Entre os bichos mais educados não se via essa novidade de lutas pessoais. Somente no meio mais baixo é que se notava um certo desalinho nas atitudes. As ordens eram terminantes: nenhuma tolerância quanto aos transgressores. Aquele que cometesse uma falta podia ficar certo de que a punição não se faria tardar. Teria de vir e de ser aplicada para exemplo a outros indivíduos menos avisados. Havia, pois, ordem estabelecida. A sociedade dos bichos podia servir de modelo a outras sociedades mal organizadas. Quando eles falavam muito é que a coisa se transtornava um pouco. Um começo de confusão não se fazia esperar. De modo que as discussões eram terminantemente proibidas e parecia bem acertada a medida, porque sempre elas originavam conflitos lamentáveis, fazendo lembrar as competições políticas nas suas arengas na praça pública, correrias, tiros e o governo de seu, palitando os dentes. E por falar em políticos, havia entre os bichos, bichos poetas, bichos homens de letras, médicos, advogados, engenheiros, havia de tudo, até cantadores de serenatas e tocadores de violão.
Num meio tão ilustre se destacavam o cachorro e o gato — aquele um famigerado cantador de modinhas e este gostando das ressonâncias do pinho, deitando-o no peito e de suas cordas tirando sons melancólicos. Nas noite de lua clara se acendia no coração dos dois um desejo louco de sair pelas ruas da cidade a tocar e a cantar. As namoradas não podiam dormir mais, perdiam o sossego com uma serenata assim, quebrando o silêncio da madrugada e sobretudo, trazendo-lhes recordações agradáveis ao sentimentalismo lacrimoso. E o cachorro e o gato ali no duro: derramados no afeto, empenhados na obra de conquistar corações femininos. O cachorro tinha uma voz sonora e melodiosa, era um perigo que o gato precisava evitar quanto antes, acabar com aquilo que já estava lhe prejudicando; embora tocasse violão como ninguém e nele pusesse todos os dengues de sua alma de felino. Ouviam mais a voz do que a música. Esta ficava num plano mesmo, precisava ser posto em situação mais destacada.
A astúcia entrou em maquinações demoradas, cuja execução dependia apenas de um momento favorável. havia de chegar a hora. E essa hora desde muito inquietava o gato na sua macieza, na sua aparente impassibilidade. A inveja não fora feita para sua raça. O predicado maior era mesmo o de sibaritismo. A voluptuosidade surgia sempre como o prazer máximo e adorado pela sua gente que tudo conseguia da vida com o algodão dos pés e a agilidade dos movimentos oportunos. Mas uma noite incutindo solertemente no espírito do cachorro que a sua voz poderia ser muito melhor do que era. Estava no seu querer torná-la mais cheia e vigorosa nos acentos, muito mais ressonante nos agudos, macia e adocicada nos seus contornos líricos — era só ele mesmo querer e pronto, fazia-se a modificação com a maior rapidez possível. Insistiu na obra catequizadora. e foi perguntando com insistência se a operação transformadora requeria sacrifício extraordinário. a resposta não variava: "qual nada, coisa nenhuma, vagabunda mesmo, qualquer um suportará bem". E rematava: "a questão é você querer".
O convencimento fez-se afinal. Decidiu o cachorro a empreender a modificação orientada pelo gato. Este convenceu ao amigo sentimental que a sua voz ficaria muito melhor se a boca fosse rasgada nos cantos até perto das orelhas. Ficaria com bastante espaço para tornar a voz mais melodiosa e mais cheia de liberdade. Aceita a proposta, começou a rasgá-la a faca. Cortou-a ele mesmo um pedaço. Experimentou como ficava e começou então a uivar, coisa que nunca havia feito. Porém nem desconfiou e perguntou: "que tal?". Teve como resposta do gato: "está chegando no ponto". Animado com isso, mordido de ambição por possuir uma voz mais rica do que a que tinha, tratou de rasgar mais a boca até, como propunha o gato, à "vizinhança das orelhas". A ferida sangrava demais e precisava de ser curada quanto antes. Foi o que se fez. Depois de vários dias de tratamento ficou finalmente bom e em condições de prosseguir na realização de suas serenatas ao luar. Marcou o dia para ensaiar e ouvir o regalo da voz nova que obtivera.
A desilusão foi, entretanto, a mais completa possível porque agora somente fazia era latir. Na primeira etapa uivou, na segunda latiu. Estava perdido para sempre com a operação que fizera. A raça que dependia de sua virilidade de chefe sultânico iria ficar privada eternamente da voz que fazia o encanto das madrugadas cheias de sombras emocionais. Diante de tamanha decepção não havia outra alternativa senão declarar guerra eterna ao gato. Aonde ele estivesse, a perseguição se impunha como uma necessidade de uma raça digna, aviltada, todavia, na confiança e na sua boa fé.
Afirmam que nasceu desse dia a rivalidade entre cão e gato. Pelo menos é o que se diz nos engenhos da várzea.
Fonte:
Ademar Vidal, in Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.