sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Luís da Câmara Cascudo (Carro Caído)


O negro vinha da Aldeia Velha, servindo de carreiro. O carro tinha muito sebo com carvão nas rodas e chiava como frigideira. Aquilo não se acaba nunca.

Sua Incelência já reparou os ouvidos da gente quando está com as maleitas? Pois, tal e qual.

O carreiro era meu charapim (xará): acudia pelo nome de João, como eu.

Deitou-se nas tábuas, enquanto os bois andavam para diante, com as archatas merejando (escorrendo) suor que nem macaxeira encruada.

Levavam um sino para a Capela de Estremoz.

Na vila era povo como abelha, esperando o brônzio para ser batizado logo.

João de vez em quando acordava e cutucava a boiada com a vara de ferrão:

- Eh, Guabiraba!, eh, Rompe-Ferro, eh, Manezinho!

Era lua cheia.

Sua Incelência já viu uma moeda de ouro dentro de uma bacia de flandres? Assim estava a lua lá em cima.

João encarou o céu como onça ou gato-do mato. Pegou no sono, e o carro andando...

Mas a boiada começou a fraquejar, e ele quando acordava, zás! - tome ferroada!

Os bois tomaram coragem à força. Ele cantou uma toada da terra dos negros, triste, triste, como quem está se despedindo. Os bois parece que gostaram e seguraram o passo.

Então ele pegou de novo no sono.

Quando acordou, os bois estavam de novo parados.

- Diabo!, e tornou a emendá-los com o ferrão!

A coruja rasgou mortalha. João não adivinhou, mas a coruja era Deus que lhe estava dizendo que naquela hora e carregando um sino para a casa de Nosso Senhor não se devia falar no Maldito.

Gritou outra vez:

- Diabo!

O Canhoto então gritou do Inferno:

- Quem é que está me chamando?

João a modo que ouviu e ficou arrepiado. Assobiou para enganar o medo; tornou a cantar a toada, numa voz de fazer cortar o coração, como quem está se despedindo.

Pegou ainda no sono uma vez. A luz da lua escorrendo do céu era que nem dormideira!

Quando acordou - aquilo só mandando! - a boiada estava de pé.

- Diabo!

O Maldito rosnou-lhe ao ouvido:

- Cá está ele!

E arrastou o carro para dentro da lagoa com o pobre do negro, os bois e tudo. Ele nem teve tempo de chamar por Nossa Senhora, que talvez lhe desse socorro.

Mas ainda está vivo debaixo d'água, carreando...

Sua Incelência já passou por aqui depois da primeira cantada do galo no tempo da Quaresma? Quando passar, faça reparo: – canta o carreiro, chia o carro, toca o sino e a boiada geme...

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas Brasileiras para Jovens.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Arquivo Spina 16 (José Feldman)

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 1: Se Eu Contar, Ninguém Acredita

 


FUI BUSCAR MEUS AVÓS na rodoviária e, quando chegamos na portaria do prédio onde eu morava com minha família, ao procurar pelas chaves (havia esquecido principalmente a da entrada do edifício), toquei o interfone. Na primeira e segunda vez, ninguém deu sinal de vida. Insisti e, finalmente, na sexta vez, a Francisca, nossa empregada, atendeu, afobada:

— Quem é?

— Abre, Francisca.

— Quem é?

— Eu...

— Eu quem?

— Troncoso

— Ok. Abriu?

— Não...

— Abriu?

— Não...

— E agora?

— Abriu.

Neste interregno, entre o chato indigesto e causticante do abre e o não abre do mecanismo ao ser acionado, meu avô Serafim (lá do interiorzão de Andirá, no Paraná), exumou da sua cabeça branca um velho ensebado e surrado chapéu de palha, se virou para minha avó Lucinda e observou, muito sério:

— Tá vendo, amor? Vê se pode! Nosso neto pensa que somos besta. Espia! Está falando com a parede.
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Nota: Coriscando é o título alusivo a série de contos/crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, que hora se inicia, referente a Corisco (faísca, brilho instantâneo), por serem muito breves. Nome sugerido pelo autor do blog, ou seja, eu, José Feldman.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) VI


CADÊNCIA E RIMA

E com razão eu idolatro a musa,
Por ela eu tenho excepcional encanto.
Se alguém a enfrenta em formação confusa
Sofre o reverso e se debruça em pranto.

Quando tropeço tenho logo a escusa,
Recebo aplausos quando é belo o canto.
E quando a quero ela jamais recusa
E a gentileza é de causar espanto.

Não deixarei esta paixão genuína,
Pois seu carinho é de elegância fina
Na conclusão do pensamento extremo.

Brado ao sentido que do peito arranco,
Uso a textura e a divergência tranco
Para elevá-la ao pedestal supremo,
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ELA GOSTA DE MIM

A inspiração está chegando intensa
E como sempre com perfil prendado.
E a pena minha satisfeita pensa
Que novamente vou sair premiado.

Por ela meu amor torna-se crença,
Por isso a cuido com denodo agrado.
Se está comigo não permito a ofensa
Nem no esmerado verso algum quebrado.

Ela merece o pedestal da glória
E é dela toda singular história
Da perfeição que vou lhe dar um dia.

Esta humildade se tornou tão franca
Que desfraldei minha bandeira branca
À santa guerra à prosa sem poesia.
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ETERNAMENTE VIVO

O nome Dela me enternece ainda
E traz a paz da qual viver consigo.
E Ela percebe que será bem-vinda
Com todo ardor de verdadeiro amigo.

O amor primeiro é a estação mais linda
No calendário que a cultuar prossigo.
Reminiscência que o passado brinda
O coração de quem lhe deu abrigo.

É na velhice que a saudade aponta
Certo ciúme não levado em conta
Pela indulgência carinhosa e boa.

Certas lembranças de tamanho gosto
Trazem rubores ao vetusto rosto
Se as confidências o presente entoa.
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FORA DA VEZ


Ela me disse: "Você que escreve, Cecim, faça
Agora algo, olhando para mim,
Sobre o final da vida


A tia Zaine, extremamente terna,
Tem o segredo de acolher família.
E no seu rosto a floração materna
Ressalta o olhar que de ternura brilha.

Mostra carisma na oração fraterna
E nos conselhos o esplendor da trilha.
Aos descendentes, na razão moderna,
Transmite agrado que a emoção fervilha.

O seu pedido atenderei depois...
Saiba, querida, que terá nós dois
Sempre ao seu lado, sem dizer-te talvez!

A nossa vida está ligada à sua
E o seu recado no meu senso atua,
Porém... espere... não chegou a vez.
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SAGRADA MISSÃO


Às delicadas mãos de um padre amigo
Eu fiz chegar um livro meu versado.
Certeza eu tinha, não daria abrigo
Às más versões meu espontâneo agrado.

Escrevo verso no modelo antigo:
Cadência e rima sem nenhum enfado,
E a presenteá-lo, com prazer, prossigo
A quem cultua esse pendor amado.

Com devoção nesta missão eu sigo
Porque recebo onde plantar o trigo
E a terra boa que à colheita induz.

Bem certo estou de que o cristão aceita
E está comigo na missão perfeita
De expor o verbo da divina luz.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

Sammis Reachers (Como Quem Guarda uma Cidadela)


Fiz o bolo preferido dele, chocolate com recheio de chantilly. Todo ano eu faço seu bolo. Meu bebê. Que Deus cuide de você, meu anjinho!

Acordei cedo pra limpar o quarto dele. Avisei à dona Eurásia que não trabalharia; ela, cada vez mais velhinha e dependente, me pareceu entristecida ao telefone, mas entendeu. Sempre entende, desde o primeiro ano. Troquei a roupa de cama, passei pano no chão. Peguei pra lavar o velho boné da Porto da Pedra, onde ele era ritmista. Não era muito do samba, mas dizia que participava em memória do pai, um dos fundadores da escola, com quem só conviveu até os sete anos, que a cachaça o levou.

Hoje é o Dia Onze de Agosto, o principal dia da vida, o principal dia desse mundo morno. O dia do meu meninão. São oito anos que choro este dia, comemoro, me esparramo por dentro. Há oito anos que meu único filho, Godrigo, saiu de casa para se divertir. Iria a um baile funk, uma desgraça de baile funk, mas ele gostava. O baile era do outro lado da Baía de Guanabara, na cidade do Rio. Bairro de Vila Kennedy. Tanto baile aqui nos bairros de São Gonçalo, na Covanca, no Salgueiro... Foi sozinho, que meu menino era assim, tinha seus defeitos, mas não era de andar de patota.

Todos os anos, em janeiro e setembro, vou até a 34ª Delegacia Policial, em Bangu. Nunca há informações sobre o caso; mas não desisto, sou mãe, sou a persistência. Um dia o caso se esclarecerá... Ser mãe é não ter opção.

Na delegacia os policiais mudam, mas não o destrato. Devem aprender na academia, se é que isso existe. Ou desaparecidos há muitos, e eles já não se importam. Quem sabe é a velha norma pátria, a reação à cor de nossas peles, que define a saudação, seja sorriso, seja disparo, que se colhe?

Nos olhares arredios, de desinteressados a cínicos, percebo que querem, anseiam por dizer, ainda que num jato de vômito: “Seu filho está morto, dona. Pare de nos aporrinhar”. Mas não dizem. E que diferença faria? Sem corpo não há evidências, e eu mantenho minha esperança como quem zela pela própria honra, como quem guarda uma cidadela.

Quando faço café pela manhã, oito anos, meu Deus!, ainda me pego distraída, colocando pó suficiente para dois cafés. Um dia talvez ele entrará por aquela porta, e poderá estar sujo, fedido, esfarrapado; pode vir sozinho ou já com uma família, com um neto. Eu vou esperar. Um dia depois do outro.

Num sábado em maio, na véspera do Dia das Mães, fui a uma reunião de mães de desaparecidos. Lá ganhei um livreto de informações sobre a ONG que promovia o encontro, e no livrinho havia muitas frases sobre o que é ser mãe. Muitas delas tão bonitas que cheguei a decorar, e vou bordar num pano de prato para deixar na cozinha.

Em meio a tantas frases bonitas, uma ali me perturbou. Achei triste, mas depois entendi, alguma coisa em mim entendeu. E aquilo foi estranho, aquela frase me deu força, me amamentou. A frase é de uma pessoa chamada Maeterlink, não sei se homem ou mulher pois dela nunca ouvi falar: “As mulheres jamais se cansam de ser mães: embalariam até a Morte, se ela viesse dormir em seus joelhos.”

É difícil de entender. E ao mesmo tempo é isso.

Com o tempo uma mãe sozinha como eu, “viúva de pai e filho”, a quem o mundo lá fora tanto fez para apequenar, sem perceber vai ficando tão maior que a morte que quando dá por si já não a teme; vai cabendo nela que a morte não pode lhe arrancar o estado de mãe. Mesmo doído, o coração se agiganta, passa por sobre a morte e suas aparências como um trator.

Vivo ou morto, meu filho é eterno. Tudo se resume a uma medida de distância.

Uma mãe é tão maior que a morte que chego a sentir verdadeira piedade dos que não me entendem, dos que meneiam a cabeça quando me veem passar; sinto mesmo uma profunda pena desses que sentem essa tão rasa pena de mim.

Fonte:
Texto enviado pelo  escritor.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Rudyard Kipling (Como o Camelo Ganhou a Corcova)


No início dos tempos, quando o mundo era tão novo, e tudo o mais, os animais mal estavam começando a trabalhar para o homem, havia um camelo que vivia no meio de um deserto dos lamentos, porque não queria trabalhar; além disso, ele próprio era um lamentável absurdo. Comia galhinhos, espinhos, plantinhas, doído de tão preguiçoso; quando alguém falava com ele, só dizia:

- Uma ova! - só isso - uma ova! - e nada mais.

Uma manhã de segunda-feira, o cavalo chegou para ele, sela às costas e freio na boca, e disse:

- Camelo, ó camelo, venha aqui trotar conosco.

- Uma ova! - disse o camelo - e o cavalo foi embora e contou para o homem.

Veio o cachorro, com uma vareta na boca e disse:

- Camelo, ó camelo, venha aqui catar conosco.

- Uma ova! - disse o camelo - e o cachorro foi-se embora e contou para o homem.

Depois veio o boi, com uma cangalha no pescoço e disse:

- Camelo, ó camelo, venha aqui arar conosco.

- Uma ova! - disse o camelo - e o boi foi embora e contou para o homem.

No fim do dia, o homem chamou o cavalo, o cachorro e o boi e disse:

- Três, ó três, lamento muito por vocês (nesse mundo tão novo-e-tudo-o-mais); mas aquela coisa-ova no deserto não consegue trabalhar, senão já estaria aqui agora. Por isso, vou deixá-lo sozinho lá e vocês vão ter que trabalhar dobrado para compensar.

Isso deixou os três furiosos (naquele mundo tão novo-e-tudo-o-mais) e foi um palavrório, uma confusão, um comício escandaloso na beira do deserto. O camelo veio mascando uma mamona, doído de tão preguiçoso e ficou rindo deles. Depois disse:

- Uma ova! - e foi-se de novo.

Veio chegando o Djinn que reinava sobre todos os desertos, rolando numa nuvem de poeira (os Djinns sempre viajam assim, porque é magia), e parou para um palavrório e um comício escandaloso com os três.

- Djinn de todos os desertos - disse o cavalo - pode alguém ser tão preguiçoso, nesse mundo tão novo-e-tudo-o-mais?

- Certamente que não - disse o Djinn.

- Bem - disse o cavalo - tem uma coisa no meio do deserto dos lamentos (e ele é o próprio lamentável absurdo) com um pescoço comprido e pernas compridas, que não moveu uma palha de trabalho desde a manhã de segunda-feira. Ele nem trota.

- Puxa! - disse o Djinn, dando um assovio - é o meu camelo, por todo o ouro da Arábia! O que é que ele diz disso?

- Ele diz "uma ova!" - disse o cachorro - e nem pega nem carrega.

- Ele diz alguma outra coisa?

- Só "uma ova!" e ele nem ara - disse o boi.

- Muito bem - disse o Djinn - eu vou ovacioná-lo, se vocês fizerem a gentileza de esperar um minuto.

O Djinn se enrolou no seu casaco de poeira, determinou sua posição no deserto e achou o camelo doído de preguiça, olhando seu próprio reflexo numa poça d'água.

- Meu amigo comprido e borbulhante - disse o Djinn - que é que eu ando ouvindo de você não querer trabalhar, nesse mundo tão novo-e-tudo-o-mais?

- Uma ova! - disse o camelo.

O Djinn sentou-se, queixo na mão, e começou a pensar numa grande magia, enquanto o camelo continuou olhando seu reflexo na poça d'água.

- Você fez os três trabalharem dobrado desde a manhã de segunda-feira, só porque fica doído de preguiça - disse o Djinn - e continuou pensando magias, com o queixo na mão.

- Uma ova! - disse o camelo.

- Eu não repetiria isso, se fosse você - disse o Djinn - você pode falar demais da conta. Bolas, eu quero que você trabalhe.

E o camelo disse:

- Uma ova! - de novo.

Mas logo que falou, viu suas costas, das quais tinha tanto orgulho, estufando, estufando, até virar uma enorme corcova.

- Viu só? - disse o Djinn - foi a sua própria preguiça que você trouxe como um peso às suas costas, por não querer trabalhar. Hoje é quinta-feira e você não trabalhou nada desde segunda, quando começou o trabalho. Agora, você vai trabalhar.

- Como é que eu posso - disse o camelo - com essa corcunda nas minhas costas?

- Foi de propósito - disse o Djinn - porque você faltou esses três dias. Agora você vai poder trabalhar três dias sem comer, porque você vive da sua corcunda-uma-ova, que vai ser sua corcova; e nunca diga que nunca fiz nada por você. Saia do deserto e vá com os três, comporte-se. Corcove-se!

E o camelo corcoveou-se, corcova e tudo, e foi juntar-se aos três. E desde aquele dia, o camelo sempre teve uma corcova-uma-ova (a gente chama de corcunda, hoje, para não magoá-lo, lembrando "uma ova!"); mas ele nunca compensou os três dias que faltou no começo do mundo; e até agora ainda não aprendeu a se comportar.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Carina Bratt (Quase)


Para Luiz Fernando Veríssimo a quem atribuíram um ‘Quase’, que ele jura de pés juntos que nunca  escreveu.
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Não fosse por ele, o QUASE, eu não estaria mais aqui. Acho que em nenhum lugar. Ao menos, respirando, sorrindo, curtindo e vendo a vida em toda a sua plenitude, beleza e graça, formosura e elegância. Não fosse por ele, Meu Deus!...

Não fosse por ele, o QUASE, com a sua velhacaria e altivez, sua percepção e esperteza, sua dedicação e carinho, agora, neste momento, eu estaria sozinha, solitária, vagando feito uma peregrina desmiolada nos trópicos malditos.

Certamente, para variar, com o coração em frangalhos, batendo descompassado, desvairado, numa espécie de arritmia tresloucada, como uma palpitação desconexa, sem saber o que fazer, que atitude tomar, e pior de tudo, por qual caminho seguir, e o mais importante ainda: como ir em frente, avançar, seguir, seguir, seguir e seguir...

Exatamente: seguir. Eis o ponto. Seguir, caraca, para onde?! Foi e quero crer nisto. Foi por ele, foi por ele sim, pelo QUASE, num raro momento de conformação interior que consegui me manter em pé.

Algo, reconditado em meu interior, que deveria ter se apagado, permaneceu inalterado, intocadamente camuflado. Em nenhum momento se melindrou, nem se feriu, como aquela florzinha virgem, ainda não totalmente socializada pelo frescor de outras plantas do imenso jardim que floresce e cerca a nossa primavera de modo particular.

Todas nós temos uma primavera eterna em nossas vidas. Apenas, por questões outras, pela miopia catastrófica da nossa cegueira, não conseguimos divisar ou entrever, perceber e descortinar de uma vez para sempre, como seria o certo e o justo.

Por isso, euzinha entrava e saia, saia e entrava, numa espécie de labirinto intrínseco e despropositado. Me via alvoroçada, desordenada, confusa, balburdiada, literalmente acorrentada num semi-escuro seguindo como uma 'nômada', sem destino certo, sem saber para onde ir, tipo um barco sem rumo, à deriva, prestes a ser engolida por um mar raivoso.

O mar é um eterno ser tristonho, como uma pessoa que vive a choramingar. Furioso e malvado, o mar em seu oceano de águas, espanca as pedras do litoral que bloqueiam o seu passar. Daí, viver se lastimando para o sol radiante e o luar feérico, dizendo que não se acalmará jamais.

Neste tom de cores, as mais variadas que enfeitam meu agora mítico, confesso, não fosse por ele, repito, não fosse por ele, o QUASE prestimoso e amável, diligente e benéfico, eu continuaria encarcerada em meus medos e ansiedades, voragens e fobias, pavores e receios, deixando de perceber o mais importante: atrás de mim, logo ali, ao meu alcance (bastava me virar). Havia um milagre.

Eu não perdi  tempo. Me virei. Sem pestanejar, me virei e estava, ou melhor, percebi que havia às minhas costas um mundo envolvente, calmo, tranquilo, espetacular, me esperando, me aguardando, me vigiando, de braços abertos, apesar de meus escuros tenebrosos e de meus pavores e assombramentos, fraquezas e sobressaltos. Eis o milagre celebrado em todo o seu arrojo e, bravura, galhardaria e generosidade.   

Não canso de repetir e o farei infinitamente enquanto a vida eu tiver. Foi por ele, por ele foi, quase perdida a lembrança de tudo, incluindo a magia de eu ter regressado um passo à retaguarda. Foi por ele, sem sombra de dúvidas, que estanquei meus passos, por ele me virei e a minha estrada voltou a ser como dantes.

Asfaltada por novos sonhos, coberta por quimeras ainda não vívidas; pavimentada por esperanças e devaneios; idealidades e afigurações que nem eu mesma pensava existirem dentro de meu âmago.

De repente, como um pássaro aprisionado que o destino abriu a portinhola da gaiola, eu escapei de todos os malefícios, de todos os dissabores e corri pressurosa num mavioso voo esguio. Graças ao QUASE.

Descobri, em todas nós, meninas e mulheres, jovens e não jovens, mais hoje ou amanhã, ainda que demore o depois, não importa. Seremos beneficiadas pelo QUASE. Sempre haverá um à nossa espreita, esperando o momento certo de nos levar para cima, de nos fazer aflorar para a vida plena.

Devemos esquecer o sombrio ‘QUASE morri; QUASE caí na besteira de fechar a porta para a felicidade; o lastimoso QUASE desisti de meus sonhos; o insondável QUASE fui à ruína de minha vida inteira; o degradante QUASE me atirei da ponte buscando a morte num suicídio agourento, cruel, danoso, inevitável e decisivamente letal...’.

O suicídio em meu entendimento, é visto pelos fracos como uma luz muito forte e intensa, todavia, acesa no fim de um túnel imaginário. Quando tudo parece sombrio, devemos pensar no QUASE como uma dádiva inesperada, uma porta secreta de escape, como uma rota de fuga que se fez materializada.

‘QUASE fui, o QUASE, entretanto, me salvou.’ Em resumo, o QUASE para mim, ou melhor posto, para nós, para todas nós, deve ser sempre encarado como um alento, uma bafagem  de robustez um misto de sonhos e realidades, entusiasmos e animações, com fartos recheios de alegrias e júbilos, euforias e exultações. Me empolguei tanto com o QUASE que quase me esqueci de colocar um ponto final. Pronto. Ponto final. Domingo que vem  eu volto.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza. .

Arquivo Spina 15 (Maura Luza Martins Frazão)

 


Rubens Luiz Sartori (Aposentadoria em Versos)


Excelentíssimo senhor
doutor Gilberto Giacota,
digno geral-procurador,
onde o 'parquet' se apóia:

Venho por meio desta,
à augusta procuradoria;
chapéu tapeado na testa,
pedir a aposentadoria.

Cumpri minha sina gaudéria,
fui promotor trintenário.
Sempre esclareci a matéria.
Sempre cumpri meu horário.

Comecei nos anos setenta,
com a máquina manual,
sem ter telefone, nem fax,
faltava até material.

Iniciei por Marialva;
não conto nada por prosa.
Trabalhei em São Jerônimo,
fui o primeiro de Barbosa.

No começo dos oitenta,
eu fui pra Engenheiro Beltrão,
lá eu fiquei por três anos,
e mais de quinze em Campo Mourão.

Campo Mourão, com amor,
abrigou-me desde piá:
de açougueiro a promotor.
Os meus ossos guardará.

Termino aqui em Maringá,
boa terra onde me formei;
meu filho hoje cá está,
no Direito que lhe ensinei.

Para minha filha caçula,
que dos dezoito já passou,
e vai ser Engenheira Química,
a minha benção a ela dou.

Agradeço à minha Jussara,
esposa de bom coração.
Ao seu lado tudo sara,
até a dor da ingratidão.

Ao meu pai, o seu Gastone.
À minha mãe, a dona Olga.
Como som de gramofone,
Casal simples, mas que empolga.

A minha beca desbotada
foi a estola de meu centro;
quanta vez saiu suada,
dos debates noite adentro.
Sai bem rota, mas honrada.

Continuo no magistério,
lecionando na Fecilcam;
ensinando, sem mistério,
o alunado da Comcam.

Sei que é cedo pra ir embora,
mas eu já estou de tardezinha.
Fiz da minh'alma minha espora,
pra cavalgada que é só minha.

Vou-me apenas pra mais perto,
dos meus dias nesta terra.
E saio firme e mui esperto,
para o só meu tempo de espera.

Sempre fui do interior.
Nunca corri em promoção.
Fiz carreira um penhor:
"Ser promotor com paixão".

Deixo o cargo consciente
de que não fui muito brilhante;
porém, sempre independente;
jamais fui inoperante.

Devo tudo o que eu sou
à nossa Instituição;
"até sempre" e a Ela dou,
minha eterna gratidão.

Ao meu Ministério Público,
não desejo dizer adeus.
Quero, e o coração em júbilo,
rogar-lhe a bênção de Deus.

Obrigado, meus colegas,
do trabalho e da verdade;
sempre tenham deste amigo
o respeito e a amizade.

E assim descrito, Excelência,
singelo, e sem rebuscamento,
dê-me ir-me com decência;
dê-me, enfim, deferimento.

Fonte:
Blog da Roberta Carrilho

Malba Tahan (Aprende a Escrever na Areia...)


Dois amigos, Mussa e Nagib, viajavam pelas longas estradas que recortam as tristes e sombrias montanhas da Pérsia. Eram nobres e ricos e faziam-se acompanhar de servos, ajudantes e caravaneiros.

Chegaram, certa manhã, às margens de um grande rio barrento e impetuoso. Era preciso transpor a corrente ameaçadora. Ao saltar, porém, de uma pedra, Mussa foi infeliz e caiu no torvelinho espumejante das águas em revolta.

Teria ali perecido, arrastado para o abismo, se não fosse Nagib. Este, sem a menor hesitação, atirou-se à correnteza e livrou da morte o seu companheiro de jornada.

Que fez Mussa?

Ordenou que o mais hábil de seus servos gravasse na face lisa de uma grande pedra, que ali
se erguia, esta legenda admirável:

Viandante:
Neste lugar, com risco da própria vida, Nagib salvou, heroicamente, seu amigo Mussa

Feito isto, prosseguiram, com suas caravanas, pelos intérminos caminhos de Allah.

Cinco meses depois, em viagem de regresso, encontraram-se os dois amigos naquele mesmo local perigoso e trágico.

E, como se sentissem fatigados, resolveram repousar à sombra acolhedora do lajedo que ostentava a honrosa inscrição. Sentados, pois na areia clara, puseram-se a conversar.

Eis que, por motivo fútil, surge, de repente, grave desavença entre os dois companheiros. Discordaram. Discutiram. Nagib, exaltado, num ímpeto de cólera, esbofeteou, brutalmente, o amigo.

Que fez Mussa? Que farias tu, em seu lugar?

Mussa não revidou a ofensa. Ergueu-se e, tomando tranquilo o seu bastão, escreveu na areia
clara, ao pé do negro rochedo:

Víandante:
Neste lugar, por motivo fútil, Nagib injuriou, gravemente, seu amigo Mussa

Surpreendido com o estranho proceder, um dos ajudantes de Mussa observou respeitoso:

— Senhor! Da primeira vez, para exaltar a abnegação de Nagib, mandasses gravar, para sempre, na pedra, o feito heroico. E agora, que ele acaba de ofender-vos tão gravemente, vós vos limitais a escrever, na areia incerta, o ato de covardia! A primeira legenda, ó xeique!, ficará para sempre. Todos os que transitarem por este sítio dela terão notícia. Esta outra, porém, riscada no tapete de areia, antes do cair da tarde, terá desaparecido como um traço de espuma entre as ondas buliçosas do mar.

Respondeu Mussa:

— A razão é simples. O benefício que recebi de Nagib permanecerá, para sempre, em meu coração. Mas a injúria... essa negra injúria... escrevo-a na areia, como um voto, para que, se depressa daqui se apagar e desaparecer, mais depressa, ainda, desapareça e se apague de minha lembrança!
* * *

Eis a sublime verdade, meu amigo! Aprende a gravar, na pedra, os favores que receberes, os benefícios que te fizerem, as palavras de carinho, simpatia e estímulo que ouvires.

Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias, as ingratidões, as perfídias e as ironias, que te ferirem pela estrada agreste da vida.

Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever, assim, na areia... e serás feliz.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Arquivo Spina 14 (Antonio Queiroz)

 


Fábulas (A Aranha e o Mosquito)


Um mosquito voava despreocupadamente nos ares, quando se sentiu preso na teia da Aranha. Estava a fazer esforços para libertar-se quando a Aranha se aproximou dizendo-lhe com voz ameaçadora:

- Não se mexa tanto assim, cavalheiro, que acabará quebrando as malhas de seda da minha teia.

- Senhora, ajude-me a libertar-me - pediu o mosquito, delicadamente.

- Está aí uma coisa que não posso lhe fazer - declarou a Aranha. O cavalheiro, invade violentamente a minha propriedade e ainda me pede que eu lhe abra a porta para sair!

- Perdão, senhora, não invadi a sua propriedade Eu vinha voando e, quando dei por mim, estava preso a estas malhas. Foi sem querer.

- Não posso acreditar que, sendo o espaço tão vasto ainda mais para um mosquito, o amigo viesse, sem querer, esbarrar na minha casa.

- Palavra de honra de Mosquito. Não tive intenção de ofendê-la. Não me passou pela cabeça o mais vago propósito de invadir a sua propriedade.

E com a voz mais doce desse mundo:

- Agora, que já dei minhas satisfações necessárias, peço à querida amiga que me ajude a voltar à minha liberdade.

A Aranha replicou imediatamente:

- Vontade não me falta, senhor, mas isso é impossível.

- Por quê?

- Cada um de nós preza o seu nome. O mundo está cheio da boa fama das aranhas. Seria um erro eu destruir essa boa fama, depois de a conquistar com tanto sacrifício.

- Não compreendo.

- Eu o farei compreender. No começo do mundo quando construí a primeira casa, os voadores vinham esbarrar nas minhas malhas, quebrando-as, rompendo-as. Para acabar com tal abuso, resolvi que todo aquele que eu apanhasse nos fios de minha rede, na minha rede ficaria para me servir de alimento. A notícia dessa resolução espalhei-a largamente pelos ares. Não houve quem não tivesse conhecimento dela. Apesar disso, de quando em quando, aqui vêm ter mariposas, pirilampos, libélulas e toda a sorte de bichinhos miúdos. Procedo igualmente com todos. Devoro a todos, todos, sem exceção.

E, arrepiando dignamente os pelos veludosos.

- Ora, se eu puser o amigo em liberdade, que se dirá de mim? Dir-se-á que eu não sei fazer justiça. O cavalheiro, decerto, não quererá que eu fique desmoralizada.

Mal acabou de falar, uma abelha, que voava nas proximidades, ficou presa nas malhas da teia. Em seguida, um besouro. Muito depois, um grilo.

- Está vendo? - disse a Aranha ao mosquito. Todos os que estão ficando presos na rede, da rede não mais sairão. A boa justiça é aquela que é igual para todos.

Naquele momento, um gavião vinha voando rumo da teia.

- Se ele não se desviar, é mais uma vítima, murmurou o mosquito penalizado. E o gavião não se desviou. Rompeu os fios, fez um grande rombo nas malhas, passou e foi-se embora.

Quando o mosquito olhou a Aranha, ela estava num cantinho, encolhida, trêmula e assustada.

- Que foi isso, senhora? bradou o prisioneiro. Não viu nada? Não viu o estrago que o gavião fez na sua casa? Que a reduziu a frangalho?

- Não tem importância. Eu a conserto facilmente.

- Mas ele invadiu a sua propriedade. Que justiça é a sua, senhora? Por que não o aprisionou para a sua mesa, como fez comigo, com a abelha, com o grilo, com o besouro? Fale! Fale!

- Quer saber por quê? Porque não gosto de carne de gavião, respondeu a Aranha com ar de pouco caso.

Moral da Estória:
Aos poderosos tudo se desculpa, aos fracos nada se perdoa.


Fonte:
Universo das Fábulas

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Um) Fora dos trilhos


ALOÍSIO PEGARIA o trem às sete e trinta da manhã de sexta-feira, impreterivelmente. Nenhum minuto a mais, nem a menos. Preparou as malas. Reviu item por item o que pretendia levar na bagagem. Dormiria cedo. Nada de televisão, esta noite. Antes de se recolher botou o celular para despertar às cinco. Ligou para Ana, sua noiva. Meia dúzia de palavras. Dia seguinte teriam mais de quinze horas para ficarem juntos num passeio que prometia ser inesquecível. Trocaram carinhos. Beijos e juras de amor. O essencial para manter acesa a chama do coração. Desligaram simultaneamente com um meloso “boa noite, durma bem. Te amo”.

***

Às cinco horas em ponto, o celular despertou Aloísio de um sono gostoso. Pulou da cama ligeiro e correu para o banheiro. Fez a barba, tomou banho, vestiu as roupas novas que havia comprado. Discou para a noiva às cinco e trinta. Ela estava pronta, esperando a ligação:

— Falta só engolir o café que a mãe fez, amor, e comer um pãozinho com manteiga.

— O trem sai às sete e meia em ponto.

— Legal. Estarei lá.

— Então, até...

— Até.

— Te amo!

— Eu também.

***

Do bairro onde ficava a casa de Aloísio até a estação, meia hora. Dava para fazer o percurso a pé, caso optasse por não pegar ônibus lotado. Talvez, por isso, Aloísio tenha, realmente, resolvido caminhar. Geralmente, àquela hora, apesar de ser o último dia útil, os passageiros dos coletivos andavam iguais a sardinhas em lata. O quadro não mudava nunca. Somado a isso, o inconveniente da galera, aglutinada (apesar do desodorante e do perfume baratos), conservava os sovacos cheirando a bacalhau apodrecido. Pensando nesses contratempos, saiu e se pôs em marcha, com uma boa margem de antecedência. Quando Ana saltou, do outro lado da pista, ele igualmente descia as escadas de acesso à estação ferroviária, trazendo, à reboque, uma bolsa enorme. Foi a jovem quem o avistou primeiro. Levantou os braços e gritou:

— Beeeeeem... Espere.

Aloísio ouviu a voz da consorte na segunda chamada. Deteve os passos. Ana cruzou a avenida movimentada, usando a passarela enorme que se estendia de um lado a outro, indo afluir, de frente, ao átrio de embarque. A sombra da beldade passava por cima dos ônibus e carros com tanta velocidade, que sequer dava para ver ou medir o tamanho da sua euforia delineada no asfalto abarrotado de rodas e pneus. Depois de um amontoado de beijos e abraços à volta ao mundo real:

— Vamos nessa?

— Demorô.

— Que horas?

— Sete em ponto.

— Temos ainda trinta minutos.

— O trem nem encostou...

— E não chegou muita gente, pelo visto.

— Mas observe que está tudo aberto.

— Percebi.

— Dá tempo pra comprarmos alguma coisa pra comermos pelo caminho, se você quiser. Embora eu ache que não seja preciso. Mamãe fez cachorros quentes e sanduíches de mortadela e queijo.

—Tem razão, amor. Vamos economizar. Sua sogra mandou frutas, biscoitos e dois litros de refrigerantes, além daquele bolo de chocolate que faz você lamber os beiços.

***

O chefe da estação, de andar lento e cansado (lembrava o velho e obeso sargento Garcia da série Zorro) barrou os dois à roleta de acesso à plataforma:

— Bom dia, meus amados. Vocês dois pretendem ir para onde?

— Pegar o trem.

Risos.

— O trem? Meus filhos, a esta hora ele está bem longe daqui. Outro, agora, só amanhã...

— O trem partiu? Como? O horário de saída não é às sete e trinta?

— Perfeitamente. Só tem um probleminha: que horas no seu relógio?

— Sete e vinte.

— E no seu, moça?

— Sete e dezenove.

— Desculpe. São oito horas e vinte e cinco minutos. Só para lembrar aos pombinhos: o horário de verão começou ontem, à meia noite. Pelo visto, vocês dois empacaram no horário velho. Posso dar uma sugestão? Troquem os tiquetes para amanhã, ou se preferirem, para o próximo final de semana. Os valores pagos não se perdem. Valem por um ano.

— Oh my God!...

— Não acredito! Amor, que mico. Racha a cara!...

Aloísio, na verdade, se esquecera de adiantar os ponteiros. Ana também, levada pela euforia de saber que passaria um final de semana inteiro com seu príncipe encantado. Vencido o impacto do primeiro choque, e depois de trocados os bilhetes, ambos se retiraram cabisbaixos e chorosos, procurando refúgio na onda gigante da tristeza frustrante que de repente os envolveu.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor

domingo, 4 de outubro de 2020

Zaé Junior (1929 – 2020)


Zaé Mariano Carvalho de Nascimento Junior é o nome inteiro de Zaé Junior.

Nascido em Botucatu, interior de São Paulo, em 8 de junho de 1929, mas na década de 1930 mudou-se para a capital paulista. Desde os 10 anos fazia sonetos a 4 mãos com seu pai. A música também entrou em seu coração e Zaé aprendeu sozinho a tocar violão e piano.

Gostava também de desenhar e com isso ganhava uns “trocados”, para ir ao cinema ou algum passeio. Fazia “caricaturas”. Adorava desenhar, mas trabalho prá valer foi na Serviços Holerit, desenhando letras muito miúdas, para pagamento de funcionários públicos. Zaé estava com 14 anos. Passou depois a fazer “histórias em quadrinhos”, pequenos trabalhos em revistas. Em seguida foi para a Rádio Cosmos, e depois para a Rádio Gazeta. Ao mesmo tempo cursava Filosofia na USP. Casou-se cedo, com uma colega de faculdade e tiveram duas filhas: Cibele e Cilena. Prestou concurso público para a rede estadual de ensino e tornou-se professor.

Aí já estava na televisão. Esteve na Tupi, onde produziu nos anos 1950, o “Capitão Estrela”, na Excelsior, na Record, indo em seguida para uma agência de publicidade.

E foi aí que o rapaz eclético encontrou seu grande campo: no departamento de criação de várias agências. Sua vida sempre foi inteiramente louca: dava aulas à noite, trabalhava em mais de um jornal ao mesmo tempo, escrevia para revistas, trabalhava em rádio, em televisão e em agências de publicidade. Cinema de propaganda criou e dirigiu mais de 2000 trabalhos. Dentre eles alguns ficaram famosos e permaneceram anos no ar.

Fez também muitos roteiros para televisão, inclusive para a TV Globo. Criou e dirigiu sua própria agência: a Promark Propaganda e Marketing, desde 1973. Zaé Junior também compôs músicas, sendo que uma delas, gravada pela Odeon, foi o disco mais vendido em 1965.

Sempre esteve na cúpula intelectual das emissoras de televisão e das agências de publicidade em que trabalhou. Em 1961, entrou para a agência McCann Erickson. Lá, veio a oportunidade de supervisionar um horário de telenovelas da TV Excelsior, que apresentou sucessos como “A Deusa Vencida”, escrita por Ivani Ribeiro e dirigida por Walter Avancini. Na época, foi pioneiro em compor trilhas de novelas. Escolheu grandes astros e estrelas, entre eles Regina Duarte que lançou na novela “A Deusa Vencida”.

Ao longo da trajetória, também lecionou na Escola Superior de Propaganda e Marketing, na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e na primeira turma da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Ana, a neta dele o descreve como teimoso. “A teimosia dele era uma forma de resistir. Não aceitava a idade que tinha e lutava para continuar sendo independente.”

Zaé também deixou marcas na imprensa brasileira. Escreveu para a extinta revista O Cruzeiro e para alguns jornais. Foi um dos fundadores do Museu da Televisão e autor de quatro livros: o infantil “A Gruta Misteriosa”, o de trovas “O Pássaro Aprendiz”, e dois de poesias: “O Homem e seu Quintal” e “Fugaz Eternidade”. “O homem e seu quintal” recebeu muitos elogios de Vinicius de Moraes, que sobre ele disse: “Zaé é poeta inteiro, dos grandes”.

Zaé Júnior sofria de mal de Alzheimer, mas nunca se entregou à doença. Ele morreu dia 20 de agosto de 2020, de broncopneumonia.

Fontes:
Museu da TV
Folha de São Paulo

sábado, 3 de outubro de 2020

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXXII

 


Carolina Ramos (Estático)


Assinou o contrato com mão trêmula, desenhando mal e mal as letras. Em momentos iguais àquele é que mais lhe pesava a falta de estudo.

Tivesse esquentado por mais tempo os bancos escolares, com certeza, não estaria ali, assinando um contrato que o deixava praticamente condenado a renunciar à vida durante oito dias! Como?! Simples:

Fora contratado para, durante a semana anterior ao Natal, encarnar Papai Noel, ou melhor, transformar-se numa espécie de robô rígido, impedido de qualquer movimento! Imóvel e inexpressivo, com cara e corpo do Bom Velhinho!

Para tanto, durante o expediente, comprometia-se a privar-se de falar, de sorrir, de mexer os olhos, ou um músculo sequer! Precisava lembrar-se de que era" um simples boneco, embora de carne e osso, com pausas mínimas para o absolutamente indispensável. Exigências exorbitantes, mas... por ser de carne e osso, precisava do trabalho, justamente para poder comer, mais osso do que propriamente carne, se fosse o caso!

Chegava a ser cruel negarem-lhe até o direito sagrado de respirar mais fundo, porque, respirar pressupunha movimento e movimento, no caso, seria a mais punível das heresias!

Trabalhar para viver é o certo... mas, poderia isto ser considerado um meio de vida?!

Oito dias de imobilidade total, tinha pela frente! Oito dias roubados ao calendário de um ser vivente, para serem computados ao de um morto-vivo! Ou vivo-morto, como preferissem.

Todas as ponderações foram esquecidas.

No dia imediato à cruel assinatura, lá estava ele travestido de Papai Noel estático, plantado à porta do Shopping, suando em bicas, no cumprimento fiel do compromisso assumido!

A intervalos regulares, era-lhe permitido mudar de posição, com trejeitos mecânicos, robóticos, como qualquer boneco que se prezasse. Pausas abençoadas pelos membros dormentes, apossados por legiões de formiguinhas hipotéticas, que, apesar das periódicas mudanças, não paravam de formigar. Suportava, a duras penas, cócegas e coceirinhas importunas e dava graças a Deus por livrá-lo de um acesso de tosse, ou de um espirro impossível de ser abortado.

Aguentava com galhardia a curiosidade das crianças e dos adultos postados à sua frente, a duvidar se era boneco que parecia gente, ou, gente que parecia boneco. E havia ainda os gaiatos que não poupavam esforços para fazê-lo capitular, empenhados em conseguir um sorriso ou, pelo menos, um ligeiro piscar de olhos, como troféu de vitória.

Estática e estóica, a "estátua" de Papai Noel resistia, noite após noite... dia após dia... envolta num manto de silêncio!

Véspera de Natal! Lá estava ele, fiel ao posto, tendo aos pés a caixa de correspondência transbordante de cartas infantis. Cartas cheias de pedidos inocentes e sonhos mais inocentes ainda.

O relógio da matriz, em carinhoso consolo, anunciava para breve o fim da penosa função. Faltava pouco!

Contava intimamente os segundos. Os últimos, sempre os mais difíceis de passar... mais duros de serem suportados!

O garoto aproximou-se ressabiado. Estacou ante a estátua humana — não de gesso, não de mármore, não de bronze ou outro qualquer metal, mas, de carne e osso. Material mais nobre que outro qualquer material!

Sujo, descalço, roto, protótipo do abandono, o menino examinou de alto a baixo, a figura do Pai Noel estático. Olhou em volta a constatar que ninguém o observava. Achegou-se mais e arriscou, num sussurro:— "Papai Noel, eu me chamo Landinho. Não escrevi carta nenhuma porque... porque não sei escrever direito." Olhou novamente ao redor, mais ressabiado ainda, sem querer ser ouvido. Sem ver ninguém por perto, encorajou-se: — "Sabe, Pai Noel, eu nunca tive brinquedo nenhum... nunca! E nunca pedi nada pra mim... nunca mesmo! Mas... sabe, eu não queria que o meu irmão pequeno, passasse o Natal triste... Me arranja um brinquedo. Pai Noel, por favor... qualquer coisinha serve! E eu sei que ele vai ficar contente! O senhor nunca chegou até minha casa, lá no morro, porque era muito difícil chegar lá! Eu sei! Num tô me queixando, não! Mas, agora é mais fácil. Nós moramos ali... ali debaixo daquela ponte grande. Vai, lá Pai Noel... vai lá... por favor!!!"

Duas lágrimas brincavam de turvar as pupilas daquele Pai Noel que, estático, apenas ouvia... Saltando barreiras, elas desceram, mansamente, a iluminar as bochechas do Bom Velhinho, até se aninharem nas barbas brancas e macias.

E... aquele homem impedido de mover-se... Aquele homem que não podia sorrir e sequer piscar os olhos,deixou que o pranto rolasse livre, afinal, sem mover um músculo sequer!...

— É que nenhum contrato, por mais cruel que fosse... lhe proibira de chorar!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) V


BODAS DE OURO

Nenhuma crise em nosso amor casado,
Nem a tendência de paixão lasciva.
Amo-a bastante e sei que sou amado
Na plenitude da intenção passiva.

Na convivência não se tem enfado
E nem a frase de sabor nociva;
Temos de cor o lema e todo o agitado
Do sacramento que no céu se arquiva.

Vivemos juntos, atingiu cinquenta,
E a registrar a minha mente tenta
Na concepção de interminável vida.

Amor tão grande assim não tem idade,
Para a alegria não existe grade
E para o amor nunca existiu saída.

(16 de fevereiro de 2006)
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MINHA BASSET "AYUNl”*

(*querida, em árabe)

Adoro a minha cadelinha esperta
Que me desperta quando estou na cama.
Embora dócil, uma queixa é certa
Se algum estranho, sem prever, me chama.

Por isso a porta fica sempre aberta...
Assim agindo evito um certo drama.
Na inteligente forma em dar alerta
Tem-se a impressão que seu latir proclama.

Herdou do pai a primorosa cor,
De sua mãe o singular dulçor
E um raro afeto de desvelo ardente.

Ao animal eu dei o amor mais puro
E a proteção que igual não há, eu juro,
Pelo carinho que dispensa à gente.
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PELA IGUALDADE

Alguém desperte a mente crua e rica,
Que desconhece o sofrimento pobre.
Toda porção, que da fartura fica,
Dai ao irmão antes que a sede dobre.

Gesto tão simples que a bondade indica
E dá diploma de cristão ao nobre.
Vale a grandeza desta ação pudica
Que ao dar de si o coração descobre.

Busca plantar e da melhor semente;
Seja bondoso e nunca mais se ausente
Deste labor que da virtude emana.

Pois quero ouvir da multidão na rua;
A flor carente não está mais nua
Graça à humildade e à conversão humana,
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SUA MÃE

Toda discórdia que no lar assola
Traz no seu bojo uma global falência.
Na convivência, onde a humildade rola,
Só nasce amor, na excepcional essência.

Habita o lar a redentora mola,
A que ameniza a dor da atroz carência.
Ensina o bem e a todo mal consola
E tranca espaço à perniciosa amência.

Rega carinho no embalar do berço;
Dedica tempo na emoção do terço
E faz amor ao coração do filho,

Que necessita do essencial carinho
Para encontrar o seu real caminho:
- a estrela mãe o venturoso trilho.
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TRIBUTO AO GUIA

Venha comigo conhecer a tenda
Onde penduro meu tesouro antigo.
E num colchão de palha guardo a renda
De um sonho de ouro que no livro abrigo.

Esta relíquia nunca esteve à venda
E o conteúdo tem a ver contigo.
Destes meus versos será feita a lenda
Do amor ternura sem nenhum castigo.

O meu convite não terá desfeita,
Tenho certeza que você o aceita
E não se inibe em descobrir meu sonho.

O sol se esconde... venha para ver
Na minha tenda a luz de um novo ser
Sobre os sonetos que a rezar componho.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Daniel Maurício (Poética) 4

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Bênção, Maestro Matti


A Cantina do Zitão, como vocês sabem, era um animado lugar onde os solteiros da recém-nascida Maringá se encontravam para saborear a comidinha gostosa de Dona Maria José. Desde janeiro de 1955, quando aqui cheguei, e por mais alguns anos, fui um dos clientes da casa. Ali, por afinidades várias, meus mais frequentes companheiros de mesa eram dois dos nossos mais ilustres pioneiros do ensino: José Hiran Sallé e Aniceto Matti. Do bom Hiran já lhes falei; hoje vou falar do bom Aniceto, o querido maestro Matti, do qual sentimos todos uma saudade enorme.

Italiano de Piacenza, nasceu no dia 9 de janeiro de 1920. Artista de alma e coração, frequentou desde criança um renomado conservatório, de onde saiu com os diplomas de Música e Literatura Poética e Dramática. Um dia alguém lhe disse: “Você tem talento, bambino. Vai longe na vida”.

Aniceto ficou com aquela ideia na cabeça. Mas se era para “ir longe na vida”, então teria de vir longe mesmo. Trabalhou durante alguns anos em escolas de música na Itália, juntou umas economias, atravessou os mares, desembarcou em Buenos Aires. Nos primeiros tempos, para sobreviver enquanto aguardava melhores oportunidades, tocava piano em restaurantes e casas de tango. Até que numa certa manhã de janeiro de 1953 recebeu carta de um amigo e conterrâneo convidando-o para vir ao Brasil conhecer uma cidade novinha chamada Maringá.

Veio, gostou, acreditou, ficou. Começou fazendo um acordo com a Rádio Cultura, onde havia um piano utilizado para animar programas de auditório. Ele tocaria nos programas; em troca a rádio lhe emprestaria o instrumento para ele dar aulas. Centenas de crianças e jovens aprenderam a tocar piano ali.

Com o seu valioso currículo, mais um grande talento e aquela sua simpatia contagiante, em pouco tempo Aniceto passou a trabalhar como professor de educação artística em vários colégios, ao mesmo tempo em que formava e regia diversos grupos corais e ainda conseguia tempo para tocar piano e acordeón nas orquestras do Marchini e do Penha em bailes, cerimônias de casamentos e em outras solenidades. Um homem de coração puro e belo, que jamais teve inimigos. Um gênio a serviço da comunidade. Ponto de partida da história da arte dentro da história desta cidade. Sua obra-prima: a música do Hino a Maringá, com letra de Ary de Lima.

Será eternamente lembrado pelo muitíssimo que fez – como professor, instrumentista, compositor, maestro; como rotariano responsável pela coordenação da Olimpíada de Matemática Giampero Monacci; como uma das pessoas mais gentis e simpáticas que esta cidade já conheceu. Mas sobretudo como um homem bom e do bem.

Aniceto Matti formou família aqui. Fez de cada maringaense um amigo e irmão. Foi para o céu aos 80 de idade, no dia 14 de dezembro do ano 2000. A bênção, Maestro!
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-8-2020

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -2 -


ANTÔNIO FERREIRA
Lisboa, 1528 – 1569

Se erra minh'alma...


Se erra minh’alma, em contemplar-vos tanto,
e estes meus olhos tristes, em vos ver,
se erra meu amor grande, em não querer
crer que outra coisa há aí de mor espanto;

se erra meu espírito, em levantar seu canto
em vós, e em vosso nome só escrever,
se erra minha vida, em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;

se erra minha esperança, em se enganar
já tantas vezes, e assi enganada
tornar-se a seus enganos conhecidos;

se erra meu bom desejo, em confiar
que algu’hora serão meus males cridos,
vós em meus erros só sereis culpada.
****************************************

ESTÊVÃO RODRIGUES DE CASTRO
Lisboa, 1559 – 1638, Florença/Itália

Ausente, pensativo, solitário


Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente,
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamentos vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n’alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém, meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.
****************************************

FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Goa, 1540 – 1600?, ?????

Armada de aspereza minha estrela


Armada de aspereza minha estrela
a nova dor me leva e me encaminha;
mas se uma glória vi perder-se asinha,
foi por quem a perdi, glória perdê-la.

Sucede nova dor, nova querela
à liberdade que gozado tinha:
não sei remédio dar à mágoa minha;
e quem lho pode dar não sabe dela.

Que alívio logo em meu tormento espero,
se a que mo censura na alma, não o sente?
Senão se o vê nos olhos com que o vejo.

Porém, ah, doce amor, eu antes quero
passar convosco a vida descontente,
que contente viver sem meu desejo.
****************************************

LUÍS DE CAMÕES
Lisboa, 1524 – 1580

Alma minha gentil que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
****************************************

SÁ DE MIRANDA
Coimbra, 1481 – 1558, Amaraes

Quando eu, senhora...


Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma em si
e vou tresvariando, como em sonho.

Isto passado, quando me disponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
quando me era mister tant’outr’ajuda
de que me valerei se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Arquivo Spina 13 (Ana Luzia Moura)

 


Stanislaw Ponte Preta (A beira-mar)

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a dourar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler Maravilhas da Biologia, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança que brincava com a areia.

Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.

O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.

Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.

— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra fungada.

O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.

— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos à saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.

O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:

— Deixa eu jogar neles.

O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:

— Não, senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.

O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: — Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.

— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?

— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é a sua.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte) Invasão de privacidade


O QUE LEVA UMA PESSOA em sã consciência a gravar, na agenda de seu telefone celular, nomes estrambóticos do tipo:

Ala, Ala,
Catulé Doidão,
Sanfonado,
Antão, Antinho,
Boca desdentada,
Assanhadinha do vovô,,
Xaparral e
Bigode de cafuné?

Ou, pior:
Barata miúda,
Otorrino,
Chifrudo conformado,
Filé Fiado,
Godóia,
Cano amassado,
Ontário,
Phimbinha e
até um asqueroso Gogó irritante?

Quem colocaria uma gaiatice tipo:
Picadinho,
Pirlimpimpim,
Saca Rolha,
Baroneto,
Tetefa,
Zangão, etc, etc...?

Seria um disfarce artificioso, ou um código para manter em segredo a identidade de determinadas pessoas? Por que meu sobrinho Gabriel, um garoto de apenas quinze anos usava deste expediente?

Estaria ele metido em alguma coisa errada? Más companhias? Ladrões? Aqueles nomes estranhos no rol de seu celular, seriam de fornecedores de drogas? Meu Deus! Que fazer? Que atitude tomar? Será que meu irmão e minha cunhada tinham conhecimento? Antes de conversar sério com os três, resolvi tirar a limpo aquela patacoada. Quem sabe, os nomes grafados não fossem além de pura doidice dele ou, no pior dos mundos, piração da minha cabeça? Talvez um punhado de amiguinhos de escola, namoradinhas, sei lá. Alguma razão, certamente, haveria de fazer frente a tal disparate. Adolescentes, nessa fase da vida, costumam nutrir quedas platônicas por amores secretos, namoradinhas ocultas, amigos de condutas estranhas e incomuns. Eu mesmo, no grupo escolar, me apaixonei pela minha professora de português e o apelido dela, no meu caderno (naquele tempo não havia celular), era ‘Vírgula Intrusa’.

Pois bem! Ainda que tudo não passasse de coisas da imaginação dele, um simples guri, na glória da aborrescência, ou da minha mania de ver e de sentir perigo em qualquer detalhezinho fora do comum, eu, como tio, precisava ir a fundo na tal ‘parada’. Pelo amor de Deus: Cavalo Loiro, Hilário Hilariante, Lombriga mal nutrida, Kotó, Laminado, Bíceps e outros ‘vulgos’ assobrerjéticos, deixaria qualquer cristão menos desavisado com a pulga atrás da orelha. Espiei em volta. Gabriel entrara no banho. E quando ele se metia no chuveiro... Podia esquecer. Aproveitei e, como o telefone estava disponível, resolvi dar uma de detetive. Escolhi um epíteto ao acaso e completei a ligação. Atendeu uma moça de voz adocicada:

—  Oi, bom dia?

—  Bom dia.

—  Com quem falo?

—  O senhor ligou para qual número?

—  Esse ai, o seu.

—  Tá, mas deseja falar exatamente com quem?

—  Com o senhor Xumbrego Assanhado.

A jovem soltou uma gargalhada gostosa que estrondou dentro de meus ouvidos, como uma bomba:

— Não é senhor. É senhorita. Senhorita Xumbrega Assanhada. Você é o seu Alípio, pai do Gabriel?

“Menos ruim” —,  pensei com meus botões. — Deveria ser uma gatinha que meu sobrinho andava à cata:

—  Tudo bem, desculpe. Ela está?

—  Acabou de sair... Com quem falo?

—  Demora voltar?

—  Primeiro responda a minha pergunta: quem gostaria?

Mandei o primeiro nome que me veio à cabeça:

—  Catatau.

—  Estranho! Este número é do Gabriel. O senhor é o que do Gabi? Deixa de onda, seu Alípio. Perdeu, entrega o jogo.

—  Não tem jogo nenhum. O Gabriel me emprestou o telefone dele, mocinha.

— Ah, ta, legal, então, seu Catatau... A Xumbrega Assanhada chega por volta das cinco da tarde. É só com ela?

—  Sim. Não me disse com quem tenho o prazer de conversar.

— Com a Capetinha da Freguesia do Ó. — A Xumbrega Assanhada foi se encontrar com o Pato Malocado. Ei, por acaso o senhor não é o tal do Pato Malocado e está mentindo pra mim e se passando pelo Catatau? Continuo achando que o senhor é o seu Alípio, pai do Gabriel.

— Escuta, senhorita... Como é mesmo? — Ah, Capetinha da Freguesia do Ó. Eu sou, de fato, o Catatau.

—  ‘Podis crer, mano’. Seguinte —, a Xumbrega Assanhada me pediu para lhe passar um recado —, caso ligasse.

—  Pra mim? Catatau? Não era para o Pato Malocado?

—  Agora fiquei na dúvida.

—  Não importa. Qual o recado?

—  Para o senhor se encontrar com ela no mesmo lugar de sempre. Sabe onde fica o mesmo lugar de sempre?

Desliguei imediatamente. Continuava desconfiado, fiquei mais ainda, com o pé nas costas, apesar daquele pequeno diálogo insólito. Imaginava algo mais sério. Ponderei que, talvez, houvesse uma coincidência. Parti para um segundo nome da lista, ao acaso. Se tudo corresse como esperava, largava mão, de vez. Desta feita, atendeu um rapaz:

— Boa tarde, amigo. Gostaria de falar com o Jumento desengonçado. Ele se encontra?

Ao ouvir minha voz o sujeito partiu pra cima, com tudo:

—  Pô, cara, pensei que não fosse ligar. Por que não veio ao encontro? Resolveu me tirar?

Fiquei de sobreaviso. Melhor entrar no papo da criatura:

—  Houve um problema, Jumento Desengonçado...

—  Não me venha com desculpas esfarrapadas. Deveria ter me avisado.

Na mosca. Eu sabia. Tinha certeza. Agora, iria até o fim:

— Boca de Pernilongo e Pepino Grosso ficaram pê da vida contigo, mano. Deixaram de atender um cliente dos bons por sua causa. Que falta de ‘responsa’, meu!

— Olha, vamos esclarecer uma coisa. Você sabe com quem está falando?

—  Claro que sei. Sua voz é inconfundível.

—  E quem sou eu?

—  Deixa de onda, Broxado. Não estou pra brincadeira. Pensa que me engana? Conta outra!

Entrei de sola, com tudo, na pilha do desconhecido. Queria ver até onde a loucura do meu sobrinho Gabriel daria pé. Se eu fora identificado como Broxado, que mal havia?

— Deixa de brincadeira, Broxado —, continuou a figura —, Vamos com as ‘palhaçada’ pra outra hora. E pode tratar de mandar a grana dos meninos. Não me faça sair daqui para ir até sua casa, ou fazer a galera esperar por você na porta da escola, para cobrar a ‘bufunfa’ pessoalmente. Sua namoradinha não iria gostar. Está me ouvindo, Broxado? Broxado, fale comigo. Perdeu a voz? Bro...

Desliguei na cara do sujeito. As minhas dúvidas não se constituíam infundadas. Realmente alguma coisa de muito errada, de muito grave, existia por trás daqueles nomes maquiados na lista do celular do meu sobrinho. Então eu era o Broxado. Por que Broxado? O que eu, ou melhor, o que meu sobrinho marcara com Boca de Pernilongo e Pepino Grosso? Que grana eu (suposto Broxado) teria que arranjar? Que galera estaria à espera, na porta da escola de Gabriel? Um quebra cabeças que começava a ficar perigosamente interessante. Saí em campo, para a terceira ligação:

—  Quem é?

— Como quem é? Até que enfim, Broxado, seu filho da mãe. Por que demorou a ligar? Onde está? Por que não veio ao encontro?

Precisava fazer o jogo. Juntar mais peças:

—  Que encontro?

—  Broxado, vou te comer no tapa. Que encontro? Esqueceu que eu, Onça ranzinza, tive que vir para cá, às pressas, tapar seu buraco? Jucundo está uma arara. Vai te comer o fígado, meu chapa, quando você pintar na reta.

—  Que buraco, meu. Quem é Jucundo?

Justo nesta hora, meu sobrinho saiu do banheiro enrolado numa toalha e entrou na sala como um furacão. Mal tive tempo de dispensar’ o aparelho atirando no sofá, onde o achara. Despistei, como pude, e passei por ele em direção à cozinha.

—  Me acompanha num café?

—  Não tio, 'brigadu'. Valeu!


Fonte:

Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.  Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Alberto Figueiredo Pimentel (O Príncipe Enforcado)

 

País grande, importante, populoso e rico, era o que governava Edmundo XXII, rei poderosíssimo. Na capital do reino existia uma velha, tão velha, que já contava mais de duzentos anos.

Essa velha, a tia Joana, como todos a chamavam, vivia na floresta numa casa arruinada, tendo por única companhia um gato. Dizia-se que ela era adivinha ou bruxa, e era de acreditar porque tudo quanto dizia saía certo. Nunca vinha à cidade, salvo sendo chamada por alguém que quisesse saber do seu futuro.

O rei Edmundo tinha um filho, único, Roberto, herdeiro e sucessor no governo do país. Quando sua alteza completou quinze anos, a rainha, sua mãe, preocupada com o seu futuro, querendo a todo o custo saber o que lhe reservava o destino, mandou convidar a velha feiticeira para vir ao palácio e aí ler a buena dicha* do príncipe.

A velha, a princípio não quis dizer o futuro que estava reservado ao príncipe, mas a rainha tanto lhe pediu que ela profetizou haver o príncipe Roberto de morrer enforcado.

A rainha desde esse dia, viveu imersa em profundíssima tristeza.

Roberto, notando que sua querida mãe vivia sempre no quarto, chorando inconsolável, perguntou-lhe o motivo porque andava tão desesperado. A rainha nada lhe quis dizer pretextando moléstia. Mas o jovem príncipe tanto insistiu, que a pobre mãe não teve remédio senão revelar a causa de sua tristeza.

O moço não ficou com receio do destino que lhe estava reservado. Disse que não se incomodava com o gênero de morte que teria, porquanto tinha de morrer um dia e, que, nesse caso, tanto se lhe dava ser desta ou daquela maneira.

Pediu então, já que lhe estava destinada aquela sorte, que os pais lhe dessem licença para ir correr mundo, a fim de morrer em país estranho, longe dos seus, e não afligir os pais com o espetáculo de sua morte horrorosa.

O rei, só a muito custo lhe concedeu a licença pedida.

Roberto aprontou-se para a viagem. À despedida a rainha deu-lhe dinheiro que bastasse para se sustentar durante o resto de sua vida.
***

Começou o príncipe a correr mundo; e depois de haver percorrido muitas cidades e reinos foi ter a um pequeno povoado onde existia uma capelinha erguida no alto de um morro, dedicada a S. Miguel.

O povo desse lugarejo era muito pobre, de modo que não só a igrejinha como S. Miguel e a figura do diabo e as demais alfaias do templo, tudo, já se achava em péssimo estado.

O príncipe Roberto, apiedando-se da miséria em que estavam a capela e as imagens, mandou consertar tudo à sua custa.

Resolveu, então, demorar-se aí por algum tempo à frente dos operários, administrando as obras.

Concluídas que foram, o pintor, disse que ficara um resto de tinta, pois não pintara o Anjo Mau, por lhe parecer que não merecia a pena, com que o príncipe não concordou, ordenando que pintasse também a figura do diabo.

Quando tudo ficou pronto e nada mais faltou, retirou-se da povoação, levando consigo a bênção do povo, que só assim vira a sua capelinha restaurada.

Roberto continuou a viagem, a correr mundo, indo ter à casa de uma velhinha, na beira de uma estrada solitária, a quem pediu pousada por uma noite. A velha, que era uma bruxa muito má, cedeu-lhe a pousada pedida e mostrou-lhe o quarto onde ele devia passar a noite.

O moço, entrando no quarto que lhe fora destinado, começou a contar o dinheiro que tinha no bolso. A feiticeira, que estava à espreita, pelo buraco da fechadura, ficou admirada de ver tanto dinheiro e correu para a cidade, dizendo que em sua casa estava um estrangeiro a lhe roubar toda fortuna.

A polícia acompanhada de soldados bem armados, dirigiu-se para lá e deu voz de prisão ao príncipe, conduzindo-o para a cadeia amarrado pelos pulsos, com duas cordas grossas.

Ficou Roberto na cadeia à espera do resultado do processo, quando um dia soube que fora condenado à forca por gatuno. Quis se defender, mas nada conseguiu.

Como era aquela a sua sina, depressa se resignou.
***

Chegando o dia de ser executada a sentença, seguiu o príncipe Roberto para a praça em direção à forca, no meio de uma escolta de soldados de armas embaladas. São Miguel que estava na capelinha que o príncipe mandara consertar, virou-se para o diabo e disse:

– Então, agora não estás mais bonito?

– Estou sim. - respondeu ele.

– Sabes quem te mandou consertar?

– Sei. Foi aquele honrado príncipe que há tempos passou por aqui.

– Pois fica sabendo que este bom príncipe a esta hora está a caminho da forca, a que foi condenado injustamente. Está todo amarrado, no meio de uma escolta e daqui a pouco estará morto. Vai defendê-lo.

Quando o diabo ouviu o que S. Miguel lhe contou, montou num cavalo preto de crinas de fogo, veloz como um raio e voou a toda a brida para a casa da velha que dera queixa contra Roberto.

Chegando aí conduziu a bruxa, que confessou o seu crime, dizendo que o príncipe era inocente, e que ela tinha feito tudo aquilo com o fim de se apoderar da riqueza do estrangeiro que tinha pedido pousada.

O rei, sabendo do ocorrido, por intermédio do diabo, imediatamente lavrou ordem de soltura para o príncipe.

Entregou-a ao diabo, que, rápido, como o pensamento, foi à praça onde estava levantada forca, e entregou a absolvição do príncipe ao carrasco.

Já não era sem tempo. Mais dois segundos demorasse, estaria o príncipe morto. Roberto foi levado à presença do rei que perguntou quem era e de onde vinha.

O moço contou-lhe que era filho do rei de um país muito distante dali; que saíra do reino porque sabia que a sua sina era morrer enforcado, e não queria que a sua morte fosse no domínio de seu pai.

O rei ficou penalizado com a história do jovem. Obrigou a velha a restituir o dinheiro que roubara ao moço e mandou prendê-la.

Assim que se viu livre e embolsado de seu dinheiro, Roberto continuou a viagem.

No meio do caminho encontrou-se com um fidalgo, montado num cavalo muito bonito e ricamente arreado.

O cavaleiro perguntou-lhe para onde ia, ao que respondeu o príncipe que estava correndo terras e não sabia qual o seu destino, nem podia dizer onde ia pernoitar. E pelo caminho foram andando em direção à capelinha que o príncipe havia anos mandara consertar.

Durante a viagem o príncipe contou ao cavaleiro a sua história, como tinha se tinha livrado da forca, mas que tinha a certeza de morrer enforcado porque era aquela a sua sina.

O fidalgo, então lhe disse:

– E não sabeis quem vos salvou quase na hora da morte?

– Não! - disse o príncipe.

– Pois sabei que fui eu. Eu sou a figura daquele diabo que o pintor não quis pintar por não valer a pena, e que ordenaste consertar e pintar. Sabendo do embaraço em que vos acháveis, vim ao vosso encontro. Podeis voltar para vossa terra. A vossa sina está desmanchada, em vosso lugar foi enforcada aquela bruxa que era feiticeira. O encanto está quebrado.

Dizendo isso o cavaleiro sumiu-se e foi para sua morada na capelinha.

O príncipe ao passar pela capelinha, entrou e começou a rezar. Depois voltou para a sua cidade, onde encontrou seus pais que o receberam com grande contentamento.

Já o rei Edmundo sabia que a sina do seu filho estava desmanchada, porque Joana fora ao palácio contar a história do príncipe Roberto.
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* Buena Dicha: Sorte ou azar através da leitura das cartas

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.