sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (Para a Morte!)


Dizem que não há na mesma árvore duas folhas iguais e que as próprias flores, bem comparadas, divergem entre si, ou na forma, ou no colorido, ou no aroma.

É uma diferença quase imperceptível e só apreendida pela vista e o olfato argutos de um botânico estudioso e observador.

Quer isto dizer que no fundo da sua natureza misteriosa, a própria planta tem também os seus desacordos impenetráveis...

Como as folhas da mesma árvore, irmãs! somos todas dissemelhantes, e como as folhas somos levadas ou pela aragem doce que nos atira para a veludosa alfombra aos pés da própria árvore; ou pela lufada do temporal, que nos impele para a terra em torvelinho ou para as águas torrenciais!

Que culpa temos nós de ficarmos aqui ou irmos para além, se somos levadas pelo vento?

Nos tempos antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída; mas seria tudo isso por ter mais bom senso, mais felicidade e menos ambição? Não me parece. O motivo devia ser outro; o motivo devia de estar na atmosfera que a envolvia e em que não existia nenhum elemento agitador. Não somos nós que mudamos os dias, são os dias que nos mudam a nós.

Tudo se transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio, destinado para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma e outra ação, vivemos a vida que o nosso tempo nos impõe.

O que ele impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento dos preconceitos, a meta, sempre dolorosa pela existência, o assalto às culminâncias em que os homens dominam e de onde a repelem.

Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá, por que não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar.

A vida é cada vez mais exigente, absorve todas as aptidões; quem a pode servir, serve-a, e com isso só se enobrece, porque o trabalho nunca aviltou ninguém. Desde as classes inferiores, em que as mulheres queimam as mãos nas barrelas e carregam fardos, ou passam noites dobradas sobre as costuras. estragando os olhos e os pulmões, até às professoras, as médicas, as negociantes, qual não terá a consciência de sacrificar ao dever a sua alegria, o seu corpo, a sua mocidade?

Eu só não posso reprimir um movimento de estupefação diante da mulher que liga o seu nome a uma propaganda de extermínio e de sangue. Quando há tempos li o de Emma Galdman, acusada de instigar a morte de Mac Kinley senti uma revolta n'alma e a suspeita de que cometiam uma injustiça. Se em vez desse, viesse no mesmo lugar um nome de homem eu não vibraria ao mesmo estremecimento.

Não leio todos os dias notícias de mortes, de assassinatos e de crimes com igual direito à minha compaixão? E tremo por isso? E atordôo com ela os ouvidos do meu vizinho?

Absolutamente!

A intenção de Emma, de bem fazer às classes oprimidas e de só abater os grandes para mais livremente fazer circular os pequenos; a sua fé divina em um futuro de pacificação e de harmonia, em que a fraternidade dos homens não seja uma palavra vã, toda a generosidade do sonho em que ela afoga a sua alma de alucinada, não lograram, ai de mim! convencer-me de que há desculpa para uma mulher que só por via do mal procure fazer o bem.

Nem creio que ela o propagasse assim. O papel mais difícil é e será sempre

o da conciliação, e é esse que todas as mulheres, mesmo as mais extremadas nos seus ideais, deveriam desempenhar. O mundo está farto de sangue e de ódios, e à espera de um bem, que tarda, e que o pacifique sem que para isso se amontoem cadáveres nem se acrescente o número dos encarcerados. Oh! Se para o triunfo do sonho anarquista, os fanáticos não quisessem a destruição; se a sua obra libertadora não exigisse o dilúvio do sangue e a devastação das cidades, como ele seria sedutor e desejado!

Como todas as revolucionárias, Emma esgotava-se em escritos e em conferências, levando de terra em terra a chama da sua palavra incendiada; pregando as suas doutrinas pelas cidades e vilas da União, perturbando os cérebros espessos de operários, sujeitos, até ao dia nefasto de a ouvirem, com maior ou menor resignação, às privações da sua dura sorte. Entretanto, ela, querendo iluminá-los, plantava-lhes n'alma o descontentamento e a dor. A infelicidade que se ignora, não é infelicidade.

No dia em que foi executado o assassino de Mac Kinley alguma mulher o chorou como mulher; e Emma sem consolar essa desconhecida, mãe, amante ou irmã do homem que perdeu, sentiu naturalmente subir às suas pupilas ressequidas pela febre das vigílias e do trabalho, uma lágrima de inexprimível inquietação.

A sua alma de mulher pressentiu a outra mulher, aquela que não sabe ser no mundo outra coisa, e que da vida só tem uma noção — a do amor!

A escritora anarquista compreendeu que é bem espinhoso e duro o caminho por onde ela busca a felicidade; mas acharia tarde para voltar, sentindo medo do caminho percorrido. Assim, haja o que houver e sinta o que sentir, ela continuará...

Continuará, lavada em lágrimas, ao sopro erradio do seu destino, com a folha ao vento espalhando o seu aroma venenoso pelos caminhos das fábricas e os carreadouros dos campos de lavoura. Ela continuará pregando e profetizando um bem irrealizável.

Ela continuará, e outros correrão a ouvi-la, e morrerão por cumprirem os seus mandamentos, e serão chorados por mulheres que ainda não saibam ser outra coisa no mundo... E na face serena da terra a inundação do sangue e das lágrimas não mudará nunca a essência das coisas nem a dos seres!

Sim, a culpa é do tempo; é ele que obriga as mulheres a olharem para a vida com uma atenção tão rude e tão penosa. Sentem-se muito sós, precisam trabalhar, para elas e para as que nascem delas, porque a onda da miséria cresce, e mesmo as que não se afogam nela, sentem-lhe os respingos amargos e a sua sombra pavorosa.

Oh, certamente que não foi por mera e caprichosa fantasia que a mulher se despojou das suas atribuições de ornamento para endurecer a alma e calejar as mãos na lufa-lufa do trabalho angustioso e viril.

Elas protestam, porque vão para ele de rastos, obrigadas pela necessidade urgente ou atraídas pela corrente que puxa as demais para a mesma voragem dolorosa.

De resto, bem sabem que nessa lida perdem a formosura a que renunciam, não sem tristeza, porque o enleio da formosura é sedutor, mas com altiva resignação. Pois bem, que tudo se arruíne e se perca no mundo, menos a bondade da mulher, o seu acoroçoamento para o bem e as suas expressões materiais e pacificadoras!

De que nos serve, febril Emma Galdman, aturdir-nos e criar-nos infinitas visões de futuros impossíveis, se no fim de qualquer caminho por onde o destino vário nos leve, vamos todos bater à mesma porta negra?

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 10, final


LIVRO NEGRO

HORAS TRISTES
I

Eu sinto que esta vida já me foge
Qual d’harpa o som final,
E não tenho, como o naúfrago das ondas,
Nas trevas um fanal!
Eu sofro e esta dor que me atormenta
É um suplício atroz!

E p’ra contá-la falta à lira cordas
E aos lábios meus a voz!
Às vezes, no silêncio da minh’alma,
Da noite na mudez,
Eu crio na cabeça mil fantasmas
Que aniquilo outra vez!
Dói-me inda a boca que queimei sedento
Nas esponjas de fel,
E agora sinto no bulhar da mente
A torre de Babel!
Sou triste como o pai que as belas filhas
Viu lânguidas morrer,
E já não pousam no meu rosto pálido
Os risos de prazer!
E contudo, meu Deus! eu sou bem moço,
Deverá só me rir,
E ter fé e ter crença nos amores,
Nas glórias e no porvir!
Eu devera folgar nesta natura
De flores e de luz,
E, mancebo, voltar-me pr’o futuro,
Estrela que seduz!
Agora em vez dos hinos d’esperança,
Dos cantos junvenis,
Tenho a sátira pungente, o riso amargo,
O canto maldiz!
Os outros, - os felizes deste mundo,
Deleitam-se em saraus;
Eu solitário sofro e odeio os homens,
P’ra mim todos são maus!
Eu olho e vejo... - a veiga é de esmeralda,
O céu é todo azul.
Tudo canta e sorri... só na minh’alma
O lodo dum paul!
Mas se ela - a linda filha do meu sonho,
A pálida mulher
Das minhas fantasias, dos seus lábios
Um riso, um só me der;
Se a doce virgem pensativa e bela,
- A pudica vestal
Que eu criei numa noite de delírio
Ao som da saturnal;
Se ela vier enternecida e meiga
Sentar-se junto a mim;
Se eu ouvir sua voz mais doce e terna

Que um doce bandolim;
Se o seu lábio afagar a minha fronte
- Tão férvido vulcão!
E murmurar baixinho ao meu ouvido
As falas da paixão;
Se cair desmaiada nos meus braços
Morrendo de languidez,
De certo remoçado, alegre e louco
Sentira-me talvez!...
Talvez que eu encontrasse as alegrias
Dos tempos que lá vão,
E afogasse na luz da nova aurora
A dor do coração!
Talvez que nos meus lábios desmaiados
Brilhasse o seu sorrir,
E de novo, meu Deus, tivesse crença
Na glória e no porvir!
Talvez minh’alma ressurgisse bela
Aos raios desse sol.
E nas cordas da lira seus gorjeios
Trinasse um rouxinol!
Talvez então que eu me pegasse à vida
Com ânsia e com ardor,
E pudesse aspirando os seus perfumes
Viver do seu amor!
P’ra ela então seria a minha vida,
A glória, os sonhos meus;
E dissera chorando arrependido:
- Bendito seja Deus! -
Abril - 1858

DORES
II

Há dores fundas, agonias lentas,
Dramas pungentes que ninguém consola,
Ou suspeita sequer!
Mágoas maiores do que a dor dum dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!
Doces falas de amor que o vento espalha,
Juras sentidas de constância eterna
Quebradas ao nascer;
Perfídia e olvido de passados beijos...
São dores essas que o tempo cicatriza
Dos anos no volver.

Se a donzela infiel nos rasga as folhas
Do livro d’alma, magoado e triste
Suspira o coração;
Mas depois outros olhos nos cativam
E loucos vamos em delírios novos
Arder noutra paixão.
Amor é o rio claro das delícias
Que atravessa o deserto, a veiga, o prado,
E o mundo todo o tem!
Que importa ao viajor que a sede abrasa,
Que quer banhar-se nessas águas claras,
Ser aqui ou além?
A veia corre, a fonte não se estanca,
E as verdes margens não se crestam nunca
Na calma dos verões;
Ou quer na primavera, ou quer no inverno,
No doce anseio do bulir das ondas
Palpitam corações.
Não! a dor sem cura, a dor que mata,
É, moço ainda, e perceber na mente
A dúvida a sorrir!
É a perda dura dum futuro inteiro
E o desfolhar sentido das gentis coroas,
Dos sonhos do porvir!
É ver que nos arrancam uma a uma
Das asas do talento as penas de ouro,
Que voam para Deus!
É ver que nos apagam d’alma as crenças
E que profanam o que santo temos
Co’o riso dos ateus!
É assistir ao desabar tremendo,
Num mesmo dia, d’ilusões douradas,
Tão cândidas de fé!
É ver sem dó a vocação torcida
Por quem devera dar-lhe alento e vida
E respeitá-la até!
É viver, flor nascida nas montanhas,
Para aclimar-se, apertada numa estufa
À falta de ar e luz!
É viver tendo n’alma o desalento,
Sem um queixume, a disfarçar as dores
Carregando a cruz!
Oh! ninguém sabe como a dor é funda,
Quanto pranto s’engole a quanta angústia
A alma nos desfaz!
Horas há em que a voz quase blasfema...
E o suicídio nos acena ao longe
Nas longas saturnais!

Definha-se a existência a pouco e pouco,
E o lábio descorado o riso franco
Qual dantes, já não vem;
Um véu nos cobre de mortal tristeza,
E a alma em luto, despida dos encantos,
Amor nem sonhos tem!
Murcha-se o viço do verdor dos anos,
Dorme-se moço e despertamos velho,
Sem fogo para amar!
E a fronte jovem que o pesar sombreia
Vai, reclinada sobre um colo impuro,
Dormir no lupanar!
Ergue-se a taça do festim da orgia,
Gasta-se a vida em noites de luxúria
Nos leitos dos bordéis,
E o veneno se sorve a longos tragos
Nos seios brancos e nos lábios frios
Das lânguidas Frinés!
Esquecimento! - mortalha para dores -
Aqui na terra é a embriaguez do gozo,
A febre do prazer:
A dor se afoga no fervor dos vinhos,
E no regaço das Marcôs modernas
É doce então morrer!
Depois o mundo diz: - Que libertino!
A folgar no delírio dos alcouces
As asas empanou! -
Como de ele, algoz das esperanças,
As crenças infantis e a vida d’alma
Não fosse quem matou!...
Oh! há dores tão fundas como o abismo,
Dramas pungentes que ninguém consola
Ou suspeita sequer!
Dores na sombra, sem carícias d’anjo,
Sem voz de amigo, sem palavras doces,
Sem beijos de mulher!...
Rio - 1858
***

III

Pobre criança que te afliges tanto
Porque sou triste e se chorar me vês,
E que borrifas com teu doce pranto
Meus pobres hinos sem calor, talvez;
Deus te abençoe, querubim formoso,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu pranto é gota de celeste gozo
Na úlcera funda que ninguém curou.

Pálido e mudo e do caminho em meio
Sentei-me a sombra sofredor e só!
Do choro a baga umedeceu-me o seio,
Da estrada a gente me cobriu de pó!
Meus tristes cantos comecei chorando,
Santas endechas, doloridos ais...
E a turba andava! Só de vez em quando
Lânguido rosto se volvia atrás!
E a louca turba passou sorrindo
Julgava um hino o que eu chamava um ai!
Alguém murmurava: - Como o canto é lindo! -
Sorri-se um pouco e caminhando vai!
Bendito sejas, querubim de amores,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu pranto é gota que mitiga as dores
Da úlcera funda que ninguém curou!
Há na minh’alma alguma cousa vago,
Desejos, ânsias, que explicar não sei:
Talvez - desejos - dalgum lindo lago,
- Ânsias - dum mundo com que já sonhei...
E eu sofro, oh anjo; na cruel vigília
O pensamento inda edobra a dor,
E passa linda do meu sonho a filha,
Soltas as tranças a morrer de amor!
E louco sigo por desertos mares,
Por doces veigas, por um céu de azul;
Pouso com ela nos gentis palmares
À beira d’água, nos vergéis do sul!...
E a vrigem foge... e a visão se perde
Por outros climas, noutro céu de azul;
E eu - desperto do meu sonho verde -
Acordo e choro carregando a cruz!
Pobre poeta! na manhã da vida
Nem flores tenho, nem prazer também!
- Rosto mendigo que não tem guarida -
Tímido espreito quando a noite vem!
Bendita sejas, querubim de amores,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu doce pranto me acalenta as dores
Da úlcera funda que ninguém curou!
A minha vida era areal despido
De relva e flor e na estação louçã!
Tu foste o lírio que nasceu, querido,
Entre a neblina de gentil manhã.

Em ondas mortas meu batel dormia,
Chorava o pano à viração sutil,
Mas veio o vento no correr do dia
E, leve, o bote resvalou no anil.
Eu era a flor do escalavrado galho
Que a tempestade no passar quebrou;
Tu foste a gota de bendito orvalho
E a flor pendida a reviver tornou.
Teu rosto puro restitui-me a calma.
Ergue-me as crenças, que já vejo em pé;
E teus olhares me derramam n’alma
Doces consolos e orações de fé.
Não serei triste;
se te ouvir a fala
Tremo e palpito como treme o mar,
E a nota doce que teu lábio exala
Virá sentida ao coração parar.
Suspenso e mudo no mais casto enlevo
Direi meus hinos c’os suspiros teus.
E a ti, meu anjo, a quem a vida devo
Hei de adorar-te como adoro a Deus!
... - 1858

FRAGMENTO

IV

O mundo é uma mentira, a glória - fumo,
A morte - um beijo, e esta vida um sonho
Pesado ou doce, que s’esvai na campa!
O homem nasce, cresce, alegre e crente
Entra no mundo c’o sorrir nos lábios,
Traz os perfumes que lhe dera o berço,
Veste-se belo d’ilusões douradas,
Canta, suspira, crê, sente esperanças,
E um dia o vendaval do desengano
Varre-lhe as flores do jardim da vida
E nu das vestes que lhe dera o berço
Treme de frio ao vento do infortúnio!
Depois - louco sublime - ele se engana,
Tanta enganar-se p’ra curar as mágoas,
Cria fantasmas na cabeça em fogo,
De novo atira o seu batel nas ondas,
Trabalha, luta e se afadiga embalde
Até que a morte lhe desmancha os sonhos
Pobre insensato - quer achar por força
Pérola fina em lodaçal imundo!
- Menino louco que se cansa e mata
Através da borboleta que travessa
Nas moitas do mangal voa e se perde!...
Dezembro - 1858

ANJO
M.


Eu era a flor desfolhada
Dos vendavais ao correr;
Tu foste a gota dourada
E o lírio pode viver.
Poeta, dormia pálido
No meu sepulcro, bem só;
Tu disseste: - Ergue-te, Lázaro! -
E o morto surgiu do pó!
Eu era sombrio e triste...
Contente, minh’alma é;
Eu duvidava... sorriste,
Já no amor tenho fé.
A fronte que ardia em brasas
A seus delírios pôs fim
Sentindo o roçar das asas,
O sopro dum querubim.
Um anjo veio e deu vida
Ao peito de amores nu:
Minh’alma agora remida
Adora o anjo - que és tu!
Julho - 1858

ÚLTIMA FOLHA

Meu Deus! Meu Pai! Se o filho da desgraça
Tem jus um dia ao galardão remoto,
Ouve estas preces e cumpre o voto
- A mim que bebo do absinto a taça!
- “Feliz serás se como eu sofreres,
“Dar-te-ei o céu em recompensa ao pranto”-
Vós o dissestes. - E eu padeço tanto!...
Que novos transes preparar me queres?
Tudo me roubam meus cruéis tiranos:
Amor, família, felicidade, tudo!...
Palmas de glória, meus lauréis do estudo,
Fogo do gênio, aspiração dos anos!...
Mas o teu filho já se não rebela

Por tal castigo, pelas mágoas duras;
- Minh’alma of’reço às provações futuras...
Venha o martírio... mas - perdão p’ra ela!...
A doce virgem se assemelha às flores...
O vento a quebra no seu verde ninho.
- Velai ao menos pelo pobre anjinho,
- Pagai-lhe em gozo o que me dais em dores!
Maio – 6

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XX– A Convenção Branca


CAPÍTULO XX
A Convenção Branca

Desta vez não tive paciência de esperar novo domingo. Havia um feriado no meio da semana e aproveitei-o para voar ao castelo antes do almoço. Delicioso almoço! Figurei-me durante ele já marido da gentil hospedeira e dono do castelo. Cheguei a olhar com olhos de proprietário através das vidraças, por onde se viam terras e mais terras ótimas para a cultura. Mas foi momentâneo o meu deslize. Do fundo d'alma eu só queria ser dono do coraçãozinho que palpitava no seio da castelã.

Tomamos café na varanda e em seguida miss Jane retomou o fio da história.

— A elevação do índice eugenico-mental do povo da América no ano do choque das raças já era notabilíssima; o modo como agiu a Convenção Branca o demonstrou mais uma vez. Falar em convenção é lembrar a Convenção Francesa, aquele tumulto utópico que fez retórica ás toneladas e decepou cabeças aos montões, como se a produção de frases e a redução de vidas pudesse aumentar o trigo dos celeiros, causa real de todos os males da França.

A Convenção Branca de 2228 nem por sombras lembraria o redemoinho alto-falante de 1789.

Já na composição desse corpo representativo nada se fez como outrora. Os convencionais não penetraram nele pela força dos azares eleitorais e sim por um processo novo de delegação. Todos os ramos da atividade americana tinham á sua testa, naturalmente levados a esse posto pelo grau de eficiencia mental demonstrado, homens que mereceriam o nome de chefes naturais, ou lideres natos. Como hoje é Henry Ford o lider nato da industria americana em virtude da higidez universalmente reconhecida das suas ideias e realizações, assim naquele tempo cada ramo de atividade possuia um lider natural, mantido nessa situação por consenso unânime. Funcionavam tais chefes naturais como órgãos especialíssimos, ápices, vértices, cimos, estações centrais, bulbos raquideanos da classe. Ninguém lhes discutia as ideias de decisões, súmulas sempre da mais alta sabedoria possível no momento — e o chefe cujas ideias passavam a ser discutidas via-se logo automaticamente apeado dessa posição.

De modo que foi facílimo convocar a Convenção Branca. Alem de já estarem naturalmente indicados, os convencionais se resumiam em seis criaturas, respectivamente lideres da industria, do comercio, das finanças, da arte, das ciências e das letras. Eram eles os senhores George Abbot, morador em Detroit e chefe da industria das bonecas falantes, o supremo encanto das crianças americanas; John Perkins, morador em Hudson, onde mantinha um pequeno comercio de peles de lontra branca; Harmsworth, diretor do Banco Universal; John Leland, criador da Puericultura Estética; John Dudley, pai da cor numero 8 e autor de 72 invenções; e finalmente Dorian Davis, poeta de um soneto único sobre o qual se achava a América dividida em dois imensos grupos — os que tinham como defeituoso o quarto verso e os que o tinham como uma forma de beleza só perceptível no futuro.

O Presidente Kerlog não encontrou dificuldades em reunir a Convenção. Radiou uma sucinta mensagem na qual pedia a cada uma das classes sociais a indicação do seu representante para o exame do impasse criado pela vitoria dos negros. Uma hora depois o aparelho receptor do Capitólio registrava os seis nomes previstos, só não havendo unanimidade quanto á indicação do representante das letras. Os que consideravam defeituoso o quarto verso do soneto de Davis preferiram votar em branco.

Dois dias mais tarde congregavam-se na Casa Branca os seis expoentes supremos da raça, sob a presidência do senhor Kerlog.

Solenidade de protocolo, nenhuma. Eram homens simples no trajar e nos modos, criaturas nada relembrativas dos figurões que se reúnem hoje em conferências internacionais, vestidos de soleníssimas sobrecasacas e com solenerrimos tubos de chaminé reluzentes nas cabeças, como se a plumagem dos perus influísse alguma coisa nas ideias dos perus.

Sentaram-se os seis expoentes e ouviram a breve exposição de motivos do chefe do estado. Declarou este que ocupava apenas um posto politico e se via numa emergência racial. Nada fizera, nem faria, antes que a suprema delegação da raça definisse com rigor o caso e lhe estabelecesse um rumo. Como governo, executaria em seguida o veredictum altíssimo. Pedia, pois, aos presentes que lhe dessem as "razões da raça".

Os convencionais ouviram-no com amável atenção e passaram a conversar de outros assuntos, como se estivessem num garden-party.

— "A minha ultima boneca", disse George Abbot, "alem de falar, cose, varre e lava roupa", na perfeição. Tenho uma netinha de seis anos que está positivamente encantada.. .

Ao lado dele Harmsworth confessava que ainda não lera o soneto maravilhoso.

— "Falta de tempo?" indagou Davis.

— "Não. Há em minha casa uma harmonia perfeita sobre o assunto e receio perturba-la adotando um ponto de vista discordante..."

Já Leland debatia com Dudley a possibilidade da cor numero 9 e propunha um lindo nome para essa possível filha futura do espectro solar.

Á encasacada e encartolada gente de hoje parecerá estranho que homens de tal envergadura e em momento tão angustioso, assim puerilmente se recreassem num congresso presidido pelo chefe da nação. É que os nossos medalhões, envenenados pela retórica e pelo atitudismo não alcançam certas formas da ultra beleza, nem compreendem certos segredos de ultra psicologia.

Justamente porque era gravíssima a decisão que iam tomar, e na realidade decisiva para os destinos do genero humano, procuravam manter a serenidade de espirito com repousantes trocas de ideias gentis, enquanto nas profundas dos respectivos cérebros a sentença suprema se elaborava.

Passados quinze minutos nesta recreação espiritual, John Leland ergueu-se e disse com grande calma, depois de grafar num papel meia dúzia de sinais:

— "Senhor Presidente, minha ideia está formada e eu a consigno nesta moção, que tenho a honra de submeter a votos. Vou le-la".

Fez-se no recinto um augusto silencio. Se ainda houvesse moscas no ano 2228 poder-se-ia ouvir alguma voar na sala. Todos sentiam que a Raça Branca ia falar a palavra ultima, a palavra de sentença do mais alto tribunal que ainda se reuniu no mundo.

Leu Leland a sua moção, sucinta e nitida como era de esperar. Sua voz soou como um dobre a finados. Apesar da firmeza de animo dos convencionais, sentia--se que estavam todos de alma tensa como corda de violino em ponto de romper-se. Fugira-lhes das faces o sangue; até o senhor Kerlog, sempre rosado, parecia um vulto de cera.

Quando o ultimo eco da moção Leland morreu naquele ambiente de tumba, todas as cabeças se inclinaram para o peito e todos os olhos se fecharam. A Raça Branca elaborava o seu voto decisivo...

Alguns minutos transcorreram assim. Ao cabo o Presidente Kerlog murmurou:

— "Está a votos a moção Leland".

O primeiro que se ergueu foi Dudley.

– "Voto com Leland", disse ele e sentou-se. Ergueu-se em seguida Harmsworth e disse:

– "Voto com Leland".

O terceiro foi Abbot, que murmurou sem levantar-se da cadeira:

— "Idem".

Os outros limitaram-se a dar igual voto com uma simples indicação de cabeça.

Estava lavrada a sentença de ponto final do negro na América? Sem verborréia, sem inútil dispêndio de retórica, sem citação dos gros bonnets da etnologia e da sociologia, a Suprema Convenção da Raça Branca traçara o diagnostico e dera o remédio exato.

O Presidente Kerlog pronunciou mais meia dúzia de palavras e... pronto! concluiu miss Jane.

Confesso que fiquei desapontando. Quando miss Jane abordou aquele assunto preparei-me para ouvir coisas tremendas. Uma Convenção! A Convenção da Raça Branca! Nunca no mundo se reunira congresso mais alto e proposto a fins mais terríveis. Esperei portanto qualquer coisa de tão eloquente como um jato de seis Mirabeaus, multiplicados por seis Dantons. Em vez disso, um homem que apresenta uma breve moção e mais cinco sujeitos ultra pacíficos que a aprovam friamente — alguns até com a cabeça, sem se erguerem das suas poltronas. Era demais!

– Só isso, miss Jane? exclamei com cara de espectador roubado.

– Só, respondeu ela, muito divertida com o meu logro. Que mais queria?

Mính'alma de latino espalhafatoso não se conformava com a falta de espalhafato.

– Eu queria uma tempestade com raios e trovões. Queria um Jeová tonitroando na sarça ardente. Ou, pelo menos, eloquencia, que diabo!

– Haverá maior eloquencia do que a da precisão absoluta?

Não me convenci. Não ia comigo tanta frieza. Meu sangue quente pedia barulho, berros, murros na mesa, desaforos... Resignei-me, porém, e minha curiosidade tomou pé.

– Mas, afinal de contas, que é que dizia a moção Leland? indaguei.

– Ignoro, respondeu miss Jane. Foi secreta. Só o Presidente, os seis convencionais e depois os tecnicos do estado tiveram conhecimento dos seus termos.

Miss Jane sorria. Ocultava-me qualquer coisa, com certeza para me surpreender no fim. Não insisti e, resignado, disse-lhe:

— Continue, miss Jane...

Miss Jane continuou.
---------------
continua… XXI– Uma Dor de Cabeça Histórica

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Ialmar Pio Schneider (Soneto para o Dia do Poeta - 20 de outubro )


O poeta é aquele que vê mais longe:
pode saber de tudo ou quase nada...
Tanto é um pecador quanto é um monge,
vive numa caverna ou segue a estrada

dos sonhos. Às vezes parece um conde
a procurar sua alma gêmea, a maga
que num castelo medieval se esconde,
cuja lembrança a solidão lhe afaga.

Também não deixa de sofrer por isso
e nunca se conforta no prazer
de sempre se afastar do rebuliço:

assim é que pretende compreender
o destino que leva no feitiço
questionável do ser ou do não ser !

Fonte:
Soneto enviado pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 370)


Uma Trova Nacional

Quem tem musa inspiradora
faz quantas trovas quiser,
exaltando a sedutora
que sonha em ter por mulher!
–AMILTON MACIEL MONTEIRO/SP–

Uma Trova Potiguar

Quando uma aurora inaugura
a luz que sol irradia,
planta um gesto de ternura
nas cores de um novo dia.
–HERBETE FELIPE SOUZA/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - ATRN-Natal/RN
Tema: VERTENTE - 14º Lugar

É tanta angústia, insistente,
pesar intenso e profundo,
que eu me sinto uma vertente
de toda a mágoa do mundo.
–JOÃO COSTA/RJ–

Uma Trova de Ademar

A realidade atrofia
minha mais doce esperança...
Não ver barriga vazia
num lar onde tem criança!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Ante um ditado me calo
(pois triste ironia encerra) :
a paz é um breve intervalo
em meio à fúria da guerra.
–ALFREDO VALADARES/MG–

Simplesmente Poesia

Mulheres
–CARLA CERES/SP–

Mulheres são sempre sós,
Meio sim, meio talvez,
Meio luas, meio mês,
Meio metade de nós.
Voláteis, nunca volúveis,
Mais distantes quando juntas,
Repelem nossas perguntas
Com respostas insolúveis.
Por viverem sempre assim,
Sendo metades, são duas:
O melhor das obras Tuas
E o mistério de onde eu vim.

ESTROFE DO DIA

Neste emadrugadecer
acordei cedo demais
com uma sensação de paz,
rara, neste meu viver.
Comecei a absorver
a gostosa sensação,
inda em plena escuridão
eu acordei no embalo
do cantar lindo de um galo
que é o relógio do sertão!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Medo de Não Ser Feliz
–HAROLDO LYRA/CE–

Se eu não tivesse um dia agido assim,
dos rubros relegado o vil segredo,
juro que agora não teria medo
de ter o medo de um final ruim.

Mas então criei meu pendular brinquedo,
sem me importar com o que viria, enfim.
Fiz tudo errado e o fruto assaz azedo
pude colher desse cruel festim.

Todo o meu crime, o meu maior pecado
foi ser ingênuo e ter acreditado,
sem nunca vislumbrar o triste fim.

Mas o meu rosto, sorridente outrora,
não lagrimava u’a gota a mais agora,
se eu não tivesse um dia agido assim.

Fonte:
Textos enviados pelo autor

Júlia Lopes de Almeida (Formalidades)


As formalidades mundanas transformam-se com a moda, pouco mais ou menos como os vestidos.

Uma pessoa rigorista não pode estar tranqüila.

A maneira de calçar a luva, tirar o chapéu, dobrar uma carta, fazer um convite, receber uma visita, comer a uma mesa, ir a um enterro ou a uma festa, andar, sorrir, etc., varia como as estações!

Nestes cuidados, aparentemente fúteis, existe um trabalho complicadíssimo, porque enfim, mudar de hábitos de ano em ano sempre é mais difícil do que mudar de gravata todos os dias.

Que dolorosas raivinhas sentirá uma criatura, mesmo bondosa e plácida, mas com apuros de exterioridade, ao verificar que pôs um selo num sobrescrito no lugar designado pela moda antiga ou que dobrou a ponta do bilhete de visita à moda antiga, ou que distraidamente apertou a mão de alguém na rua à moda antiga!

É para enlouquecer... Não digo que se não acatem com afã certas modificações; apraz-me comer os espargos à moderna, com garfo e faca, o que desobriga de sujar os dedos e fazer uma ginástica de cabeça por vezes embaraçosa; mas aceitar todas as reformas de etiquetas e costumes, parece-me excesso de fantasia, que pode acarretar prejuízos...

Estas minúcias delicadas são as meias tintas, que fazem realçar a educação do indivíduo; para que elas sejam naturais devem ser cultivadas desde a infância, nesse uso que as faz parecer uma segunda natureza. O doce preceito antigo de que o que se aprende no berço dura até à morte, fica abalado com esse contínuo fazer e desmanchar de regras com que as civilizações se entretêm. O que era lindo e correto há alguns anos passou a ser caricato à vista da moda tirânica dos dias que vão passando.

Têm razão os velhos em sorrir, com benigno escárnio, das alucinações desta mocidade trêfega. No seu tempo os costumes eram de uma cortesia mais repinicada, mas muito mais igual.

A arte de bem viver na sociedade aprendia-se de uma vez só e ficava para o uso da vida inteira. Aqueles hábitos amaneirados impregnavam-se nas pessoas como um perfume na pele e passavam por isso a ser — essência própria.

Hoje os hábitos são movediços como as turbas. Tão depressa é de praxe que seja o homem o primeiro a cumprimentar uma senhora, como é o uma senhora cumprimentar primeiramente um homem; ora estabelecem que devem ser as damas idosas que ofereçam a face para o beijo das novas, ora que sejam as novas que entreguem a face para o beijo das velhas, etc..

Para quem não estiver bem firme na maneira por que se deve conduzir, estes renovamentos só podem criar indecisões e aflição.

Este embaraço não é só nosso.

Na velha sociedade da França, civilizada e primorosa, ainda é preciso que de vez em quando surja um livro ensinando regras, o que e indispensável, visto as transformações, ou se espalhem artigos em revistas e jornais, cheios de preceitos de civilidade.

É sempre com uma solenidade dogmática que esses autores ensinam a comer ameixas em calda, disfarçando a queda dos caroços no prato: a chupar uvas sem engolir as grainhas; a pedir a mão de uma moça; a por o pé no estribo, a descer do carro, a pegar na aba do chapéu para um cumprimento e até a apertar a mão dos amigos!

Este ato tão simples de polidez e de simpatia é motivo grave de preocupações. O gesto expressivo de se estender a mão aos outros, com naturalidade, pode, na opinião dos formalistas, ser tão ridículo como uma cartola velha num sujeito elegante, ou uns óculos de tartaruga num rostinho de quinze anos... Assim, ora decretam que se levante o cotovelo até à altura da orelha, que o pulso penda com moleza e que seja nessa atitude de animal de feira, que as mãos amigas se encontrem, num simples roçar de dedos, ora que seja o aperto de mão à altura do queixo, acoimando de brutal o shake-hands, com que as mãos fortes esmagam as mãozinhas moles e débeis.

Usos, costumes e convenções surgem todos os dias no código mundano, como cogumelos na terra úmida. É prudente não aceitar todos sem exame. Há cogumelos que matam, há convenções risíveis. O ridículo destas, equivale ao veneno daqueles...

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 9


UMA HISTÓRIA

A brisa dizia à rosa:
- “Dá, formosa,
Dá-me, linda, o teu amor;
Deixa eu dormir no teu seio
Sem receio,
Sem receio, minha flor!
De tarde virei da selva
Sobre a relva
Os meus suspiros te dar;
E de noite na corrente
Mansamente,
Mansamente me embalar!”
E a rosa dizia à brisa:
- “Não precisa
Meu seio dos beijos teus;
Não te adoro... és inconstante...
Outro amante,
Outro amante aos sonhos meus!
Tu passas de noite e dia
Sem poesia

A repetir-me os teus ais;
Não te adoro... quero o Norte
Que é mais forte,
Que é mais forte e eu o amo mais!”
No outro dia a pobre rosa
Tão vaidosa
No hastil se debruçou;
Pobre dela! - Teve a morte
Porque o Norte,
Porque o Norte a desfolhou!...
Novembro - 1858

NO LEITO
M***


I

Eu sofro; - o corpo padece
E minh’alma estremece
Ouvindo o dobrar dum sino!
Quem sabe? - a vida fenece
Como a lâmpada no templo
Ou como a nota dum hino!
A febre me queima a fronte
E dos túmulos a aragem
Roçou-me a pálida face;
Mas no delírio e na febre
Sempre teu rosto contemplo,
E serena a tua imagem
Vela à minha cabeceira,
Rodeada de poesia,
Tão bela como no dia
Em que vi-te a vez primeira!
Teu riso a febre me acalma;
- Ergue-se viva a minh’alma
Sorvendo a vida em teus beijos
Como o saibo dos licores,
E na voz, que é toda amores,
Como um bálsamo bendito,
Ouvindo-a, eu pobre palpito,
Sou feliz e esqueço as dores.

II

Se a morte colher-me em breve,
Pede ao vento que te leve
O meu suspiro final;
- Será queixoso e sentido,
Como da rola o gemido
Nas moitas do laranjal.

Quisera a vida mais longa
Se mais longa Deus me dera,
Porque é linda a primavera,
Porque é doce este arrebol,
Porque é linda a flor dos anos
Banhada da luz do sol!
Mas se Deus cortar-me os dias
No meio das melodias,
Dos sonhos da mocidade,
Minh’alma tranqüila e pura
A beira da sepultura
Sorrirá à eternidade.
Tenho pena... sou tão moço!
A vida tem tanto enlevo!
Oh! que saudades que levo
De tudo que eu tanto amei!
- Adeus, oh! sonhos dourados,
Adeus, oh! noites formosas,
Adeus, futuro de rosas
Que nos meus sonhos criei!
Ao menos, nesse momento
Em que o letargo nos vem
Na hora do passatempo,
No suspirar da agonia
Terei a fronte já fria
No colo de minha mãe!

III

Mas eu bendigo estas dores,
Mas eu abençôo o leito
Que tantas mágoas me dá,
Se me jurares, querida,
Que meu nome no teu peito
Morto embora - viverá!
- Que às vezes na cruz singela
Tu irás pálida e bela
Desfolhar uma saudade!
- Que de noite, ao teu piano,
Na voz que a paixão desata,
Chorarás a - Traviata
Que eu dantes amava tanto
Na ânsia do meu amor!
- E darás compassiva
Uma gota do teu pranto
À memória morta ou viva
Do teu pobre sonhador!
Bendita, bendita sejas,
Se nas notas benfazejas
Tua alma falar co’a minha
Nessa linguagem do céu

Que o pensamento adivinha!
Eu - o filho da poesia -
Dormirei no meu sepulcro,
Embalado em harmonia
Ao som do piano teu!

IV

Que tem a morte de feia?!
- Branca virgem dos amores,
Toucada de murchas flores,
Um longo sono nos traz;
E o triste que em dor anseia
- Talvez morto de cansaço -
Vai dormir no seu regaço
Como num claustro de paz!
Oh! virgem das sepulturas,
Teu beijo mata as venturas
Da terra, mas rega o véu
Que a eternidade nos vela;
E nós - os filhos do erro -
Libertos deste desterro,
Vamos contigo, donzela,
No branco leito de pedra,
Onde a música não medra,
Sonhar os sonhos do céu!...
Há tantas rosas nas campas!
Tanta rama nos ciprestes!
Tanta dor nas brancas vestes!
Tanta doçura ao luar!
- Que ali o morto poeta
No seus íntimos segredos,
À sombra dos arvoredos
Pode viver e sonhar!

V

Assim, - se amanhã, se logo,
Sentires na face amada
Passar um sopro de fogo
Que te queime o coração,
E uma mão fria e gelada
Comprimir tua mão
Frisando os cabelos teus;
- Não tenhas tu vãos temores,
Pois é minh’alma, querida,
Que os desprender-se da vida,
- Toda saudades e amores -
Vai dizer-te o extremo - adeus!...
Agosto - 1858

POIS NÃO É?!

Ver cair o cedro anoso
Que campeava na serra,
Ver frio baixar à terra
O pobre velho bondoso
Que procurando repouso
Tropeçou na sepultura;
É triste, sim é verdade,
Mas não tão grande a saudade
Nem a dor tão funda e dura,
Pois que ao velho e ao cedro altivo
Partindo a voz da procela,
No mundo, - jardim lascivo -
A vida foi longa e bela.
Mas ver a rosa do prado
Que a aurora deu cor e vida,
De manhã - flor do valado,
De tarde - rosa pendida!...
Mas ver a pobre mangueira
Na primavera primeira
Crescendo toda enfeitada
De folhas, perfume e flor,
Ouvindo o canto do amor,
No sopro da viração;
Mas vê-la depois lascada
Em duas cair ao chão!...
Mas ver o pobre mancebo
Em que a seiva reluz,
No sonho cândido e puro,
Nas glórias do seu futuro
Dourando a vida de luz;
Mas vê-lo quando a sua alma
Ao som d’ignota harmonia
Se derramava em poesia;
Quando junto da donzela
- Cativo dos olhos dela -
Na voz que balbuciava
De amores falava a medo;
Quando o peito transbordava
De crenças, de amor, de fé,
Vê-lo finar-se tão cedo,
Como as vozes dum segredo...
É dor de mais - pois não é?
Indaiaçu - 1857

NA ESTRADA
CENA CONTEMPORÂNEA


Eu vi o pobre velho esfarrapado
- Cabeça branca - sentado pensativo
Dum carvalho ao pé;
Esmolava na pedra dum caminho,
Sem família, sem pão, sem lar, sem ninho,
E rico só na fé!
Era tarde; ao toque do mosteiro
Seu lábio a murmurar rezava baixo,
- Ao lado o seu bordão;
E o sol, no raio extremo, lhe dourava
Sobre a fronte senil a dupla c’roa
De pobre e de ancião!
E o homem de metal vinha sorrindo
Contando ao companheiro os gordos lucros
Na usura de judeus;
O mendigo estendeu a mão mirrada,
E pediu-lhe na voz entrecortada:
- Uma esmola, por Deus!
O homem de metal, embevecido
Em sonhos de milhões, por junto à pedra,
Sem responder, passou!
O pobre recolheu a mão vazia...
O anjo tutelar velou seu rosto
Mas - Satanás folgou!
Rio - 1858

NO JARDIM
CENA DOMÉSTICA


Ela estava sentada em meus joelhos
E brincava comigo - o anjo louro,
E passando as mãozinhas no meu rosto
Sacudia rindo os seus cabelos d’ouro.
E eu, fitando-a, abençoava a vida!
Feliz sorvia nesse olhar suave
Todo o perfume dessa flor da infância,
Ouvia alegre o gazear dessa ave!
Depois, a borboleta na campina
Toda azul - como os olhos grandes dela -
A doucejar gentil passou bem junto
E beijou-lhe da face a rosa bela.
- Oh! como é linda! disse o louro anjinho
No doce acento da virgínia fala -
Mamãe me ralha se eu ficar cansada
Mas - dizia a correr - hei de apanhá-la! -
Eu segui-a chamando-a, e ela rindo
Mais corria gentil por entre as flores,
E a - flor dos ares - abaixando o vôo

Mostrava as asas de brilhantes cores.
Iam, vinham, à roda das acácias,
Brincavam no rosal, nas violetas,
E eu de longe dizia: - Que doidinhas!
Meu Deus! meu Deus! são duas borboletas!...-
Dezembro - 1858

RISOS

Ri, criança, a vida é curta,
O sonho dura um instante.
Depois... o cipreste esguio
Mostra a cova ao viandante!
A vida é triste - quem nega?
- Nem vale a pena dize-lo .
Deus a parte entre seus dedos
Qual um fio de cabelo!
Como o dia, a nossa vida
Na aurora é - toda venturas,
De tarde - doce tristeza,
De noite - sombras escuras!
A velhice tem gemidos,
- A dor das visões passadas -
A mocidade - queixumes,
Só a infância tem risadas!
Ri, criança, a vida é curta,
O sonho dura um instante.
Depois o cipreste esguio
Mostra a cova ao viandante!
Rio - 1858

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIX – Burrada


CAPITULO XIX
Burrada

Para descanso do meu espírito miss Jane passou a falar do movimento feminino, tema que muito me interessava.

— O partido elvinista, disse ela, desapareceu do cenário nacional como neve exposta ao fogo. Poderosíssimo na véspera, tão poderoso que batera seu adversário, o partido masculino, por meio milhão de votos, achava-se agora reduzido a uma só partidária: miss Elvin. Todas as mais haviam aderido aos homens escandalosamente, como se lá no intimo nunca tivessem ansiado por outra coisa.

O tempo ia passando e miss Elvin não se recompunha do formidável trambolhão sofrido. Para o encontro marcado em sua casa no dia das eleições não aparecera ninguém, e atirada a uma poltrona do salão deserto a irredutível sabina permaneceu até tarde da noite, furiosa, com os olhos cravados no aparelho por onde irradiara a ultima proclamação do Remember Sabino!

– Ultima, miss Jane?

– Ultima, sim, porque esse jornal havia morrido de súbito colapso. Todas as assinantes haviam cortado a ligação, e se miss Elvin tentasse radiar uma só palavra que fosse vê-la-ia perder-se virgem de ouvidos pelos intermundios siderais.

A um canto da sala havia um enorme gorila empalhado, com um dístico insultante: "O avô do ladrão". Era olhando para aquela bestial carcaça avoenga que miss Elvin compunha as suas terríveis catilinárias contra o Homo sapiens, ao qual jurara descer da sua posição de macho natural da mulher,

– Mas haveria sinceridade nisso? perguntei.

– Sinceridade estética evidentemente, forma de sinceridade tão legitima como outra qualquer.

– Não entendi muito bem. Miss Jane dizia ás vezes coisas um tanto acima da minha débil compreensão…

— Essa teoria, prosseguiu ela, fez carreira e exerceu uma função muito curiosa na América: congregar todas as fêmeas que por uma circunstância ou outra se desavinham com os machos — esposos, noivos ou namorados, e foi com esses elementos que se constituiu o partido elvinista. Partido instável, aliás, e sempre renovado. Diariamente nele se inscreviam milhares de adeptas e se eliminavam outras tantas. Entravam as brigadas com o homem e saiam as reconciliadas...

Mesmo assim miss Elvin elevou muito alto as suas construções, chegando até, como já disse, a criar ciências novas, adaptadas á mentalidade das mulheres.

A Universidade Sabina fez furor. Não tinha sede ao sistema de hoje, como aliás a maioria dos estabelecimentos de ensino da época. As lições eram radiadas diretamente para a residência das alunas. A ciência elvinista possuía seus métodos próprios, nada semelhantes aos da velha ciência dos homens. Em aritmética, por exemplo 2 + 2 não era forçosamente igual a quatro. Era igual ao que no momento conviesse.

— Vejo, disse eu, que é bem verdade o "nada há de novo debaixo do sol". Para quanta gente hoje a verdadeira matemática não é essa! Mas como era a ciência sabina, miss Jane? Fale-me dela.

Miss Jane explicou que o grande principio da ciência sabina era admitir como base de tudo a veneta; e como a veneta é de si feminina e instável nenhuma das ciências novas, inclusive as matemáticas, possuía base fixa. Tudo ondeava, como o mar donde procediam as sabinas. E por absurdo que isto nos pareça, a nós deste presente educado na rigidez da velha ciência de Aristóteles e Bacon, as teorias de miss Elvin trouxeram ao espírito humano a sua contribuição de beleza. Foi a vitoria do furta-cor, da onda, do reflexo fugidio do loie-fulerismo, contrapostos á cor fixa., á rigidez do cubo, á constância equacional dos termos. Isso se adaptava maravilhosamente á agilidade do pensamento mulheril, e foi justamente essa feição sedutora, amável e libérrima da teoria que determinou o enlace de todas as mulheres para o terreno político, operando a cisão branca.

– Qualquer coisa como o futurismo de hoje, não acha?

– Isso. Teorias de repouso, com base num sutil malabarismo de lógica, que servem para romper o monótono de certeza, de verdade, da coisa tida e havida como justa. O espirito humano nelas se recreia e se esponja, como se esponja na poeira o cavalo cansado.

Miss Elvin, entretanto, ao invés de mostrar-se desolada com as consequências do seu movimento só via o lado pessoal do desastre. Fora violenta demais a sua queda. O sonho maravilhoso erguera-a ás nuvens e a sabina acabou convencida de que era de fato messiânica. E como tinha o gênio impulsivo, não podia conter o furor diante da deserção até das amigas mais próximas.

Em certo momento, no dia do grande meeting, miss Elvin olhou para a cara bestial do gorila empalhado como quem olha para um inimigo de carne. O monstro, de dentes á mostra, parecia sorrir-lhe ironicamente.

— "Venceste ainda uma vez, meu celerado! Mas a crise passará e ajustaremos contas..." disse ela atirando-lhe á cara uma veneranda Origem das Especies de Charles Darwin.

Estava plenamente convicta de que quando o país reentrasse na normalidade ressurgiria o partido sabino. A onda fora-se. Mas o próprio da onda é ir e vir.

— "She is false as water..." repetiu miss Elvin por sua vez, espraiando o olhar para o futuro.

E assim foi. Quando o país recaiu na paz de sempre, o Remember Sabino! reapareceu e houve um perfeito da capo do elvinismo, como nas músicas...

Miss Jane fez pausa. Notou talvez que eu estava inquieto, em luta com alguma ideia. E não errara. Qualquer coisa me dizia que era o momento de declarar a minha sopitada paixão. O sangue estuava-me nas veias e por fim a palavra de amor que romperia a barreira assomou-me á boca. Mas ao chegar á boca transformou-se, e o que saiu foi uma filha da timidez disfarçada em curiosidade:

— E miss Astor? perguntei.

— Essa irradiava de contentamento, como se o reatar relações com o difamado Homo lhe houvesse correspondido a um secreto anelo do coração. Durante o período agudo da agitação elvinista operara-se uma completa ruptura entre os membros dos dois partidos, e miss Astor chegou a zombar de Kerlog, por quem possuia uma séria inclinação sentimental. O desfecho inesperado das eleições, entretanto, viera romper a frieza e aproximara-os de novo, fato que a enchia de secretas esperanças. As demais elvinistas, já saudosas do macho tradicional, tambem aproveitaram o ensejo para uma reconciliação — e é de crer que nunca houvesse maior safra de beijos na América.

Remexi-me na poltrona. Tanto beijo lá longe e uma criatura humana a definhar ali por falta de um só...

— Isso explicava, continuou a desentendida miss Jane, o estranho fenômeno de só as ex-adeptas de miss Elvin demonstrarem uma clara e inquieta alegria justamente na hora mais pressaga da nação. Enquanto todos se entregavam a penosas cogitações, colhidos pela angustia do momento, as ex-sabinas vogavam em pleno mar de uma doce lua de mel.

A crise de ternura não passou desapercebida ao ministro da Seleção Artificial.

— "Vai altear-se o índice dos nasciturnos brancos, disse ele a um colega no momento em que subiam os degraus da Casa Branca para a reunião do ministerio. Prevejo o congestionamento de Eropolis..."

Kerlog já lá estava no salão do conselho, mais sereno do que na véspera; embora ainda cheio de rugas na fronte. A conferência com Jim Roy abalara-o profundamente. Sentira que não era o negro um ambicioso vulgar, como tinha suposto. Via agora em Jim uma nobre alma de patriota, capaz do supremo heroísmo de sacrificar-se pela América. E graças a seu concurso podia o governo estudar com a necessária calma a gravíssima situação.

Reunidos todos os secretários, quem primeiro falou foi o ministro da Paz, antigo juiz cujo respeito pela Constituição tinha algo de supersticioso.

– "Refleti durante a noite sobre o caso, disse ele, e cheguei á conclusão de que a nós só compete uma coisa: mostrar-nos fiéis á memória dos instituidores da nação. A lei básica existe e a nossa missão suprema é fazê-la cumprir. Foi eleito um cidadão americano tão elegível como o senhor Kerlog ou miss Astor. Governo que somos, a lei nos obriga a aceitar o fato, mantendo a ordem e empossando Jim Roy no dia que a lei manda.”

– "Perdão! interveio o ministro da Equidade. Creio que o senhor Kerlog não nos convocou para o exame formal do problema. Seria inútil, sobre infantil. O problema transcende a esfera politica e torna-se racial. Neste momento não estamos aqui como secretários de estado e sim como brancos afrontados pelos negros. Acima das leis políticas vejo a lei suprema da Raça Branca. Acima da Constituição vejo o Sangue Ariano. O negro nos desafia. Cumpre-nos aceitar a luva e organizar a guerra."

Kerlog sorriu. Via o seu ministro despender as mesmas razões que ele lançara contra Jim. A voz do Sangue, sempre...

A discussão foi breve. Tirante o ministro da Paz, todos apoiaram o ponto de vista do ministro da Equidade — e Kerlog encerrou a audiência com estas palavras:

— "Possuímos uma delegação politica e com os poderes que ela nos outorga não podemos resolver um problema de sangue. Meu pensamento é que se convoque a convenção da Raça Branca. Como há razões de estado, tambem há razões de raça que nos cumpre ouvir e atender."

A ideia foi unanimemente aprovada.

– O que admiro, comentei eu, é a concisão e firmeza dessa gente da América futura. Se fosse entre nós hoje, que barulheira, que discurseira de não acabar mais!

– Tem razão, senhor Ayrton. A uma criatura de hoje que assistisse aos acontecimentos do ano de 2228 nos Estados Unidos, nada espantaria tanto como o alto controle de si próprio que o homem revelava. Nada de tumulto, de anarquia individualista, de desnecessárias violências na linguagem e nos atos. É que os processos seletivos tinham banido da sociedade os tarados,
inclusive os retóricos. Todas as perturbações do mundo vinham da ação anti-social desses maus elementos. Até á vitoria pratica do eugenismo, a desordem humana raiara pelo destempero e não podia deixar de ser assim, visto como um alcoólatra, um retórico ou um burocrata tinham tanta liberdade de encher o mundo de futuros pensionistas das prisões, dos prostíbulos e das câmaras de deputados como um homem são de o povoar de silenciosos homens de bem. A má semente humana gozava de tantos direitos como a semente que abrolhou em Lincoln. E a caridade, a filantropia, a assistencia publica em matéria de defesa social, não faziam senão despender enormes quantidades de dinheiro e esforço na criação de hospitais, asilos, hospícios, prisões, casas de congresso, repartições publicas, isto é, abrigos para os produtos lógicos da má origem. A ideia de seleção da semente, de há muito vitoriosa na agricultura e na pecuária, só não se via aceita no campo que mais deveria interessar ao homem. Uma velha ideologia mística vinda da Asia hebraica, e um falso conceito de liberdade vindo do 89 francês, a isso se opunham tenazmente. Quando em 2031 Owen propôs a lei espartana, a resistência ainda se mostrou forte; mas o alto progresso do espirito da América permitiu-lhe a vitoria. Pouco depois, quando o mesmo Owen formulou a lei da esterilização dos tarados, embora fosse colossal o numero dos atingidos, já se revelou menor a resistência e a lei venceu por esmagadora maioria.

Bastou um século de inteligente e sistemática aplicação dessas leis áureas para que o povo americano se alçasse a um grau de elevação física, mental e moral que nem o próprio Owen chegara a sonhar. Fecharam--se as prisões e com elas os hospitais, os hospícios e asilos de toda espécie. E os sociólogos da época entraram a assombrar-se da estupidez dos seus ancestrais...

— ... que passavam a vida lutando contra os produtos do mal sem terem a ideia de suprimi-lo com supressão da má semente.

Até a miséria, cancro julgado pelos velhos filósofos como contingência humana, viu-se gradualmente extinta á proporção que o progresso seletivo operava os seus lógicos efeitos. Com ela desapareceram automaticamente a prostituição e as formas baixas do crime.

O direito de reprodução passou a ser regido pelo Código da Raça, o mais alto monumento da sabedoria humana. Só quem apresentasse a serie completa de requisitos que a Eugenia impunha — requisitos que assegurassem a perfeita qualidade dos produtos, é que recebia o ministerio da Seleção Artificial o brevet de "pai autorizado".

— Mas realmente parece incrível, miss Jane, exclamei com horror, que ainda hoje tenha o direito de ser pai quem quer! Morfeticos há ali na roça que botam no mundo anualmente pequeninos lázaros. E ninguém vê, ninguém diz nada, todos acham que está tudo direito. ..

Eu sentia-me a ferver, com ímpetos de pular para a rua e berrar para todos os ventos:

— Burrada!...

Miss Jane acalmou-me a fúria e prosseguiu:

— E não parava aí a intervenção seletiva. Se um "pai autorizado" pretendia casar-se, tinha de apresentar-se com a noiva a um Gabinete Eugenometrico, onde lhes avaliavam o indice eugenico e lhes estudavam os problemas relativos á harmonização somática e psíquica. Caso um deles não atingisse o índice exigido, poderiam contrair núpcias mas sob a condição de infecundidade.

– Como é claro e inteligente isso! exclamei. Burrada!…

– Reproduzir a espécie tornou-se um ato de altíssima responsabilidade, já que era de altíssima relevância para o progresso da espécie. A ideia de exigir habilitações oficiais para certos atos da vida é velha — mas exclui o ato de dar vida á prole futura. Exige o estado de hoje habilitação brevetada para quasi tudo, para que um homem trabalhe no foro, construa uma casa, cure uma dor de barriga…

– enrole uma pílula …

– ...mas nada exige de quem pretende dar vida a um novo ser humano, elo inicial, muitas vezes, de uma cadeia sem fim de desgraçados ou criminosos.

– Burrada! Burrada... exclamei deveras revolta do contra a estupidez vigente. E como não ser assim, se qualquer Sá ou qualquer Pato dirige a opinião?

Depois que meu ímpeto de revolta serenou, voltei a interpela-la acerca de um ponto que andava a espicaçar a minha curiosidade.

– E o casamento, miss Jane? Já falou diversas vezes em casamento e estou curioso por saber se essa palavra em 2228 diz o mesmo que hoje.

– Diz e não diz, respondeu miss Jane. Nos casamentos em que o fim era a procriação, o estado intervinha com olhos de lince. Sendo o objetivo a prole sã de corpo e alma, compreende o senhor Ayrton que todo o rigor era pouco para evitar desvios funestos ao futuro da raça. As criaturas autorizadas a procriar constituíam uma espécie de nobreza. Todos as respeitavam como as eleitas da espécie, preciosas linhas diretrizes do amanhã. O supersticioso acato que mereciam outrora os duques, marqueses e barões por mercês arbitrarias de tronos e solios pontifícios, passou a caber aos pais pelo simples fato de serem pais. Ser pai valia por um diploma de superioridade mental, moral e fisica, conferido pela natureza e confirmado pelos poderes públicos.

Esse casamento aproximava-se do nosso em muitos pontos. Era tambem dissolúvel. Mas conquanto dissolúvel, raro se dissolvia: a harmonização pré-nupcial dos Gabinetes Eugenometricos quasi não dava oportunidade a erros.

Nos outros casos os cônjuges uniam-se e desuniam-se com a máxima liberdade e desembaraço. Nada tinha que fazer o governo em um contrato bilateral onde só valia a vontade dos contratantes.

– Quer dizer que o numero dos divórcios cresceu
espantosamente…

– Ao contrario, diminuiu como nunca se esperou. E diminuiu em virtude da única imposição que a lei fazia a esses contratos: as férias conjugais obrigatórias.

– ? !

– Sim, férias. A experiência psicológica demonstrou que o mal do casamento vinha mais do enfaro recíproco dos cônjuges do que da essência dessa forma de associação sexual. Instituiram-se as férias, como temos hoje as forenses, as colegiais, etc. E essa separação
periódica agiu com tamanha eficácia que os casais passaram a ter duas luas de mel por ano, luazinha após as férias pequenas e lua cheia após ás grandes. Não houve mais necessidade de recorrer-se ao violento drástico do divorcio, como o temos hoje. O suave laxante das férias limpava os cônjuges das toxinas do enfaro e renascia-lhes o amor ao petit-feu das saudades.

– Puro ovo de Colombo! exclamei. Estou vendo que tudo é ovo de Colombo na vida. ..

– Será, mas o Colombo deste ovo só apareceu no século XXIII. Foi Johnston Coolidge, autor do famoso livro Toxinas Conjugais, concluiu miss Jane.

Pela primeira vez fui eu quem pôs fim a um domingo. Estava ansioso por voltar á cidade e nos cafés, na rua, no escritório, pregar a eugenia e insultar a estúpida gente que não vê as coisas mais simples. A consequência foi que só dormi pela madrugada. E sonhei, agitado. Sonhei a cidade tão limpa dos seus aleijões que ficava reduzida unicamente a duas criaturas de mãos presas — eu e miss Jane...
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continua… XX– A Convenção Branca

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Trova 203 - Ialmar Pio Schneider (Porto Alegre/RS)

Júlia Lopes de Almeida (Por Quê?)


Matou-se, por quê? O amor, esse eterno revolucionário, encheu-lhe o coração com o seu amargo licor de dúvidas e de desenganos?

Não...

A miséria bateu-lhe à porta, mostrando-lhe os membros nus, o colo murcho e sugado, as roupas em farrapos imundos e o rosto desconsolado? Foi essa visão que a fez varar o corpo com uma bala de garrucha?

Não...

Teve ciúmes do esposo, medo de que a sua beleza fosse suplantada pela de outra mulher, e que o seu espírito e a sua bondade, mais o seu amor, não bastassem para prender toda a atenção daquele a quem se dedicava de corpo e alma?

Não.

Perderia algum ente amado, um filho, por exemplo, em quem depositasse todas as floridas esperanças de melhor futuro, e de quem as saudades fossem tamanhas que lhe tornassem insuportável a existência?

Não.

Teria sido atingida por uma dessas moléstias incuráveis e nauseantes, que todos os extremos justificam?

Não.

Adultério?

Não.

Loucura?

Não.

Que hipótese formular então que explique o motivo por quê uma senhora honesta, casada, em boa paz com o marido, mãe de uma única filha, pega em uma arma carregada e manda com uma bala a sua pobre alma ao inferno (que é o lugar em que se purgam tais pecados negros), para os martírios do fogo e as águas enlodadas e amargosas do Acheronte?

Por quê? Se não adivinhais é que não sois donas de casa, e se o não sabeis é porque não lestes, ou ouvistes ler, num grande jornal do Rio, uma notícia simples,
sem comentários, do suicídio de uma senhora, a qual notícia dizia assim:

"No lugar denominado — Areal — do município de Itaguaí, suicidou-se D. Amanda Augusta Fernandes, esposa do cidadão Júlio Augusto Fernandes. A arma de que se serviu a inditosa senhora foi uma garrucha de dois canos e a bala atravessou o pulmão, saindo pelas costas.

A autoridade policial tomou conhecimento do fato, encontrando próximo do cadáver um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Morro porque não posso suportar empregados. O meu maior desgosto é morrer sem ver meu marido e minha filha. Só peço perdão para esta que não devia ter vindo ao mundo." Não estava assinada, mas foi reconhecida a letra como a do próprio punho da suicida.

Que o exemplo não tenha imitadoras. Este triste desfecho, ai de nós! faz rir. E o ridículo na morte é a coisa mais lúgubre e mais terrível que até aqui tenho visto.

Ah, no Brasil as criadas fariam tremer de raiva as próprias santas de cera, se com elas tivessem de lidar; mas nem assim se compreende o desatino dessa infeliz criatura, cuja paciência arrebentou, à forca de esticada. Mas arrebentou por mau lado, a sua cólera deveria explodir por outro modo menos ruinoso...

Não seria de mulheres este livro, donas e donzelas, se não houvesse nele um cantinho para falar das criadas... E a pobre suicida oferece-nos um ensejo magnífico para tal fim. Eu sou das que têm mais pena e mais simpatia pela gente de serviço, do que ressentimento ou queixa, na convicção de que nem sempre servir seja mais agradável do que ser servida... Todavia não posso deixar de sorrir, ouvindo uma amiga, que, lendo sobre o meu ombro as palavras que escrevo, exclama atrapalhando-me: "Pena? Simpatia?! Não és sincera! Aqui ter uma criada é fazer jus a um cantinho do céu; ter duas, a um lugar nos degraus do trono em que fiquem, com o eterno sorriso, os eleitos entre os eleitos.

A dona de casa no Brasil é a mártir mais digna de comiseração entre todas as citadas pela história. Viver embaixo das mesmas telhas com uma inimiga que faz tudo o que pode para atormentar as nossas horas, pagar-lhe os serviços e ainda fazê-los de parceria, assumindo a responsabilidade dos maus jantares que ela faz e da maneira desleixada por que arrasta a vassoura pela casa; ordenar e ser desobedecida; pedir e obter más respostas; falar com doçura e ouvir resmungar com aspereza; advertir com justiça e ouvir responder com agressão e brutalidade; recomendar limpeza, economia, ordem e calma, e ver só desperdícios, porcaria, desordem e violência, confesso que é coisa de fazer abalar em vibrações dolorosas os nervos os mais modestos, mais tranqüilos e mais saudavelmente pacatos do mundo!

Na Europa não é preciso que uma família tenha fortuna para receber em sua casa meia dúzia de amigos sem receio de que os copos venham pouco cristalinos à sala ou que a sopa esteja desenxabida, caso dona do ménage não vá à copa ver os cristais ou à cozinha cheirar as panelas...

Aqui, a coisa chega a ser cômica, mas de um cômico que obriga à careta em que não entra a simpatia do riso. Dirás: mas hoje as nossas criadas vêm de lá! Parece-me que sim; mas julgo que só emigram das aldeias esfomeadas e de povoações do interior, bandos de criaturas só habituadas ao plantio das vinhas ou à colheita do trigo.

As das cidades, já desbastadas da crosta nativa e mais ou menos educadas essas deixam se ficar gozando nos poucos intervalos da sua vida trabalhosa, os gozos das capitais. Porque lá da se esta anomalia: Quem trabalha não é a dona da casa, é a criada!

A praga chegou até ao lugar do Areal, e com tamanha fúria que a pobre da D. Amanda, a quem atiras o teu punhadinho de ironias, apesar de esposa afetuosa e mãe apaixonada, preferiu um tiro de garrucha a suportar por mais tempo os seus criados!

Não cuides tu que se rirão dessa morte desesperada e que não haja por aí muita gente boa que, revoltada pela estupidez, ignorância, preguiça ou má vontade dos fâmulos, não tenha muitas vezes desejo de fugir desta vida para a outra, onde não seja preciso comer feijão queimado, absolutamente cru, e onde o furto e a incúria não tenham o mesmo impudor nem os mesmos assomos.

A sombra de D. Amanda, que a estas horas se recosta, plácida e aliviada das penas da Terra, a uma borda da barca de Charonte, sairá contente, porque foi compreendida!

Como o morrer é fácil para algumas pessoas!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 369)


Uma Trova Nacional

Que esse mal em disparada
fosse embora desta terra
pra que a paz foste plantada
dentro dos campos de guerra.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Uma Trova Potiguar

Quando a aurora esconde o enredo,
de um despertar tão bonito,
esconde um grande segredo
dos mistérios do infinito!
–EVA YANNI GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Itanhaém/SP
Tema: CANOA - 5º Lugar


Solto as amarras e à-toa
vou de encontro aos vendavais;
se eu nasci para canoa,
não quero as pedras do cais!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Uma Trova de Ademar

Se, da mulher fiquei farto,
por causa do seu ciúme,
eu vou, mas deixo no quarto
um vidro do meu perfume.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Medita o velho tristonho
e, em monólogo, baixinho,
parece chamar um sonho
que se perdeu no caminho...
–ADALBERTO DUTRA DE REZENDE/PR–

Simplesmente Poesia

Valsa da Despedida
–SUELY MAGNA NOBRE/RN–


Meu sorriso desmoronou-se
Emudeceu dentro do peito
Quando o corpo enrijecido
Ultimou os acordes da partida
Arrebatada pela inocência da brisa
Tropecei nos braços da noite
Lancei fora o desalento
Um sorriso devolveu-me a vida
Extasiada, levitei
Dancei a valsa da despedida
Lembrando-me do tanto que te amei!

Estrofe do Dia

Para o físico, o arco íris
nasce do sol, com certeza;
para o poeta, entretanto,
ele nasce é da beleza
de um poema cor de luz
desenhado por Jesus
na tela da natureza.
-LUIZ DUTRA/RN-

Soneto do Dia

Evocação
–OLGA MARIA DIAS FERREIRA/RS–


Nas brancas brumas de um passado lindo,
envolvida em paz, sonhos e ternuras,
não posso crer naquele tempo findo,
a sentir-me a mais feliz das criaturas.

Naqueles tempos de um amor infindo,
devotavas a mim muitas branduras!
Num intenso afeto eu te beijava, rindo,
aclamando, jovial, tantas venturas...

Tracejamos, assim as nossas vidas:
carinho, respeito e fidelidade,
encontrando, no amor, felicidade.

E, neste plano, todas horas tidas
vibram de luz, doçura, caridade,
na fraterna imagem da eternidade.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 8


PALAVRAS A ALGUÉM

Tu folgas travessa e louca
Sem ouvires meu lamento,
Sonhas jardins d’esmeralda
Nesse virgem pensamento,
Mas olha que essa grinalda
Bem pode murchá-la o vento!
Ai que louca! abriste o livro
Da minh’alma, livro santo,
Escrito em noites d’angústia,
Regado com muito pranto,
E... quase rasgaste as folhas
Sem entenderes o canto!
Agora corres nos charcos
Em vez das alvas areias!...
Deleita-te a voz fingida
Dessas formosas sereias...
Mas eu te falo e te aviso:
- “olha que tu te enlameias!” -
Tu és a pomba inocente,
Eu sou teu anjo-da-guarda,
Devo dizer-te baixinho:
- “Olha que a morte não tarda!
“Mariposa dos amores,

“Deixa a luz, embora arda.
“A chama seduz e brilha
- “Qual diamante entre gazas -
“E tu no fogo maldito
“Tão descuidosa te abrasas!
“Mariposa, mariposa,
“Tu vais queimar tuas asas!”
Conchinha das lisas praias,
Nasceste em alvas areias,
Não corras tu para os charcos
Arrebatada nas cheias!...
- Os teus vestidos são brancos...
Olha que tu te enlameias!...
... - 1858

FOLHA NEGRA

Sinhá
Um outro mancebo
Alegre, poeta e crente,
Soltara um canto fervente
De amor talvez! - de alegria,
E aqui nas folhas do livro
Deixara - amor e poesia.
Mas eu que não tenho risos
Nem alegrias tampouco,
Nem sinto esse fogo louco
Que a mocidade consome,
Nas brancas folhas do livro
Só posso deixar meu nome!
É triste como um gemido,
É vago como um lamento;
- Queixume que solta o vento
Nas pedras duma ruína
Na hora em que o sol se apaga
E quando o lírio s’inclina!...
Grito de angústia do pobre
Que sobre as águas se afoga,
Cadáver que bóia e voga
Longe da praia querida,
Grito de quem n’agonia
- Já morto - se apega à vida!
Vozes de flauta longínqua
Que as nossas mágoas aviva,
Soluços da patativa,
Queixume do mar que rola,
Cantiga em noite de lua
Cantada ao som da viola!...
Saudades do pegureiro

Que chora o seu lar amado,
- Calado e só - recostado
Na pedra dalgum caminho...
Canção de santa doçura
Da mãe que embala o filhinho!...
Meu nome!... É simples e pobre
Mas é sombrio e traz dores,
- Grinalda de murchas flores
Que o sol queima e não consome...
- Sinhá!... das folhas do livro
É bom tirar o meu nome!...
Setembro - 1858

À MORTE DE AFONSO DE A. COUTINHO MESSEDER
Estudante da escola central


É triste ver a flor que desabrocha
Ou quer no prado, ou na deserta rocha,
Pender no fraco hastil!
É bem triste nos anos verdores
Morrer mancebo, no brotar das flores,
Na quadra juvenil!
Meu Deus! tu que és tão bom e tão clemente,
P’ra que apagas, Senhor, a chama ardente
Num crânio de vulcão?
P’ra que poupas o cedro já vestuto
E, sem dó, vais ferir o pobre arbusto
Às vezes no embrião?!...
Pois não fora melhor vivesse planta
Cujo perfume a solidão encanta
No sossego do val?...
- Não veríamos nós neste martírio
Desfalecer tão belo e pobre lírio
Pendido ao vendaval!
Pobre mancebo! Nesse peito nobre
E nessa fronte que o sepulcro cobre
Era funo o sentir!
Agora solitário tu descansas.
E contigo esse mundo de esperanças
Tão rico de porvir!
Oh! lamentemos essa pura estrela
Sumida, como no horizonte a vela
Nas névoas da manhã!
A sepultura foi há pouco aberta...
Mas o dormente já se não desperta
À voz de sua irmã!
É mudo aquele a quem irmão chamamos,
E a mão que tantas vezes apertamos
Agora é fria já!
Não mais nos bancos esse rosto amigo

Hoje escondido no fatal jazigo
Conosco sorrirá!
Mancebo, atrás da glória que sorria,
Sonhou grandezas para a pátria um dia,
E a ela os sonhos deu;
Mártir do estudo, na ciência ingrata
Bebeu nos livros esse fel que mata
E pobre adormeceu!
Era bem cedo! - na manhã da vida
Chegar não pode à terra prometida
Que ao longe lhe sorriu!
Embora desta estrada nos espinhos
Cansado sucumbiu!
Era bem cedo! - Tanta glória ainda
O esperava, meu Deus, na aurora linda
Que a vida lhe dourou!
Pobre mancebo! no fervor dessa alma
Ao colher do fruto a verde palma
Na cova tropeçou!
Dorme pois! Sobre a campa mal cerrada,
Nós que sabemos que esta vida é nada
Choramos um irmão;
E d’envolta c’os prantos da amizade
Aqui trazemos, nos goivos da saudade,
As vozes do coração!
Eu que fui teu amigo inda na infância,
Quando a alma das rosas na fragrância
Bendizem só a Deus -
Hoje venho nas cordas do alaúde
Dizer-te o extremo adeus!
Descansa! se no céu há luz mais pura,
De certo gozarás nessa ventura
Do justo a placidez!
Se há doces sonhos no viver celeste,
Dorme tranqüilo à sombra do cipreste...
- Não tarda a minha vez!
Maio - 1858

BERÇO E TÚMULO
No álbum duma menina


Trago-te flores no meu canto amigo
- Pobre grinalda com prazer tecida -
E - todos os amores - deposito um beijo
Na fronte pura em que desponta a vida.
É cedo ainda! - quando moça fores
E percorreres deste livro os cantos,
Talvez que eu durma solitário e mudo
- Lírio pendido a que ninguém deu prantos! -

Então, meu anjo, compassiva e meiga
Despõe-me um goivo sobre a cruz singela,
E nesse ramo que o sepulcro implora
Paga-me as rosas desta infância bela!
Junho - 1858

INFÂNCIA

O anjo da loura trança,
Que esperança
Nos traz a brisa do sul!
- Correm brisas das montanhas...
Vê se apanhas
A borboleta azul!...
Ó anjo da loura trança,
És criança,
A vida começa a rir.
- Vive e folga descansada,
Descuidada
Das tristezas do porvir.
Ó anjo da loura trança,
Não descansa
A primavera inda em flor;
Por isso aproveita a aurora
Pois agora
Tudo é riso e tudo amor.
Ó anjo da loura trança,
A dor lança
Em nossa alma agro descrer.
- Que não encontres na vida,
Flor querida.
Senão contínuo prazer.
Ó anjo da loura trança,
A onda é mansa,
O céu é lindo dossel;
E sobre o mar tão dormente,
Docemente
Deixa correr teu batel.
Ó anjo da loura trança,
Que esperança
Nos traz a brisa do sul!...
- Correm brisas das montanhas...
Vê se apanhas
A borboleta azul!...
Rio - 1858

A UMA PLATÉIA

O cedro foi planta um dia.
Viço e força o arbusto cria,

Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p’ra ter mais vida,
Para ser - rosa querida -
Carece as gotas de orvalho.
Com o talento é o mesmo:
Quando tímido ele adeja
- Qual ave que se espaneja -
Como a flor, também precisa
Em vez de sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em hora de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos - flores.
E vós acabais de ouvi-lo
A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste’ o seu começo,
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e... brasileiro!
Setembro - 1858

NO TÚMULO DUM MENINO

Um anjo dorme aqui; na aurora apenas,
Disse adeus ao brilhar das açucenas
Sem ter da vida alevantado o véu.
- Rosa tocada do cruel granizo -
Cedo finou-se e no infantil sorriso
Passou do berço p’ra brincar no céu!
Maio- 1858

A J. J. C. MACEDO JÚNIOR

Como o índio a saudar o sol nascente,
Co’o sorriso nos lábios, franco e ledo
Aperto tua mão:
Cantor das açucenas, crê-me agora,
Este canto que a lira balbucia
É pobre, mas de irmão!
Quando se sente como eu sinto e sofro,
A mente ferve e o coração palpita
De glórias e de amor:
Se ouço Artur ao piano eu me extasio,
Mas ouvindo teus hinos me arrebato
E pasmo ante o cantor!
Na juventude, no florir dos anos,
Não sei que vozes nos entornam n’alma
Canções de querubim!
Uns perdem, como eu, cedo os verdores,
Mas outros crescem no primor das graças

E tu serás assim!
Oh! mocidade! como és bela e rica!
Hino de amores neste século bruto!
Louvor ao menestrel!
Palmas a ti, cantor das açucenas!
Quatorze primaveras nessa fronte
Semelham-te um laurel!
Quando tão moço, no raiar da vida,
Já doce cantas como o doce aroma
Das lânguidas cecéns,
Podes, criança, erguer a fronde altiva!
Como André-Chénier, no crânio augusto
Alguma cousa tens!
Não desmintas, irmão, este profeta,
Sibarita indolente, sobre rosas
Não queiras tu dormir,
Se ao longe já brilha amiga estrela
Aproveita o talento - estuda e pensa -
É belo o teu porvir!
Não faças como nós; na infância apenas
Solta, poeta, a gorjear de amores,
Que é doce o teu cantar.
Seja a vida p’ra ti só riso e galas
E adormeças a cismar quimeras
Da noite no luar.
Não faças como nós; não desças louco
A buscar sensações na bruta orgia
Das longas saturnais;
Se a lama impura salpica-te as penas,
Sacode as asas, minha pomba casta,
E foge dos pardais.
Não manches, meu poeta, as vestes brancas
No mundo infame; mirra-se a grinalda
E vão-se as ilusões!
A crença se desbota e o nauta chora
Desanimado no vai-vém teimoso
Dos grossos vagalhões!
Foge do canto da gentil sereia
Que engana com sorriso de feitiços
- Tão pálida Raquel!
Não encostes na taça os lábios sôfregos...
O vaso queima e beberás nos risos
Da amargura o fel!
Conserva na tua alma a virgindade,
E tenha o coração na rica aurora
Das rosas o matiz;
Se donzela cuspir nos teus amores
Chora perdida essa ilusão primeira...

Mas vive e sê feliz!
Se a dor for grande não te vergues fraco,
Oh! não escondas no sepulcro a fronte
Aos raios deste sol;
Não vás como Azevedo - o pobre gênio -
Embrulhar-te sem dó na flor dos anos
Da morte no lençol!
Vive e canta e ama esta natura,
A pátria, o céu azul, o mar sereno,
A veiga que seduz;
E possa, meu poeta, essa existência
Ser um lindo vergel todo banhado
De aromas e de luz!
Oh! canta e canta sempre! esses teus hinos,
Eu sei, terão no céu ecos mais santos
Que a terra não dará;
Oh! canta! é doce ao triste que soluça
Ouvir saudoso ao cair da tarde
A voz do sabiá!
Anta! e que teus hinos d’esperança
Despertem deste mundo de misérias
A estúpida mudez;
E dos prelúdios dessa lira ingênua
Em poucos anos surgirá brilhante
Milevoye - talvez!
Maio - 1858
---
Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião

Letícia Möller (Escritos no Cair da Tarde)


Os últimos raios de sol despedem-se, os vejo aqui, da janela do quarto, em seu esplendor final. Já nem se derramam mais sobre o campo de trigo, que agora repousa na sombra, agradecido pela trégua, assim imagino. Há pouco caminhei por entre os passeios, o livro na mão, e aproximei-me da cerca, erguendo-me na ponta dos pés, para espiar o efeito leitoso do sol poente sobre o trigo. Então retornei ao meu quarto, pois gosto de refugiar-me do crepúsculo antes que atinja seu ápice e por fim o dia se faça noite, busco proteção da melancolia que invade a terra na medida em que o horizonte desvanece no avançar da escuridão.

Estou distante de casa 500 quilômetros. Distante de meus afetos também. Ainda assim, tenho esse sentimento persistente de sentir-me no meu chão. Não sinto estranha a paisagem, esse território, sua gente, culturas e cultivos. Sinto-me muito próxima. O campo ondulante, a soja, o trigo, o sol dourando o solo e as folhas, o céu do entardecer de um azul pálido e imperturbável, apenas decorado por uma lua cheia de contornos perfeitos, como se tivesse sido desenhada tendo por molde uma moedinha, e recortado o papel branco com esmero extremo, para ser colada enfim a essa imensidão de delicado azul, como a criança que cola uma figura no desenho do caderno, cuidando para fazer tudo bem feito e agradar a professora.

Tudo isso me é familiar, ah, tão familiar, e sentido com tal intensidade, que sinto a memória a dar-me pequenas fisgadas na alma, e o coração palpitante, que ora parece expandir-se a imitar a amplidão do campo, num transbordamento de sensações, ora parece contrair-se abruptamente, como que capturado por uma lembrança remota que se mantivera ocultada da mente. Uma lembrança valiosa, que por muito tempo ficara escondida e só agora, de súbito, emerge das profundezas e se impõe e me envolve e arrebata sem pedir licença. E então tenho um pensamento estranho: que talvez exista um lugar para as lembranças mais valiosas, um espaço sagrado e desconhecido onde se alojam em silêncio as coisas mais queridas, as memórias mais preciosas, os sentimentos mais autênticos, e que são, por isso mesmo, os mais doídos. Para de repente voltar, fazendo recordar... do quê, exatamente? Da nossa essência, penso.

Estando aqui, invade-me a memória do campo da família, onde passava férias na infância, longe dos meus olhos há tantos anos, já esquecido da minha presença e dos devaneios que eu semeava em cada canto. Lugar onde ousei sonhar mais alto, loucamente e corajosamente, tecendo meus desejos mais intensos de menina. A literatura, a palavra lida e escrita. O amor a que eu ansiava, o amor forte, sereno e seguro de si com que sonhava, o amor que... meu Deus, encontrei! A delicadeza do mundo, que eu desejei nas caminhadas pelas coxilhas, delicadeza rara, apenas por vezes encontrada – e então sentida como um pequeno tesouro.

Cresci e não retornei àquele campo que amava e ainda amo. Vivi tantas coisas, mas não deixei de ser aquela menina das férias na fazenda. Olho-me no espelho e vejo a distância que me separa da menina, é inegável, mas me sinto ainda a mesma, a percorrer caminhos de pasto e terra pendurando sonhos nos galhos dos eucaliptos, declamando desejos aos ventos. A literatura não se afastou de mim, ela permaneceu sempre ao meu lado, ou mais que isso, dentro de mim, pulsando forte e constante. O sonho tão acalentado de ser escritora concretiza-se um pouco mais a cada dia. A delicadeza que eu queria que me rodeasse e protegesse... por vezes parece evaporar-se no caos e no ruído da cidade grande. Mas eis que retorna, mostrando que erro na minha melancolia recorrente, que há ainda beleza, respeito, afeto, estima, gentileza.

A delicadeza, esse tesouro raro, eu hoje a encontrei, casada com o amor pelas palavras e pelas histórias. Aqui em Giruá, no extremo noroeste gaúcho, longe de minha casa e dos meus afetos, aqui a delicadeza das pessoas, da paisagem, do ritmo da vida, da melodia da natureza, fez com que me sentisse integrada, repousada, reconciliada comigo. Envolta por eflúvios amorosos e pela mais perfeita – ainda que frágil – paz de espírito.

Giruá, 10 de outubro de 2011.
Texto gestado durante estadia na cidade de Giruá como escritora convidada da Semana Literária.

===============
LETÍCIA MÖLLER nasceu em Porto Alegre, em 1979. É autora dos livros infantis “Eu e você, aqui e lá!” (2010) e “Corre, Pedro, corre!” (2011), ambos pela WS Editor, além de livros e ensaios sobre direito e bioética. Também é advogada atuante, graduada em Direito pela PUCRS, mestre em Direito pela Unisinos e doutoranda pela Università degli Studi del Salento, em Lecce/Itália.
http://efemerasletras.blogspot.com


Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=579

Sílvia Araújo Motta (Viva a Expressão de Paz, Amor e Bem)


Soneto-sáfico-heróico nº 2628

(Ver sílaba-poética-forte:

na 4ª, 6ª. 8ª, 10ª sílabas)


“Viva a expressão de Paz, Amor e Bem!”
A natureza quer fazer brotar
toda semente forte e quer também
na voz da brisa ouvir o seu cantar.
-
Toda palavra é força e luz também,
o Verbo dá poder a quem orar,
com Fé, Esperança até chegar no amém,
que exige ação fraterna pra doar.
-
A Paz não tem fronteira para agir,
em qualquer parte pode haver tristeza...
mas simples gesto faz alguém sorrir.
-
Todo erro existe para dar lição...
O que é passado, vento já levou:
plantou somente um fruto: “paz-perdão.”

Fonte:
Soneto enviado pela autora