sexta-feira, 14 de abril de 2023

Irmãos Grimm (O Senhor Compadre)


Um homem pobre tinha tantos filhos que ele já tinha pedido a todo mundo para ser padrinho de seus filhos, e quando mais uma criança havia nascido, não restava ninguém a quem ele pudesse convidar. Ele não sabia o que fazer e, todo confuso, foi se deitar e caiu no sono. Então, ele sonhou que ele tinha que sair na rua e pedir para a primeira pessoa que ele encontrasse para ser o padrinho.

Quando ele acordou, ele decidiu fazer o que o sonho mandava, e saiu para a rua, e pediu para a primeira pessoa que apareceu para ele para ser seu compadre. 

O estranho lhe presenteou com um pequeno copo d’água, e disse, "Esta é uma água maravilhosa, com ela você poderá curar os doentes, você deverá apenas observar onde a Morte vai ficar. Se ela ficar perto da cabeceira do paciente, ofereça ao paciente um pouco de água e ele ficará curado, mas se a Morte ficar aos pés do paciente, todo esforço será em vão, porque a pessoa doente com certeza irá morrer." 

Desse dia em diante, o homem sempre conseguia dizer se um paciente poderia ser salvo ou não, e se tornou famoso com essa sua habilidade, e ganhou muito dinheiro com isso.

Uma vez ele foi chamado para ver a filha do rei, e quando ele entrou, ele viu que a Morte estava na cabeceira da criança e portanto, a curou com a água, e ele fez a mesma coisa uma segunda vez, mas na terceira vez a Morte estava aos pés da criança e então ele sabia que a criança estava destinada a morrer.

Certa vez esse homem pensou em visitar o compadre, para lhe falar sobre o sucesso que ele tinha conseguido com a água. Mas quando ele entrou na casa, era um lugar tão esquisito! No primeiro lance de escadas, a vassoura e a pá estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente. 

Então, ele perguntou a elas, "Onde é que mora o compadre?" 

A vassoura respondeu, "Um lance de escadas acima." 

Quando ele chegou no segundo lance, ele viu um amontoado de dedos de mortos no chão. E perguntou, "Onde é que mora o compadre?" 

Um dos dedos respondeu, "Um lance de escadas mais alto." 

No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta, que também indicaram para ele um lance acima.

No quarto lance de escadas, ele viu peixes no fogo, onde eles próprios eram fritos e cozidos nas panelas. Eles também disseram, "Um lance de escada acima." 

E quando ele tinha subido o quinto lance, ele chegou na porta de um cômodo e deu uma espiada pelo buraco da chave, e lá ele viu o compadre que tinha um par de longos chifres. Quando ele abriu a porta e entrou, o compadre deitou na cama todo apressado e se cobriu. Então, o homem disse, "Senhor compadre, que estranhos moradores você tem aqui! Quando eu cheguei no seu primeiro lance de escadas, a pá e a vassoura estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente."

"Como você é tolo!" disse o compadre. "Eles eram o garoto e a criada que estavam conversando." 

"Mas no segundo lance eu vi dedos de gente morta caídos no chão." 

"Oh, como você é doido! Eram algumas raizes de scorzonera." 

"No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta." 

"Seu bobo, eram apenas repolhos." 

"E no quarto lance, eu vi peixes na panela, que estavam assobiando e assavam a si próprios." Quando ele disse isso, os peixes vieram e começaram a se servir. "E quando eu cheguei no quinto lance de escadas, eu dei uma espiada pelo buraco da fechadura, e então, meu compadre, eu vi o senhor, e o senhor tinha chifres muito longos." 

"Oh, isso é mentira!" 

O homem ficou tão assustado, que saiu correndo, e se não tivesse fugido, quem sabe o que o compadre teria feito com ele.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. 
Conto em Domínio Público.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Humberto de Campos (Apólogo sertanejo)

Viúvo da Razão, que havia morrido no hospício, abandonou o coração, um dia, a sua fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral, em sua companhia, afim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas. Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens - o Amor, o Pudor e o Orgulho, e seis mulheres - a Fé, a Esperança, a Amizade, a Coragem, a Caridade e a Hipocrisia.

Chefe de família descuidado, o Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar solidamente as portas da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e rigorosa. Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas, gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa liberalidade paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de casa, atentando contra os bons costumes, com grande escândalo do ancião, que nunca pensara, em sua vida, em semelhante vergonha para sua velhice.

Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o velho remediar o mal, regressando, com a família, para as suas propriedades, no alto sertão. E na hora da partida, reuniu os filhos, chamando-os, um por um:

- Esperança?

- Pronto! - respondeu a moça.

- Coragem?

- Presente!

- Amor?

- Presente!

E assim chamou, obtendo resposta, e metendo-os no trem, a Fé, a Amizade, a Caridade e o Pudor. Chegada, porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:

- Orgulho?

Ninguém respondeu.

- Hipocrisia?

O mesmo silêncio. Aflito, o pobre pai procurou-os em torno, chamando-os aos gritos. E foi debalde. Nesse instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião correu, e tomou o carro.

Momentos depois o trem partia, levando para o interior do país a Esperança, a Amizade, o Amor, a Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade, apenas, o Orgulho e a Hipocrisia.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Márcia Jaber (Canteiro de Trovas)


A Virgem de Nazaré,
faz, o Anjo , a Anunciação
e o Seu ser pleno de fé
traz ao mundo a Redenção.
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Bebe a dose da saideira,
não joga nada no canto...
Rolou pela ribanceira
e pôs a culpa no santo.
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Com muito orgulho, a gordinha,
diz, ao medir a cintura,
não estar fora da linha,
o que sobra é gostosura.
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É de Deus, o Filho eleito
e no amor que Lhe permeia,
empatia, em Seu conceito,
é doar- se à dor alheia.
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Em silêncio, busco o amparo
da prece muda do ser,
para as dores, que não raro,
pastoreiam meu viver.
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Frente à fome e adversidade,
atormentadas, as mães,
fazem, com criatividade
os seus milagres dos pães.
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Gentil, tua mão inclina
ao irmão fraco e doente:
empatia é luz Divina
brilhando dentro da gente.
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Lembrança, terna memória
da vida que segue em frente,
passou no rumo da história
mas vive dentro da gente.
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Lute contra o gesto vil
de quem, na conduta emana
o seu preconceito hostil
contra a diferença humana.
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Minha tapera, a viola
e essa morena querida,
é tudo que mais consola
um seresteiro na vida.
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Mundo hodierno, sem afeto,
de mil prédios e espigões...
Nesta selva de concreto,
proliferam solidões.
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Na sombra do preconceito,
se esconde a mediocridade
de quem, sem nenhum respeito,
nega ao irmão a igualdade.
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O batom no colarinho
selou sentença fatal:
na gaiola, o passarinho,
de castigo até o Natal!
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O coração, triste poeta,
compõe quimeras sutis,
deixando- me a vida inquieta
com sonhos que eu não refiz.
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Por mais que o mundo procure
e se esforce a ciência,
não há vacina que cure
a inveja e a maledicência.
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Pura humildade há nos gestos
de quem, dentre a luta e a dor,
vive de sobras e restos
sem perder a luz do amor.
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Só lembranças na memória
de passados tão presentes...
E a saudade é uma notória
romaria dos ausentes.
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Sou refém da pandemia,
em casa, trancafiado
e até virei, quem diria,
um marido apaixonado!
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Terno e puro em seu clamor,
ele sempre impõe respeito,
pois que, não cabe no amor
modo algum de preconceito.
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Vive a vida sem viver
quem, covarde der guarida
ao medo de se atrever
nos desafios da vida.
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Você diz não me querer,
que já sou caso passado,
porém, não pode me ver,
me beija qual namorado.

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Enviado por Lucília A. T. Decarli

Machado de Assis (O contrato)

Quem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo Comendador Brás, capitalista.
 
Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de frequência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra?
 
— Vamos fazer um contrato?
 
— Que é?
 
— Mas diga se você quer...
 
— Mas se eu não sei o que é?
 
— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Valeu! Nem você casa primeiro nem eu, mas há de ser no mesmo dia.
 
— Justamente.
 
Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo, mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso.
 
Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das coisas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de coisas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.
 
Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele.
 
— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma coisa...
 
— Com o Caetano?
 
— Qual Caetano!
 
— Outro?
 
— Outro, sim, senhora.
 
— Ingrata! Mas você não me disse nada?
 
— Como, se é fresquinho de ontem?
 
— Quem é?
 
Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra coisa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente:
 
— Muito bem.
 
— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Justamente, murmurou Josefa.
 
A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dois olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe, — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.
 
Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco.
 
— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.
 
— Uma coisa.
 
Sabemos o que era a coisa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:
 
— Você apresse-se...
 
Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinquenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou coisa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma coisa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição.
 
— Havemos de ser dois casais...
 
— Acaba: dois casais lindos.
 
— Eu ia dizer lindíssimos.
 
E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, coisa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.

Fonte:
Publicado originalmente em Estação, em 29/02/1884. 
Disponível em domínio público

Revista Florilégio de Trovas n. 37 - abril de 2023


Em suas 54 páginas:

- Homenagem à maringaense Eliana Palma e ao médico falecido em Curitiba, Maurício Friedrich, presidente da UBT Estadual do PR;;

- Trovas sem fronteiras, são mais de 100 trovas de todos os recantos.

- Trovas temáticas sobre "Sonhos";

- Mais alguns alvitres do prof. Renato Alves (Rio de Janeiro/RJ);

- Trovas humorísticas, de Izo Goldman+;

- Assis (Maringá/PR) nos brinda com seu artigo "Tesouro Desconhecido";

- Gonzaga da Silva (Natal/RN) com Trova e Cidadania, abordando o Trabalho em trovas;

- 10 Concursos de Trovas com inscrições abertas.

ATENÇÃO: A revista foi enviada por email aos meus contatos. Caso não tenha na pasta principal,  verifique na pasta de spam (lixo eletrônico). Mas se não encontrar, faça o download da revista do Google Drive em:


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Adega de Versos 103: (Dorothy J. Moretti): Enlevo

 

Cláudio de Cápua (Conto Folclórico)


Existiu, na Zona da Mata, a uns 10 quilômetros da "Vila de Butucanhanha", Minas Gerais, uma mina de ouro.

Há muitos e muitos anos, nas proximidades da mina, a pitar seu cigarro de fumo de rolo, enrolado em palha, Juca Monteiro descansava, debaixo da sombra amiga de uma mangueira, carregada de frutos. De repente, surgiu, em meio a um redemoinho de vento, como se fosse por um toque de mágica, a figura de um guri negro. Sem roupas, trazia na cabeça um gorro vermelho, e, na boca, um cachimbo.

O garoto, com voz muito convincente, foi logo dizendo: - Oi, amigo, não tenha medo, meu nome é Saci, e tenho poderes mágicos. Se me deres de comer, de beber, e de dormir, poderei te dar, em troca, muita sorte!

Cativo e temeroso, dos poderes sobrenaturais do negrinho, o humilde garimpeiro, prometeu tudo fazer pelo moleque.

A verdade é que, por causa do Saci, ou pelo que fosse, o garimpeiro começou a ter muita sorte na coleta do precioso metal. Foi enriquecendo, rapidamente, fato que passou a causar inveja, aos companheiros de trabalho.

Foi-se o tempo, e a mulher do Juca Monteiro, que sempre tivera boa saúde, adoeceu.

Logo depois, o garimpeiro perdia a esposa, o pai e o único filho. Juca, embora estivesse materialmente bem, moral e espiritualmente, estava muito mal.

Foi quando, seus invejosos companheiros de trabalho, calculadamente, sugeriram que ele procurasse a curandeira, da vila, Nhá Zita.

- Caro Juca, você perdeu filho, mulher e pai. Agora, está só. E, a culpa de todas estas desgraças, cabe a esse negrinho, que lhe apareceu, de forma tão misteriosa. Você tem que matá-lo! disse-lhe a tal curandeira.

O garimpeiro, muito confuso, acabou pedindo ajuda aos companheiros.

Foram eles, mais o Juca, armados de faca e foice, à procura do moleque, e o encontraram, muito sossegado, sob a sombra, de uma goiabeira, a pitar seu cachimbo de barro.

Atacado de surpresa, foi ele atingido, por um golpe de foice, tendo a perna decepada, à altura da virilha. Contudo, por incrível que pareça, saiu o negrinho, saltitante, em louca disparada, numa perna só.

Ante o acontecido, todos ficaram apavorados, fugindo para suas casas. Restou, sozinho, o garimpeiro.

Já bem distante, e sem perigo, o moleque parou, gritando para o Juca.

- É assim, seu Juca, que paga com o mal, todo o bem que lhe fiz?! Por ter acreditado na mentira, e ter me agredido, me causando grande dano, vai perder tudo o que tem. Mas, como sei que foi enganado, por Nhá Zita, e seus companheiros, só por inveja do seu sucesso no trabalho, tem direito a uma nova chance.

- Foram eles que envenenaram, aos poucos, sua família, dizendo ser eu o culpado. Você, ingenuamente, acreditou!

E é por isso, que lhe darei mais uma oportunidade. Só mais uma. Você poderá ser, novamente, rico e feliz, se for à procura de minha perna decepada. Caso a encontre, atravesse a fronteira, em direção à Bahia, e enterre minha perna a sete palmos de profundidade, em solo baiano.

Juca Monteiro, saiu em busca da perna do negrinho, cortada pelo golpe de foice. Não tardou em encontrá-la, cumprindo o que prometera ao moleque.

Em terras baianas, enterrou a perna. E para seu espanto, viu jorrar, daquele exato lugar, um líquido grosso, oleoso e escuro.

Desse dia em diante, Juca Monteiro, ficou rico, muito rico! Único dono, de um grande poço de petróleo! E o Saci, moleque encantado das lendas brasileiras, continuou a fazer inúmeras diabruras e brincadeiras, com seu barrete vermelho e cachimbo de barro, numa perna só…

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) XII


Antes que vosso amor meu peito vença

Soror Violante do Céu in "Cem Sonetos Portugueses", p. 31

Antes que vosso amor meu peito vença
Eu me entrego ao exército inimigo
Desse olhar que me traz em grande perigo
De eu mesma já não ser de mim pertença.

É uma peleja a vossa benquerença
Mesmo sem espada a que haveis comigo
E antes que, por derrota, ache castigo
A minha mão vos dou, em recompensa.

Madrigais foram armas da batalha
Insistindo fenderam a muralha
Onde eu guardava a minha castidade.

A vós se rende, alegre, o coração
Fazei dos vossos braços a prisão
Onde eu, feliz, me sinta em liberdade.
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Em cada rosa o espinho que encontrei
Manuel Cardoso in "Antologia Poética, Tertúlia Hélice, 10." Aniversário", p. 53

Em cada rosa o espinho que encontrei
É renúncia a que a vida me obrigou
Pão da alma que às vezes me faltou
Trono vazio onde eu quis ser um rei.

Maldigo esse contrato que assinei
Em que a fortuna tanto me lesou
E não cumpriu comigo o que acordou
Em troca do futuro que eu lhe dei.

Deponho contra ela em tanta queixa
Que eu não entendo por que não me deixa
Entregue a mim, perdido no caminho.

Prefiro a viuvez da fresca fonte
Ou sozinho viver num alto monte
E a gemer, sempre ao vento, ser moinho.
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Tão leve estou que já nem sombra tenho
Mário Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 48

Tão leve estou que já nem sombra tenho
Como nuvem que passe transparente
No céu dos dias onde é sempre ausente
A cor forte do velho e nobre estanho.

Sou como o traço fino de um desenho
Magro e sumido, um corpo em seu poente
Que viva da palavra e se alimente
Do verso que estiver de bom tamanho.

Tão leve, qualquer dia eu me evaporo
Deste corpo onde quase já não moro
Por castigo ou capricho do destino.

Mas por graça da suma divindade
Subirei através da claridade:
Vou ser eternamente e só menino!
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Uma vez um anjo apaixonou-se
Manuel Antonio Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 52

Uma vez um lindo anjo apaixonou-se
Ao fim de tantas viagens siderais
Por essa estrela que brilhava mais
E tinha a luz mais forte, quente e doce.

A vida rotineira alvoroçou-se
Começou a sofrer como os mortais
E nas vivas palpitações carnais
A sua alma errou e enredou-se.

Mas no reino sem fim desses espaços
Não se permitem beijos nem abraços
Entre vidas, assim, tão diferentes.

Recusando esse amor sem união
À beira do vazio dão a mão
E no céu fazem dois traços cadentes...
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Um salgueiro que espiava sobre o rio
Mario Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 50

Um salgueiro que espiava sobre o rio
Viu passar meu barquinho de papel
De lágrimas tão cheio, mas de mel
E de sonhos seguia tão vazio.

Sentiu nesse momento um arrepio
Vendo que a dor ao leme do batel
Tinha traçado rugas a cinzel
No rosto refletido no baixio.

Fiquei parado à beira do destino
E vi que a brincadeira de menino
Não poderia mais ser repetida.

Mata-me o que de mim já me roubou
A vida que ao passar me transformou
Na barca que nas águas vai perdida.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.

Silmar Böhrer (O Novo Iluminismo, de Steven Pinker)

A Companhia das Letras lançou no Brasil o livro O NOVO ILUMINISMO, do psicólogo Steven Pinker, cientista do conhecimento, professor em Harvard.  Nestes tempos conturbados em que vivemos é interessante sabermos das ideias do pensador, pouco conhecido entre nós.

Com uma original avaliação da condição humana no terceiro milênio, o cientista cognitivo nos incita a rechaçar manchetes alarmistas e profecias apocalípticas que vicejam nos dias atuais e influenciam nossa visão de mundo.

Pinker demonstra que a vida, a prosperidade, a saúde, a segurança, a paz, o conhecimento e a felicidade estão em ascenção, não apenas no Ocidente, mas em todo o mundo.

Para o cientista das ideias, esse progresso é uma herança do Iluminismo  -  a convicção de que a razão e a ciência podem impulsionar  o florescimento humano  -   e mais do que nunca, elas precisam de uma defesa vigorosa.

E escreve o autor: "Nadando contra as correntes da natureza humana, exploradas por demagogos  -  tribalismo, autoritarismo, demonização, pensamento mágico  -, o projeto iluminista é atacado por religiosos, políticos e intelectuais que insistem que a civilização ocidental passa por um inexorável processo de declínio.

Gráficos e planilhas no livro expõem os dados.  Eles indicam que com o avanço do conhecimento, as pessoas estão de fato vivendo mais e melhor.  Sem negar que nossos tempos são atribulados, não hesito em apontar o caminho para as soluções:  reforçar o ideal iluminista de usar a razão e a ciência para resolver problemas".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Coração de vidro)

 BARETÉU CARCUMÉ estava em coma há exatos oito meses. Nesse tempo, a mulher dele, uma beldade, a Tampalônia, um pedaço de mau caminho de dar água em boca de defunto, recém entrada na casa dos vinte e cinco anos, extremamente honesta e dedicada, praticamente se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara, colada à cabeceira do moribundo, dia e noite. Não arredava pé nem para as refeições.

Amava o marido de verdade. Nutria por ele um amor sem limites, incondicional, sentimento hoje em dia bastante escasso e até difícil de encontrar na maioria dos casais. Belo dia, Baretéu Carcumé resolveu voltar à vida e, como num passe de mágica, pimba, acordou. A primeira coisa que fez foi um sinal para que a enfermeira mandasse chamar a sua mulher, no que foi prontamente atendido.

Havia, no hospital, um tal de doutor Tribulim Barfar, médico da equipe de plantão que, desde o ingresso de Baretéu na unidade, não saia de perto do sujeito. Com aquela história de monitorar o paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro, onde atendia as emergências só para desfrutar momentos de agradável prazer ao lado da graciosa cara metade que parecia ter caído do céu.

Embora tivesse o compromisso ético de salvar vidas, Tribulim Barfar passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os quintos e deixasse o caminho livre. Única forma de atacar a bela presa em nome da tristeza que sentiria pela perda do ente querido, bem ainda apresentar as condolências à enlutada e, de lambuja, doar seu ombro amigo à viúva desprotegida e frágil. Porém, com o retorno inesperado do sujeito ao mundo dos vivos, o doutor Tribulim pressentiu que suas chances de dar o bote no docinho de coco caiam por terra.

Todavia, se manteria em sua posição, decidido a ir em frente e conquistar aquela fêmea maravilhosa, custasse o que custasse. Não desistiria, jamais. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada no quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Baretéu para o coma. Tampalônia, ao saber pela enfermeira que o marido voltara, tomou um banho, se perfumou, botou uma sainha bem curta, como ele gostava, e se aproximou, sorridente, o rosto banhado em felicidade.

Sua alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta, que alguma coisa solta no ar a tornava mais elegante e pecaminosamente altaneira e garbosa, embora por dentro o coraçãozinho tão jovem estivesse cheio de dor:

— Meu amor, graças a Deus. Pedi tanto a Nossa Senhora Aparecida. Ela ouviu as minhas preces...

Baretéu soltou um longo suspiro e balbuciou, meio que desacorçoado:

— Em compensação houve rejeição às minhas...

— Não entendi, meu bem. Seja mais explícito.

No que falava, a mulher se sentou na cama e abraçou o marido com carinho e ternura:

— Engraçado. – lembrou ele. – Durante todos esses anos você esteve a meu lado...

— E sempre estarei...

— Quando minha empresa faliu, um mês depois que nos conhecemos...

—... Não foi culpa sua. Seu sócio te roubou.

— Não importa. Lembra?

— Sim, amor!

— Só você ficou e me apoiou.

— E sempre o farei, meu príncipe.

Antes de prosseguir Baretéu fechou os olhos e ficou algum tempo calado, como se procurasse recobrar as forças:

— Na época que me prenderam por não pagar a pensão à minha ex-mulher, você também estava comigo e me levantou a moral.

— Fiz das tripas coração para que não lhe faltasse nada na cadeia.

— É verdade. E olhe só: foram setenta e oito dias...

— Setenta e oito? Nunca me passou pela cabeça anotar o tempo. Agora, meu amado, esquece desses problemas.  Vamos falar de sua saúde, da sua recuperação. Olhe em volta. Você está vivo. Isso importa.

Baretéu, contudo, não parecia disposto a abandonar aquele assunto relativamente chato, sendo discutido, inclusive, numa hora tão imprópria. Ele literalmente acabava de voltar à vida plena:

— Quando perdemos a mansão e tivemos que nos sujeitar àquela espelunca de segunda, você se mostrou forte e segura, e, para meu espanto, seguiu a meu lado.

Fez uma pequena pausa e continuou:

— Lembro como se fosse hoje. Você era uma quase adolescente, acabara de completar dezenove anos, mas não, você ficou e se mostrou fiel, companheira, digna, um amor de mulher e de pessoa.

— Jurei perante o altar, esqueceu?

— É certo.

— Te amo, meu gatinho!

— Não duvido. Aliás, nunca coloquei essa questão em controvérsia, embora toda a minha família me alertasse que você, na flor da juventude e, tendo em vista a nossa diferença de idade, me poria um belo par de chifres. Afinal, já passei dos sessenta... não sou mais um garotão.

Tampalônia se fechou por inteira num semblante entristecido:

— Jamais o trairia. Nem em pensamentos. E os seus sessenta não me assustam... você ainda dá conta do recado. Me faz ver estrelas em plena noite escura...

— Eu sei...

— Tem um doutorzinho aqui que está dando em cima de mim...

— É mesmo? Quem é ele?

— Um tal de Tribulim Barfar.

— Trampolim?

Risos:

— Não, amor, Tribulim.

— É bonito?

— Não tanto quanto você.

— Já se declarou?

Tampalônia se trancou submissa numa carranca momentânea:

— Nem precisou. Saquei desde a primeira vez em que entrou aqui.

— Sei, sei, mas voltando a nós dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e a partir do instante em que fiquei com todos esses problemas de saúde, você, igualmente, não abandonou a sua posição de me dar força e coragem.

— Na alegria e na dor, na saúde e na doença... eu fiz essa promessa...

— Sabe de uma coisa?

Os olhos da mulher se encheram de lágrimas. Podia se ver estampados neles, a mais pura e sublime presença da magia encantada em toda a sua formosura e obstinação:

— Diga, meu amado...

Baretéu Carcumé cerrou os olhos por alguns breves segundos. Antes de abri-los e depois de soltar alguns traques sonoros fedendo a carniça, concluiu o que lhe ia à mente:

— Conclua o que pretendia dizer, meu lindo. Sou toda ouvidos...

— Seguinte: acho que você, apesar de moça direita e fielmente dedicada, boa esposa e inimitável amante -, sua presença, ao meu lado... não me leve e nem entenda de forma errada o que direi a seguir. Nesse tempo todo em que estive ausente, cheguei à conclusão que o nosso casamento me sufoca. Você me asfixia com um manto negro de grandissíssimo e profundo azar. Por favor, pegue as suas tralhas e desinfete. Não quero nunca mais ver a sua cara. Sem mais perguntas, pé frio das profundas, fora, fora, foraaaaaa...  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 4)

 



Hans Christian Andersen (A Criança e o Túmulo)

 
A casa estava coberta de luto, e nos corações reinava o pesar. O filho menor, um menino de quatro anos, a alegria e a esperança dos pais acabava de expirar.

É certo que ainda ficavam ao casal duas filhas, das quais a mais velha já ia ser confirmada; e que eram ambas meninas excelentes e bem-educadas. Mas o filho que se perde é sempre o mais querido, e além disso aquele era o menor - e um varão! Era uma provocação cruel.

As irmãs estavam tristes; e o desgosto dos pais ainda mais as comovia. O pai sofria grande abalo, mas a mãe, essa, achava-se completamente prostrada pela imensa dor.

Dia e noite tratara a criança doente, cuidara dela, andara com ela nos braços; sentira que aquele filhinho representava uma parte tão grande de si própria! Não podia compreender aquilo - que ele morrera, que ia ser posto num caixão, e repousar no túmulo... Entendia que  Deus não podia tirar-lhe aquele filho e, quando verificou que assim era na verdade, quando não lhe restou mas nenhuma dúvida, disse, na sua dor cruciante:

- Oh! É que Deus não sabe disso! É que ele tem aqui na terra servidores desalmados, que fazem as coisas à sua vontade, e não ouvem as preces de uma mãe!

Na sua grande dor ela se afastou de Deus. Vieram-lhe pensamentos sombrios, os pensamentos da morte, da morte eterna; ideias de que o homem é terra na terra, e que com ele tudo se acaba. E com semelhantes pensamentos, não achava apoio algum, não encontrava nada a que se amparar, e caiu no abismo do desespero.

Nos momentos  mais tristes, já não podia chorar. Não pensava nas meninas, nas filhas que lhe restavam. As lágrimas do marido caíam-lhe na fronte, mas a desditosa mãe nem olhava para ele. Todos os seus pensamentos estavam com o filho morto; todo o seu ser, toda a sua existência não tinha outro objetivo senão evocar as recordações da criança, ressuscitar cada um dos seus inocente ditos infantis.

Chegou a hora do enterro. A mãe passara as noites anteriores sem sono, mas naquela madrugada adormeceu por alguns instantes, dominada pelo cansaço. E foi nesse intervalo que levaram o caixão para uma sala mais distante; preparam-no lá longe, para que ela não ouvisse as marteladas.

Quando acordou, quis ver o menino, mas o marido disse-lhe com voz sufocada pelas lágrimas:

- Já fechamos o caixão: era preciso…

E a mãe, chorando alto, gritou:

- Se Deus se mostra duro comigo, por que haviam os homens de ser diferentes?

Sepultaram a criança. A mãe inconsolável ficou sentada ao lado das filhas; olhava para a porta , mas sem a ver. E seus pensamentos, dali em diante, já não tinham ligação alguma com o lar. Entregava-se à dor, que arrojava de um lado para outro, como as ondas do mar jogam com barco sem leme nem piloto. Passou assim  o dia do enterro, e que se seguiram foram do mesmo  modo cheios de mágoa sombria e pesada.

As filhas e o marido aflito observavam-na, com os olhos úmidos e cheios de tristeza; ela não ouvia as palavras de consolação - se é que alguma consolação lhe podiam oferecer aqueles que também se sentiam tão profundamente abalados.

Ela já não sabia o que era sono; e contudo seria ele, naquela situação, o seu  melhor amigo; mais que qualquer outra coisa poderia revigorar-lhe o corpo e apaziguar-lhe a alma. Persuadiram-na , ainda assim, a recolher-se, e ela ficava deitada, tranquila, como se dormisse.

Certa noite o marido observou-lhe a respiração e ficou persuadido de que ela finalmente encontrara repouso e alívio no sono. De mãos juntas rezou e pegou no sono, um sono profundo e benfazejo. Não viu pois quando a mulher se levantou, vestiu-se e saiu de casa de mansinho; queira ir ao lugar para onde iam, noite e dia, os seus pensamentos - o túmulo que encerrava o seu filho. Atravessou o jardim, depois os campos, tomando o trilho que levava ao cemitério, sem ninguém, a visse. Também ela não teria visto ninguém, porque só tinha olhos para o seu único objetivo.

A noite era esplêndida, cheia de estrelas;  o ar estava ainda suave, pois mal começara o outono.

Ela entrou no cemitério e parou em frente do pequenino túmulo, que parecia um grande ramalhete de flores perfumadas. Sentou-se e curvou a cabeça sobre a sepultura, como se pudesse, através da espessa camada de terra, ver o filhinho , cujo sorriso lhe aparecia tão nitidamente diante dos olhos e cuja expressão carinhosa, até no leito da dor, era inesquecível. E que olhar expressivo era o da criança, quando ela se inclinara, pegando-lhe na mão tão magrinha, que ele próprio já não podia erguer! E assim como sentava antes junto do leito, ficava agora ali  ao pé do seu túmulo.

 - Desejas descer até onde está teu filho? - perguntou uma voz perto dela.

Era uma voz que ressoava clara, profunda, e que lhe chegou até o coração. Ela ergueu os olhos e viu a seu lado uma mulher envolta em um manto preto, com o rosto embuçado num capuz. Por baixo deste conseguiu a mãe ver um rosto grave mas que inspirava confiança.

Os olhos brilhavam, no esplendor da juventude.

- Descer até onde está meu filho? - repetiu ela com voz suplicante e desesperada.

- Atreves-te a seguir-me? Sou a morte.

A mãe fez um gesto afirmativo.

Dir-se-ia que de repente as estrelas, lá nas alturas, tinham adquirido o brilho da lua cheia. Viu a mãe o esplendor das flores variegadas do túmulo, cuja camada de terra ia cedendo brandamente, suavemente, como um pano enfunado pelo vento. E ela ia descendo devagar, enquanto o vulto a cobria com o seu manto negro. Fez-se noite  e a noite da morte. A mãe ia caindo , caindo, penetrando em uma profundidade que a pá do coveiro não alcança. E o cemitério ia formando uma abóbada acima da sua cabeça.

Caiu a aba do manto e ela se  viu em uma sala enorme, vasta e acolhedora. Reinava ali um crepúsculo, mas apareceu-lhe imediatamente o filhinho, que se aconchegou a ela, sorrindo; e havia naquele sorriso tamanha beleza, como jamais lhe vira no rosto. Ela soltou uma exclamação que não foi ouvida, porque soava ao redor dela, ora muito perto, ora muito longe , e de novo perto, uma música magnifica, que ia subindo em um suave crescendo; nunca lhe tinham chegado aos ouvidos sons assim beatíficos! Vinham de trás da espessa cortina negra como a noite, que separava a sala do grande país da Eternidade.

– Mamãe querida, minha mamãe!

Ela ouvia a voz do filho, a voz conhecida e adorada…

E um beijo se seguia a outro beijo, e ela sentia uma felicidade infinita. E a criança apontou para a cortina escura:

- Não há na terra tanta beleza, mãe! Estás vendo? Vês a todos eles, mãe? Ah! Isto é que é felicidade!

Mas a mãe nada via no ponto que a criança lhe mostrava - nada , a não ser a noite sombria. É que via com olhos terrenos, não como a criança que Deus já chamara para si. Também só ouvia a melodia da musica, os sons; não entendia a letra, não ouvia as palavras em que deveria crer.

- Agora posso voar, mãe! Voar com todas as outras crianças alegre, voar para Deus. Eu gostaria tanto de ir... mas se choras assim talvez eu me perca! E eu gostaria tanto de ir! Tu me deixarás voar, não é , mãe? Daqui a pouco te reunirás lá comigo, mãe!

- Fica, oh! fica aqui! Só um instantinho... Quero somente te olhar mais uma vez.

E beijava e acariciava a criança.

Mas ouviu que a chamavam lá de cima; chamavam-na pelo nome, com voz queixosa. Que seria aquilo?

- Estás ouvindo, mãe? É o pai quem te chama.

E instantes depois ela ouviu gemidos; parecia choro de crianças. e o menino disse de novo:

- São as minhas irmãs... Tu não te esqueceste delas, não, mãe?

E a mãe lembrou-se dos que deixara lá em cima. Sentiu em grande pavor. Olhou para a sala, onde passavam sempre vultos e mais vultos, voando. Pareceu-lhe que  conhecia alguns  dos  que andavam pela sala da Morte, em busca da cortina negra, por detrás da qual desapareciam. Iriam também passar por ali o marido e as filhas? Não isso não: seus chamados e seus suspiros vinham de cima. De repente disse o menino:

- Mãe! Mãe! Agora repicando os sinos do Céu... Está nascendo o sol!

E derramou-se sobre a criança uma luz arrebatadora. A mãe sentia que ia subindo... De repente sentiu frio. Levantou  a cabeça e viu que estava deitada no cemitério, sobre a sepultura do filho.

Mas naquele sonho Deus iluminara o seu entendimento. A mãe dobrou os joelhos e rezou:

- Ó Senhor, meu Deus, perdoa-me ter desejado deter uma alma eterna na sua viagem! Perdoa-me ter esquecido dos meus deveres para com os vivos, que me deste nesta Terra!

E depois dessas palavras seu coração ficou aliviado. Surgiu o sol. Um passarinho cantava acima da sua cabeça, e os sinos da igreja repicavam, anunciando o oficio de manhã. Tudo o que a cercava se tornou sagrado para o seu coração. Agora conhecia o seu Deus,  conhecia os seus deveres e, cheia de saudade, correu para casa. Curvou-se sobre o marido, que ainda dormia. seu beijo ardente e cheio de fervor acordou-o. Dos lábios do casal brotaram palavras vindas do íntimo do coração. Ela era agora forte e meiga, como  a mais meiga das esposas. Vinha dela uma fonte de consolação:

- Deus faz tudo sempre pelo melhor!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1859.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LII

“PAIRA NO AMBÍGUO DESTINAR-SE”    

Paira no ambíguo destinar-se 
Entre longínquos precipícios, 
A ânsia de dar-se preste a dar-se 
Na sombra vaga entre suplícios,

Roda dolente do parar-se 
Para, velados sacrifícios, 
Não ter terraços sobre errar-se 
Nem ilusões com interstícios,

Tudo velado, e o ócio a ter-se 
De leque em leque, a aragem fina 
Com consciência de perder-se... 

Tamanha a flama e pequenina 
Pensar na mágoa japonesa 
Que ilude as sortes da Certeza. 
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“PAISAGENS, QUERO-AS COMIGO”

Paisagens, quero-as comigo.
Paisagens, quadros que são...
Ondular louro do trigo,
Faróis de sóis que sigo,
Céu mau, juncos, solidão...

Umas pela mão de Deus,
Outras pelas mãos das fadas,
Outras por acasos meus,
Outras por lembranças dadas...

Paisagens... Recordações, 
Porque até o que se vê 
Com primeiras impressões 
Algures foi o que é, 
No ciclo das sensações. 

Paisagens... Enfim, o teor 
Da que está aqui é a rua 
Onde ao sol bom do torpor 
Que na alma se me insinua 
Não vejo nada melhor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

“PÁLIDA, A LUA PERMANECE”

Pálida, a Lua permanece
No céu que o Sol vai invadir.
Ah, nada interessante esquece.
Saber, pensar - tudo é existir.

Mas pudesse o meu coração
Saber à tona do que eu sou
Que existe sempre a sensação
Ainda quando ela acabou…
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“PÁLIDA SOMBRA ESVOAÇA”

Pálida sombra esvoaça
Como só fingindo ser
Por entre o vento que passa
E altas nuvens a correr.

Mal se sabe se existiu,
Se foi erro tê-la visto,
Sombra de sombra fluiu
Entre tudo de onde disto.

Nem me resta uma memória.
É como se alguém confuso
Se não lembrasse da história.
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“PARECE ÀS VEZES QUE DESPERTO”

Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?

A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?

Entendo, como um carrossel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)
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“O PESO DE HAVER O MUNDO”

Passa no sopro da aragem 
Que um momento o levantou 
Um vago anseio de viagem 
Que o coração me toldou. 

Será que em seu movimento 
A brisa lembre a partida, 
Ou que a largueza do vento 
Lembre o ar livre da ida? 

Não sei, mas subitamente 
Sinto a tristeza de estar 
O sonho triste que há rente 
Entre sonhar e sonhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

“PASSAVA EU NA ESTRADA PENSANDO IMPRECISO”

Passava eu na estrada pensando impreciso, 
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso 
Agradou-lhe a cara toda.

Bem sei, bem sei, sorrirá assim 
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim... 
Que mais posso eu querer?

Não sou nesta vida nem eu nem ninguém, 
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém 
Ainda que por acaso.

Fonte:
Poesias em Domínio Público