sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Contos e Lendas do Mundo (O Lobisomem)

Carolina Ramos 
 
Lobisomem
(Folclore Universal)

Meia noite... sexta-feira...
- Cruiz-credo!... Yaiá escuitô?!
Lá pras banda da portêra,
foi lobisome... que uivô!

- Lobisome, Benedita?!
Yaiá senta alvoroçada
no leito... e a Dita se irrita:
- Tão tarde!... E Yaiá acordada?!

' Calminha... amanhã desconto!...
- Antes do cuco acusar
que são dez horas em ponto,
ninguém venha me acordar!...

- E agora, me conte a história,
meu sono já está no fim...
- Bem... si nun faia a memória,
as coisa cumeça anssim:

Sete fio encarrerado,
mêmo que tenha bom nome,
Ninguém foge do ditado:
- o caçula... é lobisome!

– E... em noite de lua, quando
é sexta-fera, minina,
ôio de brasa... escumando,
num grande cão se acumbina!

- Peludo... as presa arreganha,
assustando bicho e gente!
- E mata... tudo qui apanha...
guardando as sobra nos dente!

- Di manhã... ôtra veiz home,
esquece o que assucedeu
...e, inocente, se consome,
pranteando arguém qui morreu!

- Os home... são sempre os mêmo!
- São mau... sem sabe pruquêl
- Santinhos pur fora... e demo
pur drento! - saiba vancê!

- Pur isso... muita cautela...
num querdite neles, não!...
- Mêmo qui a muié... costela
seje desse tar de Adão!

- Dum hôme se adiscunfia...
tenha inté cara di bôbo...
pois, se alembre, minha fia:
- num zás-trás... si vira in lobo!!!
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O LOBISOMEM

Lobisomem ou licantropo é um ser lendário que é descrito como um humano capaz de se transformar em lobo ou em algo semelhante a um lobo em noites de lua cheia.

Tais lendas são muito antigas e encontram a sua raiz na mitologia grega. Segundo As Metamorfoses de Ovídio, Licaão, o rei da Arcádia, serviu a carne de Árcade a Zeus e este, como castigo, transformou-o em lobo. Uma das personagens mais famosas foi o pugilista arcádio Damarco Parrásio, herói olímpico que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus.

Segundo lendas mais modernas, para matar um lobisomem é preciso acertá-lo com artefatos feitos de prata.

Variantes culturais

O Licantropo dos gregos é o mesmo que o Versipélio dos romanos, o Volkodlák dos eslavos, o Werewolf ou Dracopyre dos saxões, o Werwolf dos alemães, o Óboroten dos russos, o Hamtammr dos nórdicos, o Loup-garou dos franceses, o Lobisomem dos brasileiros e da América Central e do Sul, com suas modificações fáceis de Lubiszon, Lobisomem, Lubishome; Luison, pelas tribos guaranis, nas lendas destes povos, trata-se sempre da crença na metamorfose humana em lobo, por um castigo divino.

Lenda brasileira

No Brasil existem muitas versões dessa lenda, variando de acordo com a região. Uma versão diz que a sétima criança em uma sequência de filhos do mesmo sexo tornar-se-á um lobisomem. Outra versão diz o mesmo de um menino nascido após uma sucessão de sete mulheres. Outra, ainda, diz que o oitavo filho se tornará a fera. Outra já diz que é após a morte de um familiar que possuía a aberração e passou de pai para filho, avô para neto e assim por diante.

As pessoas conhecem o licantropo na forma humana através de comportamentos estranhos, como mudança de comportamento, misteriosa e quase sempre com olhos cansados (olheira), o licantropo na forma humana é uma pessoa muito atenta as outras, sempre desconfiando de tudo como por exemplo, tem muito medo de ser descoberta a humanidade que é uma aberração, porém é muito protetora em forma humana.

Em algumas regiões, o Lobisomem se transforma à meia noite de sexta-feira, em uma encruzilhada. Como o nome diz, é metade lobo, metade homem. Depois de transformado, sai à noite procurando sangue, matando ferozmente tudo que se move. Antes do amanhecer, ele procura a mesma encruzilhada para voltar a ser homem.

Em algumas localidades diz-se que eles têm preferência por bebês não batizados. O que faz com que as famílias batizem suas crianças o mais rápido possível. Já em outras diz-se que ele se transforma se espojando onde um jumento se espojou e dizendo algumas palavras do livro de São Cipriano e assim podendo sair transformado comendo porcarias até que quase se amanheça retornando ao local em que se transformou para voltar a ser homem novamente.

No interior do estado de Rondônia, o lobisomem após se transformar, tem de atravessar correndo sete cemitérios até o amanhecer para voltar a ser humano. Caso contrário ficará em forma de besta até a morte.

O escritor brasileiro João Simões Lopes Neto escreveu assim sobre o lobisomem: "Diziam que eram homens que havendo tido relações impuras com as suas comadres, emagreciam; todas as sextas-feiras, alta noite, saíam de suas casas transformados em cachorro ou em porco, e mordiam as pessoas que a tais desoras encontravam; estas, por sua vez, ficavam sujeitas a transformarem-se em Lobisomens…"

Há também quem diga que um oitavo filho que tem sete irmãs mais velhas se torna lobisomem ao completar treze anos. Também dizem que o sétimo filho de um sétimo filho se tornará um lobisomem.

Outra versão porém relata que aquele que é amaldiçoado precisa se espojar nu em um local onde um animal (geralmente jumento) se espojou, enquanto recita palavras do livro de São Cipriano ou reza o credo ao avesso três vezes.

A lenda do lobisomem é muito conhecida no folclore brasileiro, e assim como em todo o mundo, os lobisomens são temidos por quem acredita em sua lenda. Algumas pessoas dizem que além da prata o fogo também pode matar um lobisomem. Outras acreditam que eles se transformam totalmente em lobos e não metade lobo metade homem.

Algumas lendas também dizem que se um ser humano for mordido por um lobisomem, e não encontrar a cura até a 12ª badalada desse mesmo dia, ficará lobisomem para toda a eternidade.

Lenda portuguesa

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no Rifão de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

    Sois danado lobisomem,
    Primo d’Isac nafú;
    Sois por quem disse Jesus
    Preza-me ter feito homem.
(Garcia de Resende, Excertos, por António Feliciano de Castilho, Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1865, p. 24).

É também mencionado no Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau (tomo V, p. 195) e nos sonetos de Bocage:

Profanador do Aónio santuário,
Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,
Até findar no Inferno o teu fadário!
(Bocage, Obras Escolhidas, primeiro volume, p.122).

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu assim sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

"Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma teimosia mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência". (A. Herculano, Opúsculos, Tomo IX).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo português Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

A representação na figura híbrida de homem e lobo não é alheia ao desassossego que este animal provoca, desde tempos imemoriais, no inconsciente coletivo. Escreve este autor: “As comunidades rurais transmontanas ainda hoje o encaram como um animal cruel, implacável com os seres mais indefesos, inimigo de pastores, dos caminhantes da noite e pesadelo permanente das crianças que habitam nas aldeias mais isoladas. Não se estranha, por isso, que no fabulário popular o lobo apareça como símbolo do mal e que o conceito de lobisomem, enquanto produto da fantasia popular, possa ser considerado como uma tentativa de apresentar uma criatura onde se conjuga a ferocidade maléfica do lobo com as emoções, ora angustiosas, ora igualmente maléficas, do homem”.

PEEIRA

Peeira ou fada dos lobos é o nome que se dá às jovens que se tornam nas guardadoras ou companheiras de lobos. Elas são a versão feminina do lobisomem e fazem parte das lendas de Portugal e da Galiza. A peeira tem o dom de comunicar e controlar alcateias de lobos.

Um extenso relato sobre o lobisomem fêmea português encontra-se nas Travels in Portugal de John Latouche. Camilo Castelo Branco escreveu nos Mistérios de Lisboa: "A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.

CORRILÁRIO

Os corrilários são as almas penadas em figura de cão. Se um lobisomem morre antes de terminar o seu fadário, depois de morto termina os seus dias como corrilário.

Fontes:
– Poema:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.
– Sobre o Lobisomem: Wikipedia

Júlia Lopes de Almeida (O último discurso)

A Coelho Netto


Dr. Paula Guedes, muito velhinho, sumido entre os almofadões do seu grande leito de peroba, com os pés aquecidos por uma botija de água quente, a camisola de flanela bem abotoada no pescoço, delgado e rugoso como um galhinho seco; as mãos mirradas sobre a colcha de lã, a fronte já tocada de uns tons da amarelidão cadavérica, os lábios murchos sob o musgo branco do bigode queimado, as pálpebras descaídas, mal ouviu a neta dizer-lhe que havia ali um ofício dirigido a ele, sentiu logo um calorzinho entrar-lhe na alma fria.

Ainda não tinham esquecido!...

E, com um fio de voz fragilíssimo, reclamou logo:

– Os meus óculos!

Postos os óculos, disse radiante:

– É do Instituto! E apalpava o papel grosso onde o dístico daquela corporação aparecia em letrinhas negras.

A neta, em pé ao lado da cama, observava-lhe com espanto a mudança da fisionomia. As pálpebras até então fechadas numa sonolência que parecia o ensaio para o grande sono, levantavam-se agora, deixando que das pupilas, há pouco amortecidas, saíssem novos lampejos, como mosquinhas loiras bailando no ar.

– Hum... hum! é do Instituto... ainda não me esqueceram... sempre faço alguma falta.

Todo o corpo do doente se movia sob a grande colcha felpuda, onde não faria menos volume o esqueleto de um menino de dez anos.

A neta ofereceu-se para a leitura.

– Não; depois! espera... corre a cortina... a luz está má.

– Assim?

– Assim.

A leitura começada foi logo interrompida.

– Hum!... hum!... abre a janela.

– Vovô, vamos ter chuva; há tanta umidade que nem parece uma manhã de verão.

– Não faz mal, abre a janela.

– Mas... vovô!

O Dr. Paula Guedes, que tomara na véspera os sacramentos, como bom católico apostólico romano, todo purificado pela absolvição, rompendo a inércia dos seus oitenta e três anos e daquela doença que o fazia tiritar de frio em pleno fevereiro, gritou em um falsete irado:

– Abre a janela!

A janela abriu-se. A araucária e os pés de camélia plantados perto de casa gotejavam orvalho; para além nada se via: tudo era branco.

– Aqui na Tijuca estes nevoeiros de verão prognosticam dias formosos, disse o doutor com um sorriso, desdobrando o ofício.

Era um convite. Pediam-lhe que fosse ele o orador na grande solenidade que o Instituto realizaria daí a um mês em homenagem ao tricentenário de Anchieta.

Então é que o enxame das mosquinhas de ouro torvelinhou doidejante. Meu Deus! o Instituto, o centro das grandes capacidades do país, dos nomes mais respeitados e queridos do império e da república, aquele ninho de inteligências perfeitamente dirigidas, de ministros, conselheiros, marechais, historiadores e grandes homens de letras, precisava dele, do apoio da sua voz, do fulgor da sua ilustração? Que honra, que doce consolo aquele que lhe ia bater à porta nas últimas horas da sua vida, exatamente quando ele curtia a amargura de pensar que tinham há muito posto sobre o seu nome uma pedra ainda mais pesada do que a outra que botariam em breve sobre o seu corpo!

Alvoroçado releu o ofício, passou-o à neta, ouviu-o ler de novo; mandou chamar a família inteira, comunicou-lhe o sucesso, com ar rejuvenescido, contente.

Ele faria por aceder ao convite!

Opuseram-se todos. Seria a sua ruína; que dormisse descansado, sem atormentar a imaginação. Que se lembrasse dos conselhos do médico... e que mais isto e que mais aquilo...

Falassem pra ali! Ele já nada ouvia. Escorregou nos seus travesseiros, fincou o olhar na cúpula do cortinado, e nem mais palavra. Fecharam a janela, aconchegaram-lhe ao corpo mirrado as dobras da colcha, cerraram o cortinado e – chut*! – saíram em bicos de pés.

No seu grande leito, o Dr. Paula Guedes, muito branquinho e engelhado, de mãos postas, tal e qual como na véspera, quando a Visita de Deus entrara no seu quarto, via desfilar o cortejo extraordinário dos grandes vultos da história.

Galeras a todo o pano singravam as ondas aniladas com rumo às terras formosas em que soavam a língua dos Tupis e a língua dos Guaranis.

O espírito do velho Dr. Guedes lá se remontou a 1553, sorrindo ao vulto pálido e severo do moço Anchieta, acompanhando-o pelas selvas negras e as montanhas pedregosas, vendo-o escrever os seus versículos sacros e arrebanhar crianças para as procissões.

Começou então a pensar na construção do seu discurso. Dividi--lo-ia em grandes períodos, com toda a sua minúcia e caturrice acadêmica; deveria ser uma peça substanciosa, por vezes anedótica, mas sempre elevada. O seu maior empenho era o de fazer este discurso mais brilhante que todos os outros que tinha deixado atrás de si, espalhados pelas salas, pelas revistas e pelos arquivos. A palavra entontecia-o, arrastava-lhe o pensamento na sua torrente macia, onde as ideias lampejavam como faúlhas imorredouras.

O orador começava a achar intolerável a demora no leito. Veio-lhe a saudade das suas estantes, do conforto da sua biblioteca, da comodidade da larga secretária, tão afeita ao peso do seu braço amigo.

Já não sentia frio, já não lhe doíam os membros lassos, quase inertes; aquele convite do Instituto fora a providência; trouxera-lhe um pouco de mocidade; era uma ressurreição!

Oh! o Instituto não se esquecera... estava tranquilo: deixava um nome, faria falta!

Trouxeram-lhe leite; bebeu-o de um trago e reclamou papel e lápis. Houve rumor em casa. Consultaram-se uns aos outros. Dariam o lápis? Dariam o papel? Uns diziam que sim, outros que não; e entretanto ele, murcho e débil no meio dos seus almofadões, coordenava as suas memórias históricas, organizando uma obra digna do assunto, com um pouco de fantasia que lhe adoçasse a sobriedade dos dizeres clássicos, em português bem literário e castiço como se prezava de escrever.

Trouxeram-lhe afinal o papel e o lápis, e a pouco e pouco foi-se o leito juncando de livros, arquivos, glossários, volumes de história. O Dr. Paula Guedes já não carecia da botija de água a ferver para os pés; um calor confortativo, de vida, alastrava-se por todo ele, em uma febre doce, que punha cada vez mais aceso o enxame de mosquinhas de ouro dos seus olhos encovados.

– Cada louco tem a sua mania; resmungava a família descontente, com medo daquele trabalho penoso para um corpo sem sangue, prestes a cair.

Entretanto o discurso ia indo, caudaloso, nos moldes velhos a que o orador se acostumara e que considerava, como bom retórico, os únicos capazes de bem levantar as almas. O milagre fez-se. O velhinho parecia ter adiado a morte, e levantou-se oito dias antes da grande solenidade, com o seu discurso arquitetado e as mãos cheias de notas que ele coordenou na grande secretária da sua biblioteca.

Tudo concluído, recomendou às filhas que lhe preparassem o terno da casaca, as luvas e a gravata branca, mais as suas comendas que ele, grande respeitador das velhas instituições, usava sempre nas funções solenes.

Naquela febre, todo voltado para o ideal e para a história, o velho Dr. Guedes rejuvenescia, como se mão misteriosa o ajudasse, invisivelmente, a caminhar na vida.

Dias antes da cerimônia quis ensaiar-se e experimentar o seu fato, há tanto tempo guardado no fundo escuro do armário.

Preparou-se; o corpo nadava-lhe dentro do pano preto; e dentro do colarinho engomado o seu pescocinho fino mal parecia dever sustentar-lhe a cabeça branca, recheada de ideias e de imagens gordas.

Para que o ensaio fosse completo abriu-se o salão da frente, acenderam todas as arandelas, e os filhos e netos sentaram-se disseminados, como se com a dispersão parecesse aumentado o auditório.

Dr. Guedes entrou com passo firme, à força de energia, sorriu, fez a mesura do estilo: – “Minhas senhoras! Meus senhores!” – e, folheando os seus manuscritos, começou a falar em voz fraca, espalmando no ar a mão direita, enquanto a esquerda carregava as vinte e seis tiras do papel almaço.

O seu primeiro discurso não o comovera tanto. É que ele agora julgava-se esquecido, perdido da memória dos seus contemporâneos e daquelas gerações que tinham sucedido à sua, com menos brio e piores armas. Agora estava consolado: o Instituto lembrava-se, e o Instituto valia tudo!

Com as condecorações reluzindo-lhe no peito magro e fundo, o Dr. Guedes procurava dar gravidade ao gesto e sonoridade à voz; mas os óculos descaíam-lhe, a vista faltava-lhe e a palavra perdia-se em um som rouco e débil. Ele mal percebia tudo isso, aproximava-se da luz, sustinha com os dedos trêmulos o aro de ouro dos óculos... E as filhas choravam, constrangidas, muito caladas, engolindo as lágrimas.

Quase no fim, em um dos seus melhores períodos, em que ideias e palavras desabavam com fragor de catadupa, ao esboçar um gesto, o doutor Paula Guedes estacou, abriu os dedos e deixou voar para o chão as tiras do seu discurso. Acudiram todos; receberam-no nos braços, deitaram-no no seu grande leito de peroba, e, quando olharam de perto para o seu rostinho lívido, viram que das suas pupilas fundas a última mosquinha de ouro tinha partido, como a última abelha do cálix* de uma flor murcha.

Então, a mais calma das filhas reuniu as tiras esparsas do último discurso do pai, dobrou-as e meteu-as carinhosamente no bolso da casaca, tal e qual como se ele, em vez de ter de ir para o cemitério, tivesse de ir para o Instituto!

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* Vocabulário:
CHUT: Psiu.
CÁLIX: Cálice


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 537


 

Lima Barreto (O Tal negócio de “prestações”)

O sr. José de Andrade era contramestre de uma oficina do Estado, situada nos subúrbios. Era ele o único homem da casa, pois, do seu casamento com d. Conceição, só lhe nasceram filhas, que eram quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.

Era homem morigerado, sem vícios, exemplar chefe de família, que ele governava com acerto e honestidade. Só tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso mesmo, não era diariamente; fazia-o de longe em longe.

Um belo dia, ganhou na centena. Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno, em Inhaúma; comprou algumas peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis, igualmente, entre a mulher e as quatro filhas. D. Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.  Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.

Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro adiantamento. Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo. Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o produto de suas costuras.

Loló, essa gostava de joias e vivia sonhando com um relogiozinho - pulseira que o Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló. Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que logo se desarranjou. Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.

Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas para esse negócio de prestações; mas o exemplo das irmãs animou-as.

Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera no mês passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era branca. Queria uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que lhe não deixava a porta, tinha uma em condições, e magnífica.

Ficou com ela; e a sua contribuição era modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai lhe daria certamente.

Lili, a mais moça, não tendo ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à fascinação de obter um adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais. Guardou, durante uma semana, os vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão, pela primeira vez, um vendedor ambulante de joias, a prestações; e ela, dando-lhe o dinheiro, que tinha reservado, fez-se dona de umas “africanas” com a promessa de pagar dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síky.

Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte do que ganhava.

O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta etc. D. Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e, finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita lhe dava.

No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim, Sárak, Nicolau, Ivã, José Síky, a cobrar as prestações de d. Conceição, de Vivi, de Loló, de Ceci e de Lili. Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.

No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam. Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar aos russos [sic] das prestações. Não ficaram estes contentes e procuraram indagar quem era o dono da casa.

José de Andrade não sabia da história de prestações e ficou espantado quando eles o procuraram, para a cobrança. No começo pensou que era só um; mas quando viu que eram cinco, e que as prestações alcançavam a respeitável soma de cinquenta e nove mil-réis, o pobre homem quase ficou louco. Ainda quis restituir os objetos; mas as peças de vestuário estavam usadas, o relógio desarranjado e até as “africanas” precisavam de consertos no fecho.

Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:

— Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir o “bicho” que é coisa inocente.

Fonte:
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) IX

AMOR E LÁGRIMAS

(Oferecida ao amigo e colega Manoel Bernardino Bolivar)

Se fosse possível na minha alma
Amanhecer um dia da ventura,
Corado por um beijo de donzela
Ao despontar d’aurora...

Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
Sorrindo, pelo céu jurasse a bela
Fazer-me cada vez por novos beijos
Mais rubra a cor do dia...

Se fiel companheira em toda parte
Quisesse me seguir, presa comigo,
Como um raio celeste preso a um astro
A iluminar-lhe o curso...

Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
Só por ter-me, deixá-los e contente
A gabar-me o sabor do pão grosseiro
Que me alimenta a vida...

Não a crera; e talvez que até julgasse
Tantas provas de amor atroz perfídia,
Se amor me não brilhasse nos seus olhos
No centro de uma lágrima.

Amor é fogo; o coração que ama
Todo nas suas chamas se evapora,
No rosto se condensa, e chega aos olhos
Em água convertido.

Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita
De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes
Sustento de lascívia.

Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando,
Filho de um doce afeto que se apura
Nos cadinhos da dor, é batizado,
Num batismo de prantos.

É belo ver-se uns olhos cintilantes,
Acesos em vulcões de fogo ignoto,
A dardejar faíscas invisíveis
Que os corações abrasam:

É belo ver-se um rosto nacarado
No carmim do prazer: é belo ver-se
Partir fino coral de rubros lábios
Um sim d’alma saído:

Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade
É escárnio do crente.

Quereis vê-lo sincero? Observai-o
N’açucena de um rosto desmaiado,
Entre os lírios de uns lábios que roxeiam
Suspiros de agonia:

Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
Entre a neve das lágrimas, pareça
Revérbero da lâmpada mortiça
Do templo da saudade.

Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
Seu voo ao céu dirige
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NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,
Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado
Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede
Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.
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O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludibrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Hans Christian Andersen (O Boneco de neve)


– Está tão deliciosamente frio que meu corpo até estala. – disse o Boneco de Neve – Este é o tipo de vento que sopra vida para dentro de uma pessoa. Mas como aquela coisa vermelha grande está me encarando! – Ele estava falando do Sol, que estava se pondo – Não vai conseguir me fazer piscar, e eu vou conseguir segurar todas as partes.

O Boneco de Neve tinha duas telhas triangulares em lugar dos olhos; a boca era feita com um ancinho e, portanto, tinha dentes. Ele havia sido montado em meio aos gritos alegres dos meninos, o tilintar dos sinos de trenós e o estalar de chicotes.

O Sol desceu, e a Lua cheia subiu, grande, redonda, clara e brilhando no profundo céu azul.

– Lá vem ele de novo, desta vez do lado oposto. – disse o Boneco de Neve, achando que era o Sol se exibindo novamente – Ah, eu o curei daquela mania de ficar encarando. Agora ele está brilhando lá em cima, e eu consigo enxergar a mim mesmo. Ah, se eu conseguisse me afastar daqui; gostaria tanto de poder me mexer! Se eu pudesse, iria deslizar para longe sobre o gelo, como vi os meninos fazerem, mas não entendo como. Eu nem sei correr.

– Ou, ou! – latiu o velho cão de guarda, que era um pouco rouco e não conseguia pronunciar corretamente “au, au”.

No passado, o cão tinha vivido dentro de casa, onde muitas vezes se deitou perto da lareira; sua rouquidão vinha desde essa época.

– Um dia, o Sol vai fazê-lo correr sim, e até escorrer. Eu mesmo vi, no inverno passado, quando seu antecessor escorreu, e também o antecessor dele. Ou, Ou! Todos sempre escorrem.

– Não o entendo, meu camarada. – o Boneco de Neve disse – Aquela coisa lá em cima vai me ensinar a correr? Eu vi quando ele mesmo correu, pouco tempo atrás, e agora surgiu subindo do outro lado.

– Você não sabe de nada. – o cão de guarda replicou – Mas, por outro lado, você é novo ainda, acabou de ser feito. O que você está vendo agora é a Lua, o que você viu antes era o Sol. Ele vai voltar amanhã, e provavelmente vai ensinar você a escorrer para a canaleta junto ao poço, pois acho que o tempo vai mudar. Estou sentindo aqui na perna esquerda umas pontadas que parecem facas entrando, então tenho certeza de que o tempo vai virar.

– Não consigo entender aquele sujeito, – o Boneco de Neve comentou consigo mesmo – mas tenho a impressão de que ele está falando de algo bem desagradável. Aquela coisa que estava me encarando agora há pouco, que ele chama de Sol, não é meu amigo; estou sentindo isso também.

– Ou, ou! – latiu o cão, depois deu três voltinhas e entrou no canil para dormir.

O tempo mudou mesmo. Perto do alvorecer, uma névoa espessa cobriu o país inteiro e um vento agudo soprava tão forte que parecia capaz de congelar até os ossos das pessoas. Quando o Sol raiou, porém, uma visão se tornou esplendorosa. Árvores e arbustos estavam cobertos de granizo e pareciam uma floresta de corais brancos, enquanto em todo graveto reluziam gotas congeladas de orvalho. Suas formas delicadas, que no verão ficaram escondidas pela folhagem abundante, agora estavam claramente definidas e pareciam rendas brilhantes. Um esplendor branco refulgia de cada galho. As bétulas, balançando ao vento, estavam tão cheias de vida quanto em um dia de verão, e absolutamente deslumbrantes. Onde batia sol, tudo resplandecia e faiscava como se pó de diamante tivesse sido espalhado; e o tapete de neve que cobria a terra também parecia feito de diamantes, e deles saíam inúmeros feixes de luz cintilante e ainda mais branca do que a própria neve.

– Isto é realmente lindo. – comentou uma mocinha que tinha ido ao jardim com um amigo; ambos pararam perto do Boneco de Neve e ficaram apreciando o esplendor da cena. – Nem o verão traz uma imagem tão bonita. – Ela exclamou, com olhos vivos.

– E no verão também não existem sujeitos como este aqui. – respondeu o rapaz, apontando para o Boneco de Neve. – Ele é fundamental.

A menina riu e acenou para o Boneco de Neve, e foi embora saltitando pela neve com o amigo. O chão estalou e crepitou como se ela estivesse pisando em cima de roupas engomadas.

– Quem são aqueles dois? – o Boneco de Neve perguntou ao cão de guarda. – Você está aqui há mais tempo do que eu; você os conhece?

– Claro que os conheço. – respondeu o cão. – A menina me fez carinho vezes sem conta, e o jovem já me deu muitos ossos. Eu nunca mordo aqueles dois.

– Mas o que eles são?

– São namorados. – o cão explicou. – Com o tempo, eles vão morar juntos no mesmo canil e roer o mesmo osso. Ou, ou!

– Eles são o mesmo tipo de criaturas que você e eu?

– Bem, eles pertencem ao senhor mestre. – o cão disse. – Dá pra ver como uma pessoa sabe pouco quando nasceu ontem. Vejo isso em você. Eu tenho idade e bastante experiência, conheço todo mundo naquela casa e sei que houve uma época quando não ficava aqui fora no frio, preso a uma corrente. Ou, Ou!

– O frio é delicioso. – o Boneco de Neve falou. – Mas me conte mais, conte mais. Apenas não bata a corrente desse jeito; me dá aflição quando você faz isso.

– Ou, ou! – o cão de guarda latiu. – Vou contar: antes, eles diziam que eu era uma graça de cachorrinho, e naquele tempo eu ficava em uma poltrona forrada de veludo, na casa do senhor amo, e sentava no colo da senhora; eles beijavam meu focinho e limpavam minhas patas com lenços bordados, e era “querido Ami” pra cá, “meu Ami docinho” pra lá. Só que depois eu fiquei grande demais, e eles me despacharam para a casa da criada, então passei a morar no andar de baixo. Aí de onde você está dá para ver o quarto onde eu era o mestre; sim, pois eu era, de verdade, amo e senhor da criada. O quarto era muito menor do que o de cima, mas eu ficava mais confortável, porque não era mais o tempo todo puxado e erguido pelas crianças. A comida era farta e boa, até melhor do que antes. Eu tinha uma almofada só pra mim e havia uma fornalha; uma fornalha é a melhor coisa do mundo nesta época do ano. Eu ia para baixo dela e ficava lá deitado. Ah, ainda sonho com aquela fornalha... Ou, Ou!

– Uma fornalha é algo bonito? É parecida comigo? – o Boneco de Neve quis saber.

– É o oposto de você. – e o cão passou a descrever: – É escura como um corvo, tem um pescoço comprido e puxador de metal; uma fornalha come lenha e solta fogo pela boca. Uma pessoa tem que ficar ao lado ou abaixo, para se aquecer. Aí de onde você está dá para ver a fornalha através da janela.

O Boneco de Neve olhou, e o que viu foi uma coisa polida, brilhante, com um puxador de metal na frente e brasas incandescentes na parte de baixo. Essa visão deu ao Boneco de Neve uma sensação estranha; era bem esquisito, ele não sabia o que significava nem entendia direito. No entanto, há pessoas que não são bonecos de neve e que entendem muito bem esse sentimento.

– E por que você abandonou a fornalha? – o Boneco de Neve perguntou. – Como conseguiu deixar para trás um lugar tão gostoso?

– Eu fui obrigado. – respondeu o cão de guarda. – Eles me expulsaram da casa e me acorrentaram aqui fora. Eu tinha mordido a perna do filho mais novo do senhor, porque ele havia chutado para longe o osso que eu estava roendo. “Um osso por um osso”, eu pensei. Eles ficaram zangadíssimos e desde então fico acorrentado aqui, e perdi a voz. Percebe como sou rouco? Ou, ou! Não consigo mais falar como os outros cachorros. Ou, ou! E foi assim que tudo terminou.

O Boneco de Neve, porém, não estava mais ouvindo. Ele estava com o olhar fixo no quarto da criada no andar de baixo, onde ficava a fornalha, que tinha mais ou menos a mesma altura que ele próprio, e se apoiava em quatro calços de ferro.

– Que estranhos comichões estou sentindo aqui no peito. – ele falou. – Será que devo entrar lá? É um desejo inocente, e desejos inocentes são sempre atendidos. Vou entrar no quarto e me encostar na fornalha nem que tenha que quebrar a janela.

– Não vá. Se você chegar perto da fornalha, – o cão de guarda alertou – vai derreter!

– Preciso ir. – o Boneco de Neve respondeu – Estou sofrendo com o jeito que as coisas estão.

Durante o dia inteiro, o Boneco de Neve ficou olhando através da janela. Ao entardecer, o quarto ficou ainda mais convidativo, pois da fornalha saía um brilho suave, não como o do Sol nem o da Lua; era a incandescência que vem de uma fornalha quando ela foi bem abastecida.

Quando a portinhola foi aberta, as labaredas escaparam, como costuma ocorrer com todas as fornalhas, e a luz das chamas cobriu o rosto e o peito do Boneco de Neve com um clarão avermelhado.

– Eu não suporto mais. – ele disse – Como ela fica linda quando estica a língua para fora!

A noite foi longa, mas pareceu curta ao Boneco de Neve, que passou as horas entretido com seus pensamentos e estalando de prazer com o frio. Pela manhã, a janela do quarto da criada estava coberta de gelo. As vidraças exibiam as flores de granizo mais lindas que qualquer Boneco de Neve poderia desejar, mas elas escondiam a fornalha.

O degelo não vinha e ele não enxergava nem um pedacinho da fornalha, que na imaginação dele era bela como uma linda mulher humana. A neve rangia e o vento assobiava ao redor dele; era o tipo de clima enregelante que um Boneco de Neve aprecia ao máximo. Mas ele não estava nem um pouco contente. Como poderia, afinal, estando tão apaixonado e distante?

– É uma condição terrível para um Boneco de Neve. – o cão de guarda observou – Eu mesmo já sofri disso, mas superei. Ou, ou! – ele latiu, e acrescentou: – O tempo vai mudar.

E mudou mesmo. A neve começou a derreter e, conforme o calor aumentava, o Boneco de Neve diminuía. Ele não disse nada, não reclamou, o que era sinal certeiro de estar morrendo.

Certa manhã, ele se partiu e afundou completamente. Mas esperem! Onde antes tinha estado o Boneco de Neve, havia agora, espetado no chão, algo parecido com uma vassoura. Era a estaca em volta da qual os meninos tinham construído o Boneco de Neve.

– Ah, agora eu entendi por que ele queria tanto se aproximar da fornalha! – concluiu o cão – Ora, aquilo lá, amarrado à estaca, é a escova que se usa para limpar a fornalha. O Boneco de Neve tinha uma escova de fornalha dentro do corpo, era por isso. Ou, ou!

E logo o inverno chegou ao fim. O cão de guarda continuava com seu “ou, ou”, enquanto dentro de casa as meninas cantavam:

Venha do seu lar aromático, verde tomilho,
Que já não resta nenhum empecilho.
Salgueiro, estique seus macios ramos,
Que muito contentes todos estamos.
A primavera vem com doce euforia,
E no céu voam as aves com alegria.
Chega o Sol gentil e o cuco canta,
E eu canto junto a mesma melodia.


E ninguém mais se lembrou do Boneco de Neve.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Universo das Fábulas.

Aparecido Raimundo de Souza (Obstáculos)

SAÍ DA MINHA CASA às carreiras, logo que me vi fora da cama. Abri a porta de meu quarto e voei para a rua em busca de novidades. Qualquer coisa que distraísse o meu pessimismo galopante, nojento e asqueroso, me faria um sujeito feliz. Na verdade, queria me ver livre da manhã entristecida que não nascera bem. Faltou algum elemento primordial na mistura da sua composição. Um toque sutil de leveza, quem sabe um empurrão, para que ela deixasse de ser como uma rosa embriagada esquecida dentro de uma garrafa atirada à sorte e se tornasse perfeita.

Não só isto. Igualmente se reinventasse sem defeito, magistral, primorosa, robusta e seguisse, radiante e versátil, acolhedora e hospitaleira, afetuosa e caridosa vivendo livre e tranquila no jardim do meu mais urgente, destituída, obviamente, dos fluidos indigestos que a perseguiam e vingasse na mais pura vontade de ser plena e realizada aos olhos (não só aos meus) de quem quer que aparecesse e a contemplasse. O oposto, o contrário, se fizera maior. Se agigantou numa chegada cruel e mal parida, engendrada a bel prazer de uma esquizofrênica infame e duramente cruel.

Em vista disto, eu não conseguia me enquadrar em seus parâmetros, nem tampouco ela a mim, no sentido de jogar no rosto carcomido pelo desespero, um semblante mais ameno, um perfil que não me tornasse tão radical e infeliz, a ponto de achar que todo o Universo, ao meu entorno, conspirasse a meu desfavor. Resolvi cair no mundo. Fugir daquele crepúsculo pavoroso e desvairado. Na minha partida, em busca de algo pleno, me embrenhei por caminhos e atalhos os mais diversos dentro de um universo paralelo que, de igual forma, me fez mais pessimista, e pior, literalmente desanimado e divorciado do controle emocional.

As novidades que almejava, de repente se desfizeram em angústias e dissabores, problemas e questiúnculas que se avizinharam contrárias e antagônicas ao meu modo pacato e sem atropelos de viver cada novo dia que chegava. Em decorrência deste imprevisto não previsto e desenfreado, assim do não existente, os percalços se multiplicaram aos borbotões. Como torneiras abertas, por mãos invisíveis, se sucedeu sobre meus costados, uma enxurrada 'desconjunturada' e infernal de atropelos, o que contribuiu para aumentar, sobremaneira, as barreiras intransponíveis que vieram, de roldão, junto com o pacote que eu não pedira.

Diante deste quadro infortunoso e lúgubre, o que fazer? Que atitude tomar? Seguir em frente? Retroceder? Como me livrar do pessimismo molesto que me infligia um esmagamento atroz e me mortificava, me atormentava e me estragava as horas vindouras, a partir de um simples e corriqueiro acordar? De pronto, me deparei com uma válvula de escape emergente. Acredito que um anjo do bem, soprou algo esplendoroso em meus ouvidos. Do nada, ouvi um ‘volta, volta, volta’. Não pensei duas vezes. Regressei correndo à minha casa feito um maluco desorientado ao ponto de partida. Meu quarto.

Dentro dele, me tranquei apressurado e fadigado, esbofado e boquiaberto, como se estivesse querendo que aquele matutino fosse, de vez, embora o mais depressa possível e se desagarrasse dos meus pés. Incrivelmente deu certo o aborto planejado da minha fuga afergulhada. O dilúculo entristecido e lutuoso, embaçado e malévolo se foi embora. Partiu de vez. Durou pouco os seus horrores, às minhas provações. Descobri, instantes depois, que tudo orbitou apenas no meu imaginário. Na verdade, após caso passado, digo, de bom grado, que este nascer inóspito, a bem da verdade, não existiu verdadeiramente.

Mesmo norte, esta alvorada manemolente não vingou, não descendeu. Sequer se criou, ou se materializou em forma de um porvir real. Diria, agora, que tudo passou, id est. Estas primeiras horas repletas de malogros e desencantos jamais chegaram. De nenhuma forma se aproximaram dos meus receios e carências. Como num passe de mágica, tipo um achado benfazejo, com as graças de um Ser Maior e Divinizado (que a tudo viu e reconstruiu), voltei a ser eu mesmo de novo. Confiante e vitorioso, ao me flagrar livre como antes, meu coração se abriu em festa abraseada. Aqui estou saltitante à acolher a visão beatificante de que tudo seria e é concreto dentro do impossível do meu possível.

E, de fato, crendo piamente nesta teoria da Felicidade ímpar, e sem espaços, consegui sair do buraco negro. Me libertei. Me safei. Revivi, ressuscitei, granjeei forças. Renasci mais poderoso, como aquela ave mitológica. Das cinzas. Aqui estou agora, sem correntes, ou amarras, sem fobofobias e hipocondrias, me sentindo o dono do pedaço, senhor de mim mesmo, o absoluto de tudo e o mais importante: não ‘re-vendo’ o jardim desfeito, tampouco a rosa pinguça, metida dentro de um vasilhame bojudo de gargalo comprido. O arraiado, a rosa e eu, pela ternura imensurável de Deus, agradecemos. Estamos e nos sentimos IMENSAMENTE FELIZES.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Daniel Maurício (Poética) 11

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 37 –

Sabemos que a vida é feita de dualidades situações avessas, contrárias, antípodas, constantemente. Assim é que temos manhãs radiosas e manhãs sem sol, dias refulgentes e dias escuros, vidas imensas e vidas nanicas, dias de boas notícias e dias de más notícias, dias ventaneiros e dias serenos, dias alegres e dias tristes.

Similitudes acontecem com a prosa e o verso, que também têm o seu dia sim e o seu dia não. Acordamos pensando em escrever um texto e nada flui, a inspiração e a transpiração ausentes,, os pensares vagos.

Estamos no dia não da escrita. Eis que neste antagonismo surgiu um dia sim abrigando uma croniquinha não.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cristovão Tezza (Aula de reforço)

Estava distraída e quase deixou queimar o pão, olhando pela janela da cozinha, quando o telefone tocou — uma, duas, três vezes. Correu, pegou o fone e voltou a tempo de salvar o pão.

— É a professora Beatriz?

Demorou a responder — o “professora” soou repentinamente estranho, como se não fosse ela.

— Sim?

— É o meu filho. Ele vai fazer vestibular. Não é que ele escreva mal, ele é muito inteligente. Mas precisa de um reforço. De um reforço em tudo — é muito dispersivo. Falaram muito bem de você! Disseram que você faz milagres. Você faz milagres? — e a mulher riu.

Beatriz arriscou um diagnóstico prévio: mãe dominadora, com um certo humor invasivo, o que duplica o perigo. Mas ela estava mesmo precisando de aulas extras.

— A gente tenta fazer milagres. Às vezes não dá certo — acrescentou, arrependendo-se em seguida. Mas a mulher não ouviu: — Você está disponível? Poderia começar hoje mesmo?

Beatriz preferia quando perguntavam antes o preço da aula. Falar de dinheiro é sempre desagradável — as pessoas baixam a voz, olham para os lados, disfarçam, cheias de dedos. Parece que somos todos traficantes nesta vida, pessoas sujas que escondem o dinheiro na bolsa e só o mostram olhando para os lados, suspeitosas — e era como se Beatriz visse a imagem que pensava. Mas algo lhe dizia, pelo tom de voz, que essa mulher pagaria bem, sem chiar. Essas pessoas que querem tudo para ontem e bancam a exigência.

— Só um minutinho, senhora.

Colocou o telefone na pia, tirou o pão da frigideira, com capricho, e colocou sobre um pires. Parecia bom, tostadinho sem queimar. Retomou o fone:

— Pode ser à tarde? À tarde estou livre. Às duas, está bem?

Estava.

— Mas talvez fosse bom nós duas conversarmos antes sobre o meu filho. Eu poderia lhe dar uma orientação. Ele é um menino... como dizer?

Não diga.

— Tudo bem, só que... o seu nome? Ah, dona Sara, a gente conversa, sim, é claro. Mas agora tenho de sair correndo. A senhora me passaria o endereço?

Desceu do ônibus próximo da rua transversal que cruzava a avenida Batel — região de gente rica, principalmente naquela sequência de três prédios para onde ela estava indo, procurando o número, 227, é ali, o prédio do meio. Pensou que talvez devesse ter vindo com uma roupa menos informal, aquele uniforme jeans, tênis azul, blusa branca, laço no pescoço, a pasta com os textos na mão, mas subindo a rampa da portaria se distraiu, bobagem, estou muito bem, mentiu, lembrando da farmácia em que teria de passar na volta. Estava deprimida. Diante do porteiro, ficou muda, uma impaciência não localizada na cabeça. Parece que a minha vida é me identificar com porteiros — sou uma vendedora de pizzas, e a ideia de que disse isso em vez do “Beatriz” suspirante que de fato confessou acabou por distraí-la novamente. O porteiro falava baixo no interfone; talvez ela fosse recusada e voltaria para a rua sem jamais conhecer o garoto dispersivo (hiperativo? déficit de atenção?) que precisava de um reforço, mas o porteiro agitou-se, levantando-se como quem súbito descobre que está diante de alguém realmente importante, o médico na urgência, o encanador que vai resolver o dilúvio no banheiro, o técnico da televisão cinco minutos antes do penúltimo capítulo da novela.

— Por aqui, senhora!

Solícito — a espinha já se curvando, os passos rápidos até o elevador, no qual se atirou em três passadas para abrir a porta antes que, vindo da garagem, ele se fosse para o alto, é no sétimo andar, uma mesura respeitosa diante da senhora, Beatriz sorriu, senhora, e desejou ardente um espelho para avaliar os 28 anos incompletos, mas deu de cara com um cãozinho repolhudo que latiu três vezes, um latido fino, agudo, irritante, aliás como a dona, esta sim uma senhora, que gentil pediu desculpa:

— Desculpe, mocinha. Essa menina aqui é muito espevitada!

Muito es-pe-vi-ta-di-nha! — esfregava o focinho no focinho do bicho:

— Sua bagunceirinha! Fica latindo para as visitas! Que feio!

Será essa a mulher? — assustou-se Beatriz, mas não; no quinto andar a senhora pediu licença e saiu do elevador; o cãozinho latiu de novo, quase pulando do colo da mulher para morder Beatriz. A porta se fechou e ela ouviu mais repreensões da mãe para a filhinha, que sumiram em fade out até que o sétimo céu, o sétimo andar, corrigiu-se ela, estou maluca, se abrisse e uma mulher grande lhe estendesse os braços que também pareciam enormes:

— Professora Beatriz!? — Parecia uma velha tia, vendo a sobrinha cinco anos depois; só faltava dizer como você cresceu, mas chegou perto: — Você é uma gracinha de menina! — e os braços se esticavam, as mãos nos ombros de Beatriz, avaliando a peça. — Eu não sabia que você era tão nova! — Puxava-a pela mão: — Venha por aqui, vamos conversar.

Atravessou o breve hall cheio de peças douradas, plantas e quadros, percebendo que no prédio havia um só apartamento por andar, e em seguida passou pela porta imensa que dava a uma sala igualmente imensa com uma profusão de tapetes, mesas, poltronas, cores, luminárias, cortinas, tudo muito limpo e sólido, nenhum livro nas paredes, mas o olhar não conseguia se deter, a mulher era rápida — num momento, viu um vulto que apareceu na moldura de uma porta, e sumiu em seguida, como quem se esconde. E agora estava sentada diante da mulher, numa mesa de uma outra sala, menor.

— Que bom que você veio — e sorriam os olhinhos miúdos da mulher, os cabelos vermelhos em torno de um rosto redondo como uma bolacha recheada, bochechas salientes logo acima de dois queixos discretos acima de um pescoço curto. Havia entretanto uma perquirição residual no olhar, alguém que ainda precisa se convencer de que está fazendo um bom negócio.

Tímida, Beatriz restou desconfortável naquele breve momento, em busca do que dizer; a ideia de que provavelmente seria bem paga (na mesa nua, havia apenas um silencioso talão de cheques com uma caneta atravessada, a um palmo da mão direita, gordinha, de dona Sara) contrabalançava-se com a ideia de que aquilo seria muito chato.

— O Eduardo (a gente chama ele de Dudu), o Dudu é muito dispersivo. Rapaz inteligente. — Ela baixou a voz: — É filho do meu primeiro casamento. Você é solteira? Ele...

Seria o vulto da porta? Aliás, com todas as portas escancaradas, o Duduzinho estaria ouvindo a interminável metralhadora. A clássica mãe superprotetora com sentimento de culpa. Isso cansa. Num lapso, Beatriz lembrou o aborto que fez, sete meses depois de casada, e levantou-se, súbita, olhando para o relógio, ainda tentando ser gentil:

— Dona Sara, eu tenho outra aula às quatro. Talvez a gente deva começar.

— Isso mesmo! — concordou dona Sara imediatamente, levantando-se também, decidida, como se fosse dela a ideia de começar logo.

— Faça uma avaliação e conversamos!

De volta à sala maior, ela se viu enfim diante de Dudu, ao centro de uma mesa humilhante de tão pesada e bonita, um de cada lado, como numa conferência da ONU. Um garoto bonito, delicado, inseguro e tímido, as mãos enormes sobre a mesa, pontas visíveis de uma alma ainda incompleta; custou a olhar para ela; quando olhou, ela imaginou ver lá no fundo dos olhos azuis um pedido de socorro, mas isso era só uma transferência do sentimento dela, quando enfim dona Sara desapareceu dali, ainda que deixando todas as portas abertas; não parecia uma casa; parecia um conjunto de salões e corredores.

Uma aula particular é uma consulta médica, ela fantasiou — é preciso privacidade. Praticamente cochichavam:

— Eduardo, vamos fazer alguns exercícios, só para eu conferir como você está. Tudo bem?

Percebeu nela mesma o tom quase severo da professora, o breve peso da autoridade que compensa a insegurança diante de uma situação nova; talvez o menino se sentisse traído, imaginou. De qualquer modo, sentiu-se bem: estava no seu papel, e era sempre um prazer descobrir o que as pessoas sentem quando escrevem, o que elas escrevem, o mistério daquelas palavras sofridas em sequência. Cada caso era mesmo sempre um caso, negando o chavão com um chavão. Vamos ao trabalho, disse ela, apresentando-lhe uma folha impressa que tirou da pasta: junte as duas sentenças em uma única frase, fazendo as modificações necessárias. Primeiro: O homem fugiu. O casaco do homem era verde. Segundo: Estava chovendo. Ele saiu sem guardachuva. (Use “embora”).

Dudu era canhoto. Enquanto ele escrevia um tanto penosamente — a letra quase ilegível, Beatriz avaliou, de ponta-cabeça, enquanto as linhas saíam da caneta esferográfica que ele tentava esmagar com os dedos —, ela chegou a ver mais uma vez a cabeça de dona Sara lá adiante, como uma aparição, desaparecendo em seguida. Talvez ela queira que a gente fale mais alto, para poder nos ouvir. Conferiu o resultado, que o garoto estendeu lentamente, talvez temendo a resposta:

- O homem que o casaco era verde fugiu. Embora chovendo, ele saiu sem guarda-chuva. Ela sorriu, estimulante. Ele não conhece o cujo e não sabe usar subjuntivo. Em duas frases, o retrato inteiro para um estudo de caso. A segunda frase não estava tecnicamente errada, ainda que ambígua. Ficou tranquila: teria serviço para alguns meses. Estavam em abril, o vestibular é em dezembro. Estendeu para ele uma outra folha, com um texto informativo de três parágrafos sobre o desmatamento na Amazônia.

— Leia em voz alta esse texto. Eu vou fazer algumas perguntas, a gente conversa um pouco, e então você escreve um resumo usando 50 palavras. Tudo bem?

— Você não quer um cafezinho? — a voz da mulher reapareceu lá de longe, alta, como quem chama alguém no outro lado da rua.

— Não, obrigada, dona Sara. É melhor a gente se concentrar na aula.

Uma ligeira repreensão no tom de voz. O rapaz olhava para o texto, sem ler, visivelmente pensando em outra coisa — e então estendeu a mão e pediu licença para conferir de novo as frases que havia escrito.

— Eu poderia usar o “cujo” aqui? Tipo, o rapaz cujo o casaco era verde fugiu?

Ela sorriu, animada:

— Sim, é claro; seria o justo. Mas não “cujo o”; apenas “cujo casaco”. As expressões cujo, cuja, cujos, cujas já incluem o artigo.

— Mas ninguém fala assim. Todo mundo diz a pessoa que o casaco.

Ela sentiu que ele queria marcar território.

— Certo! Mas escreve-se assim. É a chamada língua padrão, norma culta.

— Eu imaginei que a pessoa nessa frase estava falando e não escrevendo.

Ela conferiu nos olhos dele: havia um toque de humor. Apenas uma breve pegadinha, não uma provocação. Sorriu:

— Sim, você está certo. O registro da frase não estava adequado. Que ótimo que você percebeu! Vamos à leitura?

Ele lia razoavelmente bem, com uma voz quase feminina. Atrapalhou-se apenas com uma sequência de orações subordinadas, que ele teve de refazer para que acabassem em pergunta; e não sabia o que significa diáfano e rotundamente. Ela explicou — e sugeriu que ele comprasse um dicionário.

— O dicionário é fundamental para quem escreve.

— Eu tenho a versão eletrônica no computador.

O resumo não ficou bom — ele queimou as 50 palavras apenas com o assunto do primeiro parágrafo —, mas o texto estava até razoável: só um erro de concordância (acontece queimadas todos os meses) e outro de ortografia (encontrarão por encontraram). Enfim: estava diante de um caso típico. Já tinha praticamente um curso completo destinado a ele, só venderia a mão de obra — e quando dona Sara se aproximou, uma hora depois, conclamando-a para tomar um café, começou a pensar no preço que cobraria. Súbito, o rapaz desapareceu e ela se viu diante de outra mesa, em outra sala, tendo de decidir entre o chá e o café. Havia uns cinco tipos de bolachas — uma empregada uniformizada surgiu de lugar nenhum, depositou outra bandeja e se retirou em silêncio para o fundo de um corredor de onde vinha o som distante de uma televisão. Beatriz começou a se sentir desconfortável, a mão quente da mulher sobre o seu braço.

– E que tal o meu filho? Não é inteligente?

Sim, sim, ele é ótimo, ele é muito melhor que a senhora”, ela quase disse, - E sabe o que eu ia propor a você, eu achei que ele gostou tanto de você que — e Beatriz se serviu de café, apenas café, e escolheu um modelo de bolacha que parecia apetitosa, e era — que eu estava pensando se; mas se sirva, por favor. - Oitenta reais  não, é muito. Se o meu padrão é quarenta, posso pedir cinquenta, talvez sessenta a hora, ela calculou, quem sabe duas, três aulas por semana, isso representaria um desafogo bom enquanto ela — enquanto ela o quê? O café estava bom, forte, e ela pôs um pouco mais de açúcar, esperando o momento para encaixar seu preço, mas dona Sara falava sem parar: sim, sim, eu digo mesmo sair com ele, respirar um pouco outro ar, acho que a minha presença — ela baixou a voz para confessar — é um tanto, assim quero dizer, eu intimido, sabe? Ele está nessa fase terrível. - Mas do que essa mulher está falando? — e pegou outra bolacha, sentindo a clássica pontada no pescoço que sempre reaparecia em seus momentos de tensão. Bem, a aula pode ser em outro lugar, é claro, ela acabou dizendo, sem oferecer a própria casa, embora fosse o ideal, não precisaria pegar ônibus — Ir ao cinema, eu digo, temas de redações, tudo isso seria muito bom para ele, escrever sobre a vida, os dedos quentes de dona Sara como que pediam socorro e desculpa ao mesmo tempo, apertando-lhe suavemente o braço, enquanto a cabeça se aproximava, - isso seria muito bom e vocês ficariam à vontade, compreende? Até na mesa de um barzinho, se fosse o caso — e colocou a mão na boca, um escândalo envergonhado: — Eu acho até que ele é virgem! — e deu uma risadinha nervosa. Na verdade ela não quer saber como o filho escreve, surpreendeu-se Beatriz, a bolacha na boca, como uma ficha que entala — Ele passa o dia no computador e isso não é bom, é — bem, ele precisa ver gente, nem tem namorada, nada, e isso afeta o estudo, é claro. Mais café? - Enfim mastigou a bolacha, lentamente, pensando: oitenta reais e desaparecer por aquela porta para nunca mais voltar. Controlou o desejo de se erguer súbita e sair dali. Viu a mulher estender o pratinho — experimente esse, de amora, é uma delícia de recheio — e depois puxar para si o talão de cheques que não saiu da mesa em nenhum momento, como uma boia de segurança:

— Pensei em cem reais a hora cheia, Beatriz. Está bom para você?

Uma letra rápida e criptográfica preenchia o cheque, quase que antes mesmo de ouvir aquele “sim, mas” tímido que ela balbuciou tentando articular uma estratégia qualquer que colocasse as coisas nitidamente nos seus lugares para todo o sempre, o que afinal essa bruxa está querendo de mim?

— Aqui está o telefone dele, você pode marcar com o Dudu mesmo.

E virou-se para o vulto da empregada que reapareceu no corredor, Fulana, eles vão entregar o baú daqui a pouco, e a mulher disse, a voz séria e rouca, Sim, dona Sara, e Beatriz viu-se quase abandonada na sala, dona Sara desculpou-se, comprei um baú lindo, tinha o que fazer, obrigado, menina, você é ótima, um fantasma que troca súbito de script. Levou outro susto ao ver diante do elevador a figura alta de Eduardo, abrindo gentil a porta para ela, e ela temeu que ele descesse junto para acertarem os detalhes, mas não — ele só queria dizer, sussurrando: Desculpe, minha mãe é louca. Ligue diretamente para mim — e antes de a porta fechar ela viu o vulto da mãe reaparecendo lá adiante, discreta, contemplando a despedida, como quem confere se tudo correu de acordo.

Dois andares abaixo, o cãozinho latiu de novo de algum lugar distante no espaço. Ela lembrou que teria de passar na farmácia, e abriu a bolsa para conferir se o cheque estava mesmo certo.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Jessé Nascimento (Analecto de Trovas)

A formiga na labuta
nos dá profunda lição;
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
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Caminhos, jardins e praças,
flores, cores - que beleza!
Deus derrama suas graças
dando graça à natureza!
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Chora o coração sentindo
tristeza, nunca revolta;
os amigos vão partindo
numa viagem sem volta.
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Com meus sonhos mais singelos
embalados na esperança
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
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Corres tanto, mocidade,
és pela vida levada.
Amanhã serás saudade,
serás velhice, mais nada...
= = = = = = = = = = =

Dos outros não dependamos,
mas cada um erga a voz;
a paz que tanto almejamos
começa dentro de nós.
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Leu "Campanha do Agasalho",
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
em vez de deixar, pegou.
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Lindo olhar, belo sorriso,
rosto de tal perfeição,
sugere o traço preciso
do Senhor da criação.
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Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
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Na padaria, o cliente:
- O pão está bem "quentinho?"
Com sorriso, a atendente;
- Veja como está "fresquinho".
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Navegando nas poesias,
nas ondas da inspiração,
iço as velas de alegrias
deixo o rumo ao coração.
= = = = = = = = = = =

No sonho e imaginação,
vou compondo cada verso;
partindo do coração,
viajo pelo universo.
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Num cenário colorido,
cheio de encanto e alegria,
a vida tem mais sentido:
a primavera extasia!
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O genro sempre é quem dança,
a minha sogra é um porre;
o nome dela é "Esperança"
que é a última que morre.
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Por mais que as regras morais
moldem o bom cidadão,
dia a dia os imorais
na vida melhor se dão.
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Pra acreditar foi um custo;
na primeira gravidez,
levou um tremendo susto:
foram cinco de uma vez!
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Quando a razão não alcança
por mais que pareça incrível,
ter fé é ter esperança,
ter fé é crer no impossível.
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Quantas vezes nós choramos
por tantas coisas banais...
Mas, jamais nos esqueçamos:
há outros que sofrem mais.
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Que a humanidade resista
ao mal que, sagaz, avança
eu sou poeta otimista:
ainda existe esperança!
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Se a tua cruz é pesada
e vives só de lamento,
hás de encontrar pela estrada
outros com mais sofrimento.
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Senhor Deus, misericórdia!
Neste conturbado mundo,
nos corações põe concórdia,
mais perdão e amor profundo.
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Semelhante a um quartel
tem sido assim minha casa;
minha mulher, coronel
e eu sempre patente rasa.
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Tenho ciúme e desgosto
quando, à noite, leve brisa
afaga o teu meigo rosto
e os teus cabelos alisa.
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Teu cego e amargo ciúme
que me desgosta e alucina
tem sido o cortante gume
que ao amor leva a ruína.
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Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.

Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.

Contos e Lendas do Paraná - 7 (São José dos Pinhais: As Cruzes da Ponte Velha)


Em 1930, na antiga estrada que ligava a cidade de São José dos Pinhais a Curitiba, uma mãe e sua filha, uma criança de cerca de um ano de idade, retornavam da capital quando logo após a ponte do rio Iguaçu, o cavalo, possivelmente assustado por uma cobra, disparou, causando acidente no qual morreram as duas ocupantes da charrete.

Pessoas bastante conhecidas na pequena comunidade de São José, as finadas receberam o pranto da cidade e a homenagem do marido e pai, que para assinalar o local da tragédia mandou ali erigir cruzes, como ainda hoje é costume. Entretanto, como forma de evidenciar a amplitude do desastre, do braço direito da cruz maior edificou-se uma menor, simbolizando portanto a mãe com a filha ao colo. A partir daí, o local tornou-se estéril ao ponto de não se ouvir sequer um passarinho, embora esses cantassem a poucos metros além. As árvores tornaram-se ressequidas e o lugar revestiu-se de um clima lúgubre, invocando luto e dor.

Não se sabe quem foi o passante que ouviu, primeiramente, os lamentos das mortas, mas a expressão de pavor com que chegou à cidade demonstrou desde logo que não se tratava de pilhéria. O lugar, triste durante o dia, tornava-se horripilante à noite, pois os cavalos assustavam-se e seus condutores ouviam nitidamente o choro da mulher e da criança, seus gemidos de dor e a angústia que suplantava a morte.

Os sãojoseenses passaram a evitar a estrada à noite, os menos corajosos utilizavam um contorno de muitas horas pela estrada da Cachoeira, quando não conseguiam retornar à luz do dia; mesmo os mais bravos passavam com os cavalos à toda brida, não obstante o risco de acidentes. Conta-se que até os raros automóveis existentes na época apresentavam problemas ao passar por ali. Muitas foram as pessoas, todas de integral credibilidade, que chegaram a ver a mulher com a filha nos braços, envoltas, ambas, em fantasmagóricas brumas e chorando copiosamente.

A cidade, já naturalmente pequena, fechou-se por completo. Quando, após o cair da noite ouvia-se o tropel de cavalos vindos de Curitiba, automaticamente concluía tratar-se de forasteiros, que, desconhecendo o fato, chegavam esbaforidos e apavorados.

Vários meses passaram em tal situação, até que um sãojoseense, ausente da região há muito tempo e portanto desconhecedor da crise, passou pelo local. Apenas havia cruzado a ponte, sentiu o cavalo tornar-se amedrontado e indócil, como que querendo retroceder; habituado ao animal, não compreendeu a atitude, até que viu, à esquerda da estrada e poucos metros à frente, o vulto fantasmagórico, que com a criança no colo vinha em sua direção. Certamente, foi o susto que o fez distrair-se da montaria, que num salto súbito jogou ao chão o cavaleiro e fugiu, a todo galope na direção de São José.

Ninguém soube ao certo, se foi por coragem que o homem dialogou com a morta, ou se foi o medo que, paralisando-lhe as pernas, impediu sua fuga. Mas o fato é que depois de meses de terror finalmente alguém aproximou-se dos fantasmas e indagou o motivo de suas penas, a razão de não se encontrarem no repouso eterno.

“Tirem a criança de meu braço, ela é muito pesada, já não suporto mais”. Foi a resposta do espírito. Nada mais disse, apenas continuou chorando e segurando a criança, que também chorava.

Dizem que aquela noite ninguém dormiu em São José dos Pinhais, a notícia trazida pelo passante espalhou-se como fogo na pólvora e os notáveis do lugar viram o dia amanhecer na casa do viúvo, onde haviam ocorrido para a busca da realização do desejo da morta, cuja solução libertaria não somente os espíritos, mas também a cidade de sua sina.

O preguiçoso nevoeiro de inverno ainda não começava a levantar quando, trêmulos pela falta de sono, ou pelo justo receio, mais de vinte sãojoseenses, acompanhando o viúvo desceram da cidadezinha em direção ao Iguaçu. As mulheres rezavam o terço liberadas pelo vigário, os homens iam silenciosos, talvez pensando se lhes valeriam de alguma coisa as pistolas ocultas sob os paletós. A pequena multidão, rezando, postou-se em frente às cruzes, até que alguém, olhando-as, lembrou-se das palavras da finada e sugeriu que fossem desmanchadas, já que efetivamente eram a mãe com a criança ao colo e talvez essa fosse a causa do sofrimento. Após alguma discussão, finalmente resolveu-se pela retirada das cruzes, já que nada custava tentar.

Foi a solução. Segundo as testemunhas, um momento após o desmanche das cruzes, o lugar pareceu ganhar vida, todos sentiram uma leve brisa e os passarinhos, até então ausentes, encheram de sons o anteriormente lúgubre local. As cruzes foram posteriormente substituídas por uma minúscula capela e as madeiras que as confeccionaram atiradas ao rio. Após algumas semanas de desconfiança, finalmente concluíram os habitantes que a assombração havia desaparecido e a cidade voltou ao normal, embora todos apressassem o passo quando transitavam pelo local.

Algumas décadas mais tarde, com a construção da avenida Marechal Floriano, o local passou a chamar-se Ponte Velha e foi caindo em desuso, até que a própria ponte ruiu. Reparada anos depois, tornou a envelhecer e desapareceu. Hoje, não existe mais a estrada e o mato tomou conta de tudo, da ponte velha restaram apenas alguns vestígios de estacas cravadas no Iguaçu.

Do episódio pouca gente se lembra, embora ninguém entenda porque aquela região tão antiga nunca foi convenientemente povoada. Há, atualmente, pouquíssimas testemunhas da crise, além do velho rio e algumas das árvores antigas. Contudo, mesmo sem conhecer a história, há quem jure que em certas noites de lua pode-se ouvir por ali o riso inocente e alegre de uma criança, mas isso não sabemos se é verdade.

Fonte:
Paulino Siqueira Cortes Neto. Tertúlia & Causos Lendas Sãojoseenses; coleção Autores da Terra, v. 4, 1996. Disponível em Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Versejando 90


 

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) O ontem, eterno hoje

No prefácio do livro “A história dos normandos”, do querido amigo professor Thomas Bonnici (Maringá: Edições Diálogos, UEM, 2021), o professor Leandro Rust, da Universidade de Brasília, escreve que “ler (sobre ‘o que um dia existiu') seria trazer o ontem para perto”. Fiquei com essa ideia na cabeça, pensando no extraordinário valor da memória.

O cérebro humano tem sido descrito como o que há de mais fantástico em matéria de “computador”. Graças a ele preservamos um capital preciosíssimo – todas as nossas lembranças, guardadinhas como se fosse num livro que podemos reler a qualquer momento.

No meu “livro” não há nada minimamente comparável à grandiosa história dos normandos, tão bem narrada pelo Doutor Thomas. Tem, todavia, completa, a história de minha vida.

Já nas primeiras páginas me reencontro menino na paisagem rural onde nasci, na região montanhosa do município de São Fidélis-RJ. Nossa casa ficava num vale chamado “Bela Joana”. Na frente havia o terreiro e logo acima a área cultivada – o pasto e as plantações: café, milho, feijão, mandioca etc. No fundo, a horta, o galinheiro, a ceva de porcos e o pomar cheio de fruteiras e passarinhos. Um pouco abaixo passava o rio. No outro lado do rio começava uma grande mata, que cobria toda aquela banda da serra. Até onça tinha.

Nas páginas seguintes estou eu adolescente já morando na cidade. Nitidamente me revejo jogando bola de meia na Vila Nova; nadando no rio Paraíba do Sul; levando pito de Dona Morgada no Grupo Escolar Barão de Macaúbas; recitando latim nas aulas do professor Expedito; assistindo missa do padre Augusto; torcendo pelo Esportivo contra o Tabajaras...

Mais adiante me reflagro chegando a Maringá, janeiro de 1955. Foi muito legal já no primeiro dia conhecer um dos grandes ícones da geração pioneira – Ângelo Planas. Depois, pouco a pouco, fui conhecendo todos os outros.

Vou folheando o “livro” e trazendo de volta outros ontens que tive a alegria de partilhar, especialmente como jornalista, na fascinante história deste maravilhoso lugar. Lá estou eu entrevistando o primeiro prefeito, Villanova Júnior; entrevistando o primeiro bispo, Dom Jaime, na primeira semana após sua chegada à diocese; convivendo com os primeiros caciques do jornalismo local – Aristeu Brandespim, Manoel Tavares, Ivens Lagoano Pacheco; reportando a inauguração do Grande Hotel, da Catedral, do Parque do Ingá, da Universidade. Depois, como professor, convivendo e aprendendo com dezenas de valorosos e queridíssimos colegas e participando da formação de centenas de alunos que aí estão brilhando em todos os campos.

Bendita seja a memória da gente – o riquíssimo “livro” em cujas páginas os nossos ontens sobrevivem como eternos hojes. Lá estão tantos rostos que um dia para nós sorriram, tantas mãos que de algum modo um dia nos ajudaram, tantos familiares e amigos com os quais repartimos a graça de existir. Lá estão, facilmente reprisáveis, os nossos melhores momentos. Um tesouro habitualmente chamado saudade.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04–11–2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 4 –

Acabou-se o nosso amor,
e restou-me as cicatrizes,
e aquele amargo sabor
das bocas dos infelizes!
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A nostalgia transforma
o seu semblante singelo,
em um fantasma sem forma,
para assombrar meu castelo!
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Aquele aceno no porto,
pausei em minha memória:
você foi... Deixou-me morto,
mas não matou nossa história.
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Despreza a mim com fervor;
faz-me de marionete.
Compete a ela o dissabor
e a dor que não me compete.
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Deusa de beleza infinda,
és grande sendo pequena,
e, em verdade, és mais linda
que qualquer flor de açucena!
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Dói, corrói e me consome;
fere-me... E quando anoitece,
recrudesce em mim seu nome,
e o faço de minha prece.
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Dois meses de amor intenso,
e hoje esse lenço em meu rosto
enxugando o pranto imenso
que me causou o desgosto.
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Em passos lentos prossigo
nessa minha extrema estrada,
levando sempre comigo
saudades dela, e mais nada!
= = = = = = = = = = =

Engano a mim quando digo
que lhe esqueci de repente,
e não sei como consigo,
se vivo a pensar na gente!
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Esse seu sorriso lindo,
seus olhos celestiais,
deixam minha alma sorrindo
e eu, amor, lhe amando mais!
= = = = = = = = = = =

És meiga, amável, singela...
tens um sorriso incomum;
para mim és a mais bela
rosa de Cafarnaum!
= = = = = = = = = = =

Estou de volta ao começo,
mas pareço estar no fim...
De saudade, assim, padeço,
e me esqueço mais de mim.
= = = = = = = = = = =

Eu cansei! Mas tudo passa,
e se tratando de amor:
hoje quero ser a caça;
cansei de ser caçador.
= = = = = = = = = = =

"Eu... você... as confidências..."
E aquele amor de nós dois,
tornou-se duas ausências:
você primeiro, eu depois!
= = = = = = = = = = =

Irei lhe esquecer; eu juro!
E lhe asseguro ao dizer:
hoje não mais me aventuro
só por noites de prazer!
= = = = = = = = = = =

Longe de ti eu padeço
em meu ranchinho de palha,
e a saudade, com apreço,
corta-me como navalha!
= = = = = = = = = = =

Longe de você padeço,
e alimentando o teor,
lembro-me mais do que esqueço
nossos momentos de amor.
= = = = = = = = = = =

Nada aplaca a dor deixada
e a tristeza renitente,
quando uma pessoa amada
vai para longe da gente!
= = = = = = = = = = =

Não sei, amor, até quando,
suportarei sua ausência,
e a solidão me abraçando
com a cruel competência!
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Na solidão do meu quarto,
procurei você, em vão;
não lhe achei e fiquei farto
desta cruel solidão.
= = = = = = = = = = =

Nosso amor de primavera,
perdeu de vez o seu trono.
Hoje ele é o que não era:
folhas caídas no outono.
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Nosso amor morre aos pouquinhos:
é roseira envenenada,
sem rosa e cheia de espinhos,
secando à beira da estrada!
= = = = = = = = = = =

Nosso amor virou romance,
depois filme no cinema;
hoje não passa de um lance
que não vale meu poema!
= = = = = = = = = = =

O meu frágil coração
não irá suportar mais
a grandiosa solidão,
que fica quando te vais.
= = = = = = = = = = =

O meu peito é um casarão
com dimensão infinita.
Nele habita o coração
onde a solidão habita.
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Por você daria a vida
e aguentarei qualquer dor;
não deixe esvair, querida,
nossos momentos de amor!
= = = = = = = = = = =

Quando lhe busco em meu sonho,
encontro você em meus braços,
e com amor - e risonho -
lhe encho de beijos e abraços.
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Quando meus olhos castanhos,
encontram os vossos verdes,
sinto fulgores tamanhos
que me agitam todo ao verdes!
= = = = = = = = = = =

Saber que não esqueceu
nossa noite de ternura,
você me faz pensar que eu
sou o que você procura.
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Sempre eu a acordo beijando,
e ela me sorri feliz,
e no jardim vai tocando
a orquestra de colibris.
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Sempre que o dia amanhece,
com seu sol resplandecente,
pássaros cantam em prece
bendizendo o amor da gente.
= = = = = = = = = = =

Sem você meu dia é triste,
tudo foge dos compassos,
mas uma esperança existe:
adormecer em seus braços.
= = = = = = = = = = =

Seu corpo é um templo sagrado,
e da perfeição é exemplo.
Eu o contemplo ajoelhado
feito um fiel em seu templo.
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Todo dia eu me indisponho
com essa saudade sua,
que transformou o sonho
em uma noite sem lua!
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Venha, Amor, venha depressa,
vamos juntos ver a lua;
e caminharmos, sem pressa,
de mãos dadas pela rua.
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Você partiu de repente,
e eu sofri! Mas não importa.
Há muito esqueci da gente
e para mim está morta!
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Você pensa que este pranto
que eu estou chorando agora,
é de tristeza, portanto,
falo-lhe não ser, senhora.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

Milton Hatoum (Segredos da Marquesa)

Outro dia soube que morreu uma mulher querida. Tinha um nome meio pomposo, de marquesa, mas não era nobre nem frequentava os salões dos decadentes barões da borracha. Com ela morreu a memória de uma época.

A Marquesa era uma amazonense que sonhava com o Rio de Janeiro. Realizou o sonho e morou mais da metade de sua vida num pequeno apartamento de Copacabana. Quando você se dá conta -, o tempo já deu suas voltas e foi embora, veloz e matreiro como uma distração.

Era mãe de uma amiga minha, mas destoava de outras mães, tão convencionais e carolas, tão donas de casa e voltadas apenas para o marido, o lar, os filhos. A Marquesa convidava crianças humildes para brincar com sua filha: crianças que moravam em palafitas na beira dos igarapés próximos do nosso bairro. Esse gesto generoso irritava certas mães, que proibiam os "indiozinhos" de conviver com seus filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais das mães desses mesmos curumins (1)* e cunhantãs (2)*.

Aos sábados, brincávamos e merendávamos no quintal da casa da Marquesa; às vezes nos levava para assistir a um filme no cine Guarany, o antigo teatro Alcazar. Éramos oito ou dez crianças na matinê de sábado, nossa noite de sonho e fantasia no meio da tarde. Depois da sessão, tomávamos tacacá (3)* na barraca de d. Vitória, ali na calçada do cine Odeon, uma das maravilhas de Manaus.

Ao meio-dia, quando eu chegava do Ginásio Pedro II, ia visitar minha amiga e encontrava a Marquesa na sala, lendo uma revista francesa, ouvindo Bach ou Villa-Lobos; às vezes ela entrava em casa para conversar sobre música com a professora de piano da minha irmã caçula. E entrava também na roda dos homens para falar de política. O marido dela, um homem rígido e poderoso, sumia quando ela falava. Não sei por que casaram, talvez por amor, mas os dois amantes pareciam inimigos, como no poema de Drummond.

Na primeira semana de abril de 1964, ela reuniu os amigos da filha e disse que o país estava nas "garras dos bárbaros". Eu tinha doze anos e não entendi; mas memorizei essas palavras: nas garras dos bárbaros. Aos poucos, ela percebeu que o marido bajulava os milicos, recebia políticos servis e interesseiros, raposas que passaram a frequentar a sala e o quintal de sua casa. Quando eles chegavam com garras afiadas e inchados de empáfia, ela saía ou se trancava no quarto para não ver essa gente.

Foi nessa época que começou a beber, e, quando bebia muito, era capaz de desafiar até o diabo, com ou sem farda. Por desamor ou indiferença - ou por algo mais -, ela se viu sozinha no casamento e decidiu viajar com a filha para o Rio. Calhou de conversarmos a sós em várias ocasiões; em algum dia de 1967 lhe disse que eu também queria partir.

E então, na despedida, me revelou que era amante de um homem que eu conhecia: queria viver com ele em Copacabana. Esse era o algo mais. Ou alguém a mais na vida da Marquesa: uma história de amor, movida por encontros esporádicos, que duraram mais de duas décadas.

Ela se confinou em Copacabana e eu dei voltas pelo Brasil, sempre pensando em visitá-la, curioso por saber o nome do amante que, segundo a Marquesa, eu conhecia. Até simulava uma conversa com ela antes desse encontro prometido e tantas vezes adiado.

Enfim, visitei-a em 1978, quando lancei no Rio um livrinho de poesia. Almocei em seu apartamento de Copacabana, depois andamos até o Forte, onde conversamos sobre sua filha, minha amiga de infância, que estava morando em Londres.

"Ela fugiu das garras dos bárbaros?"

A Marquesa deu uma risada:

"E das garras da mãe."

No fim da tarde, revelou que seu amante - o homem que eu conhecia – era um dos meus tios solteiros.

A revelação me deixou mudo por um momento. Mas não resisti e perguntei qual deles.

"O galã sonhador", disse, sem hesitar. "De vez em quando a gente namora aqui no Rio. Não piso mais em Manaus."

Revelou outras coisas de sua vida, e contou detalhes da história amorosa com o galã sonhador. Nunca os imaginei juntos, nem desconfiei do caso entre os dois. Foi uma história de amor clandestina, que resistiu ao mau olhado da província e, depois, à velhice. No fim do nosso encontro, disse que eu podia aproveitar tudo o que ela havia me contado.

"Aproveitar?"

"Se um dia tu escreveres um romance..."

Mais de vinte anos depois do nosso encontro no Forte de Copacabana, me lembrei das histórias da Marquesa e, de fato, fiz de alguns lances de sua vida uma ficção.

Quando leu o romance, me telefonou para dizer que eu havia exagerado e inventado tanta coisa que mal se reconheceu na personagem da mulher adúltera.

"Ainda bem", eu disse. "Se tivesse sido fiel à tua história, qual teria sido a reação da tua filha e do teu ex-marido?"

"Minha filha teria adorado, porque ela sabe de tudo. E meu ex-marido já virou pó. Não sabias? Morreu de infarto. Deve estar no inferno, limpando as botas dos amigos dele."

Ia lamentar a morte do pai de minha amiga, mas decidi não dizer nada. Depois de uns segundos de silêncio, a Marquesa completou: "Além disso, ele nunca gostou de literatura. Por que iria ler o teu livro?".
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* Vocabulário:
(1) CURUMINS = garotos, rapazinhos, meninos de pouca idade.
(2) CUNHANTÃS = moças, meninas.
(3) TACACÁ = sendo de origem indígena, é uma comida típica da região amazônica. O caldo amarelado à base de mandioca, chamado de tucupi, preparado com goma, camarão e jambu é servido bem quente em cuias.


Fonte:
Revista EntreLivros n. 31. Ed. Duetto, nov. 2007.