outubro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (O Rio e o Mar)

Sobre as pedras brancas e lapidadas ele percorria. Percorria só, atento às ondulações em suas margens. Observando dia e noite a mata que o protegia. Sabia estar indo para algum lugar, mas não podia prever aonde daria seu curso.

Por vezes sentia-se só e alegrava-se quando os animais vinham nele beber. Dia e noite suas águas percorriam e desejava saber o porquê da sua natureza assim ser. Queria parar um pouco e desfrutar das mesmas coisas que todos desfrutavam na mata.

Um dia ao entardecer entristeceu-se e se pôs a chorar. Sentia muita solidão...

Suas lágrimas inundaram a mata, causando pânico aos que nela viviam:

- Rio, por que choras? Tua tristeza desequilibra a natureza na qual vivemos!

- Choro por sentir-me só. Enquanto todos possuem companhia, eu percorro sozinho, sem ninguém para falar, ninguém para brincar. E sinto medo, pois não sei para onde estou indo...


Todos na mata silenciaram diante da tristeza do rio. Também não sabiam aonde ele iria chegar. Não podiam ajudá-lo. E assim. Todos ficaram parados, vendo o rio passar...

Sua tristeza era profunda e não havia meios de ajudá-lo...

A chuva surgiu inesperadamente de dentro da mata e vendo a tristeza do rio, perguntou:

- O que lhe tira a paz, meu caro amigo?

- Não entendo minha natureza e sinto-me muito sozinho a percorrer por tantos caminhos que nunca chegam a lugar algum.


A chuva vendo o desespero do rio, afagou-o gentilmente com suas águas límpidas.

- Se choras por estares só é porque ainda não descobriste tua real natureza. Nada neste mundo está só, excluído do todo. Aceita tua natureza e percorre feliz em teu curso. És tão necessário quanto a mata e tudo que nela vive.
És tão necessário quanto o sol e tudo que na sua luz é banhado. Teu destino não está longe e quando o encontrares saberás que tudo tem uma razão de ser. Aceita a orientação que vem de dentro, ela sabe o percurso e sabe para onde estás indo.
Confia e tua confiança conduzir-te-á para tua alegria, para teu descanso, para teu reencontro com a tua verdadeira natureza. Quando chegares neste lugar estarás em paz, pois viverás com os teus iguais.

O rio recebeu a chuva com contentamento e tratou de seguir seu curso, confiante no que a chuva lhe falara.

Adiante, uma surpresa, percebeu que estava saindo da verde mata, caindo lentamente sobre um mar azul... Infinitamente azul...

Fonte:
Universo das Fábulas

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 10



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Mara Melinni (Cristais Poéticos) 1


CONJUNÇÃO

Quando escrevo, a minh´alma se desprende
Das arestas formais do corpo insano
E viaja, no instante em que se rende
Aos anseios do amor... Sem dor, nem dano.

Neste plano, onde o sonho se revela,
Face à espera que finda, vão-se os medos...
E no enlace do encontro – dele e dela,
Cada beijo murmura seus segredos.

Bem assim, vivo a vida simplesmente
Nos meus versos, buscando a própria cura
Aos anseios que a sorte me consente...

Hei de achar-me naquele que procura
Todo o encanto de amar serenamente
Um ao outro... na mesma criatura!
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CORES DE VIDA
 
Em cada manhã, quando o sol desponta,
Avisto no orvalho, sereno e manso,
Um pouco da vida, desnuda e pronta,
Que só de me olhar, revida e afronta
O sonho pequeno... Que eu não alcanço.

Sem sono e sem remo, sigo a proeza
Do azul que goteja nos madrigais...
Da luz do luar, eu sou fácil presa,
Sou fiel refém da minha tristeza,
Mergulho no mar... Sem deixar sinais.

Perseguindo o vento, sem direção,
Pinto de amarelo a chama silente,
Que desfaz o choro, livrando o chão
Das folhas de outono, a cada estação,
Quando a brisa chega... Na aurora quente.

Mas mudam as cores, muda o meu riso...
Vermelha é a rima mais que perfeita,
Que enfeita o meu céu, faz do paraíso
Berço do pecado, último juízo,
Lembrança de amor, amarga e desfeita.

Então mudo o curso, na longa estrada...
É verde a esperança, que habita em mim.
Revejo na vida, tantos sem nada,
Sua cruz, quantas vezes, triste e pesada,
Afoga o meu peito, é uma dor sem fim.

Assim, pinto branca a felicidade,
Apago a aquarela e renasce a paz...
No fundo da alma, a tela é a bondade
No branco da vida, eu sinto saudade...
Meu sonho incolor, hoje se refaz.

É tão colorido quando amanhece!
Meu verso reluz na névoa do dia...
O sol furta o brilho e o horizonte aquece,
Minh´aura vibrante estende uma prece...
A vida tem cor... Na cor da poesia!
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ESSE SIM, É O "NOSSO TEMPO"!


Meus versos não são profundos,
são bem rasos... Na medida
de cada gota que emana
da minha alma escondida...
Mas te conto o meu segredo:
falo de mim, sem ter medo...
Assim, sou feliz na vida!
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INTENSIDADE

No breve instante, que assim me invade,
Fecho os meus olhos pra me entregar...
No pensamento, descalça e leve,
Caminho em busca de te encontrar...

Noite de lua, eu toda sua...
Sinto os teus passos, na madrugada...
O abraço quente te faz presente...
No beijo teu, fico embriagada...

Faz tanto tempo, tanto tormento,
Mas a distância nos faz querer
Viver de novo o sonho sereno
De um amor que nunca vai se perder.
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LIBERDADE

Eu quero ser livre...
Sentir o vento que percorre o mundo
Beijar meu rosto todo, sem pecado.

Eu quero ser livre...
Ouvir o mar cantar ao pé do ouvido,
Riscando na areia meu corpo molhado.

Eu quero ser livre...
Gravar na nuvem do céu todo o encanto
Do meu sonho mais bonito, nela desenhado.

Eu quero ser livre...
Apreciar a forma e o cheiro da rosa
Que nasceu formosa, num jarro quebrado.

Eu quero ser livre...
Escrevendo versos soltos, controversos,
Transpondo minh’alma num papel riscado.

Eu quero ser livre... E hoje eu sei que sou...
Pois a liberdade sentiu solidão...
Sofreu de saudade por quem tanto amou,
Embalada à voz do seu coração...
E por tanto amar, enfim,
Foi amando assim, que se libertou!
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NOITE

Sonho de imensa noite
Embebeda meu ar
Cenário perfeito
Pra te encontrar...

Hoje imagino
Te pinto, te sinto
E você, tão distante
Aventura errante...

Apesar dos pesares
De esquecer-me
De guardar-me
Te quero incessante...

E, profundamente
Vivo, presente
Imerso na intensidade
Do desejo que te sente.
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SAUDADE

Fecho os olhos
Te encontro
Na imensidão do meu ser...
Que saudade!
É verdade...
Como eu queria te ter!
Faz tanto tempo
Do último momento
Mas nunca pude esquecer...
Hoje eu queria
Viver de novo
Toda aquela magia
Eterna sensação de alegria...
Fazer da distância
Um caminho bem perto
Fazer desse sonho
Um instante certo
Onde eu simplesmente
Estivesse com você...
Onde novamente
Eu pudesse te ter.

Fonte:
Mel Versos

Rachel de Queiroz (Viagem de Bonde)


Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha cheio, mas como diz, empurrando sempre encaixa. O que provou ser otimismo, porque talvez encaixasse metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo. Assim mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela conseguiu se insinuar, ou antes, encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os ombros e os quadris à direita e à esquerda, quando o bonde parou em outro poste, o soldado repetiu o tal slogan do encaixe, e foi subindo – logo quem! – uma baiana dos seus noventa quilos, e mais uma bolsa que continha o fogareiro, a lata dos doces, o banquinho e o tabuleiro. E aquela baiana pesava os seus noventa quilos mas era nua, com licença da palavra, pois com tanta saia engomada e mais os balangandãs, chegava mesmo era aos cem. E esqueci de dizer que junto com ela ainda vinha uma cunhãzinha esperta que era um saci, que se insinuou pelas pernas do pessoal e acabou cavando um lugarzinho sentada, na beirinha do banco, ao lado de uma moça carregada de embrulhos e que assim mesmo teve o coração de arrumar a garota. Também o diabo da pequena conquistava qualquer um, com aquele olho preto enviesado, o riso largo de dente na muda.

Esqueci de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No reboque, atrás, a confusão parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro e outro, e havia um crioulo de bigode à Stalin, muito distinto, tinha cara de dirigente no Ministério do Trabalho, que muito sub-repticiamente viajava sobre o pino de ligação entre os dois carros ou, para dizer melhor, com um pé na sapata do carro-motor e o outro na sapata do reboque. E quando o condutor aparecia para cobrar a passagem, se era o condutor da frente ele punha os dois pés no reboque, e se era o condutor do reboque que vinha com o “faz favor” ele então executava o vice-versa. Sei que não pagou passagem a nenhum dos dois e devia fazer aquilo por esporte; não tinha cara de quem precisa se sujar por cinquenta centavos; esporte, aliás, que todo o mundo aprova e aprecia, pois quem é que não gosta de ver se tirar um pouco de sangue à Light? E aí o bonde andou um bom pedaço sem que ninguém mais atacasse a plataforma.

A turma que chegava, ocupava-se agora em guarnecer os balaústres, formando com os pingentes uma superestrutura decorativa. Mas, alcançando-se o abrigo defronte à Central, quase chegou a haver pânico. Porque no momento em que a multidão da calçada assaltava o veículo, a baiana quis descer, e não era façanha somenos desalojar aquela massa da pressão onde se encastoara, sem falar na pressão de baixo para cima feita pelos que tentavam subir, contra quem pretendia descer. Mas afinal já a baiana aterrissara na calçada e o vácuo por ela deixado era instantaneamente ocupado com uma violência de sorvedouro, o condutor tocara o seu tim-tim de partida, quando ressoaram uns gritos agudos cortando o ar abafado. Era o pequeno saci de olhos pretos a clamar que o povo subindo não a deixara descer. E a tensão geral explodiu em cólera e ternura, e todo o mundo tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam a corda do marcador de passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em puro linguajar da Mouraria, uma voz berrava: – já se viu que brutalidade, impedir a criança de descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia, o motorneiro, para ajudar e mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a tocar aquela espécie de sino que fica embaixo do pé dele. E enquanto os passageiros compassivos desembarcavam a garota, um senhor, que vinha em pé no meio dos bancos, pôs-se a declamar que era assim mesmo, que motorneiro, condutor e fiscal, em vez de se aliarem com o povo, não passavam de uns lacaios da Light, mas quando chegasse na hora de pedir aumento de ordenado haviam de querer que a população ajudasse com aumento nas passagens. O povo é que é sempre o sacrificado. E o condutor aí se enraiveceu também, e começou a convidar o homem para a beira da calçada, e o senhor disse que não ia porque não se metia com estrangeiros, e um engraçadinho deu sinal de partida e o motorneiro (que já estava por demais chateado) partiu mesmo, deixando o condutor em terra, vociferando; só foi dar pela falta quando chegou com o carro bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor corria o guarda começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde aberta para os carros em direção contrária.

Parecia o dia de juízo, o bonde parado, os automóveis buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o pessoal do bonde rindo que era ver uns demônios. Afinal o bonde partiu, tudo pareceu acalmar um pouco, mas aquele senhor em pé que xingara os pobres empregados da Light de lacaios do polvo canadense mostrou que era homem afeito a comícios, não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava acostumado a falar até em meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo acontecia porque o Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional – sim, meus senhores, constitucional! – da mudança da capital da República. Imagine que delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos burocratas, dos automóveis dos políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com ele a alcateia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros! Isso aqui ficava mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria embora, e que maravilha o Rio com um milhão de vagas nos transportes, um milhão de vagas nas residências, um milhão de bocas a menos, para comer o nosso mísero abastecimento! As favelas se acabam automaticamente, o arroz baixa a quatro cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os Ministérios com todas as suas marias candelárias. Pensando nos ministérios – será apenas um milhão de gente que nos deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um milhão! O que virá em muito boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões!

E aí o bonde inteiro aplaudiu, cada qual só pensava na vaga a seu lado. E, se aquele bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de Janeiro, houvesse uma revolução. Talvez o povo do Rio de Janeiro desse ordem de despejo para o seu Governo, lhe apanhasse os trastes, lhe apontasse a estrada, que é larga e vai longe. Mas, feliz ou infelizmente, o bonde era pequeno e, apesar de conter tanta gente, não dava nem para um bochincho. E o Governo, pensando bem, também é de carne como nós – e só um coração de ferro tem coragem de deixar este Rio, assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem transporte, sem luz e sem água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado:

– Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos haveriam de se largar de lá? Céu é céu, de qualquer jeito…

(Publicada em 1953)

Fonte:
O Melhor da Crônica Brasileira – 1. RJ: José Olympio, 1997

sábado, 24 de outubro de 2020

Eduardo Affonso (Étimo, que vem do Grego ‘etymon’, “sentido verdadeiro”)


Ele desaba para um lado, com o suor escorrendo na testa.

Ela toma fôlego, e murmura, ainda arfante.

– Uau! Você foi formidável…

– Sério? Tão ruim assim?

– Não. Foi formidável. Sensacional.

– Ah, tá. É que “formidável” vem do latim “formidabilis, e significa “o que causa medo, terrível”.

– É? Não sabia. O que eu quis dizer é que você foi bárbaro.

– Desculpe. Não quis ser grosseiro com você.

– Mas não foi!

– Você disse que fui bárbaro. E bárbaro, do grego “barbaros”, quer dizer “estrangeiro, estranho, ignorante”.

– Imagina! Eu te achei ótimo. Um homem com pegada, porém intelectualmente sofisticado…

– Como assim? Eu não sou falso!

– Não falei que você é falso!

– Falou. Disse que sou sofisticado, e “sofisticado” vem de “sophisticare”, que é o mesmo que “alterar, adulterar, modificar com má intenção”, e de onde, inclusive, vem a palavra “sofisma”.

– Não! Eu quis dizer é que você é um homem ao mesmo tempo viril e fino (no bom sentido, claro!), do tipo que a gente não pode deixar escapar.

– Mas eu não estou usando capa.

– Hã?

– “Escapar” vem do latim “excappare”, de “ex” (movimento para fora) + “cappa” (capa) e o sufixo “are” (que indica ser um verbo). Ou seja, escapar é livrar-se da capa. A menos que você se refira à camisinha…

– Não, não. Já estou até arrependida de ter pedido para você pegar essa famigerada dessa camisinha.

– Mas famigerada – que é uma palavra latina, composta de “fama” + “gerere” – quer dizer algo afamado, que goza de boa reputação. E saiba que achei você muito esquisita

– Esquisita? Eu? (Cata as roupas no chão). Tô fora!

~ Espere! “Esquisito” tem origem no latim exquisitus, “procurado com atenção”, portanto, “de escolha especial, coisa muito boa” e (ela bate a porta)...
 
-  Droga, de novo!
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Moral da história: nunca vá para a cama com um etimologista. Ele sempre dará um jeito de explicar a origem das palavras – e acaba por complicar tudo. Aliás, “complicar” e “explicar” têm a mesma raiz, do latim “plicare” (ato de dobrar um papel), com os prefixos “com” (em companhia de) ou “ex”(para fora de), e é de onde também viveram  suplicar, duplicar, explicitar e até de “cúmplice”, no sentido de… ok, deixa pra lá.


Fonte:
Blog do autor.

Arquivo Spina 23 (Ronnaldo de Andrade)



José Lucas de Barros (Caderno Poético) IV, décimas


AFINEI PELA PRIMA DA VIOLA
O POEMA QUE FIZ PRA MINHA PRIMA.


Adocei a toada sertaneja,
Imitando a ternura dos gorjeios;
Busquei longe a alegria dos recreios
Embalados na terra benfazeja;
Com as bênçãos do Deus de minha igreja,
Recebi lá do céu a melhor rima
E, com todos os brios da auto-estima
De um canário liberto da gaiola,
Afinei pela prima da viola
O poema que fiz pra minha prima.
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A SAUDADE ACERTOU MEU ENDEREÇO
DESDE QUANDO VOCÊ FUGIU DE MIM.


Hoje sobra um lugar em minha cama
e um talher sempre limpo em minha mesa,
Mas não há mais lugar para a tristeza
Que em meus olhos mil lágrimas derrama!
Como é dura a existência de quem ama
Na distância cruel que não tem fim!
Todos sabem que agora vivo assim,
Porque, nesta prisão que não mereço,
A saudade acertou meu endereço
Desde quando você fugiu de mim!
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COISAS GUARDADAS QUE EU TENHO
QUE ÀS VEZES VOCÊ NÃO TEM.


Quero mostrar-lhe o desenho
Da vida, desde menino,
Um traçado do destino,
Coisas guardadas que eu tenho:
Carrego o peso de um lenho
Que Deus transforma num bem,
E quando a descrença vem,
O Mestre de Nazaré
Me devolve aquela fé
Que às vezes você não tem.
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É PRECISO SABER ENVELHECER.

– É tranquilo viver a juventude
No remanso febril dos verdes anos,
Sem sentir o amargor dos desenganos
Nem as dores da falta de saúde;
Mas não é permanente essa virtude,
Porque o tempo interfere no viver,
Muitas vezes trazendo desprazer,
Com o peso enfadonho da canseira.
Quem quiser ser feliz a vida inteira,
É preciso saber envelhecer.

– Há um modo de vida em cada idade
Por desígnio da própria natureza.
Ninguém pode guardar toda a beleza
Nem a graça da eterna mocidade;
Entretanto, pra ter felicidade,
Não precisa estressar-se nem correr,
Basta o amor no trabalho e no lazer
Pra manter a alegria da existência,
Pois, de acordo com as leis da Providência,
É preciso saber envelhecer.
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FUTURO É QUASE PRESENTE,
PRESENTE É QUASE PASSADO.

 
Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo:
Numa fração de segundo,
A roda do tempo gira;
Quando um instante se retira,
Outro encosta no tablado.
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente...
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.
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O POETA TAMBÉM CHORA,
MAS CHORA COMO QUEM CANTA.


Todo poeta se inspira
Na vibração de seu canto,
Embora, às vezes, o pranto
Em seu caminho interfira;
Afeito ao toque da lira,
O som das canções o encanta,
Mas, se um dia a musa santa
De seus sonhos vai embora,
O poeta também chora,
Mas chora como quem canta.
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OS MEUS SONHOS DE POETA
JÁ FORAM REALIZADOS.


Nunca fui um bom esteta,
Mas fiz da forma uma lei
E na trova não frustrei
Os meus sonhos de poeta;
O que falta. Deus completa
Pra redimir os pecados
Dos versos desengonçados
Que discrepam dos demais,
Por isso meus ideais
Já foram realizados.
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POESIA VEM DE ALGUM CANTO
QUE EU NUNCA SOUBE EXPLICAR.


Coisa tão simples... Deus cria,
Dá de graça a qualquer pobre,
Mas nenhum gênio descobre
Os mistérios da poesia;
Filha da noite e do dia,
Tem luz de estrela e luar;
Percorre os caminhos do ar
E nos bafeja; entretanto,
Poesia vem de algum canto
Que eu nunca soube explicar.

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Jerônimo Mendes (O Homem da Mochila Verde)


Sábado, dia de sol. Seis horas da manhã. Reunidos na pracinha da Lagoa, à espera do ônibus, quarenta super atletas.

Vida tranquila essa de jogador. Futebol de segunda a domingo, sem reclamação, viagens, festas, hotéis.

O adversário esperava por nós a cem quilômetros de distância, na vizinha Ponta Grossa. Um misto de amadores e peladeiros, mais dispostos à festa do que o jogo em si.

Duas horas de viagem, muito samba, cerveja, piadas e gozações no trajeto. Nessa hora fazemos de conta que não temos pai, mãe ou irmão e todos entram na dança.

O local, meio retirado e fora do perímetro urbano da cidade, mas diga-se de passagem, agradável ao extremo. Uma bela represa, água cristalina, muito verde e o ar da maior pureza.

O anfitrião, veterinário gente boníssima, vêm logo ao nosso encontro. Apesar de todo aquele patrimônio, muito educado, simples e camarada. De bolsa esportiva na mão, seguimos em frente formando fila pela mesma ordem de desembarque, a fim de atravessarmos a ponte sobre a represa, ligando a entrada da fazenda ao local da recepção, na outra margem do rio.

Pontezinha danada, toda bamba, construída sobre o apoio de tambores vazios, flutuantes na água. O pelotão futebolístico vai aglomerando-se, comandado pelos mais afoitos. Entra um, dois, trás, quatro . . . do décimo em diante foi um tombo apenas. A ponte não suportou o peso e mandou todos para a água, sem direito à troca de calção de banho.

Foi um Deus nos acuda. Alguns nadam, outros riem. Ninguém quer perder a bolsa, o relógio e aquele ray-ban polido especialmente para o passeio. Pares e pares de sapatos sobem à tona rapidamente e deslizam correnteza abaixo. A festa começou apimentada. Um susto e nada mais. Nenhum ferido ou afogado. O pior está por vir, depois de uma recepção fria e descontraída.

Segue o almoço, churrasco e chope à vontade. A partida, marcada para as quatro da tarde, parecia impossível de ser realizada. Imaginem um jogo depois de se devorar um boi e ingerir alguns barris de chope. Tudo em nome da alegria e confraternização.

Após o almoço fomos intimados a trocar de roupa. Cada um procura o local mais propício. Vestiário, nem pensar.

Na pressa de aprontar-me antes dos demais, entrei no único banheiro disponível na fazenda. Antigo, do tipo casinha. Quando a gente passava as férias na casa da avó havia sempre uma no fundo do quintal. Pequena, apertada, sem muita claridade, sem vaso, apenas aquela abertura em forma de losango concebida, única e exclusivamente, para o encaixe do traseiro.

Deixei a mochila de lado e fui logo tirando a roupa. Tinha devorado parte do boi e tomado um bom banho na represa, restava o futebol. Estava doido para colocar o uniforme e bater uma bolinha. Metido a zagueiro, queria ser o primeiro da fila e garantir uma vaga no time.

Depois de ter ficado nu por inteiro senti falta da mochila verde e branca que comprei com orgulho somente para viagens de futebol. Tinha o símbolo do nosso clube, o Araucária, custou caro na época, poucos foram os felizardos que conseguiram uma. Será que deixei fora da casinha ? Hesitei, embora soubesse de antemão que entrei com a danada na mão.

- Lúcio, vê se minha mochila ficou aí por fora.

- Aqui não ! Lá dentro também não . . .

- Meu Deus, será ? Imaginei o pior .

Em pânico, desloquei os dois globos oculares lentamente para dentro daquela figura geométrica, o losango apertado onde mal cabia um traseiro. Jamais caberia uma mochila cheia de roupas e pertences, pensei, com os olhos marejados de raiva.

Recusei-me a crer, mas era verdade. Minha bolsa, verde e branca, agora mais verde do que branca, repousava no fundo do vale, velejando sobre os excrementos acumulados ao longo de anos. Entreaberta, via-se apenas a perna direita da minha calça boca-de-pito bege suspensa do lado de fora, parcialmente rebocada. Algumas centenas de moscas a contemplam feito prótons e elétrons ao redor do núcleo.

Disfarçadamente, saí da casinha, à cata de um galho ou um pedaço de pau qualquer. Apanhei o primeiro que apareceu e voltei afoito, havia de recuperar a mochila. Documentos, tênis, roupas, dinheiro e o meu ray ban do Paraguai. Deus do céu !!!

De cima para baixo eram mais ou menos uns dois metros. Desci o galho calmamente e consegui enroscá-lo na alça. Tentei trazer a mochila com cautela e, ao aproximá-la da boca do losango, despencou novamente, de ponta cabeça. É demais . . . os urubus estão a meu favor.

Meu desejo é chorar e acabo rindo. Nesse momento havia uma plateia de gozadores assistindo ao evento. Um barril de chope triplica o riso, pode crer. Com muito jeitinho consegui retirá-la. A notícia se espalha, alguns colegas rolam no chão, outros gritam : - Dá-lhe, verdão!!!

Segurando-a na ponta dos dedos disparei em direção à represa. Uma legião de moscas tentou acompanhar-me e lembro apenas de ter sido mais rápido do que elas. A torcida aplaude, se diverte. A bolsa ficou submersa na água durante toda a tarde, presa por uma pedra enorme que encontrei no fundo do riacho. Tive pena dos peixes. Nem preciso contar o resto do dia. Do jogo, soube apenas o resultado, derrota na certa.

À noite, o time inteiro foi para o restaurante dançante, exceto o bocó da mala que acabou dançando sozinho e permaneceu dentro do ônibus meditando, sob um cheirinho nada convidativo. Pelo menos trouxe a mochila de volta, sem perder a pose nem o meu curto e rico dinheirinho.

O homem da mochila verde. Quem viu vai lembrar, isso foi há mais de vinte anos.

Fonte:
Jerônimo Mendes. Muito além do cotidiano: crônicas. Curitiba/PR, 2001.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Carina Bratt (Escuridão)


De repente me vi presa no amorfo estranho da falta de luz. Acorrentada aos escombros de um pretume encarcerado, denso e pesado, me senti neófita. De olhos arregalados, abertos até as orelhas, apesar disso não via nada. Nem um palmo enxergava adiante do nariz. Veio então, me acudir à mente, instantes passados da minha vida. Momentos bons e alegres, outros tristes e de profunda melancolia.

O que mais me deixou num vazio pior que o tenebroso das trevas. Meu pai. Recordei dele num momento azedo, virulento, avinagradamente amargo. E que momento foi esse? Meu velho herói no leito de morte, para ser mais precisa, poucas horas antes de nos deixar de vez. Papai Francisco (que o Eterno o tenha em sua santa misericórdia), sabia que não voltaria para casa.

Desde que fora internado às pressas, carregava na consciência a afixação de que não regressaria. E aos poucos, com a sua paciência de Jó, foi nos preparando o espírito, como se quisesse aliviar a nossa dor maior. A do seu recuo da vida, da sua deserção de continuar lutando pela existência que se esvaia em passos tartarugados. Militar linha dura, seu Francisco não dava o braço a torcer.

Suas palavras, como diziam os antigos, não faziam curvas. O que ele falava podia se escrever. Era como assinar com um fio de bigode. Com seu passamento, a rotina em casa mudou. Bem sabíamos, não ouviríamos mais as suas risadas, os seus comentários sarcásticos, as suas turras com mamãe, a implicância com as futilidades, a dinheirama que eu gastava com produtos caros para meus cabelos.

Foi papai quem me liberou para viajar com meu primeiro patrão, o Aparecido, quando eu ainda tinha dezessete para dezoito anos. Por dona Marcela, minha mãe, eu jamais arredaria os pés de suas saias. Mas papai viajava na maionese. Entendia meus sonhos e achava que “o filho depois que cresce e cria asas, quer voar ao sabor do seu próprio vento”. Recordo como se fosse hoje, das palavras de meu velho ao Aparecido: “Seu moço, minha filha está indo uma, não quero que volte duas”. Papai, esperto, arisco, sinalizava uma possível gravidez.

E eu fui, alegre, feliz, saltitante na inocência virginal, ansiosa do meu primeiro emprego, voluteando nas alças da minha imaginação. Desde pequena, o incerto me obstinava me embirrava me seduzia como um passo impensado em direção ao abismo. Apesar do buraco à frente, que se abria enorme, vasto, eu não me importava em cair. Queria dar causa aos meus próprios erros e me levantar dos infortúnios, me fortalecer, me reestruturar sem a ajuda de quem quer que fosse.

O desconhecido me fascinava, o forasteiro me extasiava, o oculto me enceguecia e eu via nesse passo ao acaso, ao não sei para onde, algo que não pressentia no corriqueiro da vida sob o teto da proteção familiar. Desde pequena queria ir além do portão da rua. Desde menina (ainda em tempo do grupo escolar) necessitava descobrir as novidades das outras artérias que se juntavam aquém da esquina que eu via todos os dias. Me sentia entalada, minguada, aperturada.

Meus olhos se assemelhavam a um depósito de coisas sobrenaturais, prontos para ver o mundo lá fora, de perto, como também viver longe do teto de casa consanguínea. Tinha uma carência enigmática, coberta de hera e loucura, loucura essa quase assombrada de pegar o bonde da minha vida, de abraçar coisas novas. O calor materno me tolhia soltar as amarras e viver plenamente a vida, como eu desejava.

O apetite aguçado de cortar o cordão umbilical me obcecava me hipnotizava, me enfeitiçava. E de fato, me desalgemei, me desaferrolhei e fui. Segui. Sai da comodidade do meu quarto me desprendi das bonecas das amiguinhas e, claro, dos meus pais, numa sexta-feira por volta de vinte e duas horas, levando meia dúzia de calcinhas, duas calças jeans e quatro blusas que mamãe comprara de última hora. Com a morte de meu pai tantos anos depois... Nada mudou de forma. Ou mesmo de cor.

As minhas viagens se tornaram mais constantes e espaçosas. Hoje, aqui, amanhã acolá, aeroportos cheios e com problemas na hora de embarcar. Dependendo da rota a ser cumprida, chego a ficar fora por quase trinta dias seguidos. Com papai nos braços de Deus, dona Marcela, minha querida mãe, coitada, acabou sozinha de vez, estudando novas formas de fazer blusinhas de crochê para recém-nascidos.

Desamparada (não desprezada, isso jamais), todavia, sacrificada, postergada, desajudada, desfavorecida, envolta com as malhas de uma solidão imensa e insana, que não só ela, mas eu igualmente, passei a deixar como meu papito em pequenas gotas de uma estranha contribuição, como longos passeios noturnos sobre telhados adormecidos.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Cláudio de Cápua (Discurso da Voinha)

Certa noite na década de 70, eu, novato na profissão de jornalista, retornara das Oficinas da Imprensa Alemã, onde fazia bicos de revisor. Já estava prestes a me deitar, quando bateram à porta. Era Gerson Filho e seu irmão Adauto, ambos potiguares radicados em São Paulo desde bebês, e meus amigos de infância.

Gerson informou-me que seu pai, militar aposentado e proprietário do maior jornal de Botucanhanha, havia falecido e gostaria que eu o acompanhasse até o velório.

No velório grande era a movimentação, pois na cidade havia uma base da Aeronáutica, corporação a que o falecido pertencera. Não estavam presentes só militares, mas muitos políticos e representantes da sociedade, uma vez que o jornal era importante na cidade.

O clima, obviamente, era solene e triste. Lá pelas tantas da madrugada, pediu a palavra a sogra do falecido, dona Gervásia, cearense e crente um tanto fanática e também algo destrambelhada:

- Senhor Deus, por Jesus, tenha piedade deste desgraçado, que só deu desgostos para minha pobre filha.

Por Deus, por Jesus, perdoa este infeliz, que nunca desempenhou a paternidade de meus netos, porque sempre foi um pai irresponsável e ausente.

Piedade Pai, para este homem que se passava por Major, quando era apenas um 2o  sargento.

Deus perdoa ele, por ser amante da bebida e da boêmia etc...etc...


A esta altura, a maioria dos presentes estava de olhos arregalados de espanto e uns fazendo força para não rir, inclusive eu.

Foi quando Adauto deu três passos para o lado e falou, entredentes, para o irmão Gerson, com humildade fransciscana:

- Será que não dá pra fazer a voinha parar de esculhambar o papai?!

(Revista Santos Arte e Cultura - Fevereiro 2017)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro enviado pelo escritor.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 9


Nota:
Zarelho = metediço, travesso, doidivanas.
 
Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Graça Graúna (Haicais)


1
De alma lavada
percorro os caminhos
A minha aldeia resiste
2
Mais uma viagem:
nesse vai e vem a utopia
me faz andarilha
3
Dias de sol
distendo as velhas asas
meu haicai latino.
4
Em volta da fogueira
memória, história
O mundo se recria
5
Entre o sono e a vigília
o canto da cigarra
inunda o sertão
6
Água, terra, fogo e ar
labirintos do ser
em todos os tempos
7
Tempo de estio
sobre a carcaça do boi
um cão faminto
8
  Apesar dos pesares,
resta-nos sonhar:
a Mãe Terra nos anima
9
Do mar a palavra
a pulsão mais forte:
solidão atávica
10
Frêmito de asas,
e a poesia se alastrando
na minha aldeia é assim
11
      Tarde novembreira:
o ipê-rosa anuncia
a chegada de Nina*
12
No cerrado à tardinha
cantigas de rosa
de mãe pra filha
13
 Tempo de primavera
na casa da serra
o riso de Nina
14
  Branca flor d'água
espelha a face da lua
vitória-régia
15
Em meio a chuva de estrelas
a lua de fogo
desalojou a neblina
16
Uns cavaleiros sonham
mas só sonham só
com a mais-valia
17
O tempo de chegada
transborda o olhar
no tempo de partida
18
Os sonhos não se foram
Eles retornam
tais e quais ovelhas negras
19
Utopia é cantar
uma trajetória possível:
Pindorama*
20
  Dia ensolarado:
no alto-mar de concreto,
barcos de papel
21
Bem-te-vi não vê
o arranha-céu espelhado:
estilhaços voam
22
 Dia de São José;
debulhar a esperança
pra chover no roçado
23
Velho pote de barro;
um coaxar noturno,
cheiro de terra molhada
24
 Folhas de outono
maiores abandonados
nas ruas, nas praças
25
Formiga com asa
é sinal que vem chuva
Fartura na aldeia
26
Esperança não morre:
tem verde brotando
no arubatã* decepado
27
Ipê-amarelo,
sonho de primavera
o sol espelha
28
No muro lilás,
a buganvília roxa:
casa materna
29
No quintal pequeno
um caquizeiro se curva
carregado de pássaros
30
 Pícaros, ícaros:
crias de um homem submerso
Brasil, Brazil, brasis
31
Noctívago dor-em-dor
pouso na árvore do mundo
clandestina
32
Porque és pedra
o que dirá a poesia
sem a tua presença?
33
Dançar o toré
perto da gameleira
entre os encantados
34
Brancos para o infinito
o espantalho subverte
a ferocidade do mundo
35
Todos emigram
Na imensidão do tempo
um ser avuante
- - - - - –
Notas:
Nina: é o nome da minha neta mais nova
Pindorama: em tupi, significa 'terra das palmeiras'
Arubata: significa pau-brasil.

Fonte:
Graça Graúna. Flor da Mata. Belo Horizonte/MG: Penninha Edições, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Quatro) Imprevisto inesperado


(*)Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
****************************************

APERTEI O BOTÃO E ACIONEI o elevador social. Pelo painel dos andares, percebi que ele estava no sétimo e em descenso. Esperei até que a porta se abrisse no hall principal e ingressei. Meu destino final, o vigésimo. Antes que a porta se fechasse totalmente, uma jovem dos cabelos compridos e um sorriso elegante num rosto encantador chegou correndo.

Segurei o mecanismo no botão de impedir o fechamento, para que ela conseguisse embarcar. Me agradeceu e apertou o décimo sétimo. Porta fechada, nos colocamos à caminho. Algo inusitado ocorreu neste momento. Apesar de termos comprimido de forma correta os botões de nossos andares correspondentes, por algum motivo inexplicável a geringonça passou direito indo finalizar seu itinerário no trigésimo, sem escala.

No topo da torre, resolvemos não abandonar a cabine. Reprogramamos novamente os nossos pisos, e a porta, ato contínuo, se fechou. De novo, na revinda, idêntico fato se repetiu. A cabine desceu direta, como um avião em queda livre, sem se deter no meu andar e no dela, pontofinalizando a nossa viagem, no térreo.

Apesar deste inusitado, não apeamos no saguão. Resolvemos tentar a sorte, clicando de novo o dezessete e o vinte. A porta se fechou e, desta vez, um novo incidente entrou em cena. Em todos os pavimentos, do térreo ao dezesseis, o elevador fez a gentileza de se abrir igual mala velha, sem que ninguém tivesse solicitado.

Fechada a porta no dezesseis, obviamente ele se catrafilaria* no próximo. Qual o quê! Ledo engano. Do dezesseis, ele seguiu direto para o trigésimo. Lá nas alturas, eu e a garota, os rostos além de cansados e descontentes, achamos por bem trocar de cabine. Passamos para o de serviço. Incrivelmente, a mesma história se sucedeu.

O elevador desembestou direto, sem obedecer aos entraves por nós pleiteados. Desta forma, fomos, de novo, rebaixados ao nível inferior e a darmos de nariz com o vestíbulo. Procuramos pelo funcionário, um tal de Gregório, que nos informou estarem ambos os aparelhos funcionando normalmente. Confiantes em sua palavra, reingressamos no social.

Desta feita, entretanto, com o porteiro fazendo a gentileza de apertar os andares nos quais pretendíamos desfrutar do aconchego de nossos lares.  ‘Se não parar no dezessete, nem no vinte, me chamem pelo telefone. De qualquer forma, nem será preciso. Estarei  monitorando vocês pela câmera interna’. Lá fomos nós de novo, prédio acima.

Se estivesse sozinho, qualquer um que ouvisse o meu relato, diria que eu estaria mentindo. Não estava. O bendito dispositivo que trafega sem fazer curvas (seja subindo ou descendo), só poderia estar de gozação com a minha cara e com a da minha companheira de infortúnio. O desgraçado subiu direto, literalmente. Passou pelo dezessete, em seguida pelo vinte, sem obedecer ao nosso comando de nos deixar onde desejávamos.

De novo no trigésimo, à solicitação do porteiro, pelo telefone, convocando que mudássemos para o de serviço. Obedecemos. Dentro dele, regredimos mais uma vez aos pés do átrio, sem lograrmos encerrar o cansaço do dia estafante, onde tínhamos nossos apartamentos. Gregório, desta feita, resolveu nos acompanhar.

Ele mesmo fez questão de calcar o dedo indicador no dezessete, da moradora, seguido do meu vigésimo. Apesar disto, nada mudou nesse ping-pong estranho. O bicho se invocou e subiu com força e direto. Atendendo agora, ao convite do porteiro, não desembarcamos e ele, gentilmente beirou o vigésimo e o décimo sétimo. Conclusão: aportamos como três babacas na portaria, pela terceira vez.

Sentenciamos, eu e a chateada e furiosa  inquilina  romper as nossas necessidades pelas escadas de emergência. Com este pensamento à baila, demos inicio na peregrinação penosa, que demoraria um tempo considerável: ‘A gente vai conversando — disse ela quando passávamos pelo terceiro — e o tempo se esvairá mais rápido’. Concordei, e sem mais delongas, iniciamos a   enervante caminhada. Neste interregno, fiquei sabendo que a linda se chamava Rosana e morava  no 1701 há seis meses.

De degrau em degrau, à medida em que ganhávamos suor e altura, trocávamos impressões, as mais variadas. Falamos de músicas, de filmes, de novelas, de comidas, de nossas vidas e até de política. Gravamos nossos telefones em nossos celulares para contatos futuros, via WhatsApp.

Rosana se formara advogada. Era divorciada e mãe de uma filhinha de seis anos que ficava com a empregada. Prestava serviços jurídicos à uma empresa famosa no mercado de produtos importados. Tinha trinta anos e adorava Fernando Pessoa. Quando me dispunha a falar de mim, quase a galgarmos o nono, um novo imprevisto pintou na nossa suada e prostrante jornada: as escadas estavam bloqueadas.  

____________________
* Catrafilaria - ficaria prisioneiro.
 
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora MC Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Carolina Ramos (A Toalha de Natal)


Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses, por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal e retirá-la, uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário interromper o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto. Na maioria das vezes, bastava uma sacudidela e a fidalguia do linho estava pronta para receber as baixelas e louças especiais, os copos de cristal e os talheres reservados à época — tudo à espera do momento especial de exibir os exageros culinários, doces e iguarias a serem consumidas pela ruidosa família, reunida graças à ternura da data.

Naquela noite, porém, ao desdobrar a toalha, Yolanda não gostou da surpresa. A alvura do linho, magistralmente trabalhado com motivos natalinos, não se apresentava impecável como das outras vezes.

Na verdade, a cada ano, uma nova nodoazinha insignificante vinha somar-se às demais, que resistiam aos esforços das esfregadelas e à moderada ação dos alvejantes, sempre  empregados com muitíssima cautela. Não era difícil disfarçar essas pequeninas imperfeições, inevitáveis, adquiridas no decorrer do tempo. Bastava a oportuna providência de cobri-las, manhosamente, com um prato qualquer ou usar da cumplicidade elegante e insuspeita dos dois majestosos candelabros de prata que, além de iluminar e encantar os olhos, assumiam a nova função de disfarçar senões.

Desta vez, entretanto, era diferente. Como mascarar aquela feia mancha de vinho, fruto da taça partida por ocasião das núpcias da filha, no ano anterior?! Apesar de toda a persistência, a nódoa rosada insistia em derrotar esforços do afã de removê-la. E dizer-se que aquelas bodas — até pareciam mau agouro! — não haviam durado sequer um ano! Em dez meses, tudo consumado; casamento, viagem de núpcias pela Europa, desentendimentos, brigas, separação e divórcio! Dez meses apenas! Gente jovem não atura o que se aturava antigamente! Intolerância maior do que o amor? Ou amor menor do que o mútuo egoísmo? Sabe-se lá! A questão é que a mancha rosada ali estava a estigmatizar a alvura filial da toalha, jogando sombras sobre os brilhos natalinos.

Sem melhor solução, Yolanda mudou de lugar a bandeja de prata, que foi camuflar, satisfatoriamente a nódoa de triste memória.

Um suspiro doído veio-lhe do fundo da alma, traduzido num protesto; — Ah! filha... filha... por que tivera de escolher justamente a véspera do Natal para casar-se?! Um dia tão sublime, agora maculado pelo rompimento!

Desgostosa, empurrou para longe os maus pensamentos. Águas passadas não devem perturbar o fluxo do presente. Más lembranças devem ser enterradas, se possível, definitivamente.

Quanto à toalha, uma boa lavanderia resolveria a questão.

Assim que os ecos do "reveillon" se diluíram, cedendo espaço à euforia das novas esperanças, a toalha festiva veio de volta da lavanderia, outra vez imaculada, alva como alma de criança, passada e levemente engomada, dentro do maior requinte.

Yolanda não resistiu à tentação de comprovar a eficiência da tecnologia humana. Desdobrou cuidadosamente o linho, deslumbrada com o que via. Nem uma ínfima nodoazinha! Nem uma só mácula! Ninguém diria que aquela brancura de lírio já recebera desastroso banho de vinho, em não menos desastrosa noite de festa!

Testemunha das alegrias de tantos natais, a preciosa toalha parecia mais alva do que nunca! Até mesmo os bordados de tons vibrantes, estavam atenuados, o que já era um desperdício.

E foi aí que começou a tragédia: — Como num filme de terror, o linho rompia-se, esgarçado pela pressão dos dedos. A ação, nada criteriosa dos alvejantes, evidenciava-se.

Yolanda não acreditava no que estava acontecendo. A queridíssima toalha de Natal desfazia-se em trapos em suas próprias mãos!

Após o instante de perplexidade, o desapontamento e a raiva transformaram a estima em profundo desapego.

Vilipendiada, a toalha, tão querida, foi atirada ao lixo, sem a menor consideração! Fim de um ciclo tradicional de alegrias, esperanças e anseios. Tudo indelevelmente enrustido na página branca da velha toalha, agora descartada como imprestável.

Naquela mesma noite de janeiro, sem sinos, sem quitutes, sem magias natalinas, duas pequeninas mãos, ao vasculharem as latas de lixo adormecidas às portas dos casarões, encontraram a velha toalha rasgada, jogada fora com tanto desamor.

Chovia fino. Embora o verão fosse dono da noite, os braços do garoto pediam calor e aconchego. Aconchego de braços maternos, que desconhecia. Aconchego de calor diferente do calor da febre que o fazia tiritar.

Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Daniel Maurício (Poética) 6

 

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) II


A MÚSICA NO TEMPO

Se a música no tempo é fascinante,
tem porquês, de uma língua natural,
a música, linguagem dominante,
onde quer que ela exista, é sempre igual.

Uma raça qualquer, por mais errante,
escutando uma nota musical,
ela sente o poder alucinante
dessa força sonora, universal.

Quem compôs essa sábia partitura,
teve a glória total dessa ventura,
e escreveu para sempre em seus anais;

Todo o encanto, das auras do infinito,
numa escala, de um jeito tão bonito,
tendo só, sete notas musicais!

(3. lugar na Espanha em 2017)
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BRISAS DE OUTONO


Quando as brisas do outono sopram mansas,
trazem sonhos de amor ao ser humano,
refazendo as perdidas esperanças
e afastando o temor do desengano.

Sou um amante das brisas, das mudanças,
da estação que me faz mudar de plano,
brisas soltas de outono são andanças
que me causam prazer, ano após ano.

Quando, à noite, não vejo os pirilampos,
a tristeza da treva invade os campos
e um cenário de dor, me faz tristonho…

Os murmúrios das folhas pelo chão,
são as vozes do outono, que se vão,
recitando os poemas do meu sonho!

(1. lugar na Argentina em 2017)
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CANTARES


Hoje a tarde morreu sem nostalgia,
na moldura do céu, que linda tela:
Era a noite bebendo a luz do dia
e as estrelas pintando outra aquarela.

A pestana do sol, já não se via,
mas a lua no céu era tão bela...
Que a cortina da noite se escondia,
para a lua brilhar na passarela.

Neste terno cenário, sobre um monte,
vislumbrava Delcy, lá no horizonte,
dando exemplo de tudo que se ufana...

Era a mestra dos Pampas, gargalhando,
sobre as nuvens, sentada, recitando
um dos lindos sonetos de Quintana!

(Homenagem aos 80 anos da poetisa Delcy Canalles – 2011)
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CREPÚSCULO E AURORA

Quando a luz do arrebol rasga a cortina,
e o clarão da manhã, o céu decora,
todo o orvalho respinga da campina
matizando de prata a luz da aurora!

A tristeza do sol se descortina,
ante a tarde que chega, e se apavora;
o crepúsculo triste na retina,
diz que um velho gigante também chora!

Ao nascer chega ungido de esplendor,
traz na luz, esperança, paz e amor,
mas à tarde começa a entristecer;

desse jeito caminha o sol do esteta;
De manhã, é feliz por ser poeta,
e à tardinha, é a luz do entardecer!

(1° lugar em Portugal em 2016)
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GEOMETRIA DO LABOR

Se esta vida é, de fato, uma disputa
de uma guerra sem trégua e, sem medida,
é o trabalho, uma regra de conduta,
que nos leva ao prazer, por toda a vida.

Cada passo é uma marca dessa luta,
pela trilha da estrada percorrida...
Muitos vivem felizes, sem labuta,
e outros morrem na luta mais sofrida.

Há uma regra esquisita e muito estranha,
pois quem muito trabalha, pouco ganha,
mas com o pouco que ganha, também ama,

e eu conheço ricaço e mais ricaço,
que acumula fortuna a cada passo-
e por tudo que tem, ainda reclama!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Parque (quase não) do Ingá

 

A primeira vez em que lá entrei foi em 1967, em companhia do prefeito Luiz de Carvalho. O local era ainda conhecido como “Bosque 1” – um pedacinho da antiga floresta em meio à qual a população pioneira construiu a garbosa urbe onde hoje a gente orgulhosamente mora.

Havia apenas uma trilha rústica, pela qual caminhamos até o miolo da matinha. Durante o percurso, Doutor Luiz foi chamando a atenção para alguns detalhes: o cheiro das plantas, o canto dos bem-te-vis e sabiás, uns macaquinhos saltando de galho em galho. Que pena aquele tesouro todo estar ali desaproveitado. Pior: um lugar tão bonito sujeito a incêndios e depredações, servindo até como esconderijo de malfeitores. Ele gostaria muito de transformar a área num ponto de encontro e recreio. Porém não teve tempo nem recursos. Deixaria o sonho em pauta para ser realizado pelo sucessor.

Por sorte o sucessor foi outro homem de forte sensibilidade e visão de futuro, o Doutor Adriano José Valente, que logo no início do mandato (1969) convidou o Doutor Aníbal Bianchini da Rocha para trocar ideias sobre a urbanização do bosque. Chamou depois os engenheiros e arquitetos da prefeitura e de imediato autorizou a elaboração do projeto.

Aproveitando o valãozinho que passava dentro da reserva, formou-se um lago. Ao lado construiu-se uma gruta, novas trilhas foram abertas, organizou-se um pequeno zoológico e se instalaram os equipamentos necessários. No dia 10 de outubro de 1971, pronto e lindo, o parque foi inaugurado e entregue à comunidade. Um festão. Vieram famílias inteiras de todos os bairros e até das cidades vizinhas. A criançada fez o maior alvoroço. Namorados disputando a vez para passear nos pedalinhos. Era o que faltava em Maringá – um clube do povo. Beleza.

Antes disso, todavia, enquanto se realizavam as obras, um problema provocara longa discussão: a escolha do nome. Estava quase certo que seria Parque Doutor Etelvino de Oliveira, tributo à memória de um médico ilustre e muito querido, que de fato merecia a honra. Mas para o parque se achou que seria mais adequado um nome lírico, telúrico.

Daí que num certo dia esteve na redação da “Folha do Norte” o então vereador e futuro deputado Antônio Facci. Estávamos na sala um grupo de jornalistas. Provoquei o Facci: “Vamos começar uma campanha para dar ao bosque o nome de Parque do Ingá. Você topa se aliar à gente e apresentar o projeto à Câmara?”.

Argumentamos que parques e jardins ganham muito mais charme quando têm poesia no nome – Quinta da Boa Vista, Parque do Ibirapuera... Além disso, seria uma justa e carinhosa homenagem à cabocla Maria do Ingá, inspiradora da canção que batizou a cidade.

Facci, que mais do que político era um poeta, assumiu na hora a causa. Fez um belíssimo discurso na Câmara e aprovou o projeto por unanimidade. Doutor Adriano sancionou feliz da vida. E em ata assim se inscreveu: o nome é Parque do Ingá.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Rubem Braga (Viúva na Praia)


Ivo viu a uva, eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.

0 enterro passara sob a minha janela. O morto eu o conhecera vagamente. No café da esquina, a gente se cumprimentava às vezes, murmurando “bom dia”. Era um homem forte, de cara vermelha. As poucas vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei as horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu, agradeci. Este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um “Citroen”, com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe. Sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista. Eu não a olhava de frente.

A morte do homem foi comentada no café. Eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa, tem pouca gente. Além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto, já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente. Não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.

Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção. É discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos, talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros, os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco, a linha do queixo muito nítida.

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n’água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído.

Mas eu não morri, e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva, essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele.

Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas. É bela assim, marchando com a sua carga querida.

Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar. Vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento…

Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960.

Arquivo Spina 22 (Tânia Maria Alves)

 


Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) IV


AFLIÇÃO

Deparo-me com a página em branco
à minha frente,
pedindo para ser utilizada
e receber a escrita.
Entretanto, as palavras
presas a minha mente
perdem-se num emaranhado
de caminhos confusos
e não conseguem
adquirir vida.
****************************************

DESMEMÓRIAS


Tudo passa na vida.
Caminhos sem volta
deixaram marcas na face
e espadas invisíveis
atravessadas no peito.
As mãos — com lentidão,
tentam escrever as lembranças
que se confundem,
interrompidas
por parênteses de tempo.
Perdido o fio da meada
cruzo os braços
e esqueço as palavras.
****************************************

FLUIDEZ


Eu sou a água
que corre em tua direção
disposta a saciar
a tua sede.
Acompanho a tua forma
amoldando-me a ti.
Suavemente fluida
sigo teus contornos
abraçando as margens,
refletindo imagens
no murmúrio tranquilo
de carícias inauditas.
Sem deixar marcas
para onde for,
serei sempre
imprescindível à tua vida.
****************************************

INÍCIO E FIM

Venho do barro,
a matéria prima da criação.
A ele retornarei,
filha da terra
que me vai cobrir.
Prova da insignificância
e do nada que somos,
apesar de tentativas vãs
para mostrar importância.
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POESIA


Encontro-me sem trilhas,
perdida em descaminhos
que me levam
a lugar nenhum.
Sigo por veredas perdidas
em meio a florestas ignotas
sem admitir interferências
na intimidade das minhas escolhas.
De repente, por entre galhos,
troncos partidos e folhas,
brilha a luz que transfigura a dor
e inunda o coração
de Poesia.
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SOLUÇÃO


Procuro esconder
o que não quero ver
no fundo dos meus pensamentos
perdidos em turbilhão.
Das tempestades
devastadoras
que anuviaram uma vida,
restam apenas esboços indistintos
permeados de sombras.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Malba Tahan (A Fantasia do Xeique)


A mulher louca é alvoroçada, é leviana, e não avalia o mal que pratica.
Davi, 9,13.

Há muito passava da meia-noite. A originalíssima noitada carnavalesca promovida pelo rico e nobre James Dudeney transcorria com um brilho incomparável. Nos quatro salões do palácio, luxuosamente ornamentados, reinava uma atmosfera de estonteante alegria e rara beleza. As orquestras vibravam sem cessar as saltitantes músicas americanas. De quando em vez eu sentia sob os pés, ao caminhar, um verdadeiro tapete de confetes e serpentinas. As fantasias mais custosas e mais exóticas desfilavam diante de meus olhos deslumbrados. Príncipes, rajás magníficos, duquesas com adereços de brilhantes e damas medievais (com seus chapéus vermelhos guarnecidos a ouro) faziam curioso contraste com piratas, espanholas, ciganas (com remendos em requinte de pura seda), camponesas turcas, gladiadores romanos e chineses. Havia ali figuras que evocavam todas as épocas da história e lembravam todos os climas do mundo.

Uma jovem, em esplêndida fantasia de Cleópatra, acercou-se de mim. Trazia os cabelos negros presos por fita prateada; as mangas de seu vestido eram listradas. Sob a gola, também listrada, de sua blusa, rebrilhavam fios de pérolas. Pompeava brincos de fantasia e pulseiras largas de ouro e esmalte. Fazia-se acompanhar, num requinte de luxo, por uma “escrava” de rosto bronzeado que agitava um grande leque de plumas brancas.

— Não danças? — perguntou-me, entreabrindo os lábios num sorriso encantador.

E rematou em tom brejeiro:

— Há pouco tive a impressão de que fugias de mim!

— Receio o ciúme de César! — respondi, tentando um galanteio de sabor histórico.

— Ora, ora — replicou amável, com seu belo e claro sorriso. — Pelo que vejo, estás esquecido das glórias de teu povo. Os árabes, sempre audaciosos e invencíveis, conquistaram e dominaram o Egito.

— Sim — concordei sem hesitar. — Bem sei que os árabes conquistaram o Egito. Mas essa incrível proeza só foi possível num século em que a irresistível Cleópatra não se achava mais no trono. Diante da graça e da beleza os árabes não vencem. São vencidos!

Aquele inofensivo diálogo com a rainha do Nilo foi interrompido com a súbita chegada do pecunioso James Dudeney, dono da casa. Ostentava modelar fantasia de Hamlet. A presença do milionário fez com que a sedutora Cleópatra se afastasse, seguida de sua não menos sedutora “escrava”.

— Preciso de teu auxílio, meu amigo — disse-me Dudeney em voz baixa, com ar preocupado. — Tenho a impressão de que se acha em nosso baile de hoje um convidado indesejável. Estou na dúvida. Não sei como agir no caso.

— Aponta-me o folião sobre o qual recaíram as flechas de tuas suspeitas — retorqui.

— É o xeique da faixa azul!

Eu já havia, realmente, atentado na figura soberba e distinta daquele cavalheiro que se exibia, entre os convivas de Dudeney, sob o disfarce de impecáveis trajes orientais. Duas ou três vezes, inspirado pela voz do meu sangue, levara as lentes da minha atenção sobre o pseudo muçulmano.

— Ali está ele — acudiu Dudeney, já impaciente, meio nervoso. — Repara!

O suspeitoso xeque, cujo rosto a máscara preta velava, aproximara-se vagaroso e ficara imóvel ao lado de um grande espelho, os braços cruzados, numa atitude discreta e nobre. Um albornoz de seda clara repousava-lhe comodamente sobre os ombros fortes. Cobria-lhe a cabeça belo kafié (1) branco com listras azuis, preso na altura da testa por finíssimo agal trançado de ouro e prata. Apertava-lhe a cintura uma faixa azul de onde pendia riquíssima espada toda cravejada de marfim.

— Sinto-me indeciso — tornou Dudeney. — Não sei o que devo fazer. Aquele homem tem um ar misterioso. Pretende passar por um árabe autêntico, pois na lista dos convidados é indicado por um nome tipicamente islamita. Repara, meu caro Hank. O nosso hóspede não conversa, só fala o árabe; não bebe; não dança; caminha de um lado para o outro observando com cuidado especial as damas mais formosas. A presença de um aventureiro iria empanar o brilho desta festa. O xeique da faixa azul será um árabe de verdade?

— Ser ou não ser, meu caro Hamlet — respondi, parodiando Shakespeare —, ser ou não ser! Vou apurar a verdade e deslindar todo esse mistério.

Acerquei-me do xeique, saudei-o muito amável e disse-lhe em puro idioma árabe:

— Hal lazem lak chay? (Deseja alguma coisa?)

Respondeu-me em tom delicado com um sorriso fino, exprimindo-se com absoluta correção:

— Mannoum! Ma lazem li chay. (Obrigado! Nada desejo no momento.)

Convidei-o cordialmente a ir comigo até a biblioteca. Ficamos a sós, e o xeique, num gesto de apurada elegância, arrancou a máscara que lhe cobria o rosto. Notei que se tratava de um homem relativamente moço e simpático. E, sem preâmbulos, assim falou:

— Percebi que minha presença nesta reunião carnavalesca despertou suspeita em Mr. Dudeney. E com toda a razão. No meio da brilhante sociedade que aqui se recebe, sob este acolhedor palácio, sou eu o único, digo-o com certa vaidade, que não se acha fantasiado.

— Como assim?

— Nada mais claro. Estes trajes com que me apresento diante dos convivas de Mr. Dudeney são aqueles que eu costumo vestir, nos dias de gala, quando em minha tenda, para além de Dareyn, (2) recebo os xeiques amigos para festejar o aniversário do Profeta ou o término do Ramadã. A roupa que ostento não é, pois, uma fantasia como julgam. É uma realidade.

— O senhor é, então, um xeique de verdade?

— Até onde esse título pode honrar um homem. O meu nome é Hassan el-Bourini ibn-Taufiq. Sou natural de Cham, mas tenho propriedades até em Tell Abou Jezid, onde as tâmaras são menos abundantes do que as lendas.

Interroguei-o mais uma vez com intransitiva curiosidade:

— E veio a esta festa especialmente para admirar a alta sociedade de Londres?

— De forma alguma — discordou, em tom muito grave, o xeique. — A minha presença nesta encantadora reunião tem um fim todo especial, um objetivo bem estranho: descobrir o paradeiro de uma joia roubada. Cabe-me, neste baile, entre serpentinas e canções brejeiras, realizar uma tarefa de caráter rigorosamente policial.

A intempestiva declaração do xeique caiu sobre mim como uma bola de ferro sobre um copo de cristal. Sentia-me despedaçado. Observei muito sério:

— Sou amigo íntimo de Mr. James Dudeney. Peço-lhe, portanto, meu caro xeique Hassan el-Bourini ibn-Taufiq, que esclareça todos os pontos obscuros desse mistério. Asseguro-lhe, sob palavra, que se a justiça do caso estiver do seu lado, o senhor terá completo apoio neste palácio. A joia roubada será apreendida e o criminoso entregue à polícia.

Depois de acender lentamente o seu cigarro, o xeique, ao cabo de breve pausa, narrou-me o seguinte:

— Quando cheguei a esta capital, vindo de Damasco, fui apresentado a uma certa sra. Hopkins, esposa de opulento industrial de Manchester. Vendi a essa senhora, por solicitação de um joalheiro sírio, precioso colar de pérolas no valor de 1.500 libras. Recebi anteontem chamado urgente da sra. Hopkins. Fui procurá-la e encontrei-a enferma em consequência de um abalo cardíaco. Contou-me a boa senhora que o colar, por mim vendido duas semanas antes, havia sido roubado. Perguntei-lhe se havia levado o caso ao conhecimento das autoridades. “Nada fiz nesse sentido”, respondeu-me. “Meu marido, por motivos políticos, quer evitar o escândalo. O colar foi roubado a uma de minhas filhas.” E a sra. Hopkins inquiriu-me aflita: “O senhor seria capaz de reconhecer o colar roubado?” Declarei que poderia apontá-lo no meio de mil. Aquelas pérolas de um colorido especial, azul poente, eram inconfundíveis. Eu as tivera em minhas mãos durante mais de dez anos! “Pois bem”, tornou a sra. Hopkins. “Tenho certeza de que a pessoa autora do furto irá ao baile, no palácio de Mr. Dudeney, com o meu colar. Já fiz com que todas as pessoas de minhas relações fossem avisadas de que me encontro impossibilitada de sair. Obterei para o senhor um convite para essa reunião. É um grande favor que lhe peço. Compareça fantasiado a essa festa e investigue; observe tudo. O meu colar estará presente e será facilmente encontrado!”

O xeique fez ligeira pausa e logo retomou o fio da narrativa:

— Aqui vim, portanto, em atenção ao pedido da sra. Hopkins. Longa e cuidadosa foi a investigação a que procedi. A princípio temi fracassar. Revestido de muita força de ânimo, não me deixei envolver pela onda desta perdulária alegria. Aproximava-me das damas não para admirar a beleza dos olhos, a alvura dos braços bem torneados, mas sim para apurar a legitimidade dos colares e certificar-me do colorido das pérolas.

— E conseguiu descobrir o colar da sra. Hopkins? — indaguei num ímpeto.

— Sim — confirmou serenamente o xeique. — Já o encontrei. Enfeita o gracioso pescoço de uma das jovens mais bem fantasiadas…

— A bela Cleópatra?

— De forma alguma. Essa “egípcia” formosa apresenta-se com três colares, é verdade, mas todos três mais falsos do que os antigos deuses dos faraós. Certifiquei-me de que o colar da sra. Hopkins está com uma graciosa princesa hindu…

— A princesa do turbante cor-de-rosa?

— Precisamente. Deve ser esposa de riquíssimo marajá, pois carrega na testa uma estrela de rubis do Oriente.

A situação devia ser enfrentada com a maior serenidade. A dama (a princesa hindu, do turbante cor-de-rosa), acusada tão gravemente pelo xeique, era a própria esposa de meu amigo James Dudeney, o dono da festa.

Disse, pois, um tanto desconcertado, ao xeque Hassan ibn-Taufiq:

— Esse caso será esclarecido. Precisamos, porém, agir com a máxima delicadeza. Se a sua denúncia tiver o cunho da verdade, o colar será apreendido e, dentro de 24 horas, restituído à sua dona legítima. Peço-lhe mil desculpas.

Redarguiu o xeique:

— Diante de sua declaração, nada mais tenho a dizer. Dou por finda a minha espinhosa missão nessa casa tão alegre e acolhedora. Vou partir imediatamente. Queira apresentar a Mrs. e Mr. Dudeney as minhas homenagens e os meus agradecimentos. Uassalã! (3)

Conduzi o ilustre xeique até a porta do palácio e observei ainda quando ele tomou o carro que o devia levar até o hotel. Ao voltar, esbarrei, na escada, com o animadíssimo Dudeney.

— E então? — interrogou-me, tomando-me pelo braço. — Que pretendia o xeque?

— Nada — respondi, improvisando uma mentira qualquer. — Um sonhador! Queria descobrir aqui, no meio dos nossos convidados, uma odalisca que ele conhecera, casualmente, no palácio do sultão em Istambul!

Dudeney argumentou, agitando os punhos:

— Logo vi! Uma fantasia do xeique!

No dia seguinte, o colar foi entregue à sra. Hopkins e a verdade do caso até hoje ficou em segredo.

O nobre e generoso Dudeney, na sua boa fé, de nada desconfiou. Evitei que ele tivesse insanável desgosto ao saber do roubo do colar. Jamais poderia pairar sobre o meu bom amigo a menor sombra do ato delituoso.

Que culpa pode, realmente, cair sobre um homem digno e honrado que casa com uma jovem cleptomaníaca?

As palavras do sábio encerram a grande verdade: a mulher louca é alvoroçada, é leviana e não avalia o mal que pratica.
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NOTAS

1 kafié – peça de vestuário.
2 Dareyn – pequena povoação, na Síria.
3 Uassalã! – é uma forma de despedida usada pelos árabes.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.