quinta-feira, 13 de abril de 2023

Márcia Jaber (Canteiro de Trovas)


A Virgem de Nazaré,
faz, o Anjo , a Anunciação
e o Seu ser pleno de fé
traz ao mundo a Redenção.
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Bebe a dose da saideira,
não joga nada no canto...
Rolou pela ribanceira
e pôs a culpa no santo.
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Com muito orgulho, a gordinha,
diz, ao medir a cintura,
não estar fora da linha,
o que sobra é gostosura.
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É de Deus, o Filho eleito
e no amor que Lhe permeia,
empatia, em Seu conceito,
é doar- se à dor alheia.
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Em silêncio, busco o amparo
da prece muda do ser,
para as dores, que não raro,
pastoreiam meu viver.
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Frente à fome e adversidade,
atormentadas, as mães,
fazem, com criatividade
os seus milagres dos pães.
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Gentil, tua mão inclina
ao irmão fraco e doente:
empatia é luz Divina
brilhando dentro da gente.
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Lembrança, terna memória
da vida que segue em frente,
passou no rumo da história
mas vive dentro da gente.
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Lute contra o gesto vil
de quem, na conduta emana
o seu preconceito hostil
contra a diferença humana.
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Minha tapera, a viola
e essa morena querida,
é tudo que mais consola
um seresteiro na vida.
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Mundo hodierno, sem afeto,
de mil prédios e espigões...
Nesta selva de concreto,
proliferam solidões.
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Na sombra do preconceito,
se esconde a mediocridade
de quem, sem nenhum respeito,
nega ao irmão a igualdade.
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O batom no colarinho
selou sentença fatal:
na gaiola, o passarinho,
de castigo até o Natal!
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O coração, triste poeta,
compõe quimeras sutis,
deixando- me a vida inquieta
com sonhos que eu não refiz.
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Por mais que o mundo procure
e se esforce a ciência,
não há vacina que cure
a inveja e a maledicência.
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Pura humildade há nos gestos
de quem, dentre a luta e a dor,
vive de sobras e restos
sem perder a luz do amor.
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Só lembranças na memória
de passados tão presentes...
E a saudade é uma notória
romaria dos ausentes.
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Sou refém da pandemia,
em casa, trancafiado
e até virei, quem diria,
um marido apaixonado!
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Terno e puro em seu clamor,
ele sempre impõe respeito,
pois que, não cabe no amor
modo algum de preconceito.
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Vive a vida sem viver
quem, covarde der guarida
ao medo de se atrever
nos desafios da vida.
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Você diz não me querer,
que já sou caso passado,
porém, não pode me ver,
me beija qual namorado.

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Enviado por Lucília A. T. Decarli

Machado de Assis (O contrato)

Quem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo Comendador Brás, capitalista.
 
Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de frequência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra?
 
— Vamos fazer um contrato?
 
— Que é?
 
— Mas diga se você quer...
 
— Mas se eu não sei o que é?
 
— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Valeu! Nem você casa primeiro nem eu, mas há de ser no mesmo dia.
 
— Justamente.
 
Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo, mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso.
 
Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das coisas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de coisas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.
 
Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele.
 
— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma coisa...
 
— Com o Caetano?
 
— Qual Caetano!
 
— Outro?
 
— Outro, sim, senhora.
 
— Ingrata! Mas você não me disse nada?
 
— Como, se é fresquinho de ontem?
 
— Quem é?
 
Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra coisa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente:
 
— Muito bem.
 
— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Justamente, murmurou Josefa.
 
A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dois olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe, — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.
 
Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco.
 
— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.
 
— Uma coisa.
 
Sabemos o que era a coisa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:
 
— Você apresse-se...
 
Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinquenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou coisa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma coisa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição.
 
— Havemos de ser dois casais...
 
— Acaba: dois casais lindos.
 
— Eu ia dizer lindíssimos.
 
E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, coisa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.

Fonte:
Publicado originalmente em Estação, em 29/02/1884. 
Disponível em domínio público

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Adega de Versos 103: (Dorothy J. Moretti): Enlevo

 

Cláudio de Cápua (Conto Folclórico)


Existiu, na Zona da Mata, a uns 10 quilômetros da "Vila de Butucanhanha", Minas Gerais, uma mina de ouro.

Há muitos e muitos anos, nas proximidades da mina, a pitar seu cigarro de fumo de rolo, enrolado em palha, Juca Monteiro descansava, debaixo da sombra amiga de uma mangueira, carregada de frutos. De repente, surgiu, em meio a um redemoinho de vento, como se fosse por um toque de mágica, a figura de um guri negro. Sem roupas, trazia na cabeça um gorro vermelho, e, na boca, um cachimbo.

O garoto, com voz muito convincente, foi logo dizendo: - Oi, amigo, não tenha medo, meu nome é Saci, e tenho poderes mágicos. Se me deres de comer, de beber, e de dormir, poderei te dar, em troca, muita sorte!

Cativo e temeroso, dos poderes sobrenaturais do negrinho, o humilde garimpeiro, prometeu tudo fazer pelo moleque.

A verdade é que, por causa do Saci, ou pelo que fosse, o garimpeiro começou a ter muita sorte na coleta do precioso metal. Foi enriquecendo, rapidamente, fato que passou a causar inveja, aos companheiros de trabalho.

Foi-se o tempo, e a mulher do Juca Monteiro, que sempre tivera boa saúde, adoeceu.

Logo depois, o garimpeiro perdia a esposa, o pai e o único filho. Juca, embora estivesse materialmente bem, moral e espiritualmente, estava muito mal.

Foi quando, seus invejosos companheiros de trabalho, calculadamente, sugeriram que ele procurasse a curandeira, da vila, Nhá Zita.

- Caro Juca, você perdeu filho, mulher e pai. Agora, está só. E, a culpa de todas estas desgraças, cabe a esse negrinho, que lhe apareceu, de forma tão misteriosa. Você tem que matá-lo! disse-lhe a tal curandeira.

O garimpeiro, muito confuso, acabou pedindo ajuda aos companheiros.

Foram eles, mais o Juca, armados de faca e foice, à procura do moleque, e o encontraram, muito sossegado, sob a sombra, de uma goiabeira, a pitar seu cachimbo de barro.

Atacado de surpresa, foi ele atingido, por um golpe de foice, tendo a perna decepada, à altura da virilha. Contudo, por incrível que pareça, saiu o negrinho, saltitante, em louca disparada, numa perna só.

Ante o acontecido, todos ficaram apavorados, fugindo para suas casas. Restou, sozinho, o garimpeiro.

Já bem distante, e sem perigo, o moleque parou, gritando para o Juca.

- É assim, seu Juca, que paga com o mal, todo o bem que lhe fiz?! Por ter acreditado na mentira, e ter me agredido, me causando grande dano, vai perder tudo o que tem. Mas, como sei que foi enganado, por Nhá Zita, e seus companheiros, só por inveja do seu sucesso no trabalho, tem direito a uma nova chance.

- Foram eles que envenenaram, aos poucos, sua família, dizendo ser eu o culpado. Você, ingenuamente, acreditou!

E é por isso, que lhe darei mais uma oportunidade. Só mais uma. Você poderá ser, novamente, rico e feliz, se for à procura de minha perna decepada. Caso a encontre, atravesse a fronteira, em direção à Bahia, e enterre minha perna a sete palmos de profundidade, em solo baiano.

Juca Monteiro, saiu em busca da perna do negrinho, cortada pelo golpe de foice. Não tardou em encontrá-la, cumprindo o que prometera ao moleque.

Em terras baianas, enterrou a perna. E para seu espanto, viu jorrar, daquele exato lugar, um líquido grosso, oleoso e escuro.

Desse dia em diante, Juca Monteiro, ficou rico, muito rico! Único dono, de um grande poço de petróleo! E o Saci, moleque encantado das lendas brasileiras, continuou a fazer inúmeras diabruras e brincadeiras, com seu barrete vermelho e cachimbo de barro, numa perna só…

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) XII


Antes que vosso amor meu peito vença

Soror Violante do Céu in "Cem Sonetos Portugueses", p. 31

Antes que vosso amor meu peito vença
Eu me entrego ao exército inimigo
Desse olhar que me traz em grande perigo
De eu mesma já não ser de mim pertença.

É uma peleja a vossa benquerença
Mesmo sem espada a que haveis comigo
E antes que, por derrota, ache castigo
A minha mão vos dou, em recompensa.

Madrigais foram armas da batalha
Insistindo fenderam a muralha
Onde eu guardava a minha castidade.

A vós se rende, alegre, o coração
Fazei dos vossos braços a prisão
Onde eu, feliz, me sinta em liberdade.
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Em cada rosa o espinho que encontrei
Manuel Cardoso in "Antologia Poética, Tertúlia Hélice, 10." Aniversário", p. 53

Em cada rosa o espinho que encontrei
É renúncia a que a vida me obrigou
Pão da alma que às vezes me faltou
Trono vazio onde eu quis ser um rei.

Maldigo esse contrato que assinei
Em que a fortuna tanto me lesou
E não cumpriu comigo o que acordou
Em troca do futuro que eu lhe dei.

Deponho contra ela em tanta queixa
Que eu não entendo por que não me deixa
Entregue a mim, perdido no caminho.

Prefiro a viuvez da fresca fonte
Ou sozinho viver num alto monte
E a gemer, sempre ao vento, ser moinho.
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Tão leve estou que já nem sombra tenho
Mário Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 48

Tão leve estou que já nem sombra tenho
Como nuvem que passe transparente
No céu dos dias onde é sempre ausente
A cor forte do velho e nobre estanho.

Sou como o traço fino de um desenho
Magro e sumido, um corpo em seu poente
Que viva da palavra e se alimente
Do verso que estiver de bom tamanho.

Tão leve, qualquer dia eu me evaporo
Deste corpo onde quase já não moro
Por castigo ou capricho do destino.

Mas por graça da suma divindade
Subirei através da claridade:
Vou ser eternamente e só menino!
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Uma vez um anjo apaixonou-se
Manuel Antonio Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 52

Uma vez um lindo anjo apaixonou-se
Ao fim de tantas viagens siderais
Por essa estrela que brilhava mais
E tinha a luz mais forte, quente e doce.

A vida rotineira alvoroçou-se
Começou a sofrer como os mortais
E nas vivas palpitações carnais
A sua alma errou e enredou-se.

Mas no reino sem fim desses espaços
Não se permitem beijos nem abraços
Entre vidas, assim, tão diferentes.

Recusando esse amor sem união
À beira do vazio dão a mão
E no céu fazem dois traços cadentes...
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Um salgueiro que espiava sobre o rio
Mario Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 50

Um salgueiro que espiava sobre o rio
Viu passar meu barquinho de papel
De lágrimas tão cheio, mas de mel
E de sonhos seguia tão vazio.

Sentiu nesse momento um arrepio
Vendo que a dor ao leme do batel
Tinha traçado rugas a cinzel
No rosto refletido no baixio.

Fiquei parado à beira do destino
E vi que a brincadeira de menino
Não poderia mais ser repetida.

Mata-me o que de mim já me roubou
A vida que ao passar me transformou
Na barca que nas águas vai perdida.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.

Silmar Böhrer (O Novo Iluminismo, de Steven Pinker)

A Companhia das Letras lançou no Brasil o livro O NOVO ILUMINISMO, do psicólogo Steven Pinker, cientista do conhecimento, professor em Harvard.  Nestes tempos conturbados em que vivemos é interessante sabermos das ideias do pensador, pouco conhecido entre nós.

Com uma original avaliação da condição humana no terceiro milênio, o cientista cognitivo nos incita a rechaçar manchetes alarmistas e profecias apocalípticas que vicejam nos dias atuais e influenciam nossa visão de mundo.

Pinker demonstra que a vida, a prosperidade, a saúde, a segurança, a paz, o conhecimento e a felicidade estão em ascenção, não apenas no Ocidente, mas em todo o mundo.

Para o cientista das ideias, esse progresso é uma herança do Iluminismo  -  a convicção de que a razão e a ciência podem impulsionar  o florescimento humano  -   e mais do que nunca, elas precisam de uma defesa vigorosa.

E escreve o autor: "Nadando contra as correntes da natureza humana, exploradas por demagogos  -  tribalismo, autoritarismo, demonização, pensamento mágico  -, o projeto iluminista é atacado por religiosos, políticos e intelectuais que insistem que a civilização ocidental passa por um inexorável processo de declínio.

Gráficos e planilhas no livro expõem os dados.  Eles indicam que com o avanço do conhecimento, as pessoas estão de fato vivendo mais e melhor.  Sem negar que nossos tempos são atribulados, não hesito em apontar o caminho para as soluções:  reforçar o ideal iluminista de usar a razão e a ciência para resolver problemas".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Coração de vidro)

 BARETÉU CARCUMÉ estava em coma há exatos oito meses. Nesse tempo, a mulher dele, uma beldade, a Tampalônia, um pedaço de mau caminho de dar água em boca de defunto, recém entrada na casa dos vinte e cinco anos, extremamente honesta e dedicada, praticamente se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara, colada à cabeceira do moribundo, dia e noite. Não arredava pé nem para as refeições.

Amava o marido de verdade. Nutria por ele um amor sem limites, incondicional, sentimento hoje em dia bastante escasso e até difícil de encontrar na maioria dos casais. Belo dia, Baretéu Carcumé resolveu voltar à vida e, como num passe de mágica, pimba, acordou. A primeira coisa que fez foi um sinal para que a enfermeira mandasse chamar a sua mulher, no que foi prontamente atendido.

Havia, no hospital, um tal de doutor Tribulim Barfar, médico da equipe de plantão que, desde o ingresso de Baretéu na unidade, não saia de perto do sujeito. Com aquela história de monitorar o paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro, onde atendia as emergências só para desfrutar momentos de agradável prazer ao lado da graciosa cara metade que parecia ter caído do céu.

Embora tivesse o compromisso ético de salvar vidas, Tribulim Barfar passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os quintos e deixasse o caminho livre. Única forma de atacar a bela presa em nome da tristeza que sentiria pela perda do ente querido, bem ainda apresentar as condolências à enlutada e, de lambuja, doar seu ombro amigo à viúva desprotegida e frágil. Porém, com o retorno inesperado do sujeito ao mundo dos vivos, o doutor Tribulim pressentiu que suas chances de dar o bote no docinho de coco caiam por terra.

Todavia, se manteria em sua posição, decidido a ir em frente e conquistar aquela fêmea maravilhosa, custasse o que custasse. Não desistiria, jamais. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada no quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Baretéu para o coma. Tampalônia, ao saber pela enfermeira que o marido voltara, tomou um banho, se perfumou, botou uma sainha bem curta, como ele gostava, e se aproximou, sorridente, o rosto banhado em felicidade.

Sua alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta, que alguma coisa solta no ar a tornava mais elegante e pecaminosamente altaneira e garbosa, embora por dentro o coraçãozinho tão jovem estivesse cheio de dor:

— Meu amor, graças a Deus. Pedi tanto a Nossa Senhora Aparecida. Ela ouviu as minhas preces...

Baretéu soltou um longo suspiro e balbuciou, meio que desacorçoado:

— Em compensação houve rejeição às minhas...

— Não entendi, meu bem. Seja mais explícito.

No que falava, a mulher se sentou na cama e abraçou o marido com carinho e ternura:

— Engraçado. – lembrou ele. – Durante todos esses anos você esteve a meu lado...

— E sempre estarei...

— Quando minha empresa faliu, um mês depois que nos conhecemos...

—... Não foi culpa sua. Seu sócio te roubou.

— Não importa. Lembra?

— Sim, amor!

— Só você ficou e me apoiou.

— E sempre o farei, meu príncipe.

Antes de prosseguir Baretéu fechou os olhos e ficou algum tempo calado, como se procurasse recobrar as forças:

— Na época que me prenderam por não pagar a pensão à minha ex-mulher, você também estava comigo e me levantou a moral.

— Fiz das tripas coração para que não lhe faltasse nada na cadeia.

— É verdade. E olhe só: foram setenta e oito dias...

— Setenta e oito? Nunca me passou pela cabeça anotar o tempo. Agora, meu amado, esquece desses problemas.  Vamos falar de sua saúde, da sua recuperação. Olhe em volta. Você está vivo. Isso importa.

Baretéu, contudo, não parecia disposto a abandonar aquele assunto relativamente chato, sendo discutido, inclusive, numa hora tão imprópria. Ele literalmente acabava de voltar à vida plena:

— Quando perdemos a mansão e tivemos que nos sujeitar àquela espelunca de segunda, você se mostrou forte e segura, e, para meu espanto, seguiu a meu lado.

Fez uma pequena pausa e continuou:

— Lembro como se fosse hoje. Você era uma quase adolescente, acabara de completar dezenove anos, mas não, você ficou e se mostrou fiel, companheira, digna, um amor de mulher e de pessoa.

— Jurei perante o altar, esqueceu?

— É certo.

— Te amo, meu gatinho!

— Não duvido. Aliás, nunca coloquei essa questão em controvérsia, embora toda a minha família me alertasse que você, na flor da juventude e, tendo em vista a nossa diferença de idade, me poria um belo par de chifres. Afinal, já passei dos sessenta... não sou mais um garotão.

Tampalônia se fechou por inteira num semblante entristecido:

— Jamais o trairia. Nem em pensamentos. E os seus sessenta não me assustam... você ainda dá conta do recado. Me faz ver estrelas em plena noite escura...

— Eu sei...

— Tem um doutorzinho aqui que está dando em cima de mim...

— É mesmo? Quem é ele?

— Um tal de Tribulim Barfar.

— Trampolim?

Risos:

— Não, amor, Tribulim.

— É bonito?

— Não tanto quanto você.

— Já se declarou?

Tampalônia se trancou submissa numa carranca momentânea:

— Nem precisou. Saquei desde a primeira vez em que entrou aqui.

— Sei, sei, mas voltando a nós dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e a partir do instante em que fiquei com todos esses problemas de saúde, você, igualmente, não abandonou a sua posição de me dar força e coragem.

— Na alegria e na dor, na saúde e na doença... eu fiz essa promessa...

— Sabe de uma coisa?

Os olhos da mulher se encheram de lágrimas. Podia se ver estampados neles, a mais pura e sublime presença da magia encantada em toda a sua formosura e obstinação:

— Diga, meu amado...

Baretéu Carcumé cerrou os olhos por alguns breves segundos. Antes de abri-los e depois de soltar alguns traques sonoros fedendo a carniça, concluiu o que lhe ia à mente:

— Conclua o que pretendia dizer, meu lindo. Sou toda ouvidos...

— Seguinte: acho que você, apesar de moça direita e fielmente dedicada, boa esposa e inimitável amante -, sua presença, ao meu lado... não me leve e nem entenda de forma errada o que direi a seguir. Nesse tempo todo em que estive ausente, cheguei à conclusão que o nosso casamento me sufoca. Você me asfixia com um manto negro de grandissíssimo e profundo azar. Por favor, pegue as suas tralhas e desinfete. Não quero nunca mais ver a sua cara. Sem mais perguntas, pé frio das profundas, fora, fora, foraaaaaa...  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 4)

 



Hans Christian Andersen (A Criança e o Túmulo)

 
A casa estava coberta de luto, e nos corações reinava o pesar. O filho menor, um menino de quatro anos, a alegria e a esperança dos pais acabava de expirar.

É certo que ainda ficavam ao casal duas filhas, das quais a mais velha já ia ser confirmada; e que eram ambas meninas excelentes e bem-educadas. Mas o filho que se perde é sempre o mais querido, e além disso aquele era o menor - e um varão! Era uma provocação cruel.

As irmãs estavam tristes; e o desgosto dos pais ainda mais as comovia. O pai sofria grande abalo, mas a mãe, essa, achava-se completamente prostrada pela imensa dor.

Dia e noite tratara a criança doente, cuidara dela, andara com ela nos braços; sentira que aquele filhinho representava uma parte tão grande de si própria! Não podia compreender aquilo - que ele morrera, que ia ser posto num caixão, e repousar no túmulo... Entendia que  Deus não podia tirar-lhe aquele filho e, quando verificou que assim era na verdade, quando não lhe restou mas nenhuma dúvida, disse, na sua dor cruciante:

- Oh! É que Deus não sabe disso! É que ele tem aqui na terra servidores desalmados, que fazem as coisas à sua vontade, e não ouvem as preces de uma mãe!

Na sua grande dor ela se afastou de Deus. Vieram-lhe pensamentos sombrios, os pensamentos da morte, da morte eterna; ideias de que o homem é terra na terra, e que com ele tudo se acaba. E com semelhantes pensamentos, não achava apoio algum, não encontrava nada a que se amparar, e caiu no abismo do desespero.

Nos momentos  mais tristes, já não podia chorar. Não pensava nas meninas, nas filhas que lhe restavam. As lágrimas do marido caíam-lhe na fronte, mas a desditosa mãe nem olhava para ele. Todos os seus pensamentos estavam com o filho morto; todo o seu ser, toda a sua existência não tinha outro objetivo senão evocar as recordações da criança, ressuscitar cada um dos seus inocente ditos infantis.

Chegou a hora do enterro. A mãe passara as noites anteriores sem sono, mas naquela madrugada adormeceu por alguns instantes, dominada pelo cansaço. E foi nesse intervalo que levaram o caixão para uma sala mais distante; preparam-no lá longe, para que ela não ouvisse as marteladas.

Quando acordou, quis ver o menino, mas o marido disse-lhe com voz sufocada pelas lágrimas:

- Já fechamos o caixão: era preciso…

E a mãe, chorando alto, gritou:

- Se Deus se mostra duro comigo, por que haviam os homens de ser diferentes?

Sepultaram a criança. A mãe inconsolável ficou sentada ao lado das filhas; olhava para a porta , mas sem a ver. E seus pensamentos, dali em diante, já não tinham ligação alguma com o lar. Entregava-se à dor, que arrojava de um lado para outro, como as ondas do mar jogam com barco sem leme nem piloto. Passou assim  o dia do enterro, e que se seguiram foram do mesmo  modo cheios de mágoa sombria e pesada.

As filhas e o marido aflito observavam-na, com os olhos úmidos e cheios de tristeza; ela não ouvia as palavras de consolação - se é que alguma consolação lhe podiam oferecer aqueles que também se sentiam tão profundamente abalados.

Ela já não sabia o que era sono; e contudo seria ele, naquela situação, o seu  melhor amigo; mais que qualquer outra coisa poderia revigorar-lhe o corpo e apaziguar-lhe a alma. Persuadiram-na , ainda assim, a recolher-se, e ela ficava deitada, tranquila, como se dormisse.

Certa noite o marido observou-lhe a respiração e ficou persuadido de que ela finalmente encontrara repouso e alívio no sono. De mãos juntas rezou e pegou no sono, um sono profundo e benfazejo. Não viu pois quando a mulher se levantou, vestiu-se e saiu de casa de mansinho; queira ir ao lugar para onde iam, noite e dia, os seus pensamentos - o túmulo que encerrava o seu filho. Atravessou o jardim, depois os campos, tomando o trilho que levava ao cemitério, sem ninguém, a visse. Também ela não teria visto ninguém, porque só tinha olhos para o seu único objetivo.

A noite era esplêndida, cheia de estrelas;  o ar estava ainda suave, pois mal começara o outono.

Ela entrou no cemitério e parou em frente do pequenino túmulo, que parecia um grande ramalhete de flores perfumadas. Sentou-se e curvou a cabeça sobre a sepultura, como se pudesse, através da espessa camada de terra, ver o filhinho , cujo sorriso lhe aparecia tão nitidamente diante dos olhos e cuja expressão carinhosa, até no leito da dor, era inesquecível. E que olhar expressivo era o da criança, quando ela se inclinara, pegando-lhe na mão tão magrinha, que ele próprio já não podia erguer! E assim como sentava antes junto do leito, ficava agora ali  ao pé do seu túmulo.

 - Desejas descer até onde está teu filho? - perguntou uma voz perto dela.

Era uma voz que ressoava clara, profunda, e que lhe chegou até o coração. Ela ergueu os olhos e viu a seu lado uma mulher envolta em um manto preto, com o rosto embuçado num capuz. Por baixo deste conseguiu a mãe ver um rosto grave mas que inspirava confiança.

Os olhos brilhavam, no esplendor da juventude.

- Descer até onde está meu filho? - repetiu ela com voz suplicante e desesperada.

- Atreves-te a seguir-me? Sou a morte.

A mãe fez um gesto afirmativo.

Dir-se-ia que de repente as estrelas, lá nas alturas, tinham adquirido o brilho da lua cheia. Viu a mãe o esplendor das flores variegadas do túmulo, cuja camada de terra ia cedendo brandamente, suavemente, como um pano enfunado pelo vento. E ela ia descendo devagar, enquanto o vulto a cobria com o seu manto negro. Fez-se noite  e a noite da morte. A mãe ia caindo , caindo, penetrando em uma profundidade que a pá do coveiro não alcança. E o cemitério ia formando uma abóbada acima da sua cabeça.

Caiu a aba do manto e ela se  viu em uma sala enorme, vasta e acolhedora. Reinava ali um crepúsculo, mas apareceu-lhe imediatamente o filhinho, que se aconchegou a ela, sorrindo; e havia naquele sorriso tamanha beleza, como jamais lhe vira no rosto. Ela soltou uma exclamação que não foi ouvida, porque soava ao redor dela, ora muito perto, ora muito longe , e de novo perto, uma música magnifica, que ia subindo em um suave crescendo; nunca lhe tinham chegado aos ouvidos sons assim beatíficos! Vinham de trás da espessa cortina negra como a noite, que separava a sala do grande país da Eternidade.

– Mamãe querida, minha mamãe!

Ela ouvia a voz do filho, a voz conhecida e adorada…

E um beijo se seguia a outro beijo, e ela sentia uma felicidade infinita. E a criança apontou para a cortina escura:

- Não há na terra tanta beleza, mãe! Estás vendo? Vês a todos eles, mãe? Ah! Isto é que é felicidade!

Mas a mãe nada via no ponto que a criança lhe mostrava - nada , a não ser a noite sombria. É que via com olhos terrenos, não como a criança que Deus já chamara para si. Também só ouvia a melodia da musica, os sons; não entendia a letra, não ouvia as palavras em que deveria crer.

- Agora posso voar, mãe! Voar com todas as outras crianças alegre, voar para Deus. Eu gostaria tanto de ir... mas se choras assim talvez eu me perca! E eu gostaria tanto de ir! Tu me deixarás voar, não é , mãe? Daqui a pouco te reunirás lá comigo, mãe!

- Fica, oh! fica aqui! Só um instantinho... Quero somente te olhar mais uma vez.

E beijava e acariciava a criança.

Mas ouviu que a chamavam lá de cima; chamavam-na pelo nome, com voz queixosa. Que seria aquilo?

- Estás ouvindo, mãe? É o pai quem te chama.

E instantes depois ela ouviu gemidos; parecia choro de crianças. e o menino disse de novo:

- São as minhas irmãs... Tu não te esqueceste delas, não, mãe?

E a mãe lembrou-se dos que deixara lá em cima. Sentiu em grande pavor. Olhou para a sala, onde passavam sempre vultos e mais vultos, voando. Pareceu-lhe que  conhecia alguns  dos  que andavam pela sala da Morte, em busca da cortina negra, por detrás da qual desapareciam. Iriam também passar por ali o marido e as filhas? Não isso não: seus chamados e seus suspiros vinham de cima. De repente disse o menino:

- Mãe! Mãe! Agora repicando os sinos do Céu... Está nascendo o sol!

E derramou-se sobre a criança uma luz arrebatadora. A mãe sentia que ia subindo... De repente sentiu frio. Levantou  a cabeça e viu que estava deitada no cemitério, sobre a sepultura do filho.

Mas naquele sonho Deus iluminara o seu entendimento. A mãe dobrou os joelhos e rezou:

- Ó Senhor, meu Deus, perdoa-me ter desejado deter uma alma eterna na sua viagem! Perdoa-me ter esquecido dos meus deveres para com os vivos, que me deste nesta Terra!

E depois dessas palavras seu coração ficou aliviado. Surgiu o sol. Um passarinho cantava acima da sua cabeça, e os sinos da igreja repicavam, anunciando o oficio de manhã. Tudo o que a cercava se tornou sagrado para o seu coração. Agora conhecia o seu Deus,  conhecia os seus deveres e, cheia de saudade, correu para casa. Curvou-se sobre o marido, que ainda dormia. seu beijo ardente e cheio de fervor acordou-o. Dos lábios do casal brotaram palavras vindas do íntimo do coração. Ela era agora forte e meiga, como  a mais meiga das esposas. Vinha dela uma fonte de consolação:

- Deus faz tudo sempre pelo melhor!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1859.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LII

“PAIRA NO AMBÍGUO DESTINAR-SE”    

Paira no ambíguo destinar-se 
Entre longínquos precipícios, 
A ânsia de dar-se preste a dar-se 
Na sombra vaga entre suplícios,

Roda dolente do parar-se 
Para, velados sacrifícios, 
Não ter terraços sobre errar-se 
Nem ilusões com interstícios,

Tudo velado, e o ócio a ter-se 
De leque em leque, a aragem fina 
Com consciência de perder-se... 

Tamanha a flama e pequenina 
Pensar na mágoa japonesa 
Que ilude as sortes da Certeza. 
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“PAISAGENS, QUERO-AS COMIGO”

Paisagens, quero-as comigo.
Paisagens, quadros que são...
Ondular louro do trigo,
Faróis de sóis que sigo,
Céu mau, juncos, solidão...

Umas pela mão de Deus,
Outras pelas mãos das fadas,
Outras por acasos meus,
Outras por lembranças dadas...

Paisagens... Recordações, 
Porque até o que se vê 
Com primeiras impressões 
Algures foi o que é, 
No ciclo das sensações. 

Paisagens... Enfim, o teor 
Da que está aqui é a rua 
Onde ao sol bom do torpor 
Que na alma se me insinua 
Não vejo nada melhor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

“PÁLIDA, A LUA PERMANECE”

Pálida, a Lua permanece
No céu que o Sol vai invadir.
Ah, nada interessante esquece.
Saber, pensar - tudo é existir.

Mas pudesse o meu coração
Saber à tona do que eu sou
Que existe sempre a sensação
Ainda quando ela acabou…
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“PÁLIDA SOMBRA ESVOAÇA”

Pálida sombra esvoaça
Como só fingindo ser
Por entre o vento que passa
E altas nuvens a correr.

Mal se sabe se existiu,
Se foi erro tê-la visto,
Sombra de sombra fluiu
Entre tudo de onde disto.

Nem me resta uma memória.
É como se alguém confuso
Se não lembrasse da história.
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“PARECE ÀS VEZES QUE DESPERTO”

Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?

A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?

Entendo, como um carrossel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)
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“O PESO DE HAVER O MUNDO”

Passa no sopro da aragem 
Que um momento o levantou 
Um vago anseio de viagem 
Que o coração me toldou. 

Será que em seu movimento 
A brisa lembre a partida, 
Ou que a largueza do vento 
Lembre o ar livre da ida? 

Não sei, mas subitamente 
Sinto a tristeza de estar 
O sonho triste que há rente 
Entre sonhar e sonhar.
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“PASSAVA EU NA ESTRADA PENSANDO IMPRECISO”

Passava eu na estrada pensando impreciso, 
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso 
Agradou-lhe a cara toda.

Bem sei, bem sei, sorrirá assim 
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim... 
Que mais posso eu querer?

Não sou nesta vida nem eu nem ninguém, 
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém 
Ainda que por acaso.

Fonte:
Poesias em Domínio Público

Lima Barreto (As teorias do dr. Caruru)

O sábio dr. Caruru da Fonseca despertou naquele dia com o humor igual com que despertava em todos os outros.

Mme. Caruru ainda ficou na cama, muito certa de que a Inácia daria o café ao seu ilustre marido. Era este uma sumidade em matéria de psiquiatria, criminologia, medicina legal e outras coisas divertidas.

Tinha, na nossa democracia, por ser sumidade e doutor, direito a exercer quatro empregos.

Era lente da Escola de Medicina, era chefe do Gabinete Médico da Polícia, era subdiretor do Manicômio Nacional e também inspetor da Higiene Pública.

Caruru tinha mesmo publicado várias obras, entre as quais se destacava Os caracteres somáticos da degenerescência (segundo o qual características físicas seriam estigmas demarcados de degenerescência física e moral) — livro que fora muito gabado pelo estilo saborosamente clássico. Um crítico disse:

O milagre que, no seu livro, conseguiu o dr. Caruru obter, foi exprimir ideias e concepções modernas com a sã e enérgica linguagem dos quinhentistas e mesmo dos seus antecessores. Seguiu, portanto, André Chénier, que desejava fazer poesias modernas com versos antigos. Cito de memória. Não há como louvar etc.

Caruru, como esperava a sua dorminhoca mulher, foi logo servido do café pela dedicada Inácia e não tardou que lhe viessem os jornais.

Leu o primeiro que lhe caiu sob os olhos e quase teve um ataque quando deu com um “controlava”.

— Que gente! — disse de si para si. — Estão a esbodegar esta maravilhosa língua.

Apanhou outro, desprezou a parte política e correu ao noticiário policial. Deparou-se-lhe a seguinte notícia:

Ontem, ao atravessar a avenida Central, foi acometido de um ataque o pintor Francisco Murga, morrendo repentinamente. Murga, que era ainda moço, pois contava pouco mais de trinta anos, estreou-se com grande brilho há uns dez anos passados, tendo obtido o prêmio de viagem* e tudo fazia crer que ele continuaria a dar-nos obras-primas, ou quase isso, como foi o seu primeiro quadro, O banzo. Entretanto, tendo se entregado à mais desordenada boemia, tal não fez, embora não deixasse sempre de produzir etc. etc.

O dr. Caruru exultou. Que caso! Devia ser um exemplar típico de dipsomaníaco, de degenerado superior e ele, o doutor, como chefe do Gabinete da Polícia, ia ter o seu cadáver às ordens, para bem verificar as suas teorias mais ou menos à Lavater ou Gall.** A diferença entre ele e estes dois últimos é que Caruru encontrava seguros indícios do caráter, da inteligência etc. dos indivíduos em todas as partes do corpo.

O doutor pediu mais uma xícara de café e não se pôde conter:

— Gertrudes! — gritou para a mulher. — Tenho hoje um caso excelente. 

A mulher apareceu em trajes matinais e ele narrou toda a sua alegria. Caruru vestiu-se e correu à faculdade. Aos primeiros estudantes que lá apareceram, Caruru os convidou para irem ao necrotério verificar a certeza das asserções que fazia no seu célebre livro, escrito no estilo de Rui de Pina*** e, por pouco, que não o era no da Notícia de partição. Foram estudantes de medicina, de farmácia, de dentista e até uma dama que estudava para parteira.

Chegado que foi ao necrotério, o dr. Caruru armou-se de uma bateria de compassos graduados, de uma porção de réguas, de todo um arsenal de instrumentos de antropométrica e começou a preleção diante do cadáver:

— Meus senhores. Estamos certamente diante de um caso típico de degenerado...

A sua linguagem falada era diferente da escrita. Ele escrevia clássico ou pré-clássico, mas falava como qualquer um de nós.

— O indivíduo que está aqui, bêbedo incorrigível, vagabundo, incapaz de afeições, de dedicações, vai demonstrar com as injeções que lhe vou fazer, a verdade das minhas teorias. Vejamos os pés...

Caruru armou-se de uma das tais réguas, enquanto um servente chorava.

Aplicou-a aos pés do defunto e, pouco depois, exclamou triunfante:

— Vejam só! O pé direito mede quase mais um centímetro que o esquerdo. Não é o que eu dizia? É um degenerado! Essa assimetria dos pés...

O servente que chorava interrompeu-o:

— Vossa Excelência só por causa dos pés do senhor Murga não pode dizer isto. Ele não nasceu assim.

— Como foi então?

— Fui seu amigo e devo-lhe muitos favores. Eu conto a Vossa Excelência...

“Seu” Murga teve um tumor no pé direito e foi obrigado a andar com chinelo num pé, durante cerca de dois meses, enquanto o esquerdo estava calçado. Naturalmente aquele aumentou enquanto o outro ficava parado. Foi por isso.
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Notas:
*Prêmio concedido a artistas da Academia que lhes permitia viajar à França ou à Itália para aprimorar a formação. O prêmio foi instituído durante o Segundo Reinado.

**Joahann Kaspas Lavater (1741-1801) foi um teólogo e filósofo suíço e Franz Joseph Gall (1758-1828), um médico e anatomista alemão.

***Rui de Pina (1440-1522) foi cronista oficial de d. João II.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Publicado originalmente em 1915.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Alba Christina Campos Netto (Ricardo voltou)

Não esperava mais que Ricardo voltasse. Ricardo que preencheu tantas horas da minha vazia meninice, brincando comigo, me fazendo rir, me contando histórias, enquanto eu, inocente e sem perspectiva, ouvia a vitrola, ou me imaginava estrela de cinema. Ricardo sempre perto, embalando os meus sonhos, contando casos, me levando doces. E eu, por meu lado, na minha inocência útil, fazendo com que Ricardo encontrasse o seu amor ao lado da namorada que era minha vizinha. Era por ela que Ricardo vinha à minha casa. Não por mim. Não por minha solidão. Por ela. Por Marieta.

Ele trazia a irmã, a Lúcia, para ficar comigo enquanto ele e a Marieta namoravam. Era belo ...Eu achava lindo. Os dois juntinhos, eu e a Lúcia observando. Mas não deu certo. Brigaram. Marieta foi embora de nossas vidas.

Mas como tudo tem ciclos, um dia Ricardo apareceu com nova namorada. Irmã da minha amiga, a Joyce. Achei mais lindo ainda. Só que o que eu não sabia, era por que eu achava tudo lindo. No fundo eu amava Ricardo. E amava tanto que começava a amar as mulheres que ele amava.

E essa agora, como era mesmo o nome? Irene, se não me engano. Não lembro, nem quero lembrar. Fui até assistir ao casamento dele. Era um amor bonito, puro, segundo a Joyce. Mas eu não sei porque, Ricardo começou a se fixar no meu pensamento. Não sabia na época, pelo menos.

Acompanhava todos os passos da Joyce, das irmãs dela, da Irene, mas o que eu queria mesmo era saber do Ricardo - O seu sorriso, os seus olhos, a maneira de me tratar, quando me encontrava, tinha sempre uma palavra de carinho: aquela menina que ele conheceu pequena, que era para ele uma irmãzinha. Eu adorava, sem saber que, no fundo, eu não estava nem um pouco a fim de ser irmãzinha...

Os tempos passaram. Lá se vão uns quarenta anos. E agora Ricardo voltou. Teve aventuras, teve dissabores, não está mais com a Irene, que se transformou na Mabel, que não era nem um pouco parecida com a Marieta, e que não tinham nada a ver comigo.

Não pensei que Ricardo voltasse. Nem tampouco que voltasse com tanta impetuosidade sobre o meu sonho, sobre a minha emoção. Foi como um sonho. Um dia acordei e vi Ricardo ao meu lado. Não saiu do meu lado o dia todo. Fiquei menina de novo, rejuvenesci, amei Ricardo na minha imaginação. Pensei que desta vez ele ficaria. Não... não podia. É tarde. Era melhor que fosse embora. Era melhor esquecer. Mas como? Pensar noutra coisa, noutros Ricardos? Não foi possível. Ele quis ficar.

Deixei. Consenti. Sonhei de novo. Sonhei com ele junto a mim, me amando como agora eu sei que gostaria que ele me amasse. Deixei que ele tomasse conta dos meus dias, dos meus pensamentos, dos meus sonhos, das minhas fantasias. Fiquei horas ao lado dele sonhando, esperando.

Só então soube que ele procurava a Ângela. Ângela, era esse o nome. E chamei Ângela. Mais uma vez eu fui a ponte para o amor de Ricardo. Não era mais a menininha que ele tratava como irmã, não era mais a amiga da irmã, não era, nem mesmo fui, a namorada, a amante, a mulher que ele procurava. Eu era o caminho para que ele se encontrasse. E levei Ricardo até Ângela. Fiz o encontro dos dois, deixei que se amassem, que se unissem, que não se separassem.

Fiquei com eles vários dias, até ter certeza de que realmente Ricardo tinha encontrado a mulher de sua vida.

Nunca mais, Ricardo, nunca mais me procure. Sei que não sou para você, que você não é para mim. Você foi somente a minha fantasia, o meu amor imaginário, a segurança de uma época triste e solitária, quando ninguém, mas ninguém mais além de você, podia casar com os meus pensamentos. Seja feliz. Sejam felizes. Ângela, adoro você que encontrou Ricardo num momento certo, num momento bom para ele, para você, para mim. Deixe que a vida faça vocês dois um exemplo de felicidade e amor para quem quer que os veja, como estão sendo para mim.

Às vezes me sinto em Ângela, às vezes me imagino com Ricardo como se fosse Ângela, ou Ângela fosse eu. Assim me recupero um pouco das frustrações que a vida me trouxe. Mas sei que amanhã, que daqui uns dias, quando não mais estiver com a garganta me apertando tanto, vou poder falar, cantar, dizer a todos que estou muito feliz. Cheguei a meu destino. Ricardo voltou. E eu dei a ele um destino que não era, de nenhum modo, o meu.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.