quarta-feira, 6 de maio de 2020

Lygia Fagundes Telles (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)



A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força… Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. — A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda…

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A senhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

— Essa menina… — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno…

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá…

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa…

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá…

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele…

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. “Que é que eu faço agora?”, murmurou inclinando-se para a rosa. “Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo?

Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado…

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela…

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela… É ela! — sussurrou excitadamente. — É ela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. 1970.

terça-feira, 5 de maio de 2020

A. A. de Assis (O Menino que Nasceu Voando)


Que pena que a memória é curta e o descapricho é grande. Aconteceu muita coisa importante em Maringá ao longo dos 65 em que aqui estou. Os fatos ficaram na lembrança, porém sem anotações quanto a determinados detalhes.

Por exemplo: a história de um menino que nasceu nas nuvens, dentro de um avião. Nos poucos registros a respeito, a primeira divergência é sobre a data: uns dizem que foi no dia 19 de julho de 1957 (data que me parece mais provável), outros falam em 10 de maio de 1958.

A população ouviu pelo rádio a notícia de que um avião da Vasp estava se aproximando de Maringá trazendo a bordo uma cena de cinema: uma jovem senhora entrara em trabalho de parto e precisou ser socorrida pelas aeromoças, que improvisaram algo parecido com cama no corredor da aeronave. Era um daqueles velhos e valentes Douglas DC-3, bimotor que prestou preciosos serviços aos nossos pioneiros.

Correria louca na cidade: uma ambulância com a sirene aberta abrindo caminho na Avenida Brasil. Radialistas, jornalistas, fotógrafos em disparada para não perder o furo de reportagem (televisão ainda não havia por aqui). Curiosos chegando de carro, de moto, de bicicleta, a pé. De repente o antigo aeroporto Gastão Vidigal foi tomado por uma enorme multidão.

Eu lá no meio, junto com o Manuel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”) e o fotógrafo Edgar Taborianski, já ensaiando a bela manchete em oito colunas para a edição do dia seguinte. “O menino que nasceu voando”.

O comandante do avião, bastante emocionado, ia informando ao pessoal de terra (creio que só um rapaz que cuidava do aeroporto), sobre o andamento da emergência. Pedia que a ambulância se postasse perto da pista de pouso e que os médicos e enfermeiras ficassem prontos para um procedimento imediato.

Não deu tempo. O bebê veio à luz dentro da aeronave, antes da aterrissagem, com a corajosa e eficiente ajuda das comissárias de bordo e o aplauso dos passageiros.

A história virou notícia nacional. O menino, que já nasceu famoso, foi registrado e batizado em Maringá, com um nome bem adequado: Miguel Vaspeano. Miguel por haver nascido voando, como um anjo; Vaspeano, como homenagem à Vasp, que lhe serviu de maternidade. Informou-se depois que a direção da empresa considerou tão importante o evento, que estaria até disposta a patrocinar os estudos do garoto até a universidade.

Mas veja como o destino às vezes surpreende. Miguel Vaspeano Lepeco fez carreira como piloto de táxi aéreo, voou durante 25 anos e terminou a biografia do mesmo modo como começou: morreu num acidente de avião, aos 52 anos, nas proximidades de Manaus, no dia 13 de maio de 2010. Ele pilotava o avião Sêneca prefixo PT JUV.

Se não há, deveria haver em Maringá uma Rua Miguel Vaspeano.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-4-2020)

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Geraldo Pimenta de Moraes (Poemas Escolhidos)


DOCE INSTANTE...

Quantas vezes se busca pela vida
uma alegria, um bem, uma ventura,
sem nada achar-se, em luta estremecida,
vendo aumentar-se, sempre, a nossa agrura.

E, às vezes, num instante, sem corrida,
sem luta, sem espera e sem loucura,
ditosa e risonha, alma embevecida,
a gente tudo encontra, sem procura.

Que alegria de nós, então, se expande,
com doçura, através de um longo beijo,
num doce instante, que se faz bem grande!

E assim, a gente, em tão feliz ensejo,
recebe, palpitante, alma fagueira,
um Bem, que durar pode a vida inteira!...
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ENQUANTO ALGUNS...

Enquanto alguns batalham, sem temor,
com alma, com fervor e com respeito,
buscando um mundo bom e mais perfeito,
um mundo cheio de pureza e amor...

Enquanto alguns, com valentia e ardor,
se esforçam, procurando dar um jeito
de eliminar do mundo o desrespeito,
de eliminar do mundo a guerra e a dor...

Enquanto alguns, com seu amor profundo,
fraternidade buscam, neste mundo,
sofrendo, embora, todo escárnio e apodo:

– São muitos os que, em gesto furibundo,
buscam, com negro afinco e vil denodo,
fazer do mundo um mar de lama e lodo!
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FRUSTRAÇÃO

Pela vida alongando, um dia, os passos,
parti, confiante, austero e com ardor,
buscando, à minha frente, os róseos laços,
os róseos laços de um sublime amor...

E, em meus caminhos, só tive embaraços,
espinhos encontrando, em vez de flor...
— Fui enfrentando, assim, negros espaços,
negros espaços de tristeza e dor!...

E hoje, cansado, em minha mente, à toa,
eu sinto a imensa angústia, que povoa
toda a distância dos meus tempos idos,..

E a ferir-me a lembrança ainda vive
um punhado de sonhos vãos, perdidos,
do que eu quis ter na vida, mas não tive!
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NEM EM SONHO...

Eu sonhava contigo... Estavas linda!
Eras a santa imagem do pecado,
com atração tão doce, tão infinda,
que até fiquei pateta e deslumbrado.

E assim, eu disse a ti: — Sejas bem-vinda
a mim, que por ti vivo apaixonado!
E, como alguém que sai de uma berlinda,
sorridente, avancei para o teu lado...

E quando, todo amor, todo desejo,
quando faminto e louco por teu beijo,
quando, enfim, eu de ti me aproximei,

no instante do teu beijo então gozar,
não sei por que, meu Deus, eu acordei...
— Nem em sonho eu consigo te beijar!...
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O ZÉ TORRESMO

Era um pobre coitado o Zé Torresmo,
tão caolho, tão magro, tão sem trato,
que acreditava até, vivendo a esmo,
estar sobrando neste mundo ingrato.

Sem ter da vida um gesto bom e grato,
por todos desprezado, o Zé Torresmo,
esboçando na mente o seu retrato,
como que perguntava: — "Existo mesmo?..

Será que a minha vida ao mundo importa?…”
E assim, o Zé Torresmo, alma inocente,
fitava o céu, com sua vista torta,

como a dizer a Deus, humildemente,
num gesto triste, pela dor ferido:
"Perdão, Senhor, por eu haver nascido".
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SONETO SEM FIM...

Um soneto eu tentava, então, fazer,
todo inspirado num sublime rosto,
num lindo rosto, lindo de morrer,
— legítima expressão de encanto e gosto...

E esse rosto, que dava gosto ver,
queria ver num meu soneto posto,
quando acontece, então, me aparecer
o anjo divino — a dona desse rosto...

E eis que esse ente querido, um riso aberto,
de mim se aproximou, olhar esperto,
quando eu já tentava o último terceto...

Trêfega, esbelta, alegre e com meiguice,
"abraça-me, vovô!" — ela me disse,
interrompendo, assim, o meu soneto...
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SUBLIME PERFEIÇÃO...

Dos céus merece, como prêmio, a Palma
do Amor, quem nesta vida enfrenta escolhos,
de alegria vestindo, à beira da alma,
toda angústia que vem de seus refolhos.

E assim agindo, com bondade e calma,
sorrir procura para os seus abrolhos.
E os infernos de dor, que esconde na alma,
vai transformando em céu de amor, nos olhos.

É perfeito e se torna quase um santo,
pois sabe disfarçar seu desencanto,
quem tem gestos assim puros e sábios

de afogar sua angústia, seu desgosto,
dentro do amor a lhe florir no rosto,
com um sorriso a lhe bailar nos lábios!
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VIBRAÇÃO...

E deixa que minha alma, então contente,
sorrindo vibre, no êxtase do beijo
que, para festa desse meu desejo,
teus lábios hão de dar-me, ardentemente!

Todo o meu ser há de tremer, fremente,
ante o prazer infindo, que antevejo,
e em cujo doce e tão sublime ensejo,
hei de sorrir feliz, gostosamente!

De Cupido no Altar, então faremos
as núpcias desse amor sensacional…
e o grito do prazer, juntos, daremos,

como se fora a prece conjugal...
Enfim, nós ambos, eu e tu, seremos
do mundo inteiro o mais feliz casal!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Irmãos Grimm (O Lobo e a Raposa)


Houve, uma vez, um lobo que tinha em sua companhia a raposa, e a coitada da raposa tinha de fazer tudo o que ele queria, pois era mais fraca, por isso, ficaria muito alegre se pudesse livrar-se de tal patrão.

Certo dia, em que estavam atravessando a floresta, o lobo disse-lhe:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas algo para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um sítio no qual há um casal de ovelhinhas. Se desejas, podemos apanhar uma delas.

O lobo gostou da ideia e concordou. Foram até lá e a raposa furtou a ovelhinha, entregou-a ao lobo e afastou-se.

O lobo devorou-a num abrir e fechar de olhos mas não se satisfez, queria comer também a outra e foi buscá-la. Mas foi tão desastrado que a mãe da ovelhinha percebeu-o e desandou a berrar e a balir tão fortemente, que os camponeses vieram correndo. Lá encontraram o lobo e o espancaram, tão rudemente, que o pobre ficou reduzido a lastimável estado. Mancando e uivando, conseguiu arrastar-se para junto da raposa.

- Pregaste-me uma boa peça! - disse ele - Eu quis apanhar o outro cordeirinho e vieram os camponeses, que me encheram de pancadas.

- E tu, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No dia seguinte, voltaram ao campo e o lobo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

- Conheço um sitiozinho aqui por perto, cuja dona hoje à tarde vai fazer bolinhos. Se quiseres podemos ir buscar alguns.

Foram até lá e a raposa esgueirou-se em torno da casa, tanto espiou e farejou que conseguiu descobrir o prato, furtou seis bolinhos e levou-os ao lobo.

- Eis aqui o que comer! - disse, e afastou-se para os seus afazeres.

O lobo engoliu os seis bolinhos de uma vez, dizendo:

- Chegam apenas para aumentar a vontade.

Dirigiu-se à casa, puxou o prato logo de uma vez; este caiu e ficou em mil pedaços, fazendo um barulhão dos diabos. A mulher correu para ver o que acontecia e descobriu o lobo, pôs-se a gritar chamando mais gente que, sem dó nem piedade, desandou a espancar o lobo até mais não poder. Este, mancando das duas pernas, saiu gemendo e foi ter com a raposa.

- Que boa peça me pregaste! - gritou choramingando - os camponeses pegaram-me e curtiram-me a pele sem dó nem piedade!

- Mas, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No terceiro dia, tendo saído juntos, o lobo arrastava-se penosamente, assim mesmo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um homem que matou uma vaca e guardou a carne salgada dentro de um barril, na adega. Vamos buscá-la.

- Sim, - disse o lobo - mas eu quero ir junto contigo para que me ajudes, do contrário não poderei fugir.

- Como quiseres! - disse a raposa.

Foi mostrando-lhe o caminho e as passagens ocultas que por fim os levaram à adega. Havia lá grande quantidade de carne, e o lobo, esfaimado, atirou-se imediatamente a ela, pensando: "Não largarei tão cedo!"

A raposa também comia a valer, mas não deixava de olhar em volta, correndo de quando em quando para o buraco pelo qual haviam entrado a ver se estava ainda bastante delgada para passar por ele. O lobo, intrigado, perguntou-lhe:

- Explica-me, cara raposa, por que é que corres de cá para lá e pulas para dentro e para fora?

- Tenho, naturalmente, de espiar se vem alguém! - respondeu a espertalhona. - Mas aconselho-te a não comer demais.

- Ora, - disse o lobo - não sairei daqui enquanto não esvaziar o barril.

Nesse ponto, o camponês, que ouvira os saltos da raposa, desceu à adega, assim que o viu, a raposa deu um pulo para fora do buraco. O lobo quis fazer o mesmo, mas tanto se empanturrara que seu ventre enorme não conseguiu passar pelo buraco e ficou lá entalado.

Então o camponês pegou um pau e bateu-lhe tanto que o matou. A raposa, porém, fugiu para a floresta, muito feliz por ter-se livrado finalmente daquele glutão.

Fonte:
Contos de Grimm

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Olivaldo Júnior (Meu Reino por um Álcool em Gel!)


(Crônica premiada em 3º Lugar no I Concurso Literário Virtual da ACL – Academia Virtual Contemporânea de Letras – Isolamento Social - Coronavírus)

Toninho era obcecado por sua saúde. Mais especificamente pela falta de saúde da qual poderia ser vítima. Portanto, os amigos o tinham apelidado de “Toninho Drogaria”, pois o cara não saía da farmácia. Era, praticamente, o médico informal da família, o curandeiro-mor da galera, o pajé improvisado da taba, digo, do bairro em que morava. Assim, quando ouviu na tevê que o coronavírus estava de malas prontas para o Brasil, desesperou-se em nível hard.

Baixo, gordo, de cabelos pretos, Toninho era o típico gordinho simpático e, assim que soube do inimigo que o País estava prestes a enfrentar, tratou de se mexer e se informar sobre a origem do perigo, seus sintomas, formas de contágio e táticas de enfrentamento, que, dentre outras, consistia basicamente em evitar abraço, beijo e aperto de mão, assim como lavar as mãos e usar álcool em gel quando as mãos não estiverem propriamente sujas, como proteção.

“Hum... Álcool em gel, eu usava era para acender a churrasqueira...”, pensou com seus botões nosso Toninho. “Preciso estocar esse produto! Vai que... Nunca se sabe!”. Mas o que Toninho não sabia era que, assim como ele, outros brazucas tinham tido essa ideia. A mãe de Toninho, por exemplo, não tinha pensado em estocar álcool, não, mas em estocar comida e produtos de limpeza. Dona Lúcia estava convencida disso. E Toninho só pensava em álcool.

− Mãe, tô saindo para comprar álcool! Quer carona pro mercado?, falou, preocupado, já na porta de casa, para a mãe, que já vinha armada de sacolas, ecobags, em suas mais variadas cores e padronagens, pois a compra seria farta.

− Cê me deixa no Mercado Novo, filho, que eu me viro de voltar de Uber.

− Sussa, mãe. Eu vou comprar todo o álcool que eu puder, hahahahaha!

− De fome, nós num morre, não, filho!

− Nem de falta de álcool, mãe. Eu garanto!

E, ao chegar ao tal mercado, Dona Lúcia, munida de suas bags, viu o que seria chamado de caos, apocalipse, ou fim do mundo, em plena tarde de início de outono. Era um tal de acotovelar o próximo e carregar os carrinhos com tudo o que não fosse imediatamente perecível, a fim de fazer um estoque para a Terceira Guerra Mundial, digo, para a fase de quarentena, que, a julgar por aquelas compras, duraria quarenta meses, ou quarenta “séculos”.

“Acho que eu vou ter trabalho!”, falou para si mesma arregaçando as mangas nossa frágil Dona Lúcia, receosa pelo que aquela simples tarde de compras poderia vir a lhe custar.

Toninho, por sua vez, havia chegado à melhor farmácia da Cidade, a “Beguine Dodói”, que estava tão lotada quanto o mercado. As pessoas estava alucinadas, sem limites.

Assim, ao avistar uma prateleira, no canto esquerdo de quem entra, cheinha de álcool em gel, Toninho se alegrou. Mas, como um filme de Almodóvar, ou algum equivalente, conforme Toninho se aproximava da prateleira, foram surgindo clientes tão afoitos quanto ele em seu caminho, fazendo com que um mero corredor se transformasse num verdadeiro paredão de fuzilamento, num movimento surreal de pessoas que deveriam manter distância.

− Mulheres deveriam ser poupadas dessa fila!, gritou uma senhora, não de idade, mas de roupa de ginástica, toda cheia de si, dondoca dos trópicos.

− E eu, que tenho mais de sessenta?! Quero meu álcool primeiro!, disse o vovô que, com todo o gás que a melhor idade lhe dava, sopapeou dois.

Toninho foi se enervando e, como se fosse um Superman sem capa e sem cueca por cima da calça, com toda a força que um hipocondríaco é capaz de gerar, deu seu “grito do Ipiranga”, seu grito de guerra em busca de paz:

− Um álcool! Um álcool! Meu reino por um álcool em gel!

Shakespeare, nessa hora, se mostrou revitalizado em sua glória, lá no Céu dos Dramaturgos. Uma fala de Ricardo III tinha sido parafraseada por um pobre brasileiro que tudo o que queria era álcool em gel para as mãos.

Tumulto ainda maior. Ninguém demonstrou a menor piedade por ninguém. O alvo era comprar seu frasco de álcool em gel e que se danasse o parceiro.

Dona Lúcia, por sua vez, também se esfalfava ao disputar um saco de arroz com uma vizinha. E, ao contrário de Toninho, Dona Lúcia nem pôde evocar Sir William Shakespeare. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Microfrases) I


ESSA HISTÓRIA DE ESCREVER contos em microfrases, começou com Ernest Hemingway, autor de “O Sol Também se Levanta”, “Por Quem os Sinos Dobram”, "O Velho e o Mar" e “Adeus às Armas”, entre outros. A ideia central do escritor se baseava em narrar um fato, produzindo um texto, usando apenas seis palavras, como num minimalismo.

Dito de forma mais abrangente: a nossa finalidade foi a de criar frases nos mais diversos temas, deixando que os leitores quebrem a cabeça preenchendo as elipses faltosas, adaptando a imaginação e completando, a maneira de cada entendimento lido, o que o autor quis dizer, por detrás dos períodos aqui apresentados.

Uma microfrase famosa de Hemingway, que aparece em  “Winner  Take Nothing”. ‘NÃO DESCREVA UMA EMOÇÃO. CRIE UMA’. Perceberam? Apenas seis palavras. Nesse tom, trouxemos para nossos amados e queridos leitores, pequenos contos em microfrases empregando, nada mais, nada menos, que até meia dúzia de palavras. Confiram.

1
Desespero
O homem seguia meus passos. Fugi.

2
Gosto apurado
Mamãe amava rosas vermelhas na sala.

3
Divagação
Gosto de olhar para o futuro.

4
A palo seco
Meu caminho é longo. Adoro passear.

5
Fato
Quando você partiu, fiquei com saudade.

6
Real
Olho para tudo e me encanto.

7
Ponto pacífico
Meu espelho reflete a minha alma.

8
Sonho perfeito
Se ela chegasse agora... Eu sorriria...

9
Sem resposta
Qual de nós dois se perdeu?

10
Voraz
E o silêncio calou minha voz.

11
Sem rumo
No compasso dos meus passos, viajei.

12
Multiplicação desenfreada
Fui, retornei mil vezes. Me repeti.


13
Requinte formal
Aqui estou inteiramente nu. Quero você!

14
É fato
Se eu olhar para trás, despencarei.

15
Bucólico
Sonho sonhar mil coisas enquanto durmo.


16
Descoberta
E, de repente, me vi sozinho.

17
Trágico
Olhei em meu derredor. Estava só.

18
Fuga
Quando quero chorar, fico sozinho comigo.


19
Idealização amorosa
Meu amor me beijou. Quase desmaiei...

20
Picar na veia
Meu futuro é incerto. Tenho medo!

21
Retrocesso invulgar
Ah, se pudesse voltar no tempo...!

22
Heteróclito
Gosto de olhar o mar. Rejuvenesço.

23
Ponto final
A sua luz incendeia minha escuridão.

24
Incontestável
Hoje sou você, amanhã nos dois.

25
Bizarro
Se morresse agora, perderia a vida.

26
Súplica
Não pare, não pare! Me ame...

27
Petição
Volta, amor. Venha  correndo... Estou carente...

28
Fim da linha
Corri tanto atrás de você... Cansei!

29
Bagaço
Olha como você me deixou: vazio!

30
Ponto pacífico
Descobri que sou maluco por você!

Fonte:
Texto enviado pelo escritor.

domingo, 3 de maio de 2020

Rubem Braga (Nascer no Cairo, ser Fêmea de Cupim)


Conhece o vocábulo escardichar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de  algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom  vernáculo,  exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência"- mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranquila no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por  acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?)

Alguém já me escreveu também - que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação – contra a língua." Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardichar.  Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo - e nunca soube o que fosse escardichar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardichado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que  uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas?

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardicham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente de Cachoeiro de Itapemirim!

Fonte:
Rubem Braga. Ai  de  Ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos)


CONCEITOS

Bem-aventurado o homem
que  caminha amealhando  sonhos
e bendizendo amanheceres.
Benditos são  aqueles que promovem a paz
e reconhecem a igualdade de todos os SERES!
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CULTIVO


No meu caminho tinha uma pedra,
no  meu caminho tinha um sonho.
Do meu caminho quebrei a pedra,
no  meu caminho fiz um jardim.
Dei corda ao sonho e plantei rosas, plantei jasmins.
Hoje o perfume de cada dia atrai insetos e passarinhos
que  na zoeira dos seus  deveres
tecem  seus  ninhos, cumprem seus lemas.
Do meu caminho quebrei a pedra,
do meu caminho fiz um poema.
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O POETA E A POESIA


Mais nua do que Eva lancei-me à vida.
Vesti-me de palavras, da leitura do  mundo
e  me fiz poeta.
A poesia não pode ser derrotada.
Foi ela quem cantou  a mitologia Grega,
as  liturgias, os salmos e o culto maior a Deus.
É através dela que o poeta  abre  a cancela dos sentimentos,
toca  suas feridas, macera suas dores
e transforma suas lágrimas em versos.
Foi o encanto da poesia que deu ritmo ao universo.
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POR QUE ESCREVO


Escrevo porque a arte define o amor,
escrevo   porque  a poesia me completa.
Poetar é minha oração diária,
se  não escrevo minha alma dói
e  a dor da alma  asfixia.
Na  poesia exercito os meus sentimentos
e faço de cada momento o registro das minhas metas
sem  que eu me sinta exposta.
A vida me consome, quero me  definir
em  palavras, as palavras me editam.
Em meus poemas, me desnudo, me  desbravo
e sem medo deixo fluir meus segredos,
desvarios  de um poeta.
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VERSOS (DI) VERSOS


Foi a ti, que entreguei os meus desertos,
 despi   minha alma  e deixei  que me   habitasses.
Foi para ti que desfiei palavras, teci  sonhos
e me fiz poeta.
Quero beber da tua fonte e me aportar em tuas margens.
Nos teus céus me recolherei como um poente
que  se entrega  aos braços do universo.
Foi para ti que aprendi a fazer versos!
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ARIDEZ


Emprenhada de ilusão vaguei pelo imenso
descampado  das  promessas.
Não houve parto, houve partida.
Caminho e em meu corpo se enrosca
um cheiro de folhas maceradas.
Ou de um vinho, que já deixou de ser generosa oferta.
Desiludida, não busco mais amor,
apenas  me alimento de metáforas.
Sou a anáfora dos meus desertos íntimos,
um  cacto à espera do milagre da chuva.
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CONFISSÃO


Meu corpo se propôs a ser barco
para  navegar  os teus oceanos,
dominar  tuas  enseadas e com  os fios dos meus sonhos,
tecer  uma  rede para  te prender a  mim.
No sem fim dos teus segredos,
sem   medo  quero  ancorar  o meu barco, farto de emoções.
Na concha das tuas curvas saciarei minha sede,
secura  de esperas seculares.
E depois de ti não navegarei outros mares.
****************************************

METAMORFOSE

Antes eu sofria de árvore
e cantava o canto delas.
Acompanhava suas floradas,
subia  em seus troncos,
comia  cajus,  pitangas vermelhas
e  me via no espelho do rio.
O rio ladeava, eu ladeava com  ele
pisando  musgos, barrancas encharcadas,
buscando  atalhos.
Hoje sou pedra em lapidação
e sofro de cascalho.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.
https://versosderita.weebly.com/versos-diversos.html

Sílvio Romero (A Sapa Casada)


(Conto Sergipano)

Uma vez havia um homem que tinha três filhos. O mais velho deles lá num dia foi ao pai e disse:

– "Meu pai, eu já estou moço feito, vossa mercê já está velho, e por isso eu quero ir ganhar a minha vida".

— "Pois bem, meu filho; mas tu o que queres — a minha bênção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito?"

O moço respondeu:

– "A sua maldição com muito."

Assim foi, e o moço partiu. Depois de andar muitas terras e passando sempre contrariedades, casou-se.

Um ano depois o seu irmão do meio foi ao pai e lhe disse que também queria ir ganhar a sua vida. O pai lhe fez a mesma pergunta que ao primeiro, e o moço respondeu como ele e partiu.

Depois também de muito viajar e sofrer, casou-se.

Daí a um ano o irmão caçula também pediu ao pai para ir ganhar a sua vida. O pai perguntou-lhe se queria a bênção com pouco dinheiro, ou a maldição com muito. O moço quis a bênção, e seguiu caminho.

Depois de andar algum tempo ouviu uma voz muito bonita, estando ele a descansar perto de uma lagoa. O moço ficou muito maravilhado e disse que se casaria com a dona daquela voz, fosse lá ela quem fosse.

De repente ele se viu num palácio muito rico e apareceu-lhe uma sapa para casar com ele. O moço casou-se, mas ficou muito triste.

Ora, passando algum tempo, ele e os irmãos tinham de ir visitar a família, pois isso mesmo tinham contratado com os pais. Num certo dia todos três tinham que se apresentar. Todos tinham que levar presentes mandados por suas mulheres, e o rapaz mais moço, casado com a sapa, andava muito aflito sem ter o que levar. A sapa lhe disse que lhe desse linhas que ela queria aprontar umas rendas para mandar à sogra.

O moço deu uma gargalhada e atirou-lhe as linhas na água. A sapa gritou todo o dia dentro da lagoa, formando muita espuma, e o moço desesperado. Mas, quando foi no dia, apareceu-lhe uma renda tão linda como ele nunca tinha visto. O moço partiu.

Houve muita alegria lá na casa dos pais, e o presente mais bonito foi o levado pelo caçula, pelo que os irmãos ficaram com muita inveja. Despediram-se os moços para voltar para suas casas, e os pais lhes pediram para no dia tal voltarem, levando cada um sua mulher. Aí os dois filhos mais velhos ficaram mais contentes, porque já rosnava por lá que o caçula tinha-se casado com uma sapa.

O mais moço nada disse, e andava em casa muito triste, pensando na vergonha por que ia passar se apresentando com uma sapa por mulher.

Quando foi no dia da viagem a sapa pulou para fora da lagoa com um rancho enorme de sapos e sapinhos, e pôs-se a caminho com o moço, ele a cavalo e ela num carro de boi com seu acompanhamento. O moço ia muito triste.

Chegando à casa do pai, todos se puseram a caçoar da sapa, que não dava o cavaco. Na ocasião do jantar, ela, em vez de comer, escondia a comida no seio, e as cunhadas especialmente se puseram a ridicularizá-la como porca.

De repente a sapa tirou do seio uma porção de flores em que se tinham transformado os bocados de comida e se desencantou numa princesa muito formosa, que serviu de admiração a todos, menos às cunhadas que morreram de paixão e inveja.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Paulo Mendes Campos (Os Diferentes Estilos)


Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjeitivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de  Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de  bêbado) um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como se  já  não  bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram azuis, olhos para a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo -  Onde andará a mãezínha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a  Estrela-d'Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.

Estilo  didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva)


A última bomba H estava irredutível. De modo algum abandonaria o seu refúgio lodoso, a 750 metros de profundidade, no Mediterrâneo.

- Não faça isso com a gente - suplicavam-lhe três mil oficiais, técnicos, mergulhadores, marinheiros e praças, empenhados  há  quase  90 dias em sua recuperação, e que por fim a localizaram naquele fundo de mar, bem encolhida, bem desiludida.

- Daqui vocês não me tiram - respondeu-lhes a bomba. - O primeiro que me tocar, eu  explodo. Talvez este tempo de verbo não exista, mas pouco estou ligando à gramática de vocês. À gramática e ao resto. Estou farta! Farta!

Os expedicionários insistiam. Aquele domicílio era  impróprio para ela; não ficava bem a uma bomba nuclear, talhada para altas missões, dormir no fundo das águas, que nem peixe fugindo à caçada submarina. Que desmoralização para um artefato de 20  megatons! Era em seu próprio benefício que a estavam querendo tirar dali.

- Hmmm - resmungou a bomba, sem se deixar convencer.

- Vamos. Suas companheiras de viagem caíram em terra, não deram trabalho. Foram logo recolhidas, e até agradeceram nossa solicitude em reavê-las. Uma bomba normal gosta de voar, voar sempre sobre a terra inteira, divertindo-se com o turismo aéreo nos bombardeiros. Não é para destruir nada, nem sequer para assustar ninguém, pois vocês  viajam incógnitas. É por  prazer. E você recusa esse prazer que nós lhe oferecemos?

- Prazer! Prazer! Que prazer sente uma bomba em não explodir? Afinal, que fizeram as colegas em território espanhol?

- Coisinha à-toa. Apenas contaminaram as plantações em torno de Palomares, mas nós indenizamos os lavradores. Não queremos que nossas bombas dêem prejuízo a ninguém.  Uns pobres-diabos até ficaram radiantes: há muito tempo que não viam dinheiro, e dólar, jamais.

- Quantos mortos?

- Fora os tripulantes dos aviões que se chocaram, nenhum. Você mesma, aí dentro d'água, não assusta o pessoal. Nosso embaixador em Madri e o Ministro do Turismo da Espanha vieram tomar banho lá em cima, para provar que você não é de nada. Venha, já está ficando tarde.

- Estão vendo? Eu não sou de nada! Nenhuma bomba é de nada! Para que foi, então, que nos fizeram?

Como ninguém respondesse, ela continuou:

- Vocês, ao nos criarem, não deram somente uma nova  angústia à humanidade. A nós também nos rechearam de angústia. Ficamos ansiosas por explodir - e nada. É hoje, é  amanhã, e nunca se resolve. Acabamos ficando mais angustiadas do que as populações que se angustiam por nossa causa. E vocês fazem disso um jogo, vocês e os outros.  Estávamos com grandes esperanças no Vietnã, mas qual o quê. Vamos envelhecendo, outros engenhos nos passam para trás, amanhã a Lua será ocupada e equipada com armas fantásticas, astros e planetas entrarão no brinquedo, e nós apodrecendo por aí, sem uso, sem  préstimo.  Por  isso  aproveitei  o desastre de avião, e caí fora. Quero me livrar dos homens.

Falando, falando, deslocou-se entre as rochas, para melhor esconder-se. A turma aproveitou o movimento e fisgou-a, alçando-a à superfície, sob protesto. Esta não escapa à  sorte de voar sobre a Terra. Depois de recondicionada.

Nem elas escapam.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão. RJ: José Olympio, 1976.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Romantismo Corrompido)


DONA ADRIANA DE FIGUEIREDO, setenta e dois anos, era do tipo romântica. Sonhadora. Aliás, sempre fora sonhadora. Tudo levava a sua imaginação a viajar além do alcance das vistas. Uma palavra dita aqui, outra ali, uma frase que alguém dissesse, um bichinho que pousasse na sua roupa, uma lufada de vento mais ameno que tocasse seu rosto, um raio de sol quente que a fizesse suar, uma lua bonita que surgisse resplandescente no infinito da noite, o mar, o mar, então, uau!, exercia uma onda forte em sua cabeça e a fazia navegar por terras nunca antes pisadas.

Enfim, qualquer pequena coisinha insignificante para as outras pessoas fazia dona Adriana de Figueiredo viajar  por  espaços cada vez mais espetaculosos. Seu Gabriel Figueiredo, o marido, mais velho que ela cinco anos, ao contrário da devotada esposa, nada tinha de romântico. Se mostrava vazio, longe dessas blandícias* que encantam os que vivem de pequenas melifluidades*. No geral, a criatura não se limitava a teorias, encarava sempre as coisas pelo lado positivo. Em resumo, seu Gabriel Figueiredo, na acepção da palavra, sem tirar nem "destirar", um prático de carteirinha e sindicato.

Certa manhã, ao não ver o marido sair cedo de casa, para uma viagem de um mês, três dias depois, já em clima de saudade, decidiu lhe mandar uma mensagem. Escreveu: “Amor da minha vida. Se estiver rindo, me mande um sorriso.  Se estiver chorando, me mande lágrimas. Se estiver com saudades, me mande um recadinho. Se estiver dormindo, me mande seu sonho. Quero sonha-los junto com você, e tentar fazer dele a sua melhor realidade”.

Não parou aí. Seguiu adiante: “Saiba que amo você, demais e onde quer que esteja, a distância nunca se fará pesada e densa”. Mandou. Uma hora depois o celular deu sinais de vida e dona Adriana de Figueiredo, pressurosa pela resposta, apressada para saber do companheiro de tantos anos de vida em comum, sobretudo, agitada e impaciente, com a sua ausência, leu o que a sua cara metade escrevera de volta: “Adri, estou no banheiro! O que faço?”.
_____________________________________
* Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Blandícias – carícias.
Melifluidades – maneiras doces.


Fonte:
Texto enviado pelo escritor.

Humberto de Campos (A Festa da Inteligência)


Por especial deferência do sr. ministro das Relações Exteriores, foi-me permitido, anteontem, nos "Diários", tomar parte, como diplomata, nas homenagens prestadas pela intelectualidade brasileira a Sua Majestade o Rei da Bélgica. Relegado para as filas destinadas aos jovens funcionários do Itamarati, não foi sem custo que consegui aproximar-me do local distribuído aos homens de ciências e de letras, cujos paramentos, tirados às sete cores do arco-íris, davam à solenidade um tom de magnificência, de luxo, de riqueza, verdadeiramente excepcional. Ao lado dos fardões acadêmicos, faiscantes de ouro, berravam o vermelho dos capelos, o verde das murças, o negro das becas, assinalando, no tumulto das cores, os catedráticos das Faculdades de Medicina e de Direito, os membros do Instituto Histórico, os doutores da Ordem dos Advogados. E como se não bastasse o aspecto magnificente das vestimentas, cintilavam por toda a parte as medalhas, os crachás, as condecorações de todos os países do mundo, como se tivesse caído sobre aquela assembleia de sábios uma luminosa chuva de pedrarias.

A atual sociedade brasileira, educada nos costumes igualitários da República, não pode ver, entretanto, a sério, essas manifestações suntuosas da vaidade humana. Deslumbrados com o que viam, os espíritos divagavam, tontos, sem compreender a legítima expressão daquele espetáculo. Dessa verdade lamentável, tive eu vários documentos, que me causaram a mim verdadeira indignação. A minha primeira desilusão foi à entrada do Sr. barão de Ramiz Galvão, o velho e glorioso fidalgo do Império. Trajando uma casaca irrepreensível, o eminente educador trazia ao peito, do ombro à cintura, e de ambos os lados, todas as suas condecorações. Eram a da Rosa, do Brasil; a de Santiago, de Espanha; a da Ordem de Cristo, de Portugal; a da Legião de Honra, da França; a do Elefante Azul, da Pérsia; a de Estanislau, da Polônia; a da Ordem do Latrão, do Vaticano; e tudo isso no meio de passadeiras, bentinhos, cordões, amuletos, fitas, distintivos, medalhas e penduricalhos, obtidos em sessenta anos de discursos e magistério. À chegada do venerando professor, houve um deslumbramento; e o primeiro comentário, de uma senhora colocada nas proximidades do corpo diplomático, foi, logo, este:

- Meu Deus! Parece... porta de casa de brinquedos!

A entrada do desembargador Ataulfo de Paiva, da Academia de Letras, causou o mesmo pasmo, o mesmo espanto, a mesma admiração. Ornamentado com as suas dezenove condecorações, postas em destaque pela sua faixa vermelha de Cavaleiro de São Maurício e pela originalidade do seu cordão da Ordem do Dragão, da China, o ilustre magistrado estava deslumbrante. Sem perder a calma, o primeiro a registrar, com espírito, a sua situação, foi ele próprio.

- De onde vem, desembargador? - indagou, com graça, à entrada do salão, a Sra. Santos Lobo.

E ele, sorrindo:

- Da festa da Penha, excelentíssima!

Dentro, no recinto dos homens eminentes, destacavam-se, também, pela singularidade, os distintivos de Carlos Malheiro Dias. Antigo fidalgo da Casa Real Portuguesa o brilhante escritor vestia uma capa em vermelho e preto, semeada de comendas azuis, de crachás amarelos, de medalhas reluzentes, a emergirem de um oceano de fitas simbólicas, pertencentes a vinte ordens diversas. Ao vê-lo indagou uma senhora:

- Que capa é aquela do Dr. Malheiro Pias?

E a outra explicou:

- É uma capa... da "Revista da Semana", menina!

A impressão geral daquele publico republicano, foi interpretada, porém, entre tantos episódios, por uma frase, ouvida por mim no termo da festa. Comprimindo-se com arte, apertando-se com elegância, empurrando-se com delicadeza, a multidão procurava a porta de saída, quando encontrei à minha frente um grupo de moças, no meio do qual ia um cavalheiro idoso, afogado até o pescoço na sua enorme beca de professor de Direito. Oprimido de um lado, empurrado de outro. o educador defendia-se aflitamente, quando uma das filhas lembrou, compadecida:

- Porque papai não tira... o dominó?

E o Carnaval caiu na rua.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Francisca Júlia (O Cão)


Alfredinho possuía um cão que se chamava Lobo. Era grande como os maiores da sua raça, o pelo crespo, inteiramente negro e dotado de uma coragem e força que o faziam temido por todos.

À noite, quando o soltavam no quintal. Lobo escondia-se na sombra dos muros, e aí ficava, imóvel e alerta, à espera dos ladrões. Mas estes, que lhe temiam a ferocidade, não se arriscavam a galgar o muro.

No entanto, este cão, apesar do seu aspecto feroz, dos seus olhos sanguíneos e duros, que fitavam tudo com aspereza, e da sua boca rasgada, guarnecida de dentes afiados, era manso como um cordeiro para o seu pequeno amo, que lhe alisava o pelo e lhe dava beijos no focinho.

Viam-nos sempre juntos, Alfredinho e Lobo, amigos inseparáveis, — aquele, mal sustentando-se nas perninhas fracas, este, ostentando sua corpulência de fera. Às vezes iam passear juntos até ao campo, e Lobo acompanhava o seu amiguinho, seguindo-lhe todos os movimentos, obedecendo a todos os seus gestos, num desejo de adivinhar os seus mais ínfimos pensamentos.

Alfredinho, com ser uma criança de cinco anos apenas, compreendia esta dedicação e retribuía ao seu amigo do mesmo modo, tratando-o com o maior carinho, zangando-se com os criados se lhe davam uma ração pequena ou se lha davam com grosseria.

Certa vez, um homem rico, muito amante de cães, dirigiu-se ao pai de Alfredinho e ofereceu-lhe uma soma avultada para a compra de Lobo.

O pai recusou-se a vendê-lo, dizendo:

— Este cão é o melhor amigo do meu filho, acompanha-o por toda a parte. Se algum dia este digno animal perecer, meu filho não poderá sobreviver-lhe, tal será o desgosto que há de sentir.

O homem foi-se embora, não sem ter lançado de soslaio um olhar invejoso sobre o cão.

De fato, não havia ninguém que não admirasse Lobo, o seu corpo volumoso ornado de um pelo crespo e macio, as suas patas enormes armadas de unhas pontudas e curvas, como as de um leopardo, e o seu peito largo e forte como uma couraça.

Alfredinho, quando tinha três anos, era um menino doente, extremamente débil.

Seu pai, que o amava muito, fazia-lhe todas as vontades, satisfazia-lhe todos os desejos, com medo de contrariá-lo ou aborrecê-lo. Alfredinho, porém, dotado de sentimentos generosos e boa alma, nunca abusou, como fazem geralmente as crianças da sua idade, das delicadezas de que era cercado.

Nessa época, num dia de muita chuva, em que o vento passava impetuosamente em uivos prolongados, Alfredinho, trêmulo de susto, ouviu um gemido triste que vinha da rua. Mandou ver o que era.

— Era um cão muito magro, disseram, e coberto de lepra.

Alfredinho. piedoso como era, pediu ao pai com os olhos cheios de lágrimas que recolhessem o pobre cão, que lhe dessem agasalho.

O cão entrou, encharcado da água da chuva, tremendo de frio. Seu aspecto era repugnante: magríssimo, as costelas salientes, imundo e coberto de lepra.

Todos recusaram-se a recebê-lo.

O menino tanto insistiu, chorou e bateu o pé, que o pai resolveu, não sem escrúpulo e nojo, ficar com o cão.

Deram-lhe o nome de Lobo pelo ar selvagem que tinha.

Pouco a pouco, alimentando-se bem, sujeitando-se ao tratamento da lepra que lhe cobria o pelo, o cão foi engordando, e em pouco tempo tornou-se um animal lindo e afagado por todos.

Durante o dia seguia Alfredinho aos passeios, sacudindo a cauda, fazendo-o rir com suas graças; à noite soltavam-no no quintal para defender as galinhas e as hortaliças do assalto dos malfeitores.

O seu pequeno amo, uma manhã, depois de haver pedido licença ao pai, convidou-o a um passeio ao campo, para caçar borboletas e cigarras.

O cão acompanhou-o.

Alfredinho corria pelos atalhos, escondia-se nas touças de verdura, tentando iludir a vigilância de Lobo.

Cansado, porém, de tanto brincar, deitou-se na relva e adormeceu.

O cão deitou-se também, alerta sempre contra qualquer perigo, disposto, se fosse preciso, a defender o seu querido amiguinho.

Nesse instante uma cobra traiçoeira, arrastando-se por entre as folhas, aproximou-se do lugar em que estavam, pronta para picar a criança e matá-la com sua peçonha mortal.

Lobo, que a tinha pressentido, voltou-se de repente e atacou-a em botes furiosos.

Matou-a. Enquanto a serpente estava estrebuchando no chão, crivada de dentadas, o cão, que tinha sido picado, gemia, penetrado de dores lancinantes.

Pobre e fiel animal!

Minutos após, Lobo, arrojando-se no chão, esgotado de forças, chegou até onde estava o seu amiguinho, lambeu-lhe as mãos carinhosamente e morreu num doloroso gemido.

Fonte:
Poeteiro Iba Mendes

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 9


PALAVRAS AO HOMEM CÉTICO
(A Monteiro Lobato - 1943)
  
Não troques ( tu que realmente tão pouco tens de teu,
tu que não tens nada além do ar que respiras,
do sol que te aquece, das estrelas do céu,)
- não troques por nada deste mundo
oh! meu irmão,
o teu direito de sofrer, de lutar e de morrer,
pelo teu pensamento
e pela tua convicção!

Por em verdade te digo, que nada vale mais
do que esse sofrimento amplo e profundo,
que nada vale mais que a tua liberdade
não importa que esteja sujeita aos rigores da vida
ou à intempérie do mundo!

Vive por ela, sofre por ela, morre por ela,
e terás para a tua vida, ou para a tua morte
a mais sublime razão,
e por pior que a tua vida tenha sido,
terá sido uma Vida, e terás sido um Homem! oh! meu irmão!

Não troques jamais os percalços e os sofrimentos,
as incertezas e os perigos
da tua independência,
nem tolhas a ousadia da tua consciência
e as ânsias do teu coração,
- por esse bem-estar da subserviência
ou pelo comodismo humilhante e bastardo
de qualquer escravidão!

Que te bastem, se preciso, o ar, o sol, as estrelas,
as alvoradas e os crepúsculos, o mar e o céu,
que não são de ninguém,
mas não vendas tua alma por um pouco de ouro
nem troques teu destino por uma migalha
que ao te matar a fome
te destrói também!

Que te bastem, se preciso, os caminhos do mundo
que nunca tiveram dono
desde a mais remota idade,
e que num mundo a seguir, em rebanhos, tocado,
pejas tu, o animal indócil, desgarrado!
- da liberdade!


Não traias teu ideal por fraqueza e impaciência,
antes vela o silêncio digno, e atento, aguarda
o instante em que terás de lutar por aquilo
que é de todos os homens, e portanto, é teu!
Que, às vezes, como o sol, a liberdade tarda
mas como o sol também, ela não falha nunca ,
e será tanto mais bela
quanto mais negra a noite que a antecedeu!
...................................................................

e mil vezes bendito serás, na tua espera ansiosa, na tua revolta,
e no teu viril insubordinamento,
porque então compreendeste o silêncio da nossa dor
e a beleza heroica
do nosso sofrimento!
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PALAVRAS AO POETA DO MEU SÉCULO
(A Eudes Barros - 1940)

No teu verso
existirá a neurose de todos os homens esgotados
ou excitados
pelos prazeres,
e a neurose de todos os seres
exaustos
pelo trabalho,
pela ambição!

E a vertigem do moto-contínuo das coisas
na terra
e nos espaços!
E a volúpia doentia dos seres livres ou recalcados
nos segundos de loucura
e de sublimação . . .

E a revolta de todos os que já sentiram fome
e dos que ainda à sentirão!

E a amargura dos que não encontram nas noites frias,
às horas mortas,
senão o vão das portas
e as escadarias...

E a tragédia de mil raízes profundas e sombrias
que bruxoleia nos olhos baços
das proxenetas*...
(como o sol, quando põe estilhaços
de luz)
que parecem laivos de pus
- na água podre das poças d'água nas sarjetas!...
- na água podre das poças d'água nos pauis!

E a ousadia e o destemor da estirpe incurável
dos sonhadores e terroristas,
dos agitadores e incendiários,
dos teóricos e utopistas,
e dos revolucionários...
E o estoicismo e a abnegação dos santos, dos apóstolos
e dos missionários!

A fé cristã dos mártires, a força dos condutores
de povos
e o entusiasmo, e a coragem, e a eloquência dos novos!
E a angústia dos que já tiveram um lar
e já tiveram trabalho,
os que vivem na vida andando a esmo
numa ansiosa vigília
- os que não têm mais lar
mas ainda têm família!...

No teu verso existirá
o desespero dos anônimos e desgraçados,
dos forçados à impotência
e em verdade incapazes,
dos que nasceram escultores e perderam as mãos,
dos que trouxeram o tormento surdo
do gênio de Beethoven,
os que, adorando a música e os seus sons, não ouvem...

E a agonia cruciante dos que têm olhos para ver,
coração para sentir,
mãos para ofertar
- e, suprema e fatal de todas as ironias!
não podem chorar
nem socorrer
e só podem ofertar as tristes mãos vazias...

E a desgraça dos que chegaram ao mínimo de humanidade
pensando na dor alheia,
para sublimá-la na explosão inútil de uma obra
frágil como a areia...

No teu verso existirá a incoerência,
o paradoxo, o desconexo,
a miséria, a opulência,
e o flagrante de todas as desigualdades
e injustiças
de um século complexo...

E por isso o teu verso será o instantâneo vivo
da própria evolução,
será o monólogo, doloroso, hamletiano,
de um tempo desumano!
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PALAVRAS AO TRABALHADOR BRASILEIRO

(Aos que lutam e morrem na Baixada Fluminense)
(A Procópio Ferreira – 1941 )


Glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
- glória aos teus músculos, à tua força, à tua vontade  
e à tua abnegação,
desconhecido obreiro
da nacionalidade
e da Civilização!  

Glória à tua coragem cabocla, ao teu desprendimento
cheio de lances épicos e bravios,
e ao teu construtivo heroísmo
tanta vez ignorado,
- glória a ti que arrostaste* as febres, as sezões*, o impaludismo*
sem desmorecimento
e repuseste em seu leito as águas de cada rio  
transviado!

A ti que mergulhaste o corpo nos pântanos infectos
e nos lodos doentios,
cheios de miasmas* mortais e multidões de insetos,
na decomposição dos corpos dos cadáveres
dos rios...

Glória a ti, que transformaste milhares, milhares e milhares,
muitos milhares de hectares
de terras incultiváveis e abandonadas
num imenso celeiro?
Glória a ti, à ferramenta humilde que põe calos de ferro
em tua mão,
glória à tua enxada
abençoada,
oh! trabalhador brasileiro!
oh! meu irmão!

Dragaste o pantanal e revolveste a terra,
e saneaste a terra, e transformaste a terra
estéril,
a gleba malsã*,
- num campo redivivo, no ventre largo e fecundo
de um novo vale, de um novo mundo
de Canaã!

Ressuscitaste assim, e libertaste assim, prisioneiras regiões
do império das maleitas,
e hoje livres os chãos dos matagais hirsutos
livres os campos das cheias, das inundações,
- as terras são promessas de colheitas
e as sementes serão flores, serão frutos
na festa das plantações!

Glória a ti, - obreiro incansável e obscuro
que a essas regiões perdidas, inúteis e sem futuro,
a essa terra escrava
onde a estrada não chegava
onde a raiz não medrava
onde o homem não punha o pé,
- levaste a tua força, o teu trabalho, a tua fé,
o teu labor, titânico, profundo,
o teu suor,
e fizeste do nada, um mundo! e farás desse mundo
um mundo ainda maior!

Glória a ti que repetiste nas carnes amaldiçoadas
daqueles chãos vazios, daqueles mortos pauis*,
(que eram como feridas gangrenadas
enchendo a terra de pus,)
- o milagre da vida, o milagre do Lázaro
da história de Jesus!

E eis que tudo ressurge, que os campos palpitam de seiva,
que as terras todas vibram ressuscitadas,
e desaparecem até, das chagas já curadas,
os sinais e as cicatrizes!
.................................................................................................

Amanhã
sobre os chãos despertos e resolutos
sobre os chãos enxutos,
ao trabalho de cada dia
e em horas mais felizes,
vergarão os galhos verdes com as mãos pesadas de frutos,
e dentro da terra úmida, numa alvoroçada alegria
se entrelaçarão as raízes!

Amanhã
os trilhos marcarão na epiderme do solo
a imagem infinita do progresso!

Os campos se encherão de penachos bizarros
e passará na noite a visão instantânea de um "expresso"
serpenteando na sombra o cordão luminoso
dos seus carros;
e pelas tardes bucólicas e platônicas
se ouvirá nos caminhos a música feliz das rodas sinfônicas
de outros carros...

Amanhã
continuarás ainda em tua luta
eterna e ininterrupta, ;
multiplicando as culturas, alargando horizontes,
replantando florestas, perfurando montes,
abrindo leitos de rios e algemando-os com as pontes,
e aproveitando as energias de suas forças dispersadas
dando rumo e correnteza às águas estagnadas!

Amanhã
continuarás perfilando pelos campos, pelas encostas
até onde a vista alcançar,
- as divisões dos cafezais de farda verde e de botões vermelhos
que parecem marchar,
- e os batalhões dos algodoais de capacetes brancos,
e os extensos canaviais de estandartes ao vento,
e os verdes milharais de espada em riste, no ar!

Até os louros trigais, filhos de velhas raças emigrantes
altivos e belos      
ondeando pelos montes, aos bandos, aos mil,
e que há bem pouco chegaram de suas terras distantes       
marcharão também com seus penachos amarelos
da cor do sol do Brasil!

Hás de ver que todos se perfilarão
ao toque de reunir dos teus músculos
maiúsculos,
na parada do trabalho que te engrandeceu,
do trabalho que marcha, que avança e se expande,
porque o Brasil é grande!
porque o Brasil é teu!

Na tua fronte plebeia
o suor de cada dia escreve uma epopeia,
e escrevem sobre a terra um capítulo heroico
os teus pés sempre nus,
- glória a ti, trabalhador obscuro, trabalhador brasileiro,
tens o peito viril de esplêndido guerreiro
condecorado de sol!
condecorado de luz!
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Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Arrostaste – Enfrentaste.
Impaludismo – Malária.
Malsã – insalubre, maléfica, doentia.
Miasma – Emanação fétida oriunda de animais ou plantas em decomposição.
Pauis – (plural de paul) Pântanos.
Proxeneta – Intermediário, por dinheiro, em casos amorosos.
Sezões – Febres intermitentes ou periódicas.


Fonte:
J.G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Fernando Sabino (Eloquência singular)


Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

- Senhor Presidente: não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

- Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem - que recusa? – ele que tão facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um  aparte.

Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

- ... embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

- ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que  o Brasil atravessa.

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

- Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido  logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no  singular. Ou no plural:

- Não sou daqueles que, dizia eu - e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas (legítimas), segundo o vernáculo:

- Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas  legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

... não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

- Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

- Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

- Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

- Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem - e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

- Eu? Mas eu não disse nada...

- Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega.  Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

- Que é que você acha? cochichou um.

- Acho que vai para o singular.

- Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador prosseguia na sua luta:

- Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim como é que é, me tira desta.

- Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

- Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública.

E entrava por novos desvios:

- Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica. ...Senhor  Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir:

- Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou:

- Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira  de  Viagem.  RJ: Sabiá, 1972.