quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Antonio Carlos de Barros (Chimarrão) Parte 2, final

( Nota: as palavras em itálico negritado possuem o seu significado no vocabulário no final a postagem)
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Engana-se quem pensa que o Chimarrão é popular apenas no Sul do Brasil. A bebida é muito consumida também em outros países, como Uruguai e Argentina. Originária das culturas indígenas caingangue, guarani, aimará e quíchua, o mate foi logo incorporado no dia-a-dia dos imigrantes europeus que vieram para o Sul do Brasil e de outros países da região dos Pampas, e se tornou um símbolo local.

Benefícios do consumo do Chimarrão para a saúde

Não, o chimarrão não é só uma água verde e quente que a gurizada do sul gosta de beber em grupo. A bebida é ótima para a saúde e rica em vitaminas. Quem bebe um mate amargo está consumindo importantes vitaminas, como o complexo B, vitamina C e vitamina D, além de sais minerais, como cálcio, manganês e potássio.

Dentre os benefícios para a saúde quando se consome o chimarrão, está o combate aos radicais livres, melhora na digestão e combate ao reumatismo. O Chimarrão deixa a  pele mais bonita, pois favorece a regeneração celular, e regula funções cardíacas e respiratórias. Também fortalece os ossos, ajudando a prevenir doenças como osteoporose.

O Chimarrão também é um excelente diurético e laxante, além de estimular a libido (Opa!), pois contém saponina, que é um dos componentes da testosterona.

Chimarrão é ótimo aliado na dieta, já que, por ser um estimulante natural, acelera o metabolismo.

E se você percebeu que, ao beber um chimarrão enquanto estava com fome, teve sensação de saciedade depois, você não está pirando não. O chimarrão realmente tem este poder, isso porque a erva-mate tem um valor nutricional absurdo. Segundo estudos científicos, o chimarrão oferece praticamente todas as vitaminas necessárias para sustentar a vida.

Acessórios para tomar chimarrão 

Para fazer um chimarrão, são necessários uma cuia (recipiente aonde vai o chimarrão), a bomba (Tacuapy) “canudo” em que se bebe o chimarrão, uma chaleira ou uma garrafa térmica para manter a água quente, erva-mate e água quente. Quanto à temperatura da água depende muito de cada pessoa. Aqui no Sul, no inverno costuma-se deixar a água com 70º centígrados, no verão um pouco menos. Não se deve jamais deixar a água ferver. 

Regras do Chimarrão - Estilo de beber o mate

O mate pode ser tomado de três maneiras, em relação à companhia: o mate solito (isoladamente); o mate de parceria (uma companheira ou companheiro) e, finalmente, em roda de mate (em grupo).

A MÃO DIREITA

Para se receber o mate ou entregar a cuia de mate, deverá ser feito com a mão direita. No caso da mão direita estar ocupada, a pessoa deverá dizer:

- Desculpe a mão!

Ao que o outro responde:

- É a do coração.

Fora dessa exceção, sempre com a mão direita.

SÓ O CEVADOR PODE MEXER NO MATE

A menos que se obtenha licença, só o cevador deve arrumar o mate, considerando-se falta de respeito alguém mexer sem permissão. O bom cevador, cada vez que recebe a cuia, antes de enchê-la, dá uma ajeitada na bomba, de modo que renove o fluxo de seiva, demonstrando, assim, seu conhecimento na intimidade com o mate.

O PRIMEIRO MATE

Como já falamos, todo aquele que fecha um mate (faz o mate) deve tomar o primeiro em presença do parceiro ou na roda de mate.

Este fato tornou-se tradicional devido a épocas remotas em que o mate serviu de veículo para envenenamentos. Por isso, o ato do mateador  tomar o primeiro indica que o mate está em condições de ser tomado.

Ainda no caso do primeiro mate, outro motivo que nos chega foi devido aos jesuítas, que atribuindo valores afrodisíacos ao mate, e para evitar que os índios passassem a maior parte do dia mateando, tentando afastá-los do hábito, criaram o mito entre os silvícolas cristianizados que Anhangá Pitã (diabo) estava dentro do mate.

Mas não foram bem sucedidos os jesuítas e o hábito salutar sobrepujou o temor que lhes fora impresso. Por isso, toda vez que o indígena ia tomar um mate em presença dos outros, tomava o primeiro mate como demonstração que Anhangá Pitã não se encontrava no mate.

RONCAR CUIA

Uma vez servido o mate, deve ser tomado todo, até esgotá-lo, fazendo roncar a cuia.

O grande poeta, músico e cantor Paulinho Pires ensina o legado em sua canção: CEVADOR DE MATE.

Eu já nasci prá cevador de mate,
Da madrugada ao anoitecer,
Cresci amando a natureza bugra
Sina bonita do meu bem querer.

E na música CEVADOR com Letra de João Tadeu Soares da Silva e Salvador Lamberty e Melodia de Leonardo Sarturi.

A Cuia, em forma de taça, Cevador e Chimarrão 
Lembram o gesto de Cristo, dividindo vinho e pão. 
Trazem, no ritual do mate, a fraterna comunhão, 
Querendo mostrar ao mundo que somos todos irmãos. 
A Cuia foi a parceira dos Guaranis combatentes, 
Que elevaram corpo e alma, ao sorver da água quente. 
Em forma de coração - parece um seio moreno – 
Um mapa do meu Rio Grande, mesmo com porte pequeno. 
Cuia, cevador e mate na seiva da convivência, 
São relíquias que afagam e adoçam minha existência! 
Nas Rodas de Chimarrão os assuntos vêm à tona: 
Embates, Tropas, Aprontes, um cortejo pra Siá Dona. 
Sorvem-se reminiscências - tempos deixados pra trás: 
Quantos Heróis Comandantes, quantos Tratados de Paz! 
Cuia, cevador e mate - vertentes de telurismo, 
Que jujam, ao pé do fogo, sementes de um atavismo 
Quando eu parar deste mundo quero levar, no costado, 
Meus Avios de Chimarrão pra matear d'outro lado!

Outra regra importante é não agradecer após beber o chimarrão. Não é falta de educação, pelo contrário. É sinal que você ainda não terminou de beber chimarrão com estas pessoas, e quer continuar participando da roda.

Somente um ícone da cultura gauchesca, poeta, escritor, cantor e músico, o consagrado Telmo de Lima Freitas para nos brindar com a sua "Alma de Galpão"

Como faz bem um chimarrão feito a capricho
Quando cevado com o calor da própria mão
A madrugada negaceando mostra a cara
Cheiro de garras e pelegos pelo chão.

Como faz bem ouvir o relincho do potro
Lá na mangueira a espera do buçal,
Baio sebruno, cabos negros de respeito,
Que pelo jeito, não nasceu pra ser bagual.

Como faz bem tomar um banho na restinga
Vestir as pilchas domingueiras pra passear
Ouvir a gaita de oito baixos resmungando
Adivinhando o pensamento do seu par.

Como faz bem sentir o gosto da querência
Ouvir um grito explodindo no rincão
O venha, venha, do tropeiro nas estradas
Rezando a prece, de retorno ao velho chão.

Como faz bem lavar a fuça na gamela
Tirar o freio pra depois chimarronear
E o gado manso ruminando junto às casas,
E a terneirada num berreiro pra mamar.

Como faz bem sentir o cheiro do borralho
Respirar fundo o braseiro do tição
Rio Grande velho, que retrata diariamente,
Como se forja uma alma de galpão.

Bueno, após sorver o mate dos ervais de nossa convivência. Posso chama-lo de: “Mate da Esperança”. O sabor é o da comunhão, da partilha, do sonho coletivo e da fraternidade. Não deixe morrer a esperança que existe em seu coração. Haverá sempre uma luz para iluminar nosso caminho. E quando esse dia chegar, tomares um mate de Patrão. Um mate pra ti.
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VOCABULÁRIO
Atavismo – herança dos ancestrais.

Avios – objetos necessários para tomar mate.

Bagual – animal ainda não domado, selvagem.

Borralho – brasas cobertas de cinzas.

Cabos Negros – diz-se do cavalo de qualquer pelo que tem negras as quatro patas.

Chimarronear – tomar chimarrão, matear.

Fuça – rosto, face, cara.

Jujam / Jujo – erva medicinal, chá.

Mate de Patrão - o significado é comparativo à uma Estância ou Fazenda, onde existem o Patrão (dono da fazenda) Capataz, peões, etc. Então o Mate de ou do Patrão é sempre o melhor, mais bonito, mais vistoso, etc. O CTG - Centro de Tradições Gaúchas, foram pensados como se fossem uma grande Estância ou Fazenda, onde existem: Patrão, Capataz, Peões, Invernadas, Piquetes, etc. Na sociedade Urbana o Patrão representa o Presidente da entidade, o Capataz seria o Vice Presidente, a Invernada seria os Departamentos, os Piquetes seriam as seções, os Peões os demais funcionários.

Pilchas – adorno, joias, roupas, vestimenta típica do Gaúcho.

Querência – lugar onde nasceu, se criou ou viveu.

Restinga – mato constituído de árvores de pequeno porte, nas baixadas , à margem de rios.

Rincão – ponta de campo cercada de rios, matas.

Sebruno – animal cavalar de pelo escuro. 

Telurismo – influência do solo sobre os usos e costumes habitantes.

Fonte:
Artigo e vocabulário enviados pelo autor.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Carolina Ramos (Hino do Idoso)

Casal de Idosos, pintura de Brown

Quando o inverno bate à porta 
e o vigor não é mais nosso,
a Mão de Deus nos conforta
e ajuda a dizer: - Eu posso!

Posso sentir e provar
o quanto esta vida é linda,
conjugando o verbo amar,
nos sonhos que eu sonho ainda!

O idoso não quer piedade,
quer ser amado e feliz, 
vivendo, em paz, a verdade
da vida que sempre quis!

Quer amar, sorrir contente
e afirmar: - “Missão cumprida!”,
com direito a, simplesmente,
desfrutar da “melhor vida”!

Bem pouco o idoso deseja:
- Só amor, respeito e carinhos!
Se colhe as rosas que almeja,
o idoso esquece os espinhos!

Fonte:
Poema enviado pela poetisa

Jaqueline Machado (Lançamento do Livro “Pétalas” – 50 anos da UBT)


Jaqueline está lançando a partir do dia 20 deste mês um livro de trovas em homenagem aos 50 anos da UBT. 

PÉTALAS é o titulo do seu mais recente trabalho. São mais de 100 trovas e mais um bônus com 12 poemas de sua autoria. 

PÉTALAS é um livro cheio de amor e tem como objetivo acarinhar docemente os poetas e trovadores da UBT. 

A edição é limitada. Não deixe de adquirir o seu exemplar. 

O lançamento oficial será no decorrer dos Jogos Florais de Porto Alegre que ocorrerão nos dias 25, 26 e 27 de outubro. 

Quem estiver presente poderá comprar diretamente com ela. 

Mas quem não puder se fazer presente pode encomendar através do e-mail: tudoepossivelw7@gmail.com 

Fonte:
Jaqueline Machado 
Presidente da UBT Cachoeira do Sul - RS 

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

João de Toledo Tito (Em Qualquer Esquina, Um Texto)


Parado, indeciso, em frente à gôndola na adega, já com uma cartela generosa de presunto de Parma debaixo do braço e com uma garrafa de vinho tinto seco em cada uma das mãos, tento optar por uma delas. Procuro ávido por socorro, e lá está ele. Grande, quase de meu tamanho, afixada em uma coluna metálica estruturada, uma seta vermelha - onde se lê: Leitor de Código de Barras - aponta para baixo na direção da maquininha. Aproximo-me da intensa luzinha verde que ela emite, exponho as barrinhas que até agora não me significam nada e meu problema se resolve. O leitor transmite os dados a um computador central, o qual, entre informações catalogadas para cada produto, seleciona aquela mais interessante aos clientes que a procuram, e voilá, leio o preço dos vinhos. Escolho o mais caro, pois não é tão mais caro assim, dirijo-me ao caixa, pago e saio dali.

Mais relaxado e caminhando em busca de quem amo, só me falta uma boa música para que a festa fique completa, e ela começa a martelar a minha cabeça: "Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando um violão debaixo do braço... Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim,.,"

Consigo também pensar neste meu texto. Não seria ele como aquele código de barrinhas, que nada significa sem os olhos brilhantes de um leitor a transmitir ao mais poderoso dos computadores as informações capazes de emocionar com as informações certeiras - só um amontoado de símbolos previamente organizados, mas ainda sem finalidade?

Apresso os passos, ansioso e feliz, para o encontro. Trocar afagos, saborear os petiscos, presentear com meus escritos, na esperança da conquista final, a leitora desavisada que me espera distraída na janela. Mal sabe ela que levo também outras rimas na cabeça, que só farão sentido depois da sua leitura. E a música continua em minha cabeça: "Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando um texto debaixo do braço... Em qualquer esquina..."

(Crônica Premiada no VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”)

Antonio Carlos de Souza (Chimarrão) Parte 1


( Nota: as palavras em itálico negritado possuem o seu significado no vocabulário gauchesco no final a postagem)
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Pintura em tecido, por Rosvita

A Erva Mate foi descoberta pelos Índios Guaranis, antes do Descobrimento do Brasil. CAÁ – significa Erva Mate na linguagem Guarani, CAÁ-Y – significa a água da erva. Hoje mate amargo ou Chimarrão.

O Chimarrão, um grande patrimônio da Tradição Gaúcha, foi descoberto no atual Estado do Paraná, lá pelos idos do ano de 1554. Com as notícias da Prata, logo após a descoberta da América do Sul, muitos Europeus desembarcaram em nosso Continente, rumando para Assunção – Paraguai. Tentavam atingir a terra das valiosas minas, subindo pelo Rio da Prata. Foi numa dessas investidas que o governador de Assunção, IRALA, em 1554, descobriu o Mate Amargo. Partindo de Assunção o governador seguiu a leste, para conquistar terras para a Espanha e a busca de riquezas. Alcançando Guaíra, hoje Estado do Paraná, foi recepcionado, junto com a sua comitiva, por um povo indígena, que compunha uma Nação de 300.000 índios Guaranis. Ficaram impressionados com a hospitalidade jamais vista em suas andanças. Foram convidados a tomar uma bebida estimulante, que dava inspiração e proteção, ensinada por Tupã, Deus Indígena, aos pajés. Essa Erva era chamada pelos índios de “Erva Tupã”, porque era abençoada por Deus, seu mate produzia efeitos estimulantes e fortalecedores, ao corpo e ao espírito, para os guerreiros. Consistia em torrar as folhas de uma certa árvore silvestre, fragmentá-las e coloca-las num pequeno porongo, com água morna, quase quente, chupar com um canudinho de taquara. Um trançado de fibras de cascas e membranas de árvores, em sua base, impedia a ingestão de partículas das folhas, via canudinho. Era o CAÁ-Y, que também era consumido como chá, fervido e até mascado, sob a forma natural, em folhas verdes ou secas.

E disse o Hélio Moro Mariante em sua Fronteira do Vaivém:


Há uma árvore importante
Que nasce sem se plantar.
Sua folha é estimulante
Depois de se a sapecar.
É planta, mas chamam erva.
Dizem que as forças conserva,
Dos que a tomam no frequente
É chupada de um porongo
Com canudo e água quente.

A boa nova foi levada pelos expedicionários à Assunção e foi se espalhando por toda a América do Sul. A erva mate chegou a ser moeda corrente no Paraguai.

No início da era da erva mate a Igreja Católica foi sua fervorosa combatente. Os padres Franciscanos, em nome dos mais santos princípios da Igreja, instituíram a “excomunhão” dos que mateavam. Era o tempo da Inquisição. Eles chamavam a “erva do diabo”, por ter surgido no meio indígena, com a benção do deus Tupã.

Por isso Dimas Costa nos conta em sua Carta à Mãe Natureza:

– E assim é que o mate amargo
Tem muito de pago e china.
E a tradição é que ensina
Que o chimarrão, no passado,
Foi erva amaldiçoada
E por isso foi queimada
Por um conselho sagrado.

Então daí criou-se o hábito de quem prepara o mate toma o primeiro gole, para provar que ali não havia diabo algum. Foram muitas décadas de lutas da Igreja Católica, contra o uso da erva mate, porém o hábito invadiu o Continente. Até que a Igreja resolveu suspender o combate infrutífero. Formaram-se, então, dois grandes polos de produção, GUAÍRA, no Paraná, e Sete Povos das Missões, às margens do Rio Uruguai, no atual estado do Rio Grande do Sul.

Glaucus Saraiva realça em poesia o divino da erva mate:

Trazes à minha lembrança,
Neste teu sabor selvagem,
A mística beberagem,
Do feiticeiro charrua,
E o perfil da lança nua,
Encravada na coxilha,
Apontando firme a trilha,
Por onde rolou a história,
Empoeirada de glórias,
De tradição farroupilha.

No Rio Grande do Sul, quando se deixou brotar a tradicional hospitalidade Gaúcha, sempre esteve uma mão amiga estendida, alcançando o símbolo desse gesto, um chimarrão. Nas estâncias Gaúchas nunca faltaram às rodas de chimarrão. Nas charlas galponeiras, ao redor dos fogos de chão, entre um mate e outro, sempre foram tomadas as mais importantes decisões do curso de nossa história.

O momento do chimarrão é propício para se ordenar e planejar os negócios do dia. Ninguém mateia com pressa. A exploração da Erva Mate, como descoberta nativa, constituiu-se em grande fonte de divisas para o Rio Grande do Sul, principalmente pelos missioneiros, especialmente após a chegada ao pó da erva.

E o grande payador Jayme Caetano Braun em seu Potreiro de Guaxos explica:

É por isso meu patrício
Que não mateio solito
Embora o verde bendito
Pra mim seja mais que vício.
É o meu último munício
Que não dispenso nem largo
E peço a Deus, sem embargo,
Na xucreza do meu canto,
Que no céu me guarde um Santo
Parceiro para o Mate Amargo. 

Cedo provei o Chimarrão. Via todo mundo sorvendo nas bombas de prata, via o topete da erva de um verde diferente dos outros porque a vida nela adormecera e esperava, e era como uma alusão misteriosa ao sabor que deveria subir lá de dentro da cuia. Via o mate correr entre homens e mulheres, entre os homens da casa da fazenda e no galpão, e pelos alpendres das manhãs acesas ou das tardes tristes, o mate obscuro das mulheres negras da cozinha nas tardes escuras de chuva, quando elas andavam silenciosas, descalças sobre os ladrilhos gastos, com a cuia na mão. (Reynaldo Moura – Romance no Rio Grande).

- Já o grande poeta Guilherme Shultz Filho, pinta o quadro poético que se emoldura:

Mate amargo! Que doçura!
Velha cuia de porongo!
Nesse teu feitio oblongo
Que parece um coração,
És toda uma tradição,
Todo um passado resumes!
Desde os singelos costumes
Do meu pago e minha gente
Velha cuia confidente!
Mate Amargo! CHIMARRÃO!

- O Amargo se expande na síntese de Aureliano de Figueiredo Pinto:

Com o porongo Africano
A bomba peninsular,
Erva do índio Americano
Três Continentes a dar
A sua contribuição
A democrata reunião
Fraterna que anima e puxa
E acende a veia Gaúcha
Nas charlas de um CHIMARRÃO.

- Eis que Valdomiro Sousa relembra um naco da nossa história:

Eis que a cuia me ensina:
Quando chegou Silva Paes,
Sepé entre os ervais
Tomava o seu chimarrão,
Feliz, na paisagem guasca.
Sepé que soberbo e ousado
Sucumbiu, despedaçado,
Por amor deste Rincão.

- E Hermelindo Cavalheiro ao mate amargo se aferra:

Chimarrão, vinho da terra
Onde na paz ou na guerra,
Seu apanágio é o valor,
Sempre foste para o gaúcho
Bebida simples sem luxo
Mas sem igual no sabor.

- O Grande cantor e compositor Lupicínio Rodrigues compôs:

Amigo boleie a perna,
Puxe o banco e vá sentando.
Descanse a palha na orelha,
E o crioulo, vá picando. 
Enquanto a chaleira chia, 
O Amargo vai cevando.

- E a poesia que imortalizou o Mate Amargo de Glaucus Saraiva:

CHIMARRÃO

Amargo doce que eu sorvo
Num beijo em lábios de prata.
Tens o perfume da mata
Molhada pelo sereno.
E a cuia, seio moreno,
Que passa de mão em mão
Traduz, no meu chimarrão,
Em sua simplicidade,
A velha hospitalidade
Da gente do meu rincão.

Glaucus Saraiva também ensina como encilhar um mate:

UM POEMA AO CHIMARRÃO 

Palmeio o velho porongo
derramo a erva com jeito
encosto a cuia no peito
batendo a erva pra um lado;
com os quatro dedos curvados
formo um topete bem feito.

Com um poquito de água morna
bem devagar despejado,
tenho o amargo ajeitado
que ponho a um canto pra inchar;
e espero a água esquentar
pitando o baio sovado.

A pava chiou no fogo.
Encho a cuia que promete;
a espuma se arremete
bem pra cima, borbulhando,
e acariciante, beijando,
branqueia todo o topete.

Agarro a bomba de prata,
tapo o bocal com o dedão,
calço o bojo bem no chão
da cuia e vou destapando
a bomba que vai chupando
um pouco de chimarrão.

Derramo outro pouco d'água
para aumentar o calor...
e o mate confortador
vou sorvendo em trago largo,
pois me saiu um amargo
despachado e roncador.

E do grande poeta Aureliano de Figueiredo Pinto nos brinda com esses maravilhosos versos:

CHIMARRÃO DA MADRUGADA

Não sei por que nesta noite
o sono velho sebruno
ergueu a clina e se foi!
E eu que arrelie ou me zangue.
Tenho olhos de ave da noite,
ouvidos de quero-quero
cordas de viola nos nervos
e uma secura no sangue.

Então, da marquesa salto
e vou direto ao galpão:
bato tição com tição
e a labareda clareia
os caibros do galpão alto.
Já a cuia bem enxaguada,
corto um cigarro daqueles
de reacender vinte vezes
num trote de quatro léguas
de uma chasqueira troteada.

E, quando a chaleira chia,
principio um chimarrão,
mais verde e mais topetudo
do que um mate de barão.
Me estabeleço num banco
pra gozar gole e fumaça,
pitando um naco de branco.
E entre tragada e golito
saludo mui despacito
cada recuerdo que passa.

É um gosto olhar os brasidos
E os luxos das labaredas
dançando rendas e sedas
para a ilusão dos sentidos.
E entre o amargo e a tragada
tranqueiam na madrugada
tantos recuerdos perdidos.

E o chimarrão macanudo
vai entrando pelo sangue!
Vai melhorando as macetas,
curando as juntas doridas
como água arisca de sanga
sobre loncas ressequidas.

O peito avoluma e arqueia
como cogote de potro.
E as ventas se abrem gulosas
por cheiro de madrugada.
- Potrilhos em disparada
num Setembro de alvoroto.

Ah! Sangue velho... Descubro
porque hoje estás de vigília:
- Dois séculos de Fronteiras.
de madrugadas campeiras,
de velhas guardas guerreiras
bombeando pampa e coxilha!

Por isso é que hoje não dormes!
Ouviste a voz de ancestrais:
-"O chimarrão principia”!
Alerta! O campo vigia!
Da meia-noite pra o dia
Um taura não dorme mais...

- O ato de tomar um mate é muito maior do que simplesmente ingerir uma bebida: É um ritual símbolo da cultura Gaúcha, uma tradição que une as pessoas.

Foste bebida selvagem
E hoje és tradição,
E só tu, meu chimarrão,
Que o gaúcho não despreza
Porque és o livro de reza
Que rezo junto ao fogão.
(Vitor Ramill)

continua… parte 2 (final)
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Vocabulário Gauchesco:

Alvoroto – Burburinho. Motim, revolta. O mesmo que alvoroço.
Bombeando – espionando, explorando, vigiando.
Brasidos – braseiros.
Charlas – conversas.
Charrua – Palavra que caracteriza os atuais habitantes do território outrora ocupado pela tribo Charrua, o que hoje equivale ao sul do Rio Grande do Sul e toda a República Oriental do Uruguai. Indivíduo que habita as regiões fronteiriças entre Brasil e Uruguai.
Chasqueira – diz-se do animal de trote duro.
China – Mulher guapa, valente. Tal gíria é muito utilizada em regiões da fronteira do estado do Rio Grande do Sul com o Uruguai.
Clina – O mesmo que "crina", pelagem comprida que fica no pescoço e/ou no rabo de animais como o cavalo.
Cogote – pescoço grosso.
Crioulo – cigarro de palha.
Despacito – devagar, vagarosamente.
Encilhar – colocar erva na cuia de chimarrão.
Guasca – correia, corda de couro cru. Tem sentido pejorativo também.
Lonca – couro fino do animal para costurar.
Macanudo – bom, poderoso.
Maceta – tornozelos inchados, dificuldade para andar.
Marquesa – espécie de cama muito larga.
Munício – gado de corte para alimentação dos soldados.
Pago – lugar em que nasceu.
Pava – chaleira.
Payador – quem escreve payada, que é uma forma de poesia improvisada vigente na Argentina, no Uruguai, no sul do Brasil e no Chile. É uma forma de repente em estrofes de 10 versos, de redondilha maior e rima ABBAACCDDC, com o acompanhamento de violão.
Porongo – 1. cuia de chimarrão. 2. Fruto não comestível, caracterizado por seu tamanho grande, formado por uma casca grossa e com sementes por dentro, sem polpa. Utilizado para confecção de cuias de chimarrão, berimbau (concha acústica), ou mesmo para fazer casas de passarinhos.
Recuerdos – lembranças, recordações.
Rincão – ponta de campo cercada de rios, matas.
Sanga – Pequeno riacho, córrego, com nascente própria e que geralmente deságua em rios ou lagos.
Sebruno – animal cavalar de pelo escuro.
Sepé – Sepé Tiaraju (1723 – 1756) foi um guerreiro indígena brasileiro, considerado santo popular e declarado "herói guarani missioneiro rio-grandense" por lei. Chefe indígena dos Sete Povos das Missões, liderou uma rebelião contra o Tratado de Madri.
Taquara – tipo de bambu.
Taura – individuo valente, destemido.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 13 de outubro de 2019

Sebas Sundfeld (Visita Importante)


Caboclo de compleição franzina, gênio brando, barba rala no rosto cor de cobre, cabelo rente e grisalho, pitando cigarro de palha, seu Pedrinho passou a vida no trabalho rude do campo. Com a mulher, morava agora, de favor, numas terrinhas de onde tirava o seu sustento.

Rocinhas ralas de milho e de mandioca e um chiqueirinho ocupavam as proximidades do seu rancho de pau-a-pique, de três cômodos ligados por passagens sem porta. Apenas a do quarto exibia uma cortina amarrotada, na preocupação com olhares curiosos de algum
visitante inesperado. Sim, por que às vezes aparecia por lá alguém da fazenda.

Naquela manhã clara e quente, chegaram dois cavaleiros, moços da cidade em férias e a procura de aventuras por aquelas simplezas rurais. "Visita importante" matutou seu Pedrinho.

Recepcionou os desconhecidos com agrados na fala. Sabendo a que vinham, levou-os para dentro. Enxotou os frangos empoleirados nas cadeiras, para que os recém-chegados sentassem. Então serviu-lhes a bilha com água fresquinha da mina que brotava à sombra dos taquaruçus. Desajeitados, emborcaram a bilha. Saciaram a sede. E molharam a camisa. Mal humorados já iam se despedindo. Um cheiro adocicado que vinha da cozinha deteve a saída altiva dos jovens não habituados aos aromas da roça.

– É a Filoca ali no fogão, explicou o dono do rancho.

Disse e foi buscar uma panela de milho cozido, quentinho, fumegando. Colocou sobre a mesa e convidou respeitoso:

– Experimente, moço, pra vê cumo é bão. Com um pôco de sar fica mió ainda.

Os visitantes, de saída, voltaram olhares vertendo ironia. O comentário de um deles desprezou a generosidade do anfitrião roceiro.

– Nós não comemos milho cozido.

Desapontado, seu Pedrinho quis se desculpar. Sua resposta veio singela e apropriada:

- Intão me descurpe, moço, pruquê o mio cru os porco comero.

(Crônica vencedora no IV Concurso Literário "Cidade de Maringá")

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Carlos Drummond de Andrade (Banco Barroco)


— Quer comprar o meu banco? Ele não está à venda.

Falava com superioridade de banqueiro que se sabe forte na praça, capaz de resistir à pressão de grupos econômicos poderosos. Tornou-se arrogante:

— Não vendo ele de jeito nenhum. Já recusei muitas propostas. Por que havia de vender? Gosto dele, não vai mudar de proprietário enquanto eu for vivo.

— Perdão, eu não queria comprar.

— Queria então o quê?

— Queria permissão para ver. Estou estudando mobiliário barroco, e soube que o senhor tem em casa uma peça valiosa.

— Valiosa? Pra mim ele não pode ser avaliado em cruzeiros. Nem em dólar, que aliás hoje não é mais lá essas coisas. O senhor quer ver apenas?

— Ver e, com sua licença, fotografar.

— Ah, fotografar pra quê? Pra botar no jornal?

— Não trabalho em jornal.

— Então, trabalha pro governo, já vi tudo. Vem ver o meu banco, tira retrato, faz relatório, depois, pimba: o governo desapropria o meu banco por essa tal de utilidade pública. Muito bonito.

— O senhor está completamente enganado. Não sou funcionário público, sou estudante e trabalho no escritório da Light. Olhe aqui as minhas carteiras.

— Carteiras? Carteira não prova nada.

— Bem, se não acredita…

— Prefiro acreditar na sua cara, que me parece de gente de bem. Pode entrar.

A salinha era pobre, só o banco impunha sua classe, misturado a trastes sem estilo.

— Século XVII, no duro. Joia.

— Eu sei, eu conheço o que é meu.

— O senhor permite que eu tome as medidas?

— Pra que tirar medida? Não chega tirar retrato?

— Para documentar bem a peça. Vou fazer um sucesso danado lá na Escola, com o trabalho sobre este banco.

A desconfiança voltou a acinzentar os olhos do dono:

— Sei não. Este seu interesse pelo meu banco…

— O senhor está pensando que eu vim a mando de algum antiquário? Dou minha palavra de honra que faço uma pesquisa escolar.

— Bom, pode tirar as medidas.

O rapaz aproximou-se, alisou o couro lavrado, com carinho. Banco de igreja nordestina, jacarandá venerando, oito pés retorcidos, duas traves torneadas, como é que um tesouro desses foi parar naquela casinha vulgar de Madureira?

— Vou dar ao senhor cópias das fotos.

— Não carece, moço. Prefiro olhar pro meu banco do que olhar pro retrato dele.

— O senhor… posso saber como essa coisa linda veio ter às suas mãos?

— Olha só a curiosidade dele. Eu não falei? Agora tem fiscalização de móveis na casa da gente?

— Não precisa responder, é claro. Está se vendo que isto é um bem de família, o senhor herdou de seu pai.

— E meu pai de meu avô. Meu avô do pai dele, ou da mãe, sei lá. Negócio muito do antigório.

— Mas este banco não é do tempo do seu bisavô. É muito mais antigo.

— Como é que eu posso saber quem foi a primeira pessoa da minha família que possuiu este banco? Não sou adivinhão.

— Bem, ele saiu duma igreja.

— Isso eu sei.

— Não estou duvidando de sua família, claro. Absolutamente. Mas seus pais não lhe contaram nada, nada, não lhe falaram de uma tradição da família em torno deste banco?

Ficou pensativo, coçando a testa.

— Parece que tinha um padre…

— Lógico que tinha um padre.

— Vou confiar no senhor. Negócio perdido na fumaceira do tempo, né? a gente pode contar.

— Isso.

— Uma dona da nossa família era casada com ele. Naquela base, entende? O padre morreu, a comadre guardou o banco de lembrança. O senhor vê que este banco é sagrado. Não vendo ele pra Onassis nenhum. Ninguém tem o direito de sentar nele. Nem eu. Sou pobre mas sustento a honra do passado. Agora que já sabe tudo, o senhor aceita uma xicra de café coado na hora?

Fonte: 
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

José Feldman (Adeus, Minha Irmã!)


POEMA: ADEUS, MINHA IRMÃ
(Para a Mel - 3/5/2003 - 8/10//2019

Adeus, ó minha irmã querida
deixas meu coração em pranto.
foste pura doçura em vida,
a luz, a alegria e o canto.

Teus latidos se calaram...
a noite ficou muito fria
as estrelas se apagaram,
não há mais a tua alegria.

Foste a bússola a me guiar
com teu jeitinho carinhoso
a ternura sempre a encantar
em teu modo de olhar dengoso.

Foste um ser iluminado
que a luz na terra se apagou,
um coração abençoado
que com lágrimas, nos deixou.
_____________________________

NOTA:

Por hora não haverão postagens, pois é tempo de dor e pranto. Breve retornarei.

Conto com vossa compreensão
José Feldman

domingo, 6 de outubro de 2019

Maurício Cavalheiro (O Segredo de Boas Histórias)


No intervalo vespertino, deixo o escritório para combater a fome na padaria da praça. Peço pão na chapa e pingado. Junto à mesa, na calçada, observo o movimento.

As 15 horas, precisamente, ele aparece com o livro à axila. Caminha lento, apoiado na bengala, até se acomodar no banco ao lado do coreto. Ajeita o chapéu, apruma os óculos, pigarreia. Dizem que no início tagarelava para os pombos. Mas estes preferiam bicar resíduos de alimentos no chão a ter que ouvi-lo.

Por um bom tempo foi considerado destrambelhado. Por isso os pais criavam medo nos filhos, para não se aproximassem do velho "doido". Mas como toda invencionice tem prazo de validade e criança é um bicho impertinente, o enredo se desfez. Há muitos anos, o filho rebelde do prefeito resolveu importunar o 'Velho doido". Tentou de todas as maneiras. Fez isso, fez aquilo, e mais um pouco. Não adiantou: acabou pacificado pelas histórias do nonagenário. Desde então, o degredo perdeu forças e o velho ganhou popularidade.

Ainda menino, inúmeras vezes ouvi histórias contadas por ele. Histórias que não se repetem. Naquele livro mágico nasciam - e nascem - reinos, galáxias, monstros, florestas e muito mais. Naquele livro há passados e futuros inimagináveis. Confesso que, de vez em quando, deixo o café para ouvi-lo, como neste instante.

Atravesso a rua e me aproximo da plateia; crianças e adultos sentados na grama. Ele me reconhece. Cumprimento-o com um aceno. Ele dá uma piscadela e encosta o indicador no nariz me pedindo para manter o segredo. Meneio a cabeça assentindo.

Depois de pigarrear mais uma vez, abre o livro e começa a contar, elaborando gestos e expressões faciais para cada momento da história. Sua voz, embora rouca e um pouco enfraquecida, tempera com sabedoria cada palavra. Crianças e adultos, literalmente, viajam nas histórias.

Ao fim da oratória, recebe aplausos e outras manifestações de carinho. E vai embora.

Dentro de mim, o menino continua maravilhado. Dentro de mim, reina o segredo inviolável: ele é analfabeto e conta histórias guardadas no coração,

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Fernando Vasconcelos (Tertúlia da Saudade)


Ante a montanha serena,
é que o homem vê, com certeza,
como a criatura é pequena;
como é grande a natureza.

Ao criar toda grandeza,
em seu divino mister,
querendo amor e beleza,
Deus se esmerou na mulher.

A trova é coisa sucinta,
toda glória ao inventor...
só com pouquinho de tinta,
eu posso falar de amor.

Corre o homem a toda brida.
buscando mil emoções...
é cavalo de corrida,
no prado das Ilusões.

Deus deu ao Norte a salina,
para o cabra ter, quiçá,
no rigor de sua sina,
bem pertinho no jabá.

Esta saudade é um jeitinho
de estarmos juntos, nós dois;
de reviver teu carinho,
já tantos anos depois.

Faça este bom sonho arder,
no fundo do coração...
quando o querer é poder,
desejo se faz ação.

Palavras são universos,
aqui mesmo está a prova,
ao prender em quatro versos
o infinito de uma trova.

Pelo espírito picante,
as salinas, com esmero,
em colóquio incessante,
vão dando aos mares tempero.

Preso nas encruzilhadas,
bem depois de tantas fugas,
rolam lágrimas cansadas.
por velhas trilhas de rugas.

Quem do verso tem a lida,
a trova trazendo a lume.
porta a lâmina da vida
e usa bem certo o seu gume.

Quem já viu só tem certeza
e guarda no coração...
não há uma maior beleza
que um olhar de gratidão.

Quis a vida minha sina
fosse loucura qualquer,
por estes olhos menina;
por este corpo mulher.

Sinta forte, queira fundo,
nada move mais a gente,
nas estradas deste mundo,
que puro desejo ardente.

Solidão, estado d'alma
que não tem definição...
quando temos toda calma
a gerar agitação.

Solidão, este vazio,
vil chuva de pranto, em vão,
com gosto seco de estio,
sem definir a estação.

Um clima que, então, existe.
lembre-se disso, ó irmão...
estar só não é tão triste.
quanto sentir solidão.

Um rico conhecimento
é certo e trago comigo:
para quem não vive atento,
o desejo é um perigo.

Vendo tão calma a montanha,
não traz suspeita a visão,
de que, em sua rude entranha,
pode dormir um vulcão.

Vento que ondula copadas,
nesta sina de viajor
leve, nas tantas jornadas,
as nossas trovas de amor.

Fonte:
Fernando Vasconcelos. Estou nascendo para a trova. Ponta Grossa/PR: Gráfica Planeta, 1994.

sábado, 5 de outubro de 2019

Carolina Ramos (O Leitor…)


Quando alguma ideia pula da mente para o papel, ou, melhor dizendo... Quando algumas frases aparecem na tela do computador, clicadas por dedos não tão ágeis; às vezes quando as ideias fluem, os primeiros leitores serão sempre os olhos do autor, críticos ávidos, prontos para descobrir o que pode ser dito de melhor maneira, o que pode ser cortado como supérfluo, ou tão somente o que pode ser amenizado com um pouco mais de bom senso. E como são exigentes esses dois leitores, que analisam com rigor aquilo que a mente deixou passar sem cuidados maiores, sem análise ou filtro, mantendo ainda a pureza de um retrato sem retoques, nada do que foi dito, sem alcançar ainda forma definitiva!

Só depois desse encontro definitivo com o autor o texto viabilizado terá passagem liberada para chegar a outros olhos, talvez até mais benevolentes do que os primeiros! As páginas, os livros e os versos levam dentro de si a alma de quem os escreveu. Toda obra, em geral, tem o efeito de catarse, nem sempre buscada, mas incontida sempre. Isto porque a sinceridade de quem escreve é sempre difícil de ser controlada, e, ainda mais, de ser disfarçada.

O leitor tem em mãos uma obra qualquer. Poderá folheá-la com certo interesse. Como poderá relegá-la, após esse folheio. Poderá ainda deixar-se prender, quase que inconscientemente, por aquele fio invisível que conduz a narrativa até o ponto final - marco inconfundível de vitória do autor!

A sintonia que une a mente de quem escreve à mente interessada de quem lê é o objetivo principal daquele que nasce fadado a fragmentar-se, a cada dia, em letras e sinais gráficos que espelham o que pensa, expõem o que deseja, na entrega de sua alma inteira a seres que sequer conhece, mas cuja existência o ajudam a manter viva aquela chama criativa que lhe garante a sobrevivência do impulso indispensável à ação de escrever.

E é justamente aí que a importância do leitor mais cresce. Quem escreve quer ser lido. E, portanto, quem lê é complemento indispensável ao estímulo e à perpetuidade da difícil arte da escrita. O leitor é testemunho público de que aquele escritor por ele prestigiado faz jus ao título que carrega, podendo até depois de morto ser considerado imortal, uma vez que suas páginas palpitam ainda em mãos de quem as encontrou numa estante, em formato de livro.

E esse alguém, ao ler aquele livro com carinho, salva o autor da triste penumbra do esquecimento, cruel e contumaz apagadora de nomes e memórias, a cada dia que passa.

Fonte:
Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IV


A brisa da madrugada
no silêncio rega a vida,
a relva toda orvalhada
brilha rejuvenescida.

Amor, sentimento raro,
hoje, tão pouco vivido,
para viver pede amparo
sem perder o seu sentido.

As cortinas do universo
pelo tempo são rasgadas,
nelas o bom e o perverso
têm visões diferenciadas.

As estrelas cintilantes
nos chamam mais atenção,
não só por serem brilhantes
mas pela grande atração.

Comodismo não fomenta
as bases do crescimento,
só com dinamismo enfrenta
quem se focar no fomento.

Devo sempre agradecer
a Deus pelo que hoje sou,
mas também reconhecer,
nobre lar que me adotou.

Do avestruz ao beija-flor
respeitemos cada qual,
não matemos por furor
só por ser irracional.

Entre as linhas do presente
sinto o tempo se esvair,
seu sinal mais evidente
é nossa força exaurir.

Jornadas, noites adentro,
lapidam nosso amanhã,
tendo à fé o sublime centro
e o trabalho por divã.

Livro, o que tens pra contar?
Lições provindas do autor?
Quando este não mais falar
fales por ele ao leitor...

Mesmo sem ser importante
faço parte desta estrada,
cada vez mais integrante
de uma longa caminhada.

Na rua, pobre menino,
clamando, pedia esmola,
mal sabia, o seu destino,
era estar em uma escola.

Nas florestas vemos tantos
passarinhos a encantar,
seus suaves, lindos cantos,
nos fazem também cantar.

O dinheiro compra tudo,
menos a temida morte,
não se atreva alguém, contudo,
investir naquela sorte.

O homem chora por amores
também chora de saudade,
chora quando sente dores
ou só de felicidade.

Olho para o firmamento
em noite toda estrelada,
me enche de contentamento
vendo estrelas e mais nada.

O incêndio quando começa
com tendências a crescer,
tão pouco resta que impeça
de a tragédia acontecer.

O zero quando ficar
à esquerda do numeral,
seu valor pode mudar
só se for um decimal.

Quando tudo está perfeito
nos resta ratificar,
se tiver algum defeito
melhor é retificar.

"Quem não vive pra servir
não serve para viver".
Isso nos faz refletir
sobre o nosso proceder.

Quem temer o sofrimento
pode sofrer duplamente,
a dor chega num momento
vai sumindo lentamente.

São perplexos os motivos
que deturpam tantas mentes,
deixam rostos aflitivos
com sintomas de doentes.

Se desejas alcançar
grande sol na vida tua,
lembra que deves passar
pelas estrelas e a lua.

Talvez com pouco dinheiro
compro o que me satisfaz,
mas não compro por inteiro
minha tão sonhada paz.

Tantas lutas acontecem
sem nenhuma munição.
Aranhas que teias tecem
só vencem pela traição.

Todo o percurso seguido
nesta longa caminhada,
nunca nos tenha servido
de tropeço pela estrada.

Use a sensibilidade
pra tornar a vida plena,
melhorando a sociedade
vai mudar o ecossistema.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.