quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Raimundo Carrero (A Sombra Severa)


A sombra severa, de Raimundo Carrero, não é um livro prolixo. Os episódios são narrados de forma seca, com frases curtas e incisivas, numa economia verbal que espelha um dos personagens centrais, o lacônico Judas.

O que acontece é que tal concisão de linguagem não se mantém o tempo todo. Vez ou outra o narrador conclui a descrição de uma cena com uma frase feita, quase uma moral da história, perfeitamente dispensável. Frases como "os dedos que tecem a morte cosem a mortalha", ou "uma mulher tem segredos que os olhos não podem conhecer", ou ainda "um homem só é capaz desse nome quando enfrenta ousadias" beiram o lugar-comum e ocupam o espaço que caberia de direito ao leitor, impedido, assim, de imaginar ele próprio algum provável sentido para o que acaba de ler.

No início, o romance parece apontar para uma história sangrenta, impressão que vai sendo reforçada à medida que a trama ganha corpo: dois irmãos, Judas e Abel, apaixonados por uma mesma mulher, Dina. Abel, o primogênito, rouba a moça da casa dos pais e a leva para morar na velha casa de fazenda, onde também mora Judas. A provável vingança da família da jovem desonrada surge como mais um elemento a indicar que o duelo será inevitável. De fato, ele acontece, mas não como se espera. Habilmente, o narrador nos leva a seguir uma pista falsa, e a verdadeira batalha será travada não entre Judas e Abel, ou entre estes e a família de Dina, mas entre adversários mais sutis. Algum sangue será derramado, é certo, mas com alcance mais profundo, envolvendo sentimentos contraditórios, como ódio, amor, inveja, culpa, perdão.

Numa época marcada por reescrituras, o maior mérito de Sombra severa talvez esteja no fato de poder ser lido como uma interessante retomada de uma vertente que acompanha nossa produção em prosa desde os tempos de Alencar: o regionalismo. No romance de Raimundo Carrero, permanece como que o esqueleto, a espinha dorsal do modelo regionalista, que se caracterizou, sobretudo, pela descrição de cenários rurais ou de pequenos povoados no interior do país e o relato dos costumes pautados pela rigidez moral e pela religiosidade.

Tudo isso está presente no romance, mas apenas como pano de fundo para o desenrolar de uma história passada muito mais dentro do que fora dos personagens. Não há indicações precisas de tempo ou de espaço - o enredo pode situar-se em qualquer vilarejo, do passado remoto ou recente, ou mesmo de hoje - e os nomes dos personagens ou são de inspiração bíblica ou são nomes que não trazem em si nenhuma marca regional. Isso porque o importante de fato é o que acontece no íntimo dos personagens, em seus duelos, épicos e silenciosos, com a própria consciência. Ao mesmo tempo, cada um é obrigado a lidar com o silêncio do outro, buscando entender o que o outro possa estar sentindo ou pensando, o que deflagra o jogo das hipóteses, das leituras cruzadas. É no terreno da autoconsciência e da dúvida, portanto, que o conflito se instala.

Estilo

O traço regionalista aparece quase como uma citação, uma referência inicial que o romance vai esvaziando à medida que avança. Nesse sentido, Sombra severa é uma releitura e uma reescritura da velha fórmula regionalista, cultivada de forma expressiva por românticos, naturalistas e modernistas e meio que abandonado nesses tempos pós-modernos. O autor mantém apenas o arcabouço do antigo modelo e nele insere uma narrativa que mais se aproxima da tragédia. Judas, por exemplo, convive o tempo todo com a sombra severa de uma consciência culpada, que se apresenta sob a forma de súbitos fantasmas, um deles de carne e osso, a assombrar-lhe o dia e a noite na quase solidão da fazenda.

As frases feitas, as imagens que, pretensamente poéticas, esbarram numa incômoda previsibilidade e a recorrência a inexplicáveis inversões sintáticas comprometem, porém, o resultado final. Curioso é que em algumas das últimas cenas, em que o narrador apresenta episódios da infância dos dois irmãos, isso não acontece e a história caminha num ritmo exato, sem excessos. Fosse todo o romance narrado como se narram tais episódios, A sombra severa faria jus aos comentários elogiosos de Santarrita, na orelha do livro.

Fonte:
Passeiweb

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 476)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Se não praticas o bem,
para um pouco, pensa e muda:
quem não ajuda ninguém
precisa urgente de ajuda!
–ARLINDO TADEU HAGEN/MG–

Uma Trova Potiguar


Daria tudo pra ser
a camisola macia
e no meu cheiro envolver
a deusa que me extasia.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Se no espelho eu fito bem,
meus olhos, juro por Deus,
que vejo os olhos de alguém
brilhando dentro dos meus.
–THARCÍLIO G. MACEDO/SP–

Uma Trova Premiada


2012 - Concepción/CHILE
Tema: Identidade - M/H


Brasileiro, professor,
casado, Terceira Idade
e aprendiz de trovador...
- Eis a minha identidade!
–RENATO ALVES/RJ–

Simplesmente Poesia

Pedágio de Carinho
–GISLAINE CANALES/SC–


Vou fazer
um pedágio
de carinho,
para encher
o vazio do meu pobre
coração,
tão carente,
pobrezinho!
Bate triste,
mas resiste
esta imensa
solidão!

Estrofe do Dia

Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo:
Numa fração de segundo
A roda do tempo gira;
Um instante se retira,
Outro pula no tablado;
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente...
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

Se Tu Me Amas...
–RENÃ LEITE PONTES/AC–


Se tu me amaste muito loucamente,
Fruta do amor, estojo dos segredos...
Vai! Grita aos prados, grita aos arvoredos
Que tu suspiras só por mim, somente.

Se me dedicas todos teus carinhos
Com louco amor imenso e tão profundo.
Vai! Grita aos prados! Vai dizer ao mundo,
Acorda a flor, acorda os passarinhos!

Faze do teu lençol redemoinhos...
Recita versos, dize insanidades,
Promete-me mil beijos comezinhos

Com reprises dos tempos em que amamos...
E, num encanto, vão voltar saudades
Das mil juras de amor que não trocamos.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (O Linho)


O linho estava coberto de flores admiravelmente belas, mais delicadas e transparentes do que asas de moscas. O Sol espalhava os seus raios sobre ele, e as nuvens regavam-no, o que lhe causava tanto prazer, como o de um filho, quando a mãe o lava e lhe dá um beijo.

– Segundo dizem sou bem bonito, murmurou o linho, estou muito crescido, e serei brevemente uma rica peça de pano. Sinto-me feliz. Não há ninguém que seja mais feliz do que eu sou. Tenho saúde e um belo futuro. A luz acaricia-me, e a chuva encanta-me e refresca-me. Sim, sou feliz, feliz a mais não poder ser!

– Como és ingênuo! disseram as silvas do valado; tu não conheces o mundo, de que nós outras temos uma larga experiência.

E rangendo lastimosamente, cantaram:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

– Não tão cedo como vocês imaginam, respondeu o linho; está uma bela manhã, o Sol resplandece, e a chuva faz-me bem; sinto-me crescer e florir. Sou muitíssimo feliz.

Mas um belo dia vieram uns homens que agarraram no linho pela cabeleira, arrancaram-no com raízes e tudo, e deram-lhe tratos de polé. Primeiro mergulharam-no em água, como se o quisessem afogar, e depois meteram-no no lume para o assar. Que crueldade!

– Não se pode ser mais feliz, pensou o linho de si para si, é necessário sofrer, o sofrimento é a mãe da experiência.

Mas ais coisas iam de mal para pior. Partiram-no, assedaram-no, cardaram-no e ele sem compreender o que lhe queriam. Depois, puseram-no numa roca, e então perdeu a paciência inteiramente.

– Era feliz de mais, pensava o desgraçado linho no meio daquelas torturas; devemo-nos regozijar, mesmo com as felicidades perdidas.

E ainda estava dizendo – perdidas – e já o estavam a meter no tear e a transformá-lo numa peça de pano.

– Isto é extraordinário, nunca o imaginei; que boa sorte a minha, e que grandes tolas eram aquelas silvas quando cantavam:

Cric, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

Agora é que eu principio a viver. Padeci muito, é verdade, mas por isso também agora sou mais feliz do que nunca. Sinto-me tão forte, tão alto, tão macio! Ah! isto é bem melhor do que ser planta, mesmo florida, ninguém trata da gente, e não bebemos outra água a não ser a da chuva, Agora é o contrário: que cuidados! as raparigas estendem-me todas as manhãs, e à noite tomo o meu banho com um regador. A criada do sr. cura fez um discurso a meu respeito, e provou perfeitamente que era eu a melhor peça da paróquia. Não posso ser mais feliz.

Levaram o pano para casa, e entregaram-no às tesouras. Cortaram-no e picaram-no com uma agulha. Não era lá muito agradável, mas em compensação fizeram dele uma dúzia de camisas magníficas.

– Agora decididamente começo a valer alguma coisa. O meu destino é abençoado, porque sou útil neste mundo. É preciso isso para se viver em paz, e ser feliz. Somos hoje doze pedaços, é verdade, mas formamos um só grupo, uma dúzia. Que incomparável felicidade!

O pano das camisas foi-se gastando com o tempo.

– Tudo tem fim, murmurou ele. Eu estava disposto a durar ainda, mas não se fazem impossíveis.

E as camisas foram reduzidas a farrapos, a trapos, e imaginaram que era finalmente a sua morte, porque foram rasgados, amassados, fervidos, sem adivinharem o que lhes queriam. Mas de repente transformaram-se em papel branco magnífico.

– Oh! que agradável surpresa, exclamou o papel, agora sou muito mais fino do que dantes, e vão cobrir-me de letras! O que não escreverão em cima de mim! Tenho uma fortuna maravilhosa!

E escreveram nele as mais belas histórias, que foram lidas diante de numerosos ouvintes, e os tornaram mais sábios e melhores.

– Ora aqui está uma coisa muito superior a tudo o que eu tinha imaginado, quando vivia na terra, coberto de flores. Como poderia eu supor que ainda havia de servir para alegrar e instruir os homens! Não sei explicar o que me está acontecendo, mas é verdade. Deus sabe perfeitamente que nunca fui ambicioso, e que nunca me queixei da minha sorte, foi Ele que gradualmente me elevou, até chegar à maior glória. Cada vez que me lembro da cantiga das silvas: – Acabou-se, acabou-se – tudo pelo contrário se me apresenta debaixo do aspecto mais risonho. Vou viajar, percorrer o mundo inteiro, para que todos me possam ler e instruir-se. Antigamente eu estava carregado de florinhas azuis: agora as minhas flores são os meus elevados pensamentos. Sinto-me feliz, imensamente feliz!

Mas o panei não foi viajar; entregaram-no ao tipógrafo, e tudo o que lá estava escrito, foi impresso para fazer um livro, milhares de livros, que recrearam e instruíram uma infinidade de pessoas. O nosso bocado de papel não teria prestado o mesmo serviço, ainda que desse a volta à roda do mundo. A meio caminho já estaria gasto.

– É justo, disse o papel, não tinha pensado nisso. Fico em casa, e vou ser considerado como um velho avô! fui eu que recebi as letras, as palavras caíram directamente da pena sobre mim, fico no meu lugar, e os livros vão por esse mundo fora. A sua missão é realmente bela, e eu estou contente, e julgo-me feliz.

O papel foi empacotado e lançado para uma estante.

– Depois do trabalho é agradável o descanso, pensou ele. É neste isolamento que a gente aprende a conhecer-se. Só de hoje em diante é que eu sei o que contenho, e conhecermo-nos a nós mesmos é a verdadeira perfeição. Que me irá ainda acontecer? Progredir, está claro.

Passados tempos, o papel foi atirado ao fogão para o queimarem, porque o não queriam vender ao merceeiro para embrulhar açúcar. E todas as crianças da casa se puseram à roda; queriam vê-lo arder, e ver também, depois da labareda, os milhares de faíscas vermelhas, que parece fugirem, e se apagam instantaneamente uma após outra. O maço inteiro de papel foi atirado ao lume. Oh! como ele ardia! Tornara-se numa grande chama, que se erguia tão alto, tão alto, como o linho nunca erguera as suas flores azuis; a peça de pano nunca tinha tido um brilho semelhante.

Todas as letras, durante um segundo, se tornaram vermelhas: todas as palavras, todas as ideias desapareceram em línguas de fogo.

– Vou subir até ao Sol – dizia uma voz no meio da labareda, que pareciam mil vozes reunidas numa só. A chama saiu pela chaminé, e no meio dela volteavam pequeninos seres invisíveis para os olhos do homem. Eram tantos quantas tinham sido as flores que o linho tinha dado. Mais leves que a chama, de quem eram filhos, quando ela se extinguiu, quando não restava do papel senão a cinza negra, ainda eles dançavam sobre essa cinza, e formavam, tocando-a, pequeninas centelhas encarnadas.

As crianças cantavam à roda da cinza inanimada:

Crie, crac! cric, crac! crac!
Acabou-se! Acabou-se! Acabou-se!

Mas cada um dos pequenos seres dizia:

– Não, não se acabou; agora é que é o melhor da festa. Sei-o, e julgo-me feliz.

As crianças não puderam ouvir, nem compreender essas palavras; mas também não era necessário, porque as crianças não devem saber tudo.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - II – Dona Benta de cabeça virada


Não durou muito aquela situação. Tia Nastácia foi perdendo o medo que tinha ao burro e acabou grande amiga dele. Era quem o tratava, quem lhe dava milho e água e ainda quem lhe passava a raspadeira todas as semanas. Enquanto isso, conversavam. Tinham prosas tão compridas que a boneca chegou a dizer, piscando os olhinhos de retrós:

— Isto ainda acaba em casamento!...

Peninha havia desaparecido na mesma noite da chegada, depois de restituir a Emília sua pena de papagaio e prometer a Pedrinho voltar mais tarde a fim de levá-los ao Mar dos Piratas.

Dona Benta ouviu a história do passeio ao País das Fábulas com especial interesse para tudo quanto se referia ao senhor de La Fontaine, cujas obras havia lido em francês. Sempre tivera grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do mundo.

— Estou lamentando não ter ido com vocês — disse ela. – Uma prosinha com o senhor de La Fontaine seria dum grande encanto para a minha velhice...

Tais palavras fizeram Pedrinho bater na testa...

— Tive uma grande idéia, vovó — berrou ele. — Levar a senhora lá!... Já sabemos o caminho e temos o burro falante para nos conduzir. Que acha?

A grande idéia tonteou dona Benta como se fora uma paulada no crânio.

— Que despropósito, Pedrinho! Não sabe que sou uma velha de mais de sessenta anos? Que não diria o mundo quando soubesse dessa extravagância?

— O mundo não precisa saber de nada, vovó. A senhora vai incógnita, como os reis quando querem divertir-se. Deixe o negócio por minha conta, que sairá tudo direitinho...

A idéia de conhecer pessoalmente o senhor de La Fontaine virou duma vez a cabeça da boa senhora. Três dias passou a pensar naquilo, vai, não vai, sem ânimo de decidir-se. Pedrinho, porém, tanto insistiu que...

— Vou, menino, vou! — disse ela afinal. — Mas pelo amor de Deus não me atropele mais.

As crianças ficaram num delírio. Levarem sua querida vovó ao País das Fábulas foi coisa que nem em sonhos lhes passara pela cabeça.

— Era o suco! — dizia Pedrinho dando pinotes.

A semana passou-se assim, em discussões e preparativos, tudo em segredo para que tia Nastácia não desconfiasse. Era preciso que nem a negra soubesse da “caduquice” de dona Benta. Afinal chegou o grande dia.

— Nastácia — disse dona Benta sem ânimo de a encarar de frente — vou fazer hoje um demorado passeio com os meninos. Se aparecer alguém, diga que estou na casa do compadre Teodorico.

Saíram, a boa velha na frente com os netos, Emília e o Visconde atrás, este arcado ao peso da célebre canastrinha. Fingiram ir do lado da fazenda do tal compadre Teodorico, mas na primeira curva do caminho esconderam-se numa moita enquanto Pedrinho voltava para pegar o burro. Tudo para que tia Nastácia não desconfiasse de nada.

Veio o burro e dona Benta tentou montar. Quem disse! Não houve meio. Sem uma cadeira não ia.

— Já não tenho a agilidade dos bons tempos — suspirou ela.

— Creio que nunca poderei montar neste burro...

— Ali adiante há um toco que poderá servir de cadeira — murmurou o burro na sua voz mansa de animal falante.

Apesar de corajosa, a boa velha não deixou de sentir um frio na espinha, ao ouvir tais palavras pronunciadas por tal boca. Dirigiram-se ao toco indicado e, afinal, com a ajuda dos meninos, da Emília e até do Visconde, dona Benta pôde montar. Narizinho pulou à garupa, com Emília no bolso. Pedrinho ocupou a frente e o Visconde foi amarrado à crina do animal.

— Tudo pronto? — gritou Pedrinho.

— Parece que sim — respondeu dona Benta.

— Nesse caso, cheire isto, vovó! — disse ele, tirando dum canudo uma pitada do pó mágico e chegando-a ao nariz da velha.

— Oh, Pedrinho! — exclamou dona Benta escandalizada. – Bem sabe que não tomo rapé.

Todos caíram na gargalhada.

— Não é rapé, vovó! É muito bom pó de pirlimpimpim, que Peninha me deu. Sem cheirar este pó nunca chegaremos ao País das Fábulas.

Ao ouvir aquilo, Emília arregalou os olhos.

— País das Fábulas? Então é para lá que vamos outra vez? Vocês prometeram que a segunda viagem seria para o Mar dos Piratas!...

— Ao Mar dos Piratas temos de ir com o Peninha. É coisa para outro dia. Hoje vamos apenas dar um pulinho ao País das Fábulas para apresentar vovó ao senhor de La Fontaine.

— E por que não apresentar dona Benta a um pirata? Os piratas são muito mais interessantes que os fabulistas.

— Para você. Vovó prefere meia hora de prosa com um fabulista a ver todos os piratas do mundo.

— Então não vou! — disse Emília, emburrando.

— Sua alma sua palma — respondeu secamente a menina, tirando-a do bolso. — Ninguém a obriga — e fez um gesto de a arremessar ao chão.

Vendo que o negócio era sério, Emília armou cara de riso, muito desconchavada, e disse:

— Estou brincando, boba!...

Todos cheiraram o pó de pirlimpimpim, e imediatamente começaram a sentir a vista turva, a cabeça tonta, com uma zoada de pião nos ouvidos — fiunn...

Dona Benta, assustada, quis apear-se.

— Parece que vou morrer! — gritou. — Acudam-me!...

— Não tenha medo, vovó! É assim mesmo. Este fiun dura enquanto estivermos voando. Depois pára — sinal de chegada.

De fato foi assim. O fiun zuniu no ouvido deles por algum tempo e por fim cessou.

— Chegamos — disse Pedrinho descendo do burro — Pode apear, vovó.

Dona Benta estava mais morta que viva.

— Uf! — exclamou, escorregando do animal abaixo – Estou muito velha para estas maluquices. O tal fiun me deixou tonta, tonta...
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – III – As árvores gêmeas

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Trova Ecológica 72 - Wagner Marques Lopes (MG)

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 475)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

O que mais queres, querida,
se já te dei tudo, enfim?
Até minha própria vida
não pertence mais a mim.
–CLÊNIO BORGES/RS–

Uma Trova Potiguar


Minha vida o que seria
sem o diploma de esteta,
pois sou filho da poesia
e a poesia me completa!
–JOAMIR MEDEIROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


A dor que mais amargura
a gente guarda e não diz:
– é uma forma de ventura
alguém fingir-se feliz...
–CARLOS GUIMARÃES/RJ–

Uma Trova Premiada


2012 - Concepción/CHILE
Tema: IDENTIDADE - M/E


Ante à multiplicidade
dos sentimentos que lavra,
o poeta é a identidade
de toda e qualquer palavra.
–SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP

Simplesmente Poesia

Mote :
SELMA PATTI SPINELLI/SP


Sou fiel e não te nego
este dever que é uma lei:
Não pelo amor que foi cego,
mas pelo "sim" que te dei!

Glosa:
PROF. GARCIA/RN


Sou fiel e não te nego
por te amar, sempre pequei,
este pecado eu carrego...
Só que até quando eu não sei!

Mesmo o amor cego, me ensina,
este dever que é uma lei:
Não é em qualquer esquina,
que vive o amor que sonhei.

Aos teus anseios me entrego,
mesmo sofrendo de dor,
Não pelo amor que foi cego,
mas por ser cego de amor!

Meu pesadelo é sem fim,
desde o tempo em que te amei...
Não porque disseste sim,
mas pelo "sim" que te dei!

Estrofe do Dia

O Poeta na terra sente o toque
das palavras que Deus do céu transmite;
já nascemos portando os dons divinos
e não tem por aqui quem nos imite,
acredite poeta, tens razão;
eu também já cheguei a conclusão
que a poesia não tem nenhum limite.
ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Um Velho
–REGINALDO ALBUQUERQUE/MS–


Ouço em surdina, enquanto a plena lua
banha a face da terra adormecida,
alguém contar de um bem, da mais querida,
na pequenina praça ao fim da rua.

Quem é esse que, de forma tão sentida
e saudoso da graça que foi sua,
diz frases onde o pranto se insinua
e rasga cicatriz de minha vida?

Doces lembranças vêm abrir-me a porta...
Longe a imagem de um velho erguendo a taça
de emoção que julguei há tempos morta.

Ando até a ele e o enigma me apavora...
Na solidão em que se encontra a praça,
vejo o meu triste coração que chora…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas II)


A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina,
choveu grosso, com trovoada e clarões,
exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

CORRIDINHO

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

DOLORES

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:

"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.

Eduardo Campos (Três Peças Escolhidas)


O livro Três Peças Escolhidas, do cronista e romancista Eduardo Campos, reúne as peças Rosa do Lagamar, Morro do Ouro e A Donzela Desprezada. As duas primeiras foram dos maiores sucessos da Comédia Cearense, com prêmios em festivais pelo Brasil e temporadas em cartaz. Escritas em meados da década de 60, quando a cidade de Fortaleza começava a se expandir em bairros cada vez mais distantes e precários, elas continuam atuais, ao trazerem à cena dramática a questão da inclusão/exclusão social.

O estilo de Eduardo Campos é resultante de dois elementos formadores: de um lado, as aptidões artísticas nascidas do seu temperamento, de sua personalidade interior; de outro lado, as influências das idéias estéticas vigorantes na época e no meio em que ele manifestou e permaneceu.

Pelo seu regionalismo, podemos aproximá-lo de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, e por ter utilizado o elemento chuva em sua obra À véspera do Dilúvio (1966), aproxima-se de Antonio Sales.

Eduardo Campos gosta de explorar o campo sensorial, no intuito de fixar bem as imagens descritivas.

Tem preferência pela descrição, pois, conscientemente, sabe que ela possui um apelo sensorial que permite ao observador delinear os elementos apresentados aos poucos, isto é, lentamente pela narrativa.

Essa preferência é importante porque a apresentação dos seus personagens é feita mostrando-os em ação. E, aos poucos, vai compondo o perfil dos caracteres psicossomáticos que os organizaram. Com exemplo, podemos citar, o tipo do agente ferroviário, o cangaceiro ou o delegado.

Eduardo Campos utiliza-se do discurso indireto livre que serve para expressar a fala ou o pensamento das personagens e que tem sido muito usado pelos autores contemporâneo através do narrador.

Quanto aos temas utilizados, que parecem sempre atuais, são frutos do homem contemporâneo que vive angustiado por descobrir o estado de abandono completo em que se encontra, mesmo em relação a seus semelhantes. Daí só lhe restar ironizar a própria sorte.

Em suas peças, procura denunciar, pela ficção, as injustiças sociais a que os personagens estão submetidos. A exposição delas é feita de tal modo que os expectadores não podem permanecer impassíveis. Antes ficam revoltados contra essas injustiças. Ao mesmo tempo são alertados para as táticas utilizadas pelos agentes do poder.

A solidariedade dá o tom aos protagonistas de Eduardo Campos, nestas três peças, onde há também uma denúncia de injustiça por parte do poder que nada faz para minimizar a situação de desamparo das populações desprivilegiadas, mas, ao contrário, procura alimentar-se desse estado de miséria para fortalecer-se.

O Morro do Ouro

Lá para os lados da Barra do Ceará fica o lugar conhecido desde os anos 50 como Morro do Ouro. Era uma comunidade pobre que surgiu em torno do aterro da cidade de Fortaleza, muito tempo antes do Jangurussu. Este é o cenário da peça que leva o mesmo nome, que tem como protagonista a prostituta Madalena e seu amante, o traficante do morro, Zé Valentão. É assim que ela é conhecida na zona. É uma mulher que veio do interior e, por não ter nenhuma qualificação, só encontrou um caminho para viver: prostituindo-se.

Os personagens que compõem a peça vão aparecendo, bem caracterizados. São eles: Ezequiel, cambista, vive do jogo do bicho, é bem humorado e tem sempre uma palavra para se sair das enroscadas, um jeito de rebater a quem lhe destrata; o Aleijado, que pede esmola e que se recusa a ir para um asilo do governo, porque, lá, não pode pedir esmolas, uma irônica, sarcástica e caricatural. É mais um personagem que compõe um conjunto de necessitados; o bodegueiro Patrício, as assistentes sociais, um candidato a vereador - dr. Gervásio, entre outros.

O drama retrata o conflito de Madalena com a chegada da mãe, beata, católica fervorosa e devota de Padre Cícero. Ela não quer que a mãe a identifique como prostituta da zona.

A história então começa com Madalena e Zé Valentão na cama, depois de uma noite de folia. O amante escapole antes que a polícia venha. É de manhã, e logo a favela fica animada com a chegada de uma máquina de costura, entregue ali por ordem do candidato.

Quem também chega são algumas assistentes sociais, e nestas cenas o autor põe à mostra o proselitismo oco, de um lado, e o tal espírito moleque do povão - picaresco e por isso tão escancaradamente verdadeiro, real. "Veja que estou aqui, saindo do meu conforto, para cuidar de vocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível! (Pausa). E esse mau cheiro? É sempre assim?", pergunta a assistente social. A lavadeira, trouxa na cabeça, responde: "Não, não sinto não... Será esta catinguinha? É do lixo! Todo o lixo da cidade é botado na rua". O tensão da peça começa com a chegada de dona Elvira, mãe de Madalena, que vem do interior e nem desconfia da vida que a filha leva. Com a ajuda dos amigos, ela disfarça suas "atividades".

Depois que sua mãe chega, tudo se modifica, porque, sendo devota, vai impor seu ritmo de vida aos demais moradores, e tais moradores modificam-se, realmente.

Logo, dona Elvira inventa uma novena em plena zona do cabaré, que consegue reunir todos os moradores. Mas ela não sabe que sua filha é prostituta, nem que o local onde mora é um cabaré. A sua inocência acaba contagiando os moradores.

A partir da preparação da novena, os moradores vão percebendo que a mudança é benéfica para eles. Assim, o bodegueiro, que só vendia cachaça, passa a vender refresco; o cambista (´Ezequiel´, cujo apelido é ´seu Fortuna´), em vez de fazer as pules do jogo, vende medalhas de santos, etc. Há, portanto, uma grande transformação no morro, e a personagem ´Elvira´, mãe de ´Madalena´, passa a ser a personagem mais importante, a protagonista, pelo menos durante os preparativos da novena.

A escolha do nome para a protagonista, Madalena, é uma referência bíblica, a amiga de Jesus, que se arrepende dos pecados e que passa a seguir os ensinamentos do Filho do Deus.

Os personagens estão juntos pela mesma condição de miserabilidade da favela, do lixão (como se diz hoje): a favela é chamada ´O Morro do Ouro´ por ironia, pois lá é despejado o lixo da cidade. Portanto, são personagens que vivem abaixo da linha da pobreza. É uma zona de risco, como se diz hoje.

Tais personagens, apesar da miserabilidade, estão unidos pela solidariedade. Mesmo com as brigas e com as desavenças que ocorrem, eles se ajudam, afinal estão todos num mesmo miserável espaço, daí o despertar da ajuda mútua ser quase instintivo.

As assistentes sociais, que para lá se deslocam, para ´estudar´ a vida dos miseráveis, são caricaturais, e o que elas fazem, anotando o cotidiano dos favelados em suas cadernetas de campo é motivo de riso.

Outro personagem caricatural é o político, ´Dr. Gervásio´, que é apresentado distribuindo máquinas de costurar, para trocar por votos. É malandro, desonesto, sem escrúpulos; há a sugestão de que ele só possui uma máquina, e que ele faz todo o jogo de enganação, dizendo que já distribuiu centenas delas, e que, quando for eleito, irá morar no Morro do Ouro, para ver como vive a pobreza: um discurso, portanto, demagógico, enganador e oportunista, que se vale da miserabilidade dos moradores da favela para deles tirar proveito.

Há um momento em que tudo muda, e em que se percebe um pequeno questionamento da protagonista.

Quando Zé Valentão sai da cadeia e procura Madalena, e vê que tudo está mudado, inclusive a própria Madalena, que, agora, usa vestidos de manga, comporta-se como uma senhora, ele não entende o que está ocorrendo e cobra de Madalena a antiga postura, o que ela revida dizendo que é outra, que vai mudar de vida, mas o namorado diz que ela é a ´quenga´ dele e que deve ir dizer isso para todo mundo.

É aqui o final e a parte mais tensa da peça. Madalena, por um instante, não sabe onde está a verdade dela: se é prostituta ou se é beata. O que decide o seu dilema é a grosseria de Zé Valentão, que rasga seu vestido, e Madalena, desamparada, corre para a rua e vai se abraçar com a mãe. É aqui que a peça termina.

Há, portanto, um final regenerador: é a Madalena arrependida da Bíblia.

A mensagem desta peça de Eduardo Campos está muito clara na transformação de todos os personagens.

É uma peça mais linear, de poucos questionamentos, mas extremamente realista, que representa muito bem todo o sofrimento da parcela excluída da sociedade.

Portanto, em Morro do Ouro, há a descrição da vida em uma favela de Fortaleza. Os personagens são representantes de um universo que reflete a conseqüências da miséria e do isolamento. A estes junta-se a ironia, que, por paradoxo, cria cenas de humor.

Essas cenas são percebidas por ocasião da visita das assistentes sociais, já citada, que vão ao morro fazer uma pesquisa e se escandalizam com a situação de pobreza e acham que está decore da falta de educação. Na realidade, o autor denuncia, através dessa peça, que os poderosos não têm a intenção de resolver os problemas, e muitos até se beneficiam com essa situação.

A Rosa do Lagamar

Em A Rosa do Lagamar, temos outra vez a presença de mulheres determinadas, fortes, que aprenderam a se virar sozinhas, e romperam os limites sexistas da moral e dos bons costumes sem discurso nem alarde. Como continuam a fazer, ainda agora. Rosa é uma batalhadora. Ela saiu do Lagamar e comprou um terreninho na Aldeota, onde montou uma birosca que serve café e refeições para os trabalhadores de uma obra em construção. O dono do casarão quer o terreno de Rosa, ela não vende. Mas acaba perdendo tudo, porque o documento que tem é falso. Na hora do despejo, Rosa pede para contar as telhas e caibros de sua casa, pela última vez. "São vinte e dois caibros e 72 telhas. Só depois que eu conto é que durmo. É um velho hábito de solidão".

A casa de Rosa estava situada, por um desses descuidos da administração municipal, em local onde, de futuro, se edificaria uma rua. Daquela, vê-se a sala da frente, que é a de uma tapera sem maiores pretensões, guarnecida de móveis rústicos, improvisados. À esquerda, além de parede divisória, avançava para a rua uma puxada a abrigar o recinto que servia de café e restaurante aos trabalhadores de construções do bairro que, embora o mais elegante da cidade, oferecia por vezes visível desigualdade de existência entre os seus habitantes. Adiante, na mesma linha de visão, uma pilha de tijolos e, de permeio a estes, material facilmente identificado como sendo de construção. À frente da casa e do lado direito nota-se, no desenrolar da ação, o trânsito de pessoas, como se de fato ali já se insinuasse uma rua. Na sala da frente da casa de Rosa, que é a dona da tapera e do café ao lado, tudo se assentando caprichosamente, demonstrando pulso forte, e também zelo, de mulher voluntariosa. Numa das paredes vê-se o retrato do marido, o capitão Crispim, que, saindo de Fortaleza como embarcadiço, nunca mais voltou ao lugar. Seu regresso, posto sempre em perspectiva, é um motivo de encanto e ao mesmo tempo de turbulência na vida de Rosa.

É madrugadinha quando se inicia a ação. Na semi-escuridão que ainda faz, destaca-se a figura de Rosa às voltas com os seus afazeres domésticos. Há um ir e vir no interior da casa, passando pela porta que dá acesso ao local do café, a conduzir xícaras, bandejas e confeitos que, é a impressão, prepara naquela ocasião.

A Donzela Desprezada

A Donzela Desprezada é a história de Amelinha, uma moça sonhadora, filha da viúva zeladora da igreja, que transa com o namorado, motorista do caminhão da entrega do gás. Ela é a candidata do partido azul, na quermesse da igreja. Quando a mãe descobre que a filha "se perdeu", fica maluca. Com a ajuda de um jornalista sensacionalista e um policial corrupto, ela convence a filha a dar parte do namorado ao delegado, para forçar o casamento. O motivo pode ter ficado, e ficou, anacrônico, mas a peça não: é arte. A capa do livro traz um óleo sobre tela do artista plástico Nogueira, Casamento no Arraial, bem de acordo com o colorido universo popular de Manelito Eduardo (como o dramaturgo também é conhecido).

O cenário amplo revela os diversos locais em que se desenrolam as cenas.

À esquerda, o quarto de Amelinha, personagem principal da história. Cômodo, modesto, com cama, da qual se verá apenas o essencial, afim de que haja espaço suficiente para as posteriores marcações solicitadas.

Defronte ao espectador, tomando boa porção do palco, o sítio propriamente dito da quermesse, com um bar de três mesas de ferro e cadeiras. Ao lado direito a barraca ou quarto da cartomante, onde Lolita faz a leitura do baralho. Há cerca improvisada partindo do canto esquerdo do bar, a se estender até o proscênio, e, nela, o portão de acesso para a quermesse. Quando corre o pano, Lolita está sentada a uma mesinha entretida com o baralho, deitando-lhe as cartas em cruz. O bar, soturno, não começou a operar mas transcorrem preparativos para a noitada. Soam as seis horas da tarde. O quarto de Amelinha segue no escuro, mas distinguida aí a sua presença. Está sentada na cama, de combinação, e metida em visível prostração. De momento a momento ergue as mãos à cabeça, como se quisesse segurá-la, enquanto os seus movimentos não disfarçam o desespero que a acode.

No outro lado do palco, após instante, Lolita levanta-se. A uma espécie de armário de vidro vai apanhar um vidro de remédio. Serve-se em colher de sopa. Nauseada, treme. Treme e tosse. E cessa de tossir quando bebe a segunda dose. Nessa hora desce até a mesinha, onde estava, e retoma o trato das cartas. De repente a luz do quarto de Amelinha... é estabelecida por Valdelice, que, do interior, veio verificar a razão do silêncio.

Fonte parcial:
Teatro Completo de Eduardo Campos, Vol. II, UFC. Disponível em Passeiweb

Hermoclydes S. Franco (Parque Itatiaia: A Natureza , O Poeta e o Insensato)

Fotos de Parque Nacional do Itatiaia
Essa foto de Parque Nacional do Itatiaia é cortesia do TripAdvisor

A NATUREZA

Itatiaia, parque dos meus sonhos,
Monumento vivo à natureza,
Desfrutar teu verde exuberante
É escutar os sons do teu silêncio!...
Itatiaia, mundo de emoções,
Dos regatos límpidos, travessos,
Dos sagüis brejeiros, assustados,
Dos ipês valentes, mais floridos!...
Nas manhãs de inverno, entre neblinas,
Nos teus bosques voam, peregrinas,
A ves livres, lindas borboletas,
Beija-flores gentis e sensuais...

O POETA

Quantos versos de amor inspiraste,
No esplendor de tua mata virgem,
No remanso de tuas colinas,
Nas tardes de rubro por-do-sol...
Quantas noites claras e formosas,
De luar prateando a serrania...
Sonha o poeta que sempre conserves
O mágico esplendor e a realeza!...
Na pureza dos teus mananciais,
Corre a seiva livre da poesia
Que alimenta a lira do poeta
Ao tanger dos lindos madrigais!...

O INSENSATO

Eis que existe o homem do machado.
O insensato da tocha incendiária,
O inimigo cruel, destruidor,
Que não tendo os olhos do pintor,
Nem a alma gêmea à do poeta
Ou, sutil, a argúcia da mulher,
Vai – com fúria vil, devastadora –
Queimando a floresta sem piedade,
Represando os rios de águas mansas.
Massacrando pássaros e plantas...
...Tal o algoz mortal da natureza,
Por si mesmo antítese da vida!


Poema vencedor do Concurso Nacional “O Homem e a Natureza” comemorativo do cinquentenário do Parque Nacional de itatiaia, Resende/RJ - 1987

Fonte:
Poema enviado pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 474)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Que importa ao dono da cova
laje limpa, vela e flor!
É na vida que se prova
em atenções, o amor!
–ELIANA PALMA/PR–

Uma Trova Potiguar


Divagando, sem guarida...
Sem destino, seminua...
A menina desvalida
vende o seu corpo na rua.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Fui alegre, e tive sonho,
dei todo o amor que era meu,
alegrei alguém tristonho:
– Hoje o tristonho sou eu!
– P. DE PETRUS/RJ -

Uma Trova Premiada


2011 - Niterói/RJ
Tema: MEMÓRIA - Venc.


Seu amor foi pesadelo,
mas, dos meus sonhos não sai...
Sempre que tento esquecê-lo,
minha memória... me trai!
–THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA/SP–

Simplesmente Poesia

M O T E :
DIRCE DAVENIA GUAYATO/PR


No silêncio é que floresce,
com Deus, uma comunhão,
que é firmada pela prece,
nascida no coração.

GLOSA :
ANTONIO JURACI SIQUEIRA/PA


No silêncio é que floresce,
as mais lindas intenções,
o coração enternece
ao ver pura as emoções.

Firmamos, ao meditar,
com Deus, uma comunhão,
se o pensamento parar,
ouvimos o coração.

De paz a mente abastece,
libertando deste mundo,
que é firmada pela prece,
ao levitar num segundo.

A fé tem que ser real,
tem que gerar emoção
acima de qualquer mal,
nascida no coração.

Estrofe do Dia

O dinheiro na verdade
compra iate e avião,
casa de praia, mansão
e carros em quantidade;
não compra a felicidade
nem um amor verdadeiro,
nesse caso o financeiro
perde toda a serventia;
amor não se financia
nem se compra com dinheiro!
–IPONAX VILA NOVA/PE–

Soneto do Dia

Mil Luzes
–GABRIEL BICALHO/MG–


Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se odiasse tudo quanto é feio:
do frio bisturi que te reparte
ao duro “silicone” do teu seio.

Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se amasse e odiasse, meio a meio,
teu corpo transformado em obra de arte
e a torpe cirurgia em nosso enleio.

De ódio tão cego quase me rejeito,
ao ver-te retocada e sem defeito,
estátua que a vaidade perpetua!

E quando tu me expulsas do teu leito,
apaga-se esta chama no meu peito
e acendem-se mil luzes, lá, na rua!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Inconveniente da Riqueza)


Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia, foi surpreendido pela noite à entrada de uma aldeia. Procurou de um lado para o outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas estavam todas fechadas, não se via nem um raio de luz através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim de um beco se ouvia o barulho de mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio havia uma pequenina luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou rente do muro de uma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha veio abrir.

– Faz-me um favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite? Não se há-de arrepender.

E acrescentou:

– Visto que já todos estão deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?

– Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite que ia ser perseguido por um credor sem entranhas se lhe não pagasse amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida. Depois não nos fica nada, e não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus quiser!

Ao dizer isto o camponês limpava o suor da testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O Senhor teve dó dele, e disse-lhe:

– Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias de arrepender de ma haver dado. Vou provar-te.

Pegou na candeia, que estava suspensa de uma das traves do celeiro, e aproximou-a do trigo.

– Que vai fazer? disseram assustados os trabalhadores, vai deitar fogo a tudo?

Mas no mesmo instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa. Á vista de um tal milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.

– Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te enriquece.

Dito isto desapareceu.

E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão alto como a igreja.

O camponês pagou as suas dívidas, comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários, tanto e tanto fizeram, que se arruinaram e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria. Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou no celeiro, e, recordando-se do milagre que o enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na candeia, aproximou-a de um feixe de palha, comunicou-lhe o fogo, ardeu a casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais absoluta.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - I - O burro falante


Dona Benta estava na cozinha conversando com tia Nastácia.

— Que terá havido? — dizia ela. — Os meninos ontem foram para a cama cedo demais. Percebi logo que era sinal de grossa travessura para hoje. De manhã, quando me levantei não vi nenhum. Tinham sumido sem ao menos tomarem café. Por onde andarão os diabretes?

A negra, que estava frigindo uns lambaris, apenas disse:

— Essas crianças fazem coisas da gente se benzer com as duas mãos, sinhá. Com certeza foram visitar algum rei lá na terra das fadas. Mas não se incomode, sinhá. Quando a fome der, largam todos os reis do mundo para virem correndo atrás destes lambarizinhos fritos.

— Inda é o que vale — concordou dona Benta. — A fome é a única coisa que faz Pedrinho e Narizinho não se separarem de nós...

Isso foi daquela vez em que partiram com o Peninha para a primeira viagem maravilhosa. Eles ainda não tinham voltado, mas já vinham vindo.

O relógio bateu seis horas.

— Tão tarde já, Nastácia! Estou com medo que lhes tenha acontecido qualquer coisa... — disse dona Benta apreensiva, indo postar-se na varanda, de olhos na estrada.

Minutos depois viu lá longe uma nuvem de poeira.

— Vem vindo um cavaleiro! Ande, Nastácia, você que tem melhor vista, venha ver se descobre quem é.

A negra veio da cozinha, com a colher de pau na mão, e olhou.

— São eles, sinhá. Vêm tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria...

O burro vinha na galopada e breve parou no terreiro com sua penca de gente no lombo. Peninha montava no meio, trazendo o Visconde na mão; Narizinho montava à garupa, com a Emília no bolso; Pedrinho ocupava a frente.

Pularam do animal e dirigiram-se para a varanda.

— Que coisa esquisita! — murmurou tia Nastácia — Repare, sinhá, que o Visconde vem pendurado no ar, com uma pena de papagaio voando em cima dele...

— Boa tarde, vovó! — gritou Narizinho ao pisar o primeiro degrau da escada. — Aqui estamos de novo, depois dum dia inteiro de aventuras espantosas...

— Estou vendo – respondeu dona Benta — e muito contente fico de nada de mau ter acontecido. Mas não posso compreender o que significa essa coisa do Visconde vir pendurado no ar, com aquela pena em cima...

Os meninos deram uma gargalhada.

-Nem que a senhora pense um século é capaz de adivinhar, vovó! Veja se consegue...

Dona Benta olhou, olhou, pensou, pensou e nada. Consultou a negra com os olhos. Depois disse:

— Impossível. Diga logo, que já estou ficando aflita.

— É o Peninha! — berrou Emília. A velha ficou na mesma. |

— É o Peninha que vem carregando o Visconde! — berrou a boneca inda mais alto.

A boa senhora olhou para a negra, fazendo beiço. Não entendia nada. Narizinho então teve dó dela e contou a história inteira do menino invisível que os levara ao País das Fábulas.

— Ele vem carregando o Visconde, mas como é invisível a gente só vê o Visconde...

As duas velhas não tiveram palavras para comentar o maravilhoso caso. Limitaram-se a abrir a boca, com os olhos fixos na peninha.

Nisto o burro relinchou no terreiro. Todos voltaram o rosto. Dona Benta perguntou de quem era o animal.

— De ninguém — respondeu o menino. — É nosso. Salvamo-lo das unhas do tigre e agora está tão amigo que vem morar conosco para sempre.

— É bom de marcha?

— Mais que isso, vovó. É um burro falante...

Os olhos da negra, já tão arregalados, arregalaram-se ainda mais e sua boca abriu, abriu, abriu de caber dentro uma laranja. Burro falante! Era demais...

— Será possível, sinhá? Mecê acredita?...

— Tudo é possível, Nastácia. Se papagaio fala, por que não há de falar um burro?

— Mas ele não fala como papagaio, vovó — explicou Pedrinho. — Papagaio só repete o que a gente diz. Este burro pensa para falar. Se a senhora ouvisse o discurso dele na assembléia dos animais pesteados, havia de ficar boba de espanto.

— Nesse caso, precisamos recebê-lo com toda a consideração.

Nastácia, leve-lhe umas espigas de milho bem bonitas e água bem fresca.

A negra obedeceu. Foi ao paiol escolher as melhores espigas e encheu uma vasilha com água da talha. Mas quando chegou ao terreiro parou, sem ânimo de aproximar-se do burro.

— Não tenho coragem, sinhá! — disse ela virando os olhos para dona Benta. — Se ele me diz uma graça, caio para trás, de susto...

— Não seja boba! Ele tem cara de pessoa muito séria.

A negra deu mais dois passos e parou de novo. Não tinha coragem!... O mais que fez foi botar o milho no chão, sobre uma toalha, com a vasilha d’água ao lado, murmurando:

— Ele se quiser que venha até aqui. Eu é que não chego perto — e recuou uns passos, para ver.

O burro compreendeu o medo muito natural da negra. Foi-se chegando devagarinho e comeu o milho e bebeu a água tão gostosa.

Mas como fosse de muita educação, lambeu discretamente os beiços.

— Muito obrigado, tia. Deus lhe pague — murmurou com toda a clareza.

— Acuda, sinhá! — berrou a pobre preta. — Fala Mesmo, o canhoto! — e botou-se para a cozinha, fazendo mais de vinte sinais-da-cruz.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 5


A DESTRUIÇÃO TOTAL

-A impunidade estimulou Raposo Tavares e seu bando a continuarem o massacre. Voltando meses após à região do Guairá, vasculharam as áreas habitadas, arrasando uma a uma as reduções e prendendo nativos. Em pouco tempo, das missões do Paraná, restaram apenas ruínas. Nas proximidades da atual Guaíra e nas margens do rio Paranapanema existem ainda hoje alguns vestígios. Quanto aos índios, há documentos segundo os quais, em três anos, de 1629 a 1632, só nos mercados do Rio de Janeiro e do Nordeste foram vendidos mais de 60 mil escravos levados do Guairá, sem falar dos que ficaram em São Paulo. Passaram-se muitos anos até que outros grupos indígenas voltassem a radicar-se nestas terras, estabelecendo-se principalmente nas margens do Tibagi. Tivemos aqui o longo tempo de silêncio, após a destruição das reduções.

-E o que aconteceu a Catu e Bartolomeu?

-Durante várias horas, no ataque à redução de Santo Antônio, o bravo Torales permaneceu ao lado do padre Mola, ajudando-o na inútil tentativa de acalmar a fúria dos paulistas. No final, por insistência do próprio jesuíta, Bartolomeu colocou nas costas o menino, abriu caminho entre os homens de RaposoTavares e conseguiu escapar, alcançando a mata e retornando a Ciudad Real. Foram muitos dias de caminhada, ao longo da qual, a cada índio que encontrava, ia recomendando que fugisse para bem longe. Já em casa, entregou à sua mulher Natividade o novo filho, o indiozinho Catu, e foi a Villa Rica na esperança de convencer os espanhóis a enfrentarem os bandeirantes. Porém tudo em vão. Os castelhanos, no fundo, estavam gostando daquela desgraça. Não apenas por ser uma forma de vingança contra os jesuítas, mas principalmente porque, sem a presença dos padres, estariam à vontade para também submeter os nativos. Chegaram a armar ciladas aos índios fugitivos, de modo que os que escapavam dos bandeirantes iam cair nas malhas dos espanhóis.

-As povoações espanholas foram poupadas?...

-Há um ditado segundo o qual “castigo vem a cavalo”... Foi oque aconteceu: não havendo mais índios para capturar, os paulistas invadiram Ciudad Real e Villa Rica, saquearam as casas e destruíram tudo, expulsando os colonizadores castelhanos. Isso se deu no ano de 1632, e foi assim que a florescente Província do Guairá deixou de ser uma extensão do Paraguai e passou a integrar o território brasileiro, incorporando-se a São Paulo.

-Nesse aspecto os bandeirantes foram úteis...

-Pois é: credita-se a eles o mérito de haverem conquistado para o Brasil as ricas terras do Paraná. Pena que, nessa façanha, tenham praticado tanta crueldade contra os indígenas, os primeiros e verdadeiros donos destas terras.

-Os índios que conseguiram escapar, para onde foram?

-Guiados pelo padre Montoya, cerca de 12 mil nativos puderam salvar-se, num doloroso êxodo talvez somente comparável ao liderado por Moisés na fuga dos hebreus do Egito. Reunidos na foz do Paranapanema, alguns migraram para o Mato Grosso, outros para o Paraguai e Argentina e a maioria para o oeste do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se ao longo do rio Uruguai. Formou-se ali o novo Território das Missões, mas tarde também arrasado.

-Pelos mesmos paulistas?

-Sempre empenhados na caça aos índios, e satisfazendo aos interesses de Portugal em expandir seus domínios, os paulistas continuaram nas pegadas dos jesuítas. Nessa altura, desde 1640, Portugal já havia restaurado a independência, acentuando-se ainda mais a rivalidade com os castelhanos.

-O oeste gaúcho era espanhol ou português?

-Pertencia à Espanha, mas a conquista da área era de decisiva importância para os portugueses, que por isso insistiam em tomá-la. Aquelas novas reduções ofereciam, entretanto, melhores condições de defesa: as casas eram de pedra e os índios haviam aprendido a utilizar armas de fogo. Em diversas tentativas de assalto, os paulistas encontraram resistência e tiveram de recuar. E foi assim que as missões puderam seguir prosperando, com os índios alcançando alto nível de tecnologia, tanto na agropecuária como também na arquitetura, no artesanato, na medicina, na fundição de metais, na operação de moinhos e engenhos.

-Até quando?

-Até 1750, quando os paulistas voltaram à carga com força total. Naquele ano foi assinado o Tratado de Madri, pelo qual os portugueses entregavam aos espanhóis a Colônia do Livramento (hoje pertencente ao Uruguai) e recebiam em troca a área gaúcha onde estavam as missões jesuíticas. O marquês de Pombal era na época o homem forte do governo de Lisboa e foi dele que partiu a ordem no sentido de que os nativos deixassem imediatamente aquelas terras. Trinta mil índios impiedosamente condenados a abandonar casas, igrejas, escolas, oficinas, rebanhos, campos cultivados, tudo o que construíram com tanto sacrifício durante anos e anos. A fim de evitar violência, os padres chegaram a insistir com os índios para que obedecessem à ordem de despejo. Eles, porém, revoltados, decidiram lutar até o fim. Foram covardemente esmagados, numa das mais perversas carnificinas que a nossa história registra.

-E o sonho acabou!

-Inimigo mortal dos jesuítas, Pombal lançou contra eles toda espécie de injúria, terminando por expulsá-los do Brasil. Das missões do rio Uruguai ficaram para a posteridade umas poucas ruínas, entre as quais se destacam as de São Miguel, perto de Santo Ângelo. No lado argentino, onde os jesuítas e os índios foram igualmente perseguidos, são bastante conhecidas as ruínas de San Inazio Mini, a poucos quilômetros de Posadas, na província de Misiones. Há também sinais daquelas antigas aldeias em território paraguaio.

-Viraram atração turística?...

-Mas constituem, sobretudo, um precioso campo de estudo para todos os que se interessam pela história da América do Sul. Vale a pena visitar o Território das Missões. Dá um nó na garganta, porém o que se preservou é um verdadeiro tesouro histórico, hoje em grande parte sob proteção da Unesco.

-Foi o que sobrou de toda aquela comovente experiência de promoção do índio...

-Lamentavelmente, foi o que sobrou do choque entre os bons propósitos dos jesuítas e as ambições de portugueses e espanhóis. Uma epopeia que somente no Juízo Final será devidamente avaliada em toda a sua dimensão.

A GRANDE VIAGEM

-Com isso perdemos outra vez o fio da meada. Que destino tomaram afinal os Torales?

-Voltemos a 1632. Arrasadas pelos bandeirantes as reduções jesuíticas e as povoações espanholas do Guairá, Bartolomeu Torales reuniu mulher e filhos, entre os quais Francisco (o nosso Catu), mais alguns índios agregados à família, e refugiou-se na ilha Grande, no rio Paraná.

-O velho Paranazão. Fale-me um pouco dele...

-Em guarani, “para” é “rio” e “nã” significa “largo”. O rio Paraná (ou rio largo) forma-se na confluência de dois outros rios: o Grande e o Paranaíba. O rio Grande nasce em Minas Gerais, na serra da Mantiqueira, a 14 quilômetros das Agulhas Negras, mil metros acima do nível do mar. Após percorrer 1.450 quilômetros, dividindo os estados de Minas Gerais e São Paulo, recebe o Paranaíba, que nasce também em Minas, no município de Carmo do Paranaíba, e separa o estado de Minas dos estados de Goiás e Mato Grosso. A confluência do Grande e do Paranaíba ocorre no vértice do Triângulo Mineiro, onde se forma o rio Paraná, que por sua vez serve de limite entre os estados do Mato Grosso e São Paulo, até receber o Paranapanema, e do Mato Grosso do Sul e Paraná, logo abaixo. Separa ainda o Brasil do Paraguai, e depois o Paraguai da Argentina, até receber o rio Paraguai; mais abaixo recebe o rio Uruguai e desce até aponta de Maldonado, onde passa a chamar-se rio da Prata, banhando Montevidéu e Buenos Aires. Sua extensão total é de 4.290 quilômetros, e é o quinto rio do mundo.

-Não era preciso dar tantos detalhes... O senhor dizia que os Torales se refugiaram na ilha Grande...

-A intenção de Bartolomeu era atravessar para o Mato Grosso e alcançar Assunção. Todavia, durante a permanência na ilha, mudou de planos. Concluiu que se o Guairá passara agora a ser parte do Brasil, e se ali ele nascera, então brasileiro era. O mais lógico, portanto, seria permanecer do lado de cá.

-Parabéns para o Brasil, que ganhou um valente cidadão!

-O pequeno grupo subiu de canoa o rio Paraná até a foz do Ivaí, onde Bartolomeu teve notícia de que ainda havia paulistas patrulhando as margens do Paranapanema. Seu projeto inicial era alcançar o rio Tietê e prosseguir na direção de São Paulo. Querendo, porém, evitar encontros com os furiosos bandeirantes, mudou de rota, subindo com sua gente o Ivaí.

-Percorreram então a futura Hidrovia do Ivaí...

-Isso aí. E quem sabe algum dia apareça mesmo um governante peitudo capaz de tornar realidade essa obra tão sonhada... Mas vamos lá: enfrentando a correnteza, navegaram até o salto Bananeira, nas imediações da atual Ivatuba, bem próximo de onde está o meu sitiozinho comprado em 1942.

-Coincidência, ou o senhor escolheu o local em homenagem aos seus antepassados?

-Escolhi a propósito. Fui ao escritório da Companhia Melhoramentos, pedi o mapa e pus o dedo no ponto onde os Torales acamparam. Pois bem: sendo difícil continuar rio acima, devido às cachoeiras, o grupo ergueu ranchos e permaneceu ali cerca de duas semanas. Segundo seus cálculos, Bartolomeu concluiu que estava bem ao lado da linha do Trópico de Capricórnio. Assim, indo por terra em linha reta, chegaria ao destino pretendido: o planalto de São Paulo de Piratininga.

-Nesse caso, passaram por aqui...

-Estou convencido de que sim, uma vez que Maringá se ergueu exatamente em cima da linha do Trópico de Capricórnio.

-Talvez tenham acampado também neste lugar onde agora estamos...

-Quem sabe? Com auxílio da bússola, seguindo sempre na direção leste, os Torales continuaram a grande caminhada aproveitando trilhas de índio se abrindo picadas a golpes de facão. Passaram certamente por onde está Arapongas, lá na frente Nova Fátima, Ribeirão do Pinhal, Carlópolis, atravessaram a área onde se encontra hoje a represa de Xavantes. Chegando a Sorocaba, povoação já bastante movimentada, gostaram do lugar, fizeram amigos, decidiram ficar ali.

-Quanto tempo durou a viagem?

-Uns seis meses, no mínimo. Segundo histórias que meu avô João Afonso contava, e que ele por sua vez ouviu de parentes mais antigos, os Torales chegaram a Sorocaba em 1633, integrando-se às famílias pioneiras da vila. Vinte e um anos depois, em 1654, Catu já homem feito, casado com uma portuguesa chamada Ana Manuela, a família deixou Sorocaba. O inquieto Bartolomeu ouvira falar das minas de ouro de Paranaguá e, embora já estivesse com 57 anos deidade, mas ainda com saúde de ferro, juntou outra vez mulher, filhos e agregados, vendeu tudo o que tinha e partiu para novas aventuras.
–––––––––––-
continua…

O e-book pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)


Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto transporta-nos para um universo onde sentimos de tal forma o pulsar da África, que chegamos a sentir saudades desse continente, mesmo sem nunca ter estado lá. Este livro mostra a preocupação do autor em preservar algumas tradições moçambicanas, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas aflorando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo. Tudo com uma linguagem lúdica, criativa, que não se envergonha nem mesmo de trocadilhos, capaz de fazer lembrar o falar das veredas do sertão de Guimarães Rosa.

Na obra somos levados a visitar os últimos 50 anos da história de Moçambique pela pena de um poeta que escreve em prosa. "Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas." (pág. 18).

É uma história que se situa num período de paz, depois de 16 anos de guerra. O autor viveu, praticamente, quase metade de sua vida sob o fogo cruzado da guerra. Primeiro, de 1972 a 1975, ainda adolescente, como membro da Frelimo, a frente de libertação liderada por Samora Machel. Depois, a guerra com a Rodésia e, em seguida, a guerra civil que destruiu o sonho de uma geração que pensava ser possível criar uma nação próspera, capaz de enfrentar o futuro com dignidade.

Fruto de um tempo de sonhada paz, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura que se sente em outras obras, de épocas mais duras. Enfim, sem esse viés, não se compreende este livro: Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, miséria e decadência que deixa claro que o sonho de Samora Machel e seus seguidores ficou longe de se concretizar. A realidade pós-colonial é ainda pior.

No livro, o estudante universitário Mariano volta a sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimônia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito íntimo, semelhante ao dilema da África pós-colonial. Esta Ilha vai representar para o protagonista um reencontro consigo próprio.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. (...) Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (pág. 190)

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral do avô de Mariano, este romance traduz, de uma forma ao mesmo tempo irônica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Certamente, nos familiarizamos com as personagens de Mia Couto, que poderiam habitar muitas de nossas regiões, com suas rezas e segredos. No entanto, o assalto aos valores desse povoado muito diz, como já citado, sobre a própria história de Moçambique, e mais além, sobre a situação atual do homem moderno em qualquer parte do mundo, exilado de sua coletividade e de suas crenças, errante num universo onde sua existência individual carece de importância. O autor aborda o confronto entre dois universos diferentes: o capitalista e urbano construído em torno das idéias de progresso e modernidade, e o religioso e mítico dominado pelos valores ancestrais da comunidade, cuja independência se apresenta recente.

Esse encontro se expressa nas surpresas e angústias de Mariano (personagem-protagonista), que ao redescobrir a sua comunidade, conhecerá também a sua própria história. Nascido na ilha, mas habitante da cidade, o jovem é obrigado pelas circunstâncias a um novo olhar para as tradições regionais que se impõem soberanas.

Ele irá transitar nos domínios natural e sobrenatural de Luar-do-Chão, onde o sagrado impera no mais banal e cotidiano, e as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a nos dar a dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada, bela lembrança de uma África originária.

Mariano recebe do avô "pseudomorto" a missão de restaurar a normalidade da vida, por meio da compreensão dos dramas interiores de cada um de seus familiares e do desvendar de segredos antigos. Insere-se o espaço da profundidade psicológica precisa na caracterização dos personagens, símbolos de diversas formas de existência e luta humanas.

As simples mulheres do povoado se mostram pivôs de antigos romances, de tragédias submersas no rio, muitas destinadas a representações míticas e fantásticas, como a bela Nyembeti, que simboliza a própria ilha (ou seria o próprio país, Moçambique). Incapaz de falar e dona de hábitos estranhos à maioria, a jovem é predestinada à exclusão e ao ofício de enterrar os mortos, dada sua familiaridade com o mundo subterrâneo.

Já os homens mostram-se sensíveis diante das transformações e ameaças iminentes da ilha. Por meio deles o autor trabalha o desencanto diante da independência conquistada, da tradição que se imaginara assegurada, misturado ao temor da perda de Nyumba-Kaya, morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

Não é à toa que o falecido avô, também Mariano, resiste em morrer. O retorno às origens, trilhado pelo neto, torna-se a verdadeira possibilidade da partida derradeira do avô, rumo a uma nova existência. A morte, nesse exemplo, requer o retorno à vida, a extração da verdade, sob conseqüência de perturbar todos os demais, pois algo deve ser dito. Algo tão importante, capaz de fazer com que a terra envergonhada se feche. Capaz de permitir que a ilha ressentida se mostre exausta e busque a verdade que oculta em seu solo.

Seu retorno é uma imposição da tradição, incumbido que fora para dirigir as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome e a incumbência. Neto favorito do patriarca de uma família moçambicana da terra, o estudante, ao chegar à ilha, vê-se envolvido então numa teia de intrigas e segredos familiares que imaginava já não existirem.

São intrigas que envolvem seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admiranga e sua mãe, Mariavilhosa, morta em circunstâncias nebulosas, todos nomes que fazem o leitor brasileiro lembrar de figuras do Nordeste. Marianinho logo descobre que a morte do avô – que teima em não morrer de vez – permanece envolvida por um mistério que escapa à luz da razão – como tudo nessa enigmática Luar-do-Chão, onde os mortos continuam a governar os vivos.

Portanto, o eixo temático deste romance gira em torno desta viagem empreendida pelo protagonista, e resgata, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Nas águas do rio Madzimi, Mariano parte em busca das suas origens e do seu passado, empreendendo, para tanto, um denso mergulho em suas memórias de menino, evocando com elas as brincadeiras de outrora com o amigo Juca Sabão, às margens desse mesmo rio. A chegada a Luar do Chão, sua terra-natal, se dá em sincronia com a partida do avô, passageiro do "barquito desabandonado" que o conduzirá pelas "águas do tempo" à "outra margem", onde ele se juntará aos seus antepassados, cumprindo, pois, o ciclo de vida acreditado em África.

A viagem de retorno à infância de Mariano e a do avô rumo ao futuro, indicam uma sincronia, visto que este movimento para trás e para frente aponta a chegada a um lugar onde idoso e criança tornam-se pontos limítrofes do mundo visível africano e que, por sua vez, convive harmoniosamente com mundo invisível dos antepassados. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance em questão, torna-se, portanto, "o umbigo do mundo", onde estes espaços se entrecruzam e estabelecem um ciclo vital entre si. A ilha é o último espaço de convivência entre avô, neto e família neste lado da margem e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar no mundo invisível. Esta premissa nos é inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro dos vinte e dois capítulos da obra: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos". A delimitação de um espaço primordial africano e a importância da consciência do homem da posição que nele ocupa revelam a preocupação constante de Mia Couto: como artesão da palavra, cabe ao poeta a função de pensar o mundo, o homem e a sociedade em sua totalidade e, com isso, fazer com que sua escritura provoque atitudes líricas mas também políticas que perpassem a beleza estética e resultem em ações que os integrem ao seu espaço e cultura.

A desagregação encontrada por Mariano em sua ilha-natal exacerba a fragmentação cultural que Mia Couto se preocupa em denunciar. Esta é claramente evidenciada através dos nomes das personagens, já que a descontrução lingüística empregada por ele denota um processo de revitalização da linguagem através da sua reinvenção, ainda que no romance em questão o autor lance mão de menos neologismos.

Pela modificação das construções e da estrutura das palavras da língua portuguesa, Mia Couto mescla elementos que resgatam a poeticidade em seu sentido lingüístico mais amplo, ressalta imaginário de seu país, preservando constantemente suas marcas culturais.

Por esta razão, o tio mais velho de Mariano, Abstinêncio abstém-se do mundo e da vida, minimizando todo o contato com o mundo externo, tomado por um mutismo que o afasta até mesmo de sua família. O terno negro e a gravata por eles envergados metaforizam um "escuro envergando escuridão" e a gravata cinza "semelha uma corda ao despendurão num poço que é seu peito escavado" por uma dor que ele não deseja claramente reconhecer, o que lhe acarreta a melancolia característica dos que se mantêm descontextualizados.

Fulano da Malta, o pretenso pai de Mariano, tem no nome toda a evidencia de indefinição e da insegurança como progenitor. O nome revela, sobretudo, sua melancolia em não reconhecer, como ex-guerrilheiro, os resultados da guerra por que lutou, o que o faz sentir-se excluído da nação e do mundo e, conseqüentemente, de sua família. O regresso de Mariano implicará, por isso, uma reaprendizagem mútua: a do pai que aprende a ser pai e a do filho que reconhece a pertinência de atos que Fulano outrora cometera e que apenas após este resgate do passado foram por ele compreendidos.

O tio Ultímio, terceiro dos três filhos, é, por sua vez, o que menos percebe a relevância da terra, da família e das tradições como elementos constituintes do homem, uma vez que, como burocrata, "se dá a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital, ocupado entre os poderes e seus corredores". A crítica à personagem se exacerba na comicidade da cena de seu automóvel importado atolado nas areias de Luar do Céu, até ali levado para impressionar futuros investidores estrangeiros ávidos por transformar a ilha em rentável investimento turístico, assim como para ressaltar as diferenças que Ultímio crê existir entre ele, sua família e os demais habitantes da localidade.

É, no entanto, outra personagem, a velha Miserinha, quem melhor descreve o quadro inicial da viagem e do cenário sombrio que permeia a ilha e seus moradores, todos metonimizados pela alegoria e vítimas, como o restante do país, da perda de identidade: "Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos". O único resquício de cor associada à personagem e à ilha está no lenço de seda multicolorido usado por ela e que representa a última memória das diferentes colorações do mundo, que contrastam, no entanto, com a roupa surrada da personagem, com seu rosto vincado e, sobretudo, com suas retinas fatigadas pelo tempo, as quais vêem os homens acinzentados e marcados por um traço comum: a perda do desejo e da identidade.

Ao longo da narrativa, Mariano se depara, pois, com o insólito causado pela quase morte do avô. Em estado de latência e possível catalepsia, Dito Mariano aguarda o regresso do neto a casa para que se ajustem detalhes cruciais à sua partida. Como espaço catalisador da ação das personagens "Nyumba-Kaya" é a casa que tem seu nome composto pelas palavras que designam este vocábulo em línguas de pontos extremos do país, "para satisfazer familiares do norte e do sul". Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fertilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano.

Quem a faz molhar é a avó Dulcineusa, doce no nome para compensar a amargura da perda de parte da mão e dos dedos corroídos pela acidez do caju colhido nos tempos coloniais. Em momentos que alternam delírio e lucidez, Dulcineusa revela conflitos do homem diante da confluência de valores sociais, culturais e religiosos que lhe foram impostos ao longo dos anos.

O percurso de Mariano é igualmente permeado por conflitos, dúvidas, descobertas e surpresas ligadas originariamente ao funeral, mas que acabam por revelar novas histórias para o protagonista e para sua terra. Lançando mão de elementos fantásticos, o "avô" comunica-se com o neto por meio de cartas que sua mão moribunda não pode escrever, as quais, por sua vez, surgem misteriosamente ao pé do neto para lhe servir de diretriz sobre cada passo a ser dado na condução das exéquias e na sua posterior liderança da família.

O retorno de Marianinho à ilha para encontrar uma nova forma de salvar a terra, que também é a sua casa, e reconstruir um mundo novo, sem abandonar as tradições, é, de certa maneira, uma parábola da África pós-colonial que precisa juntar seus destroços para seguir adiante e não ficar irremediavelmente para trás na história das nações.

O centro deste retorno é a casa de seus ancestrais na Ilha de Luar-do-Chão, o ponto de partida de sua identificação consigo mesmo dentro daquele universo aparentemente tão distante e tão diferente da cidade, lugar de sua formação, rico em recursos da modernidade, porém infértil para o sustento das tradições.

A relação estabelecida entre a casa e o tempo, declarada pelo próprio título do romance, permeia todas as vertentes da obra, todos os seus personagens e seus espaços.

Uma sucessão temporal de eventos, abrigados pela memória dos rituais da tradição africana, dentro das visões que Marianinho estabelece em suas visitas, se dá pelo contato do que lhe é natural e sobrenatural, um processo, muitas vezes, afastado dos conceitos de lógica e linearidade da verossimilhança.

Esta ruptura com a linearidade do texto, no uso sensível da prosa poética, é um grande marco da escrita de Mia Couto, apropriando-se da construção do fantástico dentro da realidade de seus personagens e da realidade do próprio leitor. O trabalho “artesanal” de seu léxico é um registro de compromisso com a representação estética do mundo. O uso explícito de criações neológicas ultrapassa o registro do que seria uma linguagem regional e oral, representando, nas mãos do escritor, a exposição de um universo contraditório presente nos países colonizados em África que buscam até hoje, após e até pela Independência, sua identidade.

O tempo e a casa selam uma união conjugal dentro do romance. O tempo, em seu caráter masculino, representa os homens da história. Sofre um processo de desmoronamento (particular à casa) para refletir toda a desconstrução dos homens desta família: suas dependências emocionais, suas ambições sempre volúveis, os desenganos vestidos pela guerra do país e desnudos por uma fome de paz interna e externa insaciável em seus corpos e espíritos.

A casa, o feminino, é habitada pelas mulheres. Precisa de defesa, mas mantém-se altiva pela junção dos vivos e dos mortos no ventre de seus corredores. As revelações que direcionam o desenvolvimento do romance são cozidas, conduzidas e muitas vezes protagonizadas pelas mulheres da família.

A morte de Dito Mariano, patriarca dos Malilanes é a morte da “casa pai” e o nascimento da “casa mãe”, responsável pelo abrigo das peças que compõem a identidade de Marianinho mediada pela tradição e pela modernidade de seus valores.

Um dos pontos fulcrais do romance é a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto (ou semivivo?) antes do tempo oportuno. A tentativa de antecipar o enterro, liderada por Últímio, não encontra a maior resistência na família, mas sim no solo adubado pela insensatez humana que se cerra completamente na recusa de receber o corpo de Mariano. O chão arenoso em que o automóvel importado atolara resiste, agora, rígido, à pá do coveiro e faz com que seu metal se vergue ensimesmado no terreno desprovido da maciez que a umidade da água outrora lhe concedera.

Fontes:
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, Portugal | AdeltoGonçalves, doutor em Letras (Literatura Portuguesa), Universidade de São Paulo(USP) | Prof. M. A . Robson Lacerda Dutra, Mestre em Literatura Portuguesa -Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponivel em Passeiweb

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas)


IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,
meu pai pintou acasa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe ospeixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar,abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado,até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

DIA

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral-
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

PARÂMETRO

Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

POEMA COMEÇADO NO FIM

Um corpo quero utro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.

Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

EXAUSTO

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

(in Bagagem)