quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Carolina Ramos (O Banquete)


Vitrinas iluminadas. Noite azul, cheia de estrelas. Papai Noel, passos cansados, não tinha pressa nenhuma em voltar para casa.

Aspirou fundo o cheiro peculiar que diferenciava a Noite Santa das outras tantas noites perdidas nos calendários. Varreu com os olhos, pouco interessados, as vitrinas exuberantes e as janelas contornadas de luzes pequeninas, a cintilar como cacos de estrelas caídos do espaço. Era como se o homem, com sua tecnologia lírica, tivesse conseguido transportar para a terra a magia coruscante de um céu natalino.

Nos rumos do ganha-pão, o velho Papai Noel passara por inúmeros lares, arredondando olhos de crianças de tenra idade, felizes por nele acreditarem; olhos que nem o peso do sono conseguia fechar.

Era a figura máxima! Em sua mágica passagem, arrebatara atenções, em detrimento até do Pequenino, adormecido entre as palhas do presépio.

Encantadas, as crianças acreditavam mais na figura palpável do Bom Velhinho, do que no cenário espiritualizado da lapa de Belém, improvisado aos pés da Árvore de Natal — a matéria situando-se acima dos símbolos imponderáveis. A lenda, importada, sobrepondo-se ao misticismo da Fé.

Aquele Bom Velhinho, porém, era humano. Humaníssimo! Sentia a fome roer-lhe as paredes do estômago vazio, e ninguém, ninguém mesmo, lembrara-se de oferecer-lhe um mísero petisco, sequer uma perninha de frango — nem pensar nos perus luzidios, de papo estufado de farofa e sapatos de papel estanho recortado, completamente fora de suas cogitações. Mas, ninguém lhe oferecera uma guloseima, um copo de vinho, um copo de água, sequer!

Denunciado pelo ventre rotundo, ainda que acolchoado de algodão, negava-se ao Papai Noel comilão o direito de matar a fome em público. Seria a desmitificação absoluta! Seria sujeitá-lo a deslizes, ou pior que isso, ao vexame, pondo em risco a estabilidade ou a pulcridade da barba branquinha, que deveria continuar imaculada a qualquer custo, até o fim do desempenho de suas funções.

Bebida, então, nem pensar! Que tal imaginar um Pai Noel etilicamente "alegre", babando champanhe ou de barbas manchadas de vinho?

Degradante! Profundamente degradante! A decepção das crianças que tamanho teria?!

Sóbrio, sedento e faminto, assim teria de ser o Pai Noel que prezasse o nome.

E era sóbrio, sedento, faminto e cansado, que se sentia aquele homem de gorro e roupas vermelhas, botas negras, que trazia no ombro um saco cheio de caixas muito bem embrulhadas e... vazias... tão vazias quanto ele próprio.

Frente à apetitosa vitrina de um restaurante, parou. O pernil à Califórnia, cercado de frutas embebidas em calda e decorado de cerejas, fez-lhe brotar água à boca.

Contou as moedas, aqui e ali, pingadas nas algibeiras. No pernil inteiro, nem pensar! Também, era demasiado grande para o tamanho da fome. Algumas fatias bastavam. E sempre havia algumas delas à espera de comprador modesto.

Ao chegar a casa, o gato, ronronante, como ele, faminto, lustrou-lhe as botas com o pelo macio.

E o Bom Velhinho, cuja presença alegrara tanta gente, livre das botas e do gorro vermelho, dividiu, prazerosa mente com o gato vadio, o seu banquete de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Prof. Garcia (Pantuns) III


PANTUN DA DOCE QUIMERA

Trova tema:
Quem se agarra a uma quimera
quem persegue uma utopia,
age como se soubera
que sem sonhos...morreria!
(Carolina Ramos – SP)

Quem persegue uma utopia,
nunca se engana ao pensar,
que sem sonhos...morreria
um sonhador, sem sonhar.

Nunca se engana ao pensar,
que sem sonho, a vida é um tédio;
um sonhador, sem sonhar,
requer um santo remédio.

Que sem sonho, a vida é um tédio;
a ausência dessa ternura,
requer, um santo remédio,
para um mal quase sem cura.

A ausência dessa ternura,
desfaz tudo que se espera,
para um mal quase sem cura,
quem se agarra a uma quimera!
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PANTUN DO FILHO QUE ESTUDA

Trova tema:
Filho… Estuda que eu te ajudo,
capricha, porque é na soma,
do esforço e amor pelo estudo,
que se conquista o diploma.
(Ailto Rodrigues – RJ)


Capricha, porque é na soma,
das luzes do conhecer...
que se conquista o diploma
da eterna luz do saber.

Das luzes do conhecer...
há um facho que nos conduz,
da eterna luz do saber
a um mundo cheio de luz.

Há um facho que nos conduz,
entre os velhos rituais,
a um mundo cheio de luz
que não se apaga jamais.

Entre os velhos rituais,
há uma luz em quase tudo
que não se apaga jamais.
Filho... Estuda que eu te ajudo!
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PANTUN DOS DEDOS NA FOTO

Trova tema:
Passo os dedos sobre a foto...
Naqueles rostos tão lisos
a mocidade então noto
escondida entre os sorrisos...
(Gilvan Carneiro – RJ)

Naqueles rostos tão lisos
da antiga fotografia,
escondida entre os sorrisos...
Sorri a melancolia!

Da antiga fotografia,
em meio a tanta lembrança,
sorri a melancolia
no rosto de uma criança!

Em meio a tanta lembrança,
há saudade, há dissabor;
no rosto de uma criança
um riso triste de amor!

Há saudade, há dissabor,
e ao vê-los, logo que noto
um riso triste de amor,
passo os dedos sobre a foto...
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PANTUN DOS SONHOS DE RENDA

Trova tema:
Nem mesmo a ilusão remenda,
com seus fios de saudade,
os velhos sonhos de renda
que eu teci na mocidade!
(Elizabeth Souza Cruz – RJ)


Com seus fios de saudade,
velha ilusão me faz crer,
que eu teci na mocidade
os sonhos do meu viver.

Velha ilusão me faz crer,
que em tudo quanto eu já fiz,
os sonhos do meu viver
me deixam bem mais feliz,

Que em tudo quanto eu já fiz,
os remendos que ainda faço,
me deixam bem mais feliz
o que fica em cada traço.

Os remendos que ainda faço,
ponho os defeitos na agenda;
o que fica em cada traço,
nem mesmo a ilusão remenda!
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PANTUN DA VOZ DA ESPERANÇA

Trova tema:
No meu Livro da Lembrança,
ainda sem conclusão,
saudade é aquela esperança
que compôs a introdução...
(Vanda Fagundes Queiroz – PR)

Ainda sem conclusão,
foi alguém sem perceber
que compôs a introdução
do livro do meu viver,

Foi alguém sem perceber
que num impulso infeliz
do livro do meu viver
riscou tudo quanto eu fiz.

Que num impulso infeliz
ou por medo ou por loucura
riscou tudo quanto eu fiz
essa insana criatura.

Ou por medo ou por loucura
eu vou guardar por herança,
essa insana criatura
no meu livro da lembrança.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Conto Fantástico


Conto fantástico é o nome que se dá a uma narrativa curta que apresenta personagens que extrapolam os limites da realidade e/ou fatos igualmente estranhos e inexplicáveis. Esse tipo de literatura está associado a autores estrangeiros, tais como:

    Franz Kafka
    Edgar Allan Poe
    Gabriel García Márquez
    Jorge Luis Borges

Já no Brasil, os autores que dialogaram com o fantástico em suas obras são:

    Machado de Assis
    Erico Verissimo
    Mário de Andrade
    Murilo Rubião

O QUE É CONTO?

O conto é uma narrativa (tipo de texto em que se conta uma história). Ele pode relatar um acontecimento verídico ou ficcional e ser contado de forma oral ou escrita. As narrativas são ações de personagens que ocorrem em determinado espaço e tempo. Elas são contadas por um narrador.

Na literatura, existem outros gêneros de narrativa além do conto, como a novela e o romance. Esses três gêneros possuem as mesmas características apontadas. O que vai fazer a distinção entre eles é o tamanho, as dimensões da obra. Nessa perspectiva, o conto é uma narrativa menos extensa; o romance, uma narrativa mais extensa; já a novela ocupa lugar intermediário no que se refere às suas dimensões.

Segundo a ensaísta Nelly Novaes Coelho:
Desde as origens, o conto é definido, formalmente, pela brevidade: uma narrativa curta e linear, envolvendo poucas personagens; concentrada em uma única ação, de curta duração temporal e situada num só espaço. Dessa necessidade de brevidade, deriva a grande arte do conto que, mais que qualquer outro gênero em prosa, exige que o escritor seja um verdadeiro alquimista na manipulação da palavra.”

No entanto, não há um consenso em relação a essa definição, que, para alguns estudiosos e escritores, parece não ser satisfatória; pois, como afirmou o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), o conto é de
difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário”.

LITERATURA FANTÁSTICA

A literatura fantástica traz elementos que contrariam a noção de realidade. Portanto, apresenta personagens e/ou fatos impossíveis, isto é, em desacordo com as leis que comandam os fenômenos naturais. Como exemplo, podemos citar o livro A metamorfose (1915), de Franz Kafka, em que o protagonista Gregor Samsa transforma-se em um inseto, algo naturalmente impossível.

Para o filósofo Tzvetan Todorov, na literatura fantástica, “é necessário que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados”. Essa vacilação pode permanecer ou ser eliminada quando o leitor decide que os acontecimentos têm relação com a realidade ou são ilusões.

Não há concordância sobre quando surgiu a literatura fantástica. A maioria dos estudiosos defende que seu surgimento ocorreu entre os séculos XVIII e XIX. Segundo Silva e Lourenço*: “O fantástico teve suas origens em romances que exploravam o medo, o susto, porém, ao longo dos séculos, foi se transformando até chegar ao século XX como uma narrativa mais sutil”.

Assim, além de Kafka, outros escritores, em algum momento de suas carreiras, enveredaram pela literatura fantástica, como: o português José Saramago (1922-2010), com Ensaio sobre a cegueira (1995); a britânica Mary Shelley (1797-1851), com Frankenstein; o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), com O médico e o monstro (1886); e o britânico Oscar Wilde (1854-1900), com O retrato de Dorian Gray (1890).

CARACTERÍSTICAS DO CONTO FANTÁSTICO

O conto fantástico é uma narrativa curta, cujos personagens ou fatos estão associados a elementos sobrenaturais ou sem explicação, já que contrariam as leis naturais. Karin Volobuef* afirma que “tal gênero abandonou a sucessão de acontecimentos surpreendentes, assustadores e emocionantes para adentrar esferas temáticas mais complexas. Devido a isso, a narrativa fantástica passou a tratar de assuntos inquietantes para o homem atual: os avanços tecnológicos, as angústias existenciais, a opressão, a burocracia, a desigualdade social”.

Dessa forma, esse gênero de literatura, em primeiro lugar, provoca estranheza nos leitores. Em seguida, pode despertar a emoção durante a leitura ou a reflexão, caso o texto, apesar de extrapolar a realidade, trouxer alguma crítica a ela — o que podemos ver no conto fantástico, de Machado de Assis, O País das Quimeras.

Nessa obra, o narrador conta a história de Tito, um poeta pobre e romântico que abre mão de seus versos por dinheiro. Eles são comprados por um “sujeito rico, maníaco pela fama de poeta”. Além disso, Tito está apaixonado, mas não é correspondido. O poeta vê-se entre dois caminhos possíveis — morrer ou partir —, quando surge “uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas”.

A fada tem asas, pega o poeta nos braços, o teto rasga-se, e eles iniciam o voo: “Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava”.

Por ser um conto fantástico, as leis da natureza não são respeitadas, tudo é possível. Assim, chegam ao País das Quimeras: “País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência”. Nessa ironia, percebemos que o narrador zomba do fato de que a maioria das pessoas não encara a realidade, ou seja, vive no País das Quimeras, do sonho, da fantasia.

Dessa forma, o narrador, com o pretexto de relatar o que acontecia no País das Quimeras, acaba fazendo uma crítica às futilidades do “nosso mundo”, como se pode ver neste trecho: “Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos”.

Após conhecer o País das Quimeras, Tito, de repente, percebe que tudo vai se desfazendo diante de seus olhos — afinal, aquilo não é concreto, é um mundo abstrato —, e o poeta começa a cair, até chegar à Terra. Como se pode observar, a sua queda é contrária às leis da natureza:

    “É a Terra! disse Tito consigo. Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.

Por fim, ao terminar o conto, mais uma vez, o narrador critica aqueles que fogem da realidade: “Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie [ou seja, que traz na cabeça massa quimérica, fantasia]. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções”. Portanto, o narrador declara-se exceção, pois é racional e não empreende a fuga da realidade, isto é, ele é realista.

AUTORES NO MUNDO

Os principais nomes da literatura mundial que produziram um ou mais contos fantásticos são:

– Edgar Allan Poe, americano: o livro Histórias extraordinárias é composto de contos publicados entre 1833 e 1845.

– Gabriel García Márquez, colombiano e Nobel de Literatura: o conto “Maria dos Prazeres”, do livro Doze contos peregrinos (1992).

– Jorge Luis Borges, argentino: o conto “O outro”, de sua obra O livro de areia (1975).

– F. Scott Fitzgerald (1896-1940), americano: o conto “O curioso caso de Benjamin Button”, em Seis contos da era do jazz (1922).

– Oscar Wilde, britânico: o conto “O fantasma de Canterville”, em O crime de lorde Arthur Savile e outras histórias (1887).

Além desses escritores, há também aqueles que produziram contos infantis em que o fantástico está presente, como: os irmãos Grimm — Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) — e Hans Christian Andersen (1805-1875). Andersen é autor, entre outros contos, de A pequena sereia. Já os irmãos Grimm são autores de O rei sapo, além de outras narrativas curtas.

AUTORES NO BRASIL

No Brasil, alguns autores utilizaram elementos fantásticos em suas obras. Podemos citar Érico Verissimo, em seu romance Incidente em Antares (1971); Machado de Assis, em seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881); Mário de Andrade, em sua obra Macunaíma (1928); e Monteiro Lobato (1882-1948), em seus livros infantis.

No entanto, o principal autor de uma literatura fantástica no Brasil é o contista mineiro Murilo Rubião, a quem Antonio Olinto (1919-2009) considerou surrealista e comparou a Franz Kafka. Seus livros são:
    O ex-mágico (1947); A estrela vermelha (1953); Os dragões e outros contos (1965); O pirotécnico Zacarias (1974); O convidado (1974); A Casa do Girassol Vermelho (1978); O homem do boné cinzento (1990)

No conto de Murilo Rubião — “Teleco, o coelhinho” —, do livro Os dragões e outros contos, o narrador está na praia quando alguém lhe pede um cigarro. Esse alguém é um coelhinho cinzento. O narrador convida Teleco, o coelhinho, a morar com ele. Teleco tem a “mania de metamorfosear-se em outros bichos”. Então, transforma-se em uma girafa, e pergunta: “Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?”.

O narrador responde que não, e vão morar juntos. Até que um dia, Teleco, metamorfoseado em canguru, leva uma mulher para viver com eles. Tereza afirma que o canguru chama-se Barbosa e é um homem. Assim, o conto segue rumo a um final trágico e poético.

Teleco apresenta-se como coelho para o narrador, mas não é possível saber qual é a sua verdadeira identidade.

Nesse conto, o fantástico está presente, pois, em nenhum momento, é dada uma explicação racional para a metamorfose de Teleco, já que ela não é possível. A leitura dá-se na aceitação de que um coelhinho pode falar e transformar-se em outros bichos. Nesse ponto, há uma diferença entre literatura fantástica e de ficção científica, já que, na segunda, há explicações para os acontecimentos estranhos (mesmo que, muitas vezes, elas não possam ser comprovadas).

Assim, segundo Kateřina Novotná, mestre em estudos românicos:
Vários críticos (geralmente da literatura fantástica) incluem nele [no maravilhoso] também a ficção científica. No entanto, as características da FC [Ficção Científica] estão em oposição direta com o maravilhoso [...]”.

E ainda: “Obviamente, é muito simplista dizer que a FC é uma narrativa baseada na ciência, mas não deixa de ser verdade. Sem a ciência, a narrativa seria só uma ficção como qualquer outra. Ao mesmo tempo, a ciência sem ficção seria só o manual científico.

EXEMPLO DE CONTO FANTÁSTICO: SOMBRA - UMA PARÁBOLA, de EDGAR ALLAN POE

O conto “Sombra — uma parábola” (1835), do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe, é o registro de um narrador-personagem, da Antiguidade, que parece escrever conscientemente para leitores do futuro. Ele narra sobre uma “orgia-velório”, em que surge uma sombra que não é divina nem humana. A parábola, isto é, a narrativa alegórica, finaliza-se quando os convivas percebem que, na voz dessa sombra, há uma “multidão de seres” mortos.

Dessa maneira, o fantástico dessa história de terror, típica de Poe, reside no fato de que não há explicações sobre o que é a Sombra, apesar de concluirmos que ela é a Morte personificada. Um dos motivos que nos levam a essa conclusão é a epígrafe que encabeça o conto: “Sim! Embora eu caminhe pelo vale da Sombra” (Salmo de Davi), que, no texto bíblico, é o “vale da sombra da morte”.

No conto de Poe, a Sombra é a personificação da Morte.

Então, vamos ler o conto, na íntegra:

Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Porque de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro.

O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade. Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o ressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.

Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava. Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros. Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo — que era histérico —, e cantávamos as canções de Anacreonte — que são doidas —, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão. E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se. E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da Grécia, de deus da Caldeia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento. E a sombra respondeu: “Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte”. E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.

__________________
* Luis Cláudio Ferreira Silva e Daiane da Silva Lourenço, ambos da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

* Karin Volobuef é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).


Fonte:
Warley Souza. "Conto fantástico". Disponível em Brasil Escola:  Acesso em 14 de novembro de 2020.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 6: Sobrevivência


O GATO PRETO estava com uma fome tremenda. Uma fome de três dias ou mais. De repente, viu seu almoço suculento em forma de passarinho. Era um desses caseiros que, fora da gaiola, não enxergam um palmo adiante do bico.

Esfomeado, armou o bote para pegá-lo. Calculou milimetricamente o pulo.

Chuapppp...

Entretanto, ao tentar abocanha-lo, outro bichano, de pelos brancos, igualmente espreitava a mesma iguaria. E o gato preto, não o vira. Foi seu erro. Mais safo e despachado, o malandro miador chegou de mansinho. Veio em sentido contrario e, num salto certeiro, se adiantou.

 Chuapppp...

Arrebatou, vitorioso,  o saboroso almoço  quentinho do dia.

O gato preto, coitado, ao se deparar com esse imprevisto, arregalou os olhos e ficou a ver a gaiola vazia. Não só isso. Seu almoço tomando outro rumo na boca sorridente de um desconhecido companheiro de desdita. A maldita fome, nessa hora, como por desencanto, aumentou mais.  Além de crescer, passou a doer com mais insistência.  

Do outro lado, longe de outros predadores da mesma consanguinidade, seguro de si, protegido por alto beiral de uma casa antiga, realizado e feliz, pomposo e dono da situação o incogitado amigo de pelos brancos (amigo da onça) se banqueteava em saborosas dentadas, a desditosa avezinha.

MORAL SEM MORAL DA HISTÓRIA:

O gato preto ficou cabisbaixo, vencido.  Limitou a afagar o desequilíbrio da turbulenta roncação da barriga vazia, em face do naco deleitável, do regalado cobiçável que lhe escapara, incontinente, das humildes garras.

Resumindo: também no mundo animal, vale a inteligência do mais esperto.

Fonte:
texto enviado pelo autor.
Imagem = montagem por JGFeldman

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 449

 


Stanislaw Ponte Preta (Inferno Nacional)


A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto para o Inferno. Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e perguntou: — Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.

Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de zero até as três horas, e voltar ao forno de duzentos graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de duzentos graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de zero pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

— Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de trinta e cinco graus por dia.

— E as quinhentas chibatadas?
— perguntou o falecido.

A... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Célia Cerqueira Cavalcanti (Poemas Avulsos)

AO MEU PAI


Após tanto sofrer, deixaste a vida,
és decerto feliz na eternidade.
Que não me vejas, pai, de alma sentida,
sob o peso da cruz desta saudade.

Lembro tanto de ti, de fronte erguida,
relevando, de quantos, a maldade;
e tua voz há de ser por mim ouvida,
aconselhando sempre a caridade.

Possa um dia rever-te noutro mundo,
sob um céu diferente e iluminado,
onde o bem é maior e mais fecundo...

E que sintas, então, que foste amado,
na extensão filial do amor profundo
de um coração agora amargurado.
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DEUS

Eu Vos amo, Senhor, que Sois a vida,
o renascer da luz de cada dia.
Eu Vos amo. Senhor, e a Maria,
a Virgem pura e Mãe estremecida.

E crendo em Vós, Senhor, contemplo a vida,
o renascer da luz de cada dia...
Em Vós confio, Pai, na nostalgia
da saudade ou na dor mais desvalida.

Porque tudo o que existe sobre a terra,
nos altos céus, ou pelo mar profundo,
o mistério que a morte nos descerra,

o próprio olhar aflito de quem erra,
tudo é Vosso, Senhor, autor do mundo,
e Vós, o eterno amor que a vida encerra.
****************************************

DIVINDADE PAGÃ

A lenda conta que existiu um deus,
pequenino, travesso e delicado,
dentre os deuses talvez o mais lembrado,
quer dos mais crentes, quer dos mais ateus.

Dominou os egípcios e os hebreus;
Grécia e Roma o tiveram consagrado,
e Cupido, esse deus mimoso e alado,
conquista os corações com os dardos seus.

De cada vez a luta é mais renhida,
mais intensa e falaz se torna então.
Hoje, amanhã, depois, por toda a vida,

há de o amor, sem piedade ou compaixão,
abrir, em cada peito, uma ferida,
sangrar, em cada peito, um coração,
****************************************

TEUS OLHOS

Teus olhos, mãe, vi risonhos,
cheios de luz, a brilhar...
Vi-os tristes, apagados,
como as noites sem luar.

Cheios de luz e de encanto,
eram tão belos teus olhos,
dois faróis que iluminavam
minha vida entre os abrolhos,

Teus olhos. . . Suponho vê-los,
quando a noite estende o véu,
transformados nas estrelas
mais brilhantes lá do céu.

Nunca mais esquecerei
os queridos olhos teus,
refletindo-se em minha alma,
são a luz dos olhos meus.
****************************************

UM DIA…

Um dia, serei livre e leve qual o vento,
seguindo pelo espaço azul meu pensamento.
 
E o corpo deixarei, num sono sempre igual,
indiferente à luz das tochas de cristal.

Sem forma definida... sol de primavera,
ou clarão de luar. Talvez uma quimera…
 
Decerto um sonho bom, feliz, há de levar
minha alma pelo espaço, em rápido passar,
 
em busca da verdade, pura, indecifrável,
do mistério do além da morte, do insondável.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Eduardo Affonso (Muçarela)


Escrevi “cozer”, e não “coser”, num texto. Ninguém reparou – ou, se reparou, ficou sem jeito de avisar.

“Cozer” é cozinhar; costurar é “coser”.

É bom quando alguém aponta um erro, e impede que ele se perpetue.

Mas há casos e casos. Às vezes erro porque quero, porque o errado me soa melhor, e eu o promovo a certo.

Mussarela ou muçarela? O dicionário pode dizer que a grafia correta é a segunda, mas meus olhos, meus ouvidos e meu paladar discordam veementemente.

Se na prateleira houver uma embalagem de mussarela e outra de muçarela, compro a primeira. “Muçarela” não dá pra engolir. Não desce.

Não foi sem resistência que passei a dizer e escrever “caverna” e “cuspe”, em vez de “gaverna” e “guspe”, lá pelo primeiro ano primário. Quem inventou que guspe e gaverna se escreviam com C é porque nunca guspiu ou engatinhou por gavernas no fundo do quintal.

Há “erros” que não são erros: são variantes. Ir “na rua” e “no cinema” é muito diferente de ir “à rua” ou “ao cinema”, o que exigiria tomar banho, pentear o cabelo, botar roupa de domingo.

Andar “de cavalo” e “a cavalo” – tem comparação? Num você monta e vai, no galope; no outro tem que se paramentar todo, e seguir empertigado, como se escoltasse a carruagem real.

Birra com a empregada ou com a tia se faz dizendo “você não manda ni mim”. É nesse “ni” que se peita a meia-autoridade e a gramática de uma vez só. Aí nasce o verdadeiro “cavaleiro que diz ni”, muito superior ao que se sujeita a dizer “em”.

“Nós tudo” é muito mais inclusivo que “todos nós”. “Tudo” não deixa dúvida: somos todos nós e tudo o mais que houver.

Era preciso um dicionário à parte, uma gramática exclusiva para esse idioma no qual o que conta é o valor afetivo (e efetivo), não a etimologia ou o que pontifica aquela senhora chata, a Norma Culta.

D. Norma nunca entendeu que “dê-me um copo d’água” é uma ordem, e “me dá um copo d’água” é um pedido. Se não são a mesma coisa, não podem ser ditos da mesma maneira.

D. Norma não sabe que “eu irei” é coisa de político em cima de palanque, prometendo tudo para um futuro longínquo, hipotético e improvável. O futuro imediato das coisas do mundo real se resolve é no “eu vou ir”. Ou no “vou vim”, que é das locuções mais lindas que o idioma poderia ter inventado.

D. Norma não tem mais o que fazer na vida. Exige que se escreva “maisena” quando qualquer mingau que se preze é feito com Maizena. Não percebe que “peneu” tem mais ar que “pneu”; “tinha chego” é porque estava com tanta pressa que de outra forma não teria chegado; “tinha pego” indica que pegou com mais apego do que se tivesse pegado.

D. Norma não vê isso. Pode até ser culta, mas é cega. E surda.

Se a voz do povo é a voz de Deus, Deus deve de falar assim, deixando cada palavra buscar na língua, no lábio, no palato, a consoante ou a vogal que melhor se encaixe.

Se você se arrepende, arrepia, arredonda, por que vai abrir mão de arreparar, arrepetir, arrenegar?

Pode corrigir sem dó se eu trocar de novo “coser” por “cozer”, “intercessão” por “interseção”, “tachar” por “taxar”. Mas se vir mussarela, cucuruto e mixirica, deixe quieto. Nessa hora eu não aceito argumento e luto até a morte pelo direito inalienável de permanecer errado.

 (publicado originalmente em 17 de abril de 2018)

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/06/28/mucarela/

Estante de Livros ("As Horas Nuas", de Lygia Fagundes Telles)


O romance ficcional “As horas nuas”, de Lygia Fagundes Telles, foi publicado em 1989. É uma narrativa moderna que focaliza atitude e postura do homem comum. Apresenta um enredo fragmentado, retratando ações, comportamentos e costumes dos indivíduos e da sociedade na qual ele está inserido.

A autora dá ênfase ao comportamento das personagens em interação com a sociedade, retratando de forma subjetiva dilemas e contradições da alma humana, que se move entre valores, apelos do mundo social materialista e massificante. Assim ela vai projetando a realidade e enfatizando o seu reflexo na vida do indivíduo.

No romance em estudo, o narrador busca adequar a linguagem ao vai e vem das ações avançando e retrocedendo, confirmando a vitalidade do tempo. Assim o leitor vai sendo introduzido na trama, conhecendo e penetrando de forma sutil na complexidade, que e calcada nos conflitos existenciais das personagens e que se reflete nos problemas atuais da sociedade.

O romance apresenta uma linguagem plurissignificativa fincada nos constantes uso de estrangeirismos “Hasta siempre”, ”illustration”. “Formes et couleurs”, nas figuras de linguagem:

Metáforas, “fecho meus olhos e vejo minha filha boiando no rio do supérfluo”;

Personificação presente na figura do gato;

Eufemismo “idade da madureza”;

E na intertextualidade que aparece no saudosismo da infância de Rosa, onde esta lembra do clássico “João e Maria”, nas cirandas “O cravo e a rosa”, nas lembranças da “antiga Praça da República transformada pelo crescimento desordenado da cidade”, em trechos retirados dos mandamentos bíblicos “não julgueis e não sereis julgados” e na literatura de ficção policial “É elementar, meu caro Watson”.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

ROSA AMBRÓSIO = protagonista da narrativa, é uma atriz que vive remoendo lembranças de uma infância e adolescência infeliz. Rememora o auge da decadente carreira de atriz e na ânsia para fugir da realidade afoga-se no alcoolismo. Oscila entre momento de delírios, luxúria e lucidez. A atriz foi uma pessoa muito machucada pela vida. Ferida e desconfiada, foi abandonada pelo pai logo cedo e perde o primeiro e grande amor da sua vida, o primo Miguel. A partir de então, busca consolo no ombro amigo de um até então desconhecido, Gregório, que logo viria se tornar pai da sua única filha. Mãe relapsa, Rosa Ambrósio mantém um relacionamento meio conturbado e preconceituoso com a filha, da qual sente ciúmes. Ela inveja a juventude e o bom relacionamento da filha com o pai. Só e infeliz procura consolo nos braços do secretário e amante, Diogo. Passa então a arcar com as extravagâncias deste e aturar suas loucuras, assumindo assim uma postura masoquista. Temendo a velhice que prefere chamar de “idade da madureza”, ela procura refúgio também nas sessões de análise e na solidariedade da governanta Dionísia. A atriz apresenta um comportamento ambíguo: apesar de viver de modo desregrado, critica as futilidade da humanidade, chegando a ponto de por em cheque valores éticos e morais, os modismos imposto pela mídia e sua repercussão no modo de vida da sociedade. A personagem não foi sempre rica; muda de vida quando recebe uma herança da tia.

RAHUL (o gato) = também protagonista, é uma personagem personificada. Ele pensa, age, e se comporta quase como humano contando reminiscências, fazendo reflexões sobre o que acontece. Tem uma relação estranha com a atriz Rosa Medrado, a que ele chama de Rosona. Demonstra verdadeira adoração por Gregório, falecido marido de Rosa e desprezo por Diogo, o amante. Parece viver na esperança de que o falecido volte. Tanto é que consegue vê-lo passeando pela casa. Rahul vive momentos de lembranças fugazes, nos quais ele acredita ter vivido outras vidas.

ANTAGONISTA = É a crise existencial vivida pela atriz Rosa Ambrósio.

ANANTA = Personagem de comportamento estranho, demonstra obsessão por um “homem” que ela diz morar no andar superior. É uma analista e dedica-se também ao trabalho social numa Delegacia de Proteção a Mulher. Ananta demonstra tendência para o mistério. Solitária, a analista mantém um círculo restrito de amizades ( a governanta, os moradores do prédio, e a amiga Flávia), Desaparece misteriosamente sem deixar pistas.

DIOGO = Era secretário de Rosa, e veio se tornar seu amante. Por ser jovem e bonito age como um gigolô, aproveitando-se das fraquezas da atriz para explorá-la, chantageando-a com suas idas e vindas. Viaja e não volta mais.

PERSONAGENS SECUNDÁRIAS

CORDÉLIA = Filha de Rosa e de Gregório, a moça demonstra um personalidade independente e atrevida. Vive a manter relacionamentos amorosos com homens mais velhos, o que choca a mãe. É adepta a modismos e indiferente a crise existencial da mãe, pois se identificava mais com o pai.

GREGÓRIO = Marido de Rosa e pai de Cordélia. Moço educado e professor. Conhece a esposa no dia em que está perde seu grande amor. Gregório a amava a sua maneira, mesmo assim foi traído por Rosa. Ele sabia o que se passava mais fingia ignorar. Tinha um espírito calmo tanto é que morreu quieto para não incomodar ninguém. Só demonstrava luta para defender os menos favorecidos. Foi exilado e torturado. Antecipa a morte. Sofria de mal de Parkinson.

DIONÍSIA ─ É mais que uma simples empregada. É também confidente e amiga. É aquela que busca conforto na fé, para aturar as insanidades de Rosa.

MIGUEL─ Primo de Rosa, foi o primeiro e grande amor da vida da atriz. Ela jamais conseguiu esquecê-lo. Garoto mimado e acostumado à boa vida dos endinheirados, entra no mundo das drogas e morre de overdose.

RENATO MEDRADO ─ Aparece quase no final da trama como primo da analista. É uma personagem suspeita no caso do desaparecimento de Ananta. É através da sua visão que o leitor pode ter noção sobre a infância desta. Mostra-se bastante interessado em resgatar a amizade da prima, a qual ele demonstrou indiferença até então. Esse seu interesse levanta suspeita. Qual será o real interesse de Renato? Será que ele deseja realmente encontrar a prima Ananta? Ou o seu interesse é pelos bens que ela deixou?

FLÁVIA – Parece ser a única amiga de Ananta, mas nem ela sabe o seu paradeiro.

OUTRAS PERSONAGENS

TIO ANDRÉ – Marido da tia Lucinda.

TIA LUCINDA – Era a mãe de Miguel. Gostava de prestar serviço à comunidade.

TIA ANA – Deixou a herança para Rosa.

LILI – de personalidade extrovertida, aparece de vez em quando na casa de Rosa.

ENREDO

O romance possui uma multiplicidade de narradores, que conta a trama de forma não ordenada. A ação começa em um capítulo, é fragmentada e só após outros capítulos ela vai ser retomada. Os desvios do enredo, embora pareçam romper o ritmo da ação, pelo contrário fazem evoluir a trama, eles são essenciais na trama.

A autora usa uma adequação do elemento linguagem ao vai e vem da trama, avançando e retrocedendo no entrecruzamento dos episódios, para firmar a realidade do tempo.

O enredo é voltado para a problemática da realidade moderna. Os conflitos são vivenciados subjetivamente, mas aparecem objetivamente como indícios da realidade caótica, atuando no desenvolvimento e equilíbrio do ser.

Expresso por uma linguagem plurisignificativa ele revela profunda inquietação existencial da espécie humana. As personagens vão se formando num processo fluido e de metamorfose.

A narrativa é centrada em momentos de vivência interior das personagens, privilegiando a subjetividade. Estas vivem em constante dilema entre o EU e aceitação da sociedade. A linguagem usada pela autora é de fundamental importância para a constituição do enredo. Este se transforma na própria vivência das personagens. È um reflexo dos seus dilemas interiores, onde se encontra uma forte desconexão entre o indivíduo e a sociedade.

TEMPO E ESPAÇO

O tempo e o espaço fundem-se na narrativa moderna. Em “As horas nuas”, o tempo é psicológico e subjetivo acompanhando o viver das personagens, por isso, “onde está o tempo está o drama”. São as vivências das personagens que vão fornecendo ao leitor, um quadro verdadeiro do ser, retratando sua fisionomia interior por meio de um fluxo constante e duradouro da consciência. O tempo e o espaço são construídos de forma dissimulada na própria vivência dos personagens

FOCO NARRATIVO

No romance em estudo, a narrativa apresenta um discurso polifônico.

Logo no início há a presença de um narrador em 1ª pessoa, a personagem Rosa Ambrósio. Num monólogo interior esta mergulha e descreve seu passado de dores e glórias. Ela vive uma crise existencial em busca de sua identidade, negando valores sociais vigentes e não aceitando a velhice e o fim da carreira como atriz.

Entro no quarto, não acendo a luz, quero o escuro. Tropeço no macio e desabo em cima dessa coisa ah! Meu Pai.

Licença Diu, não leve a mal, mas vou ficar um pouco por aqui mesmo...


Traz também a presença de um segundo narrador, o narrador personagem, personificado na figura do gato (Rahul), Ele tece comentários a respeito das personagens, mas seu foco é sobre a figura de Rosa Ambrósio e Gregório, o qual ele demonstra verdadeira adoração ou fixação. A descrição que Rahul faz das personagens é de forma quase doentia. Ele descreve minuciosamente atos peculiares e até mesmo lê o íntimo delas. Ele chega às vezes a dar-lhes voz no discurso indireto livre, revestindo-se assim em um narrador onisciente.

Falsas, pensei. Rosona veio com seu robe d’interieur e seu espelho de aumento que odiava mas não podia ficar sem ele.

Começavam sempre mais ou menos assim as discussões entre os dois e que podiam evoluir rapidamente para os palavrões entremeados de empurrões. Tapas. Ou ter o desfecho na cama.

Os caminhos eram tortos, mas seguidos por eles Rosona acabou por acertar. Gregório escolheu sua morte antes de ser escolhido. Anteviu o que podia ver, futurou e essa futuração deve ter ido além do seu poder de suportar.

No quinto capítulo surge um novo narrador em 3ª pessoa. Este de fora passa a apresentar e descrever minuciosamente a personagem Ananta Medrado, uma analista misteriosa, metódica e de personalidade calma e reservada.

“O consultório de Ananta era de uma profissional sem vaidade”. Disciplinada... A flanela estava dobrada no canto da gaveta. Passou-a nos poucos objetos e nenhum supérfluo.”

–  Tenho um Vizinho... Agora não quero pensar no professor com seus teoremas. Era a vez do Vizinho.

Ananta foi até a janela e afastou a cortina para ver o céu... Depois da sessão poderia ir (andando) até a delegacia da mulher. Dessa mulher pela qual pode fazer tão pouco.


No decorrer da trama, outros capítulos são narrados em 3ª pessoa, há mais ações e diálogos. É feita a descrição de ambientes enquanto as cenas se desenrolam. O narrador conta o desaparecimento de Ananta Medrado, a viagem de Diogo, o aparecimento do primo da analista e o internamento de Rosa em uma clínica de recuperação.

Subo na poltrona. O quarto está escuro, mas vejo Rosa Ambrósia... no coração das três mulheres.

Mãe querida, você disse que ia almoçar comigo e não foi, queixou-se Cordélia.

Hoje não acordei brilhante. A Diu leu o horóscopo, tem aí uma conjuntura de astros que é um horror.

“ O delegado da delegacia de pessoas desaparecidas estava tomando café” Renato Medrado parou...

- Não usava joias, se tem alguma deve estar no cofre... Dólar? Não sei dizer. O carro...


Bibliografia
LOBO, Luiza. A ficção impressionista e o fluxo de Consciência (Joyce, V. Woolf, Proust). In: VASSALO, Ligia (Org.). A narrativa ontem e hoje. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.


Fontes:
– Gabriela Cabral da Silva Dantas. Análise do romance As Horas Nuas, disponível em Brasil Escola.
Wikipedia

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 448

 


Arthur de Azevedo (Mal por Mal...)


Há bons maridos que se tornam maus porque as mulheres não são boas.

O Sebastião está ou esteve nesse caso: tão apoquentado se viu pela cara-metade, que um belo dia resolveu procurar na rua os carinhos que não encontrava no lar doméstico.

Não foi preciso procurar muito. O acaso fê-lo encontrar na Avenida Central, diante de um anúncio cinematográfico, uma bela morena que lhe deu volta ao miolo e lhe tirou noites de sono.

Se D. Flaviana, a mulher do Sebastião, fosse meiga e condescendente, e não tivesse tão mau gênio, está visto que ele não se deixaria prender nos braços de outra; mas deixou-se prender - e preso ficou ao ponto de arranjar uma casinha lá para os lados da Cidade Nova, onde esconderam - a morena e ele - o seu delicioso pecado.

E tão bem escondidínho estava que ninguém sabia de nada, exceção feita de Sepúlveda, o melhor amigo de Sebastião.

E o Sepúlveda não podia ser mais obsequioso. Como percebeu que a felicidade do amigo estava naquele derivativo, ele próprio se encarregou de alugar a casinha e mobilia-la. A sua obsequiosidade foi ao ponto de arranjar para a porta da rua uma fechadura que se abria com a mesma chave da fechadura conjugal. De modo que o Sebastião não tinha necessidade de andar com duas chaves, o que seria perigoso.

D. Flaviana, se fosse mais observadora, teria notado que de certo tempo em diante o Sebastião começou a sofrer resignado todas as suas impertinências. O pobre diabo dizia consigo: - "Lá tenho a Mirandolina para consolar-me." - Mirandolina era o nome da morena.

Entretanto, o Sebastião não ficava nenhuma noite fora de casa. Passava algumas horas com a Mirandolina, mas à hora conveniente lá ia para casa.

Uma noite destas encontrou D. Flaviana acordada e disposta a brigar. Ela andava já com suas desconfianças de que o marido tinha contrabando lá fora, e entendeu que naquela noite deveria por tudo em pratos limpos. Recebeu o pobre homem com duas pedras na mão.

- Onde esteve o senhor até estas horas?

- Não tenho que lhe dar satisfações!

– Quero saber onde o senhor esteve! Olhe que eu perco a cabeça!

- Pois perca, mas antes disso deixe-me ir embora!

- Que a leve a breca! - disse consigo.

Mas era tarde, muito tarde, e o Sebastião precisava dormir. Lembrou-se de ir para um hotel, mas refletiu:

- Para que, se tenho Mirandolina? Ela não conta comigo! Vai ter um alegrão com a minha volta!.

E lá foi para a casa da Mirandolina.

Meteu a chave no trinco, abriu a porta sem rumor, e entrou devagarinho no quarto dela, que ressonava.

Aproximou-se e viu, surpreso, que um homem dormia ao lado de Mirandolina. Deu toda a força ao bico do gás, e reconheceu que esse homem era o Sepúlveda, o seu melhor amigo.

Este levantou-se estremunhado.

- Fica onde estás! A casa é tua deste momento em diante! – disse-lhe o Sebastião.

E o mísero saiu, e voltou para o lado da mulher legítima, que encontrou chorosa e quase submissa.

- No final das contas, pensou ele, mal por mal, antes a obrigação que a devoção.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Baú de Trovas XXI


Num só beijo, pode crer,
se você me permitisse,
eu poderia dizer
coisas que nunca lhe disse!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
No vento brando que açoita
meus cabelos anelados,
eu sinto a inveja da moita
que esconde dois namorados.
CARIMEN ROMCY
- - - - - -
Deus permita que você
não canse de me adorar,
e jamais alguém consiga
no seu coração reinar.
EDITE VINHAS
- - - - - –
Beijos de mãe... filha... esposa...
Tantos beijos ganha a gente!
— Como pode a mesma coisa
ter sabor tão diferente?
LUIZ OTÁVIO
- - - - - –
Olhos meigos — da tristeza,
teus olhos: uma oração!
São meigos por natureza,
são tristes por devoção!...
M. DE ARAÚJO PERES
- - - - - -
Resolvido agora estou
a dizer-te quem sou eu:
— um tolo que te adorou,
— um sábio que te esqueceu.
M. DE MORAES PAIVA
- - - - - -
Enlaça-te a mim, querida,
para sermos bem iguais:
Eu vivendo em tua vida;
tu, em mim, vivendo mais!
M. RODRIGUES DE MELO
- - - - - -
Meu coração de ti foge,
no impulso libertador.
E a saudade o traz de volta
à prisão do teu amor...
MACIEL OLIVEIRA
- - - - - -
Só te peço amor sincero,
e o céu será todo nosso.
Se sou tua — que mais quero?
Se sou mulher — que mais posso?
MAGDALENA LÉA
- - - - - -
O amor venci. Mas se encerra
numa derrota a vitória,
como herói que ganha a guerra,
perdendo a vida na glória.
MANOEL LOBATO
- - - - - -
Da nossa felicidade,
do nosso amor que findou,
és toda minha saudade
que o tempo não apagou.
MARCOS JÚNIOR
- - - - - -
A Saudade, ultimamente,
seja noite ou seja dia,
quando vê que estás ausente
vem fazer-me companhia...
MARIA CARMEN
- - - - - –
Toda a beleza infinita
deste amor que proclamamos
se resume na desdita
da renúncia que abraçamos.
MARIA HELENA CATELLI
- - - - - -
Proclamam que amor supera
qualquer mágoa, qualquer dor.
— Frase ingênua! Quem nos dera
viver sem mágoas de amor...
MARIA DE LOURDES COSTA
- - - - - -
Mistério de amor que ensino
com ingênua devoção:
— num coração pequenino
cabe um mundo de afeição!
MARIA LÚCIA DE CERQUEIRA LEITE
- - - - - -
Talvez porque estou sofrendo
depois que partiu meu bem,
vejo o mundo e não entendo
a graça que o mundo tem...
MARIA SYLVIA DE CERQUEIRA LEITE
- - - - - –
Vale mais e paira acima
das riquezas do universo
a pérola de uma rima
no estojo simples de um verso!
MÁRIO PEIXOTO
- - - - - -
Minha alma vai no caminho
deixando, vago, disperso,
todo este grande carinho
aberto na flor de um verso.
MIGUEL SCOTT
- - - - - -
Adorável mentirosa,
cuidado que não te firas
nos espinhos cor-de-rosa
da tuas próprias mentiras!
MARTINS VARELLA
- - - - - -
Consiste num bem à toa
o bem melhor desta vida;
a ventura de ser boa,
o encanto de ser querida.
MERCÊS MARIA MOREIRA LOPES
- - - - - -
Quis formular uma trova
diversa das outras minhas...
Em vez de matéria nova:
saudade nas quatro linhas!
MILTON F. MENDES
- - - - - -
Somente agora é que vejo
que tens razão, meu amor...
Quem paga beijo com beijo
tem sempre saldo a favor.
NARCISO DA SILVA NERY
- - - - - -
A minha grande ventura
nisto apenas se traduz;
—É encontrar a luz da vida
nuns olhos cheios de luz!
NEWTON ALFREDO
- - - - - -
Meu amor quando me beija
o faz com tanto calor,
que muita gente deseja
ser amor do meu amor.
NICOMEDES ARRUDA
- - - - - –
Maria não parte um ramo,
mesmo fraco e pequenino...
— E Maria, se quisesse,
dobraria o meu destino!...
NILO APARECIDA PINTO
- - - - - -
Já que assim viras as costas
ao amor que te pedi,
não sei porque tanto gostas
que eu tanto goste de ti...
NOEL DE ARRIAGA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

João Ubaldo Ribeiro (O Velho Viajante)


Acordei cedo e me deu um branco total. Não é a primeira vez em que isto me acontece. Pelo contrário, quanto mais velho vou ficando, mais acontece. Onde estou, de que me trato, que horas são, que cama é esta, que cortinas são estas, que quarto é este, aonde eu fui ontem à noite, bebi alguma coisa estranha? Calma, respirar fundo, deve haver uma explicação, sempre há, não entrar em pânico. E, vagarosamente, as respostas me vão chegando. Não estou em casa, estou num quarto de hotel. Começo a fazer uma ideia vaga de meu paradeiro e a confirmo olhando pela janela. No edifício em frente, um cartaz anuncia em francês escritórios para alugar. Claro, estou em Paris e, pouco a pouco, os acontecimentos se encaixam.

O Salão do Livro deste ano está sendo realizado agora e vim como convidado, apresso-me em esclarecer que não à custa de vocês, como é tão frequente entre nós. O Salão é dedicado à literatura argentina, mas, minoritariamente, representantes de outros países também participam, o que é meu caso. Não sei se um Felipão das letras me selecionaria, mas, de qualquer forma, eis-me representando nossas cores novamente e novamente alimentando a esperança de não envergonhar vocês ou a pátria. Como diria um jogador de futebol, respeito os adversários e o alçapão da Sorbonne, mas darei tudo de mim para não decepcionar nossa grande torcida e trazer para casa o caneco.

Bem, não há concentração, treinamento, preleção, coletivas para a imprensa. Cabe apenas esperar a hora e mandar notícias ou comentários. Mas quais? Volta a assaltar-me a nostalgia dos velhos tempos, quando havia realmente novidades no exterior, desconhecidas pela maior parte dos brasileiros, e se podia mentir com desenvoltura, na secular e venerável tradição dos viajantes mais notáveis, desde Heródoto e Marco Polo, sem deixar de incluir o insuperável parente nosso Fernão Mendes Pinto. Sempre me queixo desta situação. Eu certamente não estaria à altura de meus grandes antecessores, mas sem dúvida seria capaz de engendrar algumas patranhas dignas de interesse, que pelo menos dessem para o gasto. Em Itaparica, a gente sempre aprendeu com os mais antigos a contar lorotas da melhor qualidade, Mas, hoje em dia, logo alguém na internet desmascararia a mentira e eu não teria como sustentá-la.

Num departamento semelhante, o dos segredos e pequenas histórias reveladores de estreita intimidade com Paris, o panorama tampouco é encorajador. Não acerto a discorrer sobre o tempo em que eu frequentava os mesmos cafés que os existencialistas e minhas discussões com Sartre às vezes levavam tardes inteiras, enquanto tomávamos o mesmo café a tarde inteira e experimentávamos drogas exóticas. Minhas reminiscências da Rive Gauche, alusões à minha grande familiaridade com a obra de Verlaine ou Baudelaire, o dia em que me enturmei com Juliette Greco, ou a ocasião em que Salvador Dalí me deu de presente um guardanapo usado e autografado que eu, depois de um porre de absinto na companhia de umas coristas do Crazy Horse, perdi não sei como. Tenho colegas capazes de fazer esse tipo de coisa com perfeição, mas eu mesmo não tenho jeito.

O hotel onde estou, bastante antigo, já hospedou brasileiros ilustres, como o mestre Villa-Lobos (que, por sinal, segundo me revelam, gostava de contar as suas historinhas também, envolvendo às vezes as diversas oportunidades em que, na companhia de outros canibais brasileiros, comeu carne de gente) e, principalmente, d. Pedro II. No começo, me animei um bocadinho e pensei em como talvez fosse possível avistar o fantasma de Sua Majestade Imperial, aqui no fim do corredor, e até fazer uma pequena entrevista com ele, mas também não consegui, em parte por causa do vexame que tem sido a república que o depôs. “E o Deodoro, hein?”, perguntaria ele, e eu não acertaria a responder.

E, lembrando os velhos tempos de viagem, como sou antigo, meu Deus, um dia destes acordo múmia. As senhoras mais elegantes compareciam ao Galeão às vezes de chapéu de viagem e invariavelmente elegantíssimas, desfilando para cima e para baixo de passaporte discretamente em punho. Na classe econômica, havia menu, talheres de metal e drinques de todo tipo, antes, durante e depois das refeições. E o passageiro não passava todo o percurso com os joelhos de um sueco enfiados nas costas da poltrona, pois cabia decentemente todo mundo e até dava para dormir deitado, quando sobravam alguns assentos vazios. No embarque, o viajante recebia de presente uma caixinha com quatro cigarros especialmente embalados para a companhia aérea, assim como capas especiais para canetas-tinteiro, que do contrário vazariam por causa da pressão do ar e manchariam a roupa.

No começo da viagem, as comissárias de bordo (aeromoças), todas lindas, indagavam se o passageiro já tinha feito aquele percurso antes. Se não tinha, era preparado o diploma de passagem pelo equador, conferido pelo deus Netuno e entregue ao felizardo sob aplausos dos circunstantes. E, depois de uma ou mais escalas em aeroportos exóticos que nunca mais seriam vistos, chegava-se finalmente à terra remota do destino, realmente longe e estrangeira. Era a hora de se acomodar no hotel e providenciar o indispensável telegrama de “cheguei bem”, que a família exigia. Telefonar, nem pensar, porque é mais fácil telefonar hoje para Marte do que então para o Brasil. É, não há mais emoções para o velho viajante. Mas, num último esforço de reportagem, talvez eu possa tentar falar com a dupla Montesquieu e Monet, recentemente lembrada pela presidente. Deve ser a zaga do Paris Saint Germain e vai ver que eles me dão umas declarações sobre a Copa, para eu enrolar mais os leitores.

Fonte:
RIBEIRO, João Ubaldo. Um brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Estante de Livros (O País das Peles, de Júlio Verne)


Júlio Verne dispensa apresentações. Em França, é encarado como o pai da ficção científica daquele país, e é certamente um dos pais da FC mundial, juntamente com H. G. Wells, Mary Shelley e mais alguns nomes menos importantes. Autor prolífico, tem obras que pertencem ao patrimônio cultural básico da Humanidade, como 20.000 Léguas Submarinas, ou Volta ao Mundo em 80 Dias, mas tem muitas outras obras menos conhecidas. O País das Peles é uma destas últimas.

É um romance que se desenrola nas remotas paragens árticas canadenses, que estavam à época (o romance data de 1872) apenas a começar a ser exploradas por companhias europeias de caçadores de peles, empurrando no processo a esfera de influência dos europeus (ou dos americanos de ascendência europeia) para norte e para oeste. Era uma zona ainda muito mal conhecida, e portanto um local ideal para que Verne nela ambientasse as suas "viagens extraordinárias".

Mas esta viagem em concreto começa de um modo pouco extraordinário. Um destacamento de soldados contratados pela Companhia de Hudson parte para norte com a missão de fundar a feitoria mais setentrional da América, nas margens do Oceano Glacial Ártico. Os soldados são acompanhados por uma intrépida viajante (e sua criada) e por um astrônomo, obcecado com a ideia de observar o eclipse solar de 1860 no 70º paralelo, onde ele seria total.

A primeira parte do romance, intitulada, precisamente, "O Eclipse de 1860", descreve a perigosa viagem para Norte e a fundação e construção da feitoria, terminando com uma erupção vulcânica e um terremoto, e a surpreendente revelação de que a feitoria estava, afinal, bem longe do paralelo 70. É na erupção que a viagem, que até aí fora pouco mais do que uma viagem de exploração, se torna deveras extraordinária.

Acontece que, apesar de não o parecer, a feitoria é fundada sobre uma vasta extensão de gelo flutuante, preso a terra firme durante milênios de forma a que com o tempo se foi cobrindo de terra, vegetação, e até mesmo floresta, e que é libertada com o tremor de terra. Parece pura fantasia, mas à época não o seria. Verne provavelmente não teria conhecimento de que a norte da floresta boreal se estende uma extensão de tundra, onde apenas cresce, e de verão, vegetação rasteira. Mas já teria ouvido falar da permafrost, uma característica de muitos solos árticos que estão congelados e duros como pedra por baixo de uma camada de terra fértil, e de certeza que conhecia os icebergues. Não é um salto muito grande de imaginação, e nem muito inverossímil tendo em conta o que à época se sabia, supor que por baixo dessa camada de gelo subterrânea poderia existir mais água, que esse gelo pudesse ser gelo flutuante, capaz de se soltar e começar a vogar pelo oceano fora, ao sabor das correntes, arrastando consigo tudo o que sobre ele estivesse: animais, todo o tipo de plantas, e uma colônia de seres humanos.

Com efeito, se excetuarmos a parte relativa à vegetação e um ou outro detalhe mais inverossímil ou impossível à luz dos conhecimentos atuais (como um urso polar amistoso e com medo da água, ou uma erupção vulcânica no tectonicamente sossegado Norte canadense), tudo o que Verne descreve neste romance é possível, como foi provado não há muito tempo com o desprendimento de um enorme icebergue com mais de 11 mil quilômetros quadrados de área (metade do Alentejo!), na Antártida.

A segunda parte do romance, adequadamente intitulada "A Ilha Errante", descreve, ela sim, a viagem extraordinária daquele grupo de pessoas, durante cerca de um ano, à deriva pelo Oceano Ártico e pelo Mar de Bering sobre uma ilha flutuante que se vai fragmentando e afundando, empurradas pelas correntes e pelas tempestades, como acontece realmente com qualquer icebergue.

Não sendo um dos seus livros mais marcantes, O País das Peles não embaraça Verne. É um bom livro da ficção científica do tempo, que embora seja hoje encoberto por alguns conhecimentos de que Verne não dispunha, por um certo ar ingênuo que é característico da maior parte da sua obra, e por um final que é, talvez, demasiado improvável, com demasiado gosto de deus ex machina, se lê mesmo assim com agrado.

Fonte:
Uma crítica de Jorge Candeias, publicada em 01.09.2006, disponível em E-nigma.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 447

 


Contos e Lendas do Mundo (A Libélula)


Num lugar muito bonito, onde havia árvores, flores e um lindo lago. Certo dia surgiu um casulo.

E quando ele se rompeu, de dentro saiu voando uma linda libélula.

E ela ficou tão encantada com o lugar, que voou por cada pedacinho.

Brincou nas flores, nas árvores, no lago, nas nuvens.

E quando ela já tinha conhecido tudo no alto de uma colina, avistou uma casa.

A casa do homem e a libélula havia de conhecer a casa do homem e foi voando para lá. E então, a libélula entrou por uma janela, justo a janela da cozinha. E nesse dia, uma grande festa era preparada.

Um homem com um chapéu branco, grande, dava ordens para os criados. Mas a libélula não se preocupou com isso, brincou entre os cristais, se viu na bandeja de prata, explorou cada pedacinho daquele novo mundo. Quando de repente, ela viu sobre a mesa, uma tigela cheia de nuvens!

E a libélula não resistiu, ela tinha adorado brincar nas nuvens e mergulhou.

Mas quando ela mergulhou... Ahhhhhhhh... Aquilo não eram nuvens, e ela foi ficando toda grudada, e quanto mais ela se mexia tentando escapar... Ahhhhhh. Mais ela afundava.

E a libélula então começou a rezar, fazia promessas e dizia que se conseguisse sair dali, dedicaria o resto de seus dias a ajudar os insetos voadores e ela rezava e pedia.

Até que o chefe da cozinha começou a ouvir um barulhinho, e ele não sabia que era a libélula rezando e quando olhou na tigela de claras em neve... Arghhhh um inseto!

E ele pegou a libélula e a atirou pela janela.

A libélula então, se arrastou para um pedacinho de grama, e sob o Sol começou a se limpar e quando ela se viu liberta... Ahhhhh... Ela estava tão cansada que se virou para Deus e disse:

- Eu prometi dedicar o resto de minha vida a ajudar os outros insetos voadores, mas agora eu estou tão cansada, que prometo cumprir minha promessa a partir de amanhã.

E a libélula adormeceu. Mas o que ela não sabia, e você também não sabe, é que as libélulas vivem apenas um dia. E naquele pedacinho de grama, a libélula adormeceu, e não mais acordou.

Fonte:
Universo das Fábulas

Luiz Damo (Trovas do Sul) XV


Ao voltar aos pés do monte
onde a vertente jorrava,
não consigo ver a fonte
nem a casa onde morava.
- - - - - -
A promessa não cumprida
rompe o laço da verdade,
é a pedra nunca varrida
nas estradas da amizade.
- - - - - -
As luzes vistas no céu
na profunda escuridão,
são brasas dum fogaréu
imersas na imensidão.
- - - - - -
As premissas verdadeiras
sustentam os compromissos,
serão sempre vanguardeiras
comprometendo os omissos,
- - - - - -
Cavalgando à noite escura
no lombo da madrugada,
saio correndo à procura
da estrela mais procurada.
- - - - - -
Dizem que dentro do peito
o amor deve se abrigar,
por ser abstrato e perfeito
jamais ocupa um lugar.
- - - - - -
Muitas formas de lazer,
uma delas: futebol.
Outra, podemos dizer:
praias em dia de sol.
- - - - - -
Nada nos faz temer tanto
quanto a morte assustadora,
do mais duro e triste pranto
é uma grande geradora.
- - - - - -
Não cortes o que plantaste
com tanta dedicação,
pode nascer do contraste
a dor da devastação.
- - - - - -
Não podemos esperar
qualquer luta enrijecer,
quanto mais se demorar
mais difícil é vencer.
- - - - - -
Nenhum regaço supera
o que o nosso lar perfaz,
nele todo o ser espera
viver num mundo de paz.
- - - - - -
No compasso dos andares
o remanso surge e traz,
saudades crepusculares,
em moléculas de paz.
- - - - - -
Num lugar, muito distante,
onde o sol quase não vai,
nossa mente num instante
chega, senta e logo sai.
- - - - - -
O beija-flor quando voa
bate as asas sem parar,
sobre a rosa, se for boa,
suga o néctar ao pairar.
- - - - - -
O condor tão bem alado,
corta os elevados ares
e o pinguim desengonçado
prefere as zonas polares.
- - - - - –
Ocupado em ninharias
no atelier da depressão,
o homem faz alegorias
numa estranha regressão.
- - - - - -
Ó Deus, de imensa ternura,
Senhor do nosso destino,
todo o ser sem armadura
transformai num paladino!
- - - - - -
O homem que quer governar
este mundo por inteiro,
talvez só queira externar
o seu perfil verdadeiro.
- - - - - -
Paradigmas do sucesso
buscamos a cada dia,
sempre visando o progresso,
causa da nossa alegria.
- - - - - -
Pelas margens do Mar Morto,
ou no cimo do Tabor,
sempre um gesto de conforto
demonstrava o Salvador.
- - - - - -
Quanto mais o sol brilhar
menos trevas surgirão
e os caminhos que trilhar
mais claros se tornarão.
- - - - - -
Que às nossas tribulações
possamos sempre vencer,
mesmo aquém das soluções
não paremos de crescer.
- - - - - -
Se os danosos preconceitos
forem todos superados,
seus benéficos efeitos
podem ser comemorados.
- - - - - -
Tantos medos ou 'fobias',
a manchar a humanidade,
mudam o brilho dos dias
numa grande obscuridade.
- - - - - -
Todo presente revela
algo que ontem já previa.
A vida será mais bela
se vivida a cada dia.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Sete) Foi suicídio


A VELHA E RANZINZA ELIPETA, irmã de minha mulher chegou para mais uma estada de trinta dias em nossa casa. Com ela por perto, os problemas realmente começam a se avolumar e a ficarem visíveis à olho nu. A velhota está bem baqueada. Mais que das vezes em que marcou presença, no ano passado. Além de chata, irritadiça e implicante, ficou duplamente mal-humorada e, para completar o quadro, surda dos dedos dos pés. Ou se fez de, para viver. Creio que a anacusia (perda total ou parcial da audição) dela, tem um nome mais específico: conveniência.

Digo desta forma, porque se o assunto é dinheiro (e desde que ninguém venha lhe pedir algum emprestado), ela se transforma da água para o vinho. Arregala uns olhos deste tamanho que até as rugas em derredor se assustam. Só não saem correndo, em face de usarem bengalas. Em meia dúzia de detalhezinhos ela não mudou os hábitos. No apuro pelas coisas boas. Aprecia o comer bem, e beber, melhor ainda. Gosta de pratos cheios e variados e de um vinho bem geladinho. E, nesse particular, é exigente. De preferência, o mais salgado nos bolsos alheios.

Está para existir criatura mais parecida. “Não gosto de perder tempo comendo muxibas. Traga o melhor corte” — costuma enfatizar com a Cris, nossa empregada — toda vez que a moça vai ao açougue. Exige, na maior cara de pau: “Quero filé... Filé mignon... De verdade. Pelancas, minha prezada, me bastam as que tenho em meu focinho.” Dinheiro para ajudar nas despesas, é mais fácil um avião sem asas voar ou um ventilador sem as pás das hélices fazerem vento em ambientes pegando fogo.

Juquinha, meu primogênito de dez anos, adora esta tia rabugenta que rodou o mundo nos tempos de jovem — como aeromoça da extinta Panair do Brasil voando nos belos e confortáveis Lockheed Constellations L-747. Ela faz questão de enfatizar que a Panair seja escrita com dois enes. Acumulou  fortuna, a danada, verdade seja dita, mas segue a sua vidinha medíocre como uma verdadeira mão de vaca inveterada.

Talvez, por esta razão, para se arrancar uns míseros trocados dela, necessitemos fazer uma série de malabarismos ou, como diz minha esposa, “dar nó em pingo de éter”. Da última vez que passou por aqui, há quatro ou cinco meses atrás, tivemos problemas com quase todos os eletroeletrônicos, notadamente com as televisões.

Sério! Com as duas, diga-se de passagem. O aparelho de 24 polegadas, que temos na sala e o outro, de 14, no quarto do Juquinha, ficaram desligados o tempo todo. Segundo ela, nos filmes de violência que eu e meu filho sentávamos para assistir, enquanto comíamos pipocas e tomávamos refrigerantes, mocinhos e bandidos trocavam tiros o tempo inteiro.

Tia Elipeta me segredou que temia ser atingida mortalmente, no peito, ou na cabeça (mesmo acomodada com seus balofos  confortavelmente no sofá de canto da sala) por uma daquelas balas perdidas. Isto quando a poeira levantada pelos cascos dos cavalos não entrava diretamente em seu nariz e a fazia espirrar.

Numa destas vindas aqui para o nosso apartamento, numa torre de vinte andares (moramos no décimo segundo), bem recordo, enquanto aguardávamos pelo final do Fantástico, ela mandou brasa num pote de sorvete de chocolate que eu trouxera do supermercado. Para nós (somos em quatro, contando com a Cris, a nossa secretária do lar), geralmente uma embalagem daquele tamanho, que costumo incluir na lista de compras, dá para uma semana.

Se duvidar, sobra. A velha, todavia, se armou de copo e colher, colocou uma espécie de babador em volta do pescoço, “para não sujar seu vestido de noite”, fechou os olhos e pimba. Não sobrou nada. Até a embalagem de plástico criou perna.

Neste dia, me lembro bem, antes de se recolher, indagou da minha mulher, se não havia um outro sabor, de reserva, escondido dentro do congelador, ou em algum canto amoitado no cafofo da serviçal. Engraçado, mesmo, foi a história do chuveiro. Tia Elipeta encasquetou que o bicho jorrava pouca água, por mais que abrisse a torneira. Que o volume liberado, além de muito quente, caia para os lados, ao invés de bater centrada sobre a cabeça.

Tentou consertar. Tomou um choque violento. Desmaiou. Tivemos que correr com ela para o hospital. Quase deu BO com caixão e cemitério e a espevitada empacotando, de vez, os ossos. Dos males, o pior. Desde então, passei a economizar na conta. Chuveiro, agora, só frio. A tia Elipeta adora ouvir Bach. Mesmo surda, ou se fingindo de... Se deleita com a Ave Maria, ou com a Toccata.

Enquanto o CD gira no aparelho de som, ela se coloca na frente dele, no papel de maestrina, repetindo aqueles gestos engraçados, como se tivesse com uma batuta regendo uma orquestra invisível. Por agora, a uma semana antes da chegada da tia Elipeta, meu Juquinha ganhou da Beatriz (filha de um vizinho nosso, quase porta com porta) um desses cachorrinhos pequenos  —  tão minúsculo que, às vezes, dependendo do lugar em que esteja deitado, corre o risco de ser confundido com uma berinjela.

Confesso, nunca vi meu menino tão próspero e feliz com um presente. Batizou o animalzinho com o nome de Tom. Pediu à mãe que arranjasse uma caixa de sapatos e alguns panos velhos, para transformá-la em cama. E se desfaz, desde então, em mesuras e agrados. De manhã, pula cedo, e antes da escola, leva o Tom para uma curta caminhada ao redor do condomínio. Desce mais a Beatriz (que tem um gato branco e peludo, com um bigode enorme). Bonito parar no corredor e espiar os dois.

Forma meu filho e a Beatriz, um lindo casalzinho. Ambos inocentes, destituídos das maldades dos adultos, compenetrados, sérios, de mãozinhas dadas, tomando o elevador — ele abrindo a porta para ela — “primeiro as damas” — ela gentil, agradecendo: “Obrigada. Você é um cavalheiro.”

Seria um presente divino, confesso, se continuassem assim. Amanhã, quem sabe, casem e nos deem uma penca de netos. Sonhos, sonhos bobos, devaneios malucos... Coisas de pai bobo e coruja, que às vezes viajando na maionese, não consegue segurar a imaginação.

Juquinha, nesta manhã, como passou a fazer, desde que ganhou o bichinho, chegou da rua e colocou o Tom no sofá. Foi até a porta do apartamento levar a Beatriz e seu gato branco peludo, com um bigode enorme. Estão, ambos, apressados.

Em menos de quinze minutos, ele e a jovenzinha, saíram em direção à escola. A Van que os pega na portaria e traz à tarde, chega no horário, nunca atrasa. Neste interregno, a tia vem lá da cozinha, com uma bandeja. Nela traz o seu desjejum. Ao contrário dos demais, a ilustre senhora gosta de tomar seu café sozinha, no sofá da sala. Minha esposa fica braba, mas, levando em consideração a idade da consanguínea... Tira por menos.

Como vem, a adiposa senta com tudo. E hoje, não foi diferente. Desastre. Catastrófico, por sinal. Se ela ouviu, ou deixou de escutar, ninguém, nunca, jamais saberá. O certo é que o Tom soltou um “Auuu...” abafado, e, depois disto, não continuou vivo para contar o resto da história. Elipeta sentiu algo estranho, ao se acomodar. Ou ao desmoronar os mais de 130 quilos de pura banha na poltrona.

Algo que incomodava um pouco o seu traseiro balofo. Com dificuldade, levantou, despregando as gorduras. Viu, então, o pobrezinho — dito de forma diferente — visualizou o que sobrou do desafortunado do Tom. E agora?! Pensou rápido e rasteiro. Nada de cabeça quente. “Calma, muita calma nesta hora”. Esperta, astuta, maquiavélica, a bandida não pensou duas vezes. Tampouco contou até três.

Passou os cinco dedos nos restos mortais do astroso (desventurado), olhou longamente em direção à cozinha. Ninguém por perto. Sem testemunhas. Dito e feito. Agiu rápida e apressurada, silenciosa e ligeira. Caminhou até a varanda e num gesto de impensada violência, atirou os restos mortais do bichinho vitimado prédio abaixo. Uma viagem sem volta, indigesta, de doze andares, até o chão duro e gelado de cimento ao lado da piscina.

Meu filho chega, tranca a porta e volta às carreiras para pegar o animalzinho e colocá-lo na caixinha de sapatos. Dá falta do cachorrinho:

— Tia, cadê o Tom que deixei aqui?

— O quê, meu filho?

— O Tom!

— Que pão?

— Não é pão, tia. É o Tom. Cadê o Tom?

Minha esposa sai correndo da cozinha ao ouvir os gritos de nosso filho. Venho no vácuo do seu encalço. A Cris me acompanha, de carona, logo atrás:

— Mãe, cadê o Tom? Eu botei ele ali...

— Ali onde, meu filho?

— Onde a tia Elipeta está sentada.

Minha mulher se debruça sobre a irmã, e a encara com a aparência fechada, a voz séria:

— Mana, cadê o Tom?

— Quem?

— Não se faça de besta. O Tom.

A descarada da Elipeta se tranca mais carrancuda ainda. O cenho franzido. As rugas faciais sobressaindo. Uma artista nata, a desgranhenta. Por fim, a revelação odiosa que não queríamos, de nenhuma forma, ter ouvido de sua boca:

— Vocês não vão acreditar. Minha irmã, meu cunhado, meu querido sobrinho, meu Deus, como é custoso lembrar. Ele pulou dali, aliás, voou por cima do parapeito. Vai entender os irracionais  numa hora destas! Acho que ele estava com algum problema de cabeça... Sei lá. Depressão. É isto, depressão. Ou ciúme daquele gato aí da sua vizinha. Só vi o momento em que escafedeu daqui de perto de mim, correndo desembestadamente e matou-se, saltando, no ar, em longo e inacreditável suicídio...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo. Comédias da Vida na Privada. RJ: Editora MC Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor.
Imagem = montagem por JGFeldman.