sábado, 6 de maio de 2023

Hans Christian Andersen (O elfo da rosa)


No meio de um jardim nasceu uma roseira, em plena floração, e na mais bela das rosas vivia um elfo. Ele era uma criatura tão pequenina, que nenhum olho humano podia vê-lo. Atrás de cada folha da rosa ele tinha um lugar onde ele dormia. Ele tinha uma perfeita constituição como toda criança linda pode ter, e tinha asas que iam dos ombros até os pés. Oh, que deliciosa fragrância havia nos quartos onde ele dormia! E como as paredes eram limpas e belas, pois eram as folhas mais vermelhas da rosa.

Durante o dia todo ele adorava passar o tempo sob a luz do sol, voava de uma flor a outra, e dançava sobre as asas das borboletas enquanto voavam. De repente, ele resolveu contar quantos passos ele teria que dar para atravessar os caminhos e os cruzamentos que haviam numa folha de um pé de tília. Aquilo que chamamos de veias da folha, ele entendia como sendo caminhos que ele tinha de percorrer e, aí, eram caminhos muito longos para ele, pois, antes que tivesse terminado metade de sua tarefa, o sol já tinha ido embora: ele havia começado o seu trabalho tarde demais. Começou a ficar frio, o orvalho já estava caindo, e o vento soprava forte, então ele achou que o melhor que ele teria a fazer seria voltar para casa. Ele se apressou tanto quanto pode, mas descobriu que todas as rosas já haviam se fechado, e ele não conseguiu entrar, nenhuma rosa estava aberta.

O pobre do elfo ficou muito assustado. Ele nunca havia ficado fora durante a noite, mas sempre tirava uma soneca escondido atrás das aconchegantes folhas das rosas. Oh, isso com certeza poderia ser a morte para ele. Na outra extremidade do jardim, ele sabia que havia um caramanchão, coberto com lindas madressilvas. As flores eram semelhantes a grandes chifres decorados, então, ele pensou consigo mesmo, que ele iria dormir em cima de uma delas até o amanhecer. Ele voou até lá, porém, "façam silêncio" duas pessoas estavam no caramanchão — um jovem belo e garboso e uma encantadora mulher. Eles se sentaram lado a lado, e desejavam jamais terem de se separar. Eles se amavam muito mais do que uma linda criança pode amar seu pai e sua mãe.

"Mas nós temos que nos separar," disse o jovem, "o seu irmão não apoia o nosso namoro, e por isso ele me mandou para longe a negócios, para além das montanhas e dos mares. Adeus, minha querida noiva, pois é isso o você que significa para mim."

E então se beijaram, e a garota chorou, e lhe ofereceu uma rosa, mas, antes de fazer isso, ela deu um beijo tão ardente na rosa que a flor se abriu. Então o pequeno elfo voou correndo para dentro, e encostou sua cabecinha nas paredes delicadas e perfumadas da flor. Ali, ele pode ouvir claramente quando eles disseram: "Adeus, adeus," e ele sentiu que a rosa tinha sido colocada no peito do jovem. Oh, como o seu coração batia forte! O pequeno elfo não conseguia dormir, porque o coração dele batia forte demais. O jovem retirou a flor ao caminhar sozinho pela floresta, e a beijava muitas vezes e com tanto ardor, que o pequeno elfo quase era esmagado. Ele podia sentir através da folha como eram ardentes os lábios do jovem, e a rosa se abriu, como se fosse o calor do sol do meio dia.

Eis que veio um outro homem, que tinha um aspecto sombrio e malvado. Ele era o perverso irmão da bela jovem. Ele sacou uma faca afiada, e quando o jovem apaixonado estava beijando a rosa, o homem impiedoso o apunhalou até a morte, depois ele cortou a cabeça e a sepultou junto com o corpo sob a terra macia debaixo de um pé de tília.

"Agora ele não existe mais, e logo será esquecido," pensou o irmão malvado, "ele nunca mais voltará. Ele está fazendo uma longa viagem para além das montanhas e dos mares, é fácil para um homem perder a vida em viagens desse tipo. Minha irmã irá acreditar que ele morreu, pois, ele não pode voltar, e ela não ousará duvidar de mim sobre o que aconteceu."

Então, ele espalhou, com seus pés, folhas secas sobre a terra fofa, e voltou para casa no meio da escuridão, mas ele não voltou sozinho, como ele pensava, — o pequeno elfo o acompanhou. Ele estava sentado numa folha de tília enrolada, que havia caído da árvore sobre a cabeça do homem malvado, quando ele estava cavando a sepultura. O chapéu estava em sua cabeça agora, o que deixava tudo escuro, e o pequeno elfo tremia de medo e indignação com o ato impiedoso.

Era o início da manhã, e o homem perverso ainda não havia chegado em casa, ele tirou o chapéu, e se dirigiu até o quarto da sua irmã. Lá estava a garota bela e exuberante, sonhando com aquele a quem amava tanto, e que estava agora, assim pensava ela, viajando para longe, para além das montanhas e dos mares. Seu irmão impiedoso parou diante dela, e sorria por dentro, como somente as pessoas más sabem rir. A folha caiu de seus cabelos sobre a colcha, sem que ele percebesse, e ele saiu para dormir um pouco durante as primeiras horas da manhã. Foi aí que o elfo escorregou da folha seca, e foi parar no ouvido da garota que dormia, e contou para ela, como num sonho, tudo sobre o terrível crime, e descreveu o lugar onde o seu irmão havia matado aquele a quem ela amava, sepultando depois, o seu corpo, e lhe falou também do pé de tília, todo florido, que havia ali.

"E para que você não pense que este foi apenas um sonho que eu lhe contei," disse ele, “você encontrará em sua cama uma folha seca."

Então ela acordou, e encontrou a folha seca. Oh, quantas lágrimas amargas ela derramou! E ela não conseguia abrir seu coração para ninguém para se consolar.

A janela ficou aberta o dia todo, e o pequeno elfo poderia ter ido facilmente até uma das rosas, ou qualquer outra flor, mas em seu coração ele não poderia deixar alguém tão aflito assim. Perto da janela crescia um arbusto que produzia rosas todos os meses. Ele se sentou em uma das flores, e ficou olhando a pobre garota. O irmão dela várias vezes ia até o quarto, e ela teria ficado muito feliz, não fosse atitude covarde dele, então, ela não ousava dizer nem uma palavra para ele sobre a dor que lhe ia no coração.

Assim que a noite chegou, ela saiu de casa sem que ninguém visse, e caminhou até a floresta, no lugar onde ficava o pé de tília, e depois de remover as folhas secas da terra, ela retirou a terra e ali encontrou aquele que havia sido morto. Oh, como ela chorava e rezava para que ela também pudesse morrer! Teria ficado feliz em levar o corpo para casa com ela, mas isso era impossível, então, com os olhos fechados, ela pegou a cabeça, beijou os lábios frios, e sacudiu a terra dos lindos cabelos.

"Vou ficar com esta cabeça," disse a jovem, e assim que cobriu o corpo novamente com terra e as folhas, ela pegou a cabeça e um pequeno ramo de jasmim que florescia no meio da mata, perto do lugar onde o corpo havia sido sepultado, e os levou para casa com ela. Assim que ela entrou em seu quarto, ela pegou o maior vaso que ela conseguiu encontrar, e nele colocou a cabeça do homem que amava, cobriu-o de terras e plantou o galho de jasmim dentro do vaso.

"Adeus, adeus," sussurrou o pequeno elfo. Ele não conseguia mais suportar a visão daquela cena de dor, e foi voando até a sua rosa no jardim. Mas a rosa havia murchado, apenas algumas folhas secas ainda estavam penduradas na cerca viva que ficava atrás dela.

"Oh, meu Deus!, porque será que tudo que é belo e bom dura tão pouco," suspirou o elfo. Depois de algum tempo ele encontrou uma outra rosa, onde ele passou a viver, pois, no meio de suas folhas delicadas e perfumadas ele poderia viver com segurança. Todas as manhãs ele voava até a janela do quarto da pobre garota, e sempre a encontrava chorando perto do vaso de flores. As lágrimas amargas caíram sobre o ramo de jasmim, e todos os dias, a medida que ela ia ficando cada vez mais pálida, o ramo parecia ir ficando cada vez mais verde e mais fresco. Uma gota após a outra ia caindo, e os pequenos botões brancos começaram a florescer, os quais a pobre garota beijava com muito carinho. Mas o irmão malvado ralhava com ela, e lhe perguntou se ela estava ficando louca. Ele não conseguia imaginar porque ela estava chorando sobre o vaso de flores, e isso o aborrecia.

Ele jamais poderia imaginar que olhos fechados haviam sido colocados ali, nem que lábios rubros estavam se decompondo debaixo da terra. E um dia ela se sentou e encostou a cabeça no vaso de flores, e o pequeno elfo da rosa viu que ela estava dormindo. Então, ele se sentou perto do ouvido dela, e falou para ela sobre aquela noite debaixo do caramanchão, sobre o doce perfume da rosa e os amores dos elfos. Ela se entregou totalmente ao sonho, e enquanto sonhava, sua vida ia passando calma e suavemente, e o espírito dela ia com aquele a quem ela amava, no céu. E o jasmim abriu suas sépalas grandes e brancas, exalando uma deliciosa fragrância, pois ele não tinha outra maneira de demonstrar a sua dor pelos que se foram. Mas o irmão malvado achou que a flor bela e exuberante fosse propriedade sua, e que a sua irmã havia a deixado para ele, e ele a colocou em seu quarto, perto da sua cama, porque ela era encantadora na aparência, e a fragrância doce e deliciosa.

O pequeno elfo da rosa acompanhava tudo, e voava de flor em flor, e contava para todos os espíritos minúsculos, que moravam dentro delas, a história do jovem que fora assassinado, e cuja cabeça agora fazia parte da terra que estava debaixo deles, e sobre o irmão perverso e a sua pobre irmã. "Nós já sabíamos," disse cada pequeno espírito das flores, "nós já sabíamos, porque fomos gerados dos olhos e dos lábios daquele que morreu. Nós já sabíamos, já sabíamos," e as flores balançavam suas cabeças de maneira peculiar. O elfo da rosa não conseguia entender como eles poderiam estar tão tranquilos diante daquela situação, então ele voou até as abelhas, que estavam coletando mel, e contou para elas sobre o irmão malvado.

E as abelhas contaram isso para a rainha delas, a qual ordenou que na manhã seguinte eles fossem e matassem o criminoso. Mas, durante aquela noite, que era a primeira depois que ele havia morrido, enquanto o irmão dela estava deitado na cama, perto da onde ele havia colocado o perfumado jasmim, todos os cálices das flores se abriram, e como seres invisíveis que eram, os pequenos espíritos saíram, armados com suas lanças envenenadas. Eles se posicionaram ao lado do ouvido do dorminhoco, e contavam para ele histórias assustadoras e depois foram voando até os lábios dele, e picaram a língua dele com suas lanças envenenadas. "Agora nós vingamos o morto," disseram eles, e voaram de volta até as sépalas brancas das flores do jasmim. Quando a manhã chegou, e assim que a janela foi aberta, o elfo da rosa, junto com a abelha rainha, e todo o enxame de abelhas, correram para matá-lo.

Mas ele já estava morto. Haviam pessoas ao redor da cama, e dizendo que o cheiro do jasmim o havia matado. Então, o elfo da rosa entendeu a vingança das flores, e explicou isso para a rainha, e ela, bem como todo o enxame, começaram a zumbir em torno do vaso de flores. As abelhas não poderiam ser expulsas. Então, um homem resolveu afugentá-las, e uma das abelhas o picou na mão, ele deixou cair o vaso de flor, e o vaso se partiu em pedaços. Foi aí que todos viram a caveira branca, então eles descobriram que o homem que estava morto na cama era o assassino. E a abelha rainha zumbia no ar, cantarolando a vingança das flores e do elfo da rosa, e disse que atrás das folhas mais minúsculas existe um Elfo, que consegue descobrir as maldades, e também pune quando necessário.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 19 de maio de 1839.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça VI


Parece, à primeira vista, que eu passaria mal na cabeça de um boticário porque, se houvesse quem receitasse piolhos para alguma icterícia, não ficaria piolho vivo nas cabeças de casa. Mas onde os outros julgam o mal, aí é que eu achei o remédio. Boticário jamais dá o que se lhe pede. Por isso mesmo sempre vendem gato por lebre e nunca lhes falta nada na botica. Suponhamos nós que o Médico receitava piolhos. Que fazia ele? Ia ao leito, apanhava percevejos e analisava, dizendo: —Tanto é bicho o piolho como o percevejo. Com que se sustenta o piolho? Com sangue. Que faz o piolho? Morde. E o percevejo, que faz? Também morde. E demais, se o piolho é balsâmico, o percevejo não só o é mas também odorífero. O piolho morre, o percevejo remoça. O piolho é triste, o percevejo é alegre. A cor deste é muito mais bonita que a daquele. E concluía: — O percevejo anda por leitos recamados de ouro e damasco e quando chega lá um piolho? Nunca.

No tempo dos porcos, era o meu São Martinho, porque, como o boticário fazia banha, andava sempre limpando as mãos à cabeça. Mas esta lambição ia-me dando que entender, porque uma vez que tinha lidado com os pós de Joanes, limpou também as mãos. Eu fui muito abelhudo, parecendo-me grangeia (drágea). Por um nada que os não como. O que valeu foi ter tido uma indigestão na véspera e entrar no receio de comer coisa doce, porque eu, a este tempo, já me sabia curar a mim próprio pela prática de todos os dias estar ouvindo casos e decisões sobre a Medicina, principalmente a um que era a vera efígie do Doutor Sangrado.

Ele estava justo com o boticário. Repartiam os ganhos, à exceção do defunto. E o tal amigo era tão hábil na tal nigromancia de curar que teve a habilidade de receitar trinta e três receitas para um que já estava morto havia trinta e três horas, dizendo à gente da casa que era um acidente interior mas que ainda podia tornar a si e que os remédios eram para o fim de que o acidente saísse do interior para fora, o que nunca saiu. Foi com ele à cova.

Tinha também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes? — Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê, antes de eu o curar, via-as? — Não senhor.

—Então para que se queixa, se vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.

Na verdade um homem como este nunca havia de morrer. Tinha muitas receitas particulares e foi tão bruto que morreu sem deixar nenhuma aos parentes. Alguma, que se sabe, pilhou-se a dente. Também tinha uma para a espinhela caída, que era um pasmo. Fazia uma massinha e, em lugar de formar pílulas, fazia uma espinhela, secava-a, moía-a e, dissolvida em sal amoníaco, fazia-a beber ao doente, deitado da banda da espinhela. Ao fim de três horas tornavam os pós à sua primeira forma e eis o doente com uma espinhela nova. Compôs um Tratado para tirar dentes, em cinco livros de fólio, que ensinava o método de tirar as raízes sãs deixando os dentes podres de forma que, no seu bairro, ninguém tinha raízes. Um sujeito, para pôr umas de Quaresma no seu quintal, foi-lhe pedir licença. Também tinha ópio para todo o mundo. Quem queria dormir ia lá. Houve ali um sujeito que se queixava que havia quarenta dias que não pregava olho e ele, sem prego nem martelo, apresentou-lhe tanta quantidade de ópio que ainda hoje o não abriu. Todos os anos tinha um presente do coveiro da Freguesia pelo bem que lhe fazia. Nunca comprou pevide (semente) de melão e de melancia. Comprava as das abóboras que eram quase de graça e dizia: — Para que é amendoada? Para refrescar. Pois a abóbora é muito mais fresca.

Sabem com que ele quinava qualquer remédio? Com macela e nunca isso matou ninguém. Tinha um conhecimento de ervas que não lhe faltava senão comê-las. Uma vez que um médico receitou sal inglês para uma purga (laxante), exclamou ele: — Ó tempos! Ó costumes! Não se faz caso senão dos gêneros estrangeiros. Pois não há de ser assim. Fez a purga de sal português e o pobre doente esteve a beber água todo o dia. Sobreveio-lhe uma febre à noite e no outro dia foi para a Eternidade. Mas à portuguesa. Na verdade, tinha coisas muito galantes. Um remédio que ele tinha para defluxos ajudava-os a cair no peito e depois, então, é que os levantava, se podia. Também tinha um remédio para pólipos que, dentro de meio minuto, secava pela raiz pólipo e nariz. O que lhe valia era um amigo Poeta que tinha, que lhe os fazia depois de cera, para os doentes não ficarem com defeito.

Um dia, trazendo-lhe o tal duas dúzias deles, entrou o boticário a teimar que um não prestava e o Poeta a dizer que era o melhor. E pondo-lhe na cara, disse: — Para um homem assim da sua idade, com barrete na cabeça, está-lhe pintado. Que faz o boticário? Põe o nariz no Poeta, saca o barrete e põe-lhe também. Eu, que tinha estado a ouvir a conversação e morria, havia muito, por estar numa destas cabeças, passei muito depressa para o barrete e com o mesmo para a cabeça deste Virgílio, que é o assunto da Carapuça VII.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Coelho Neto (O Milagre)

Indo um homem à floresta lenhar, descobriu na broca de um tronco um ídolo grosseiro e logo, acendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e regressou contente à vila.

Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a notícia do achado e não faltaram presságios felizes, atribuindo o aparecimento da imagem a intuitos de mercês com que Deus queria premiar as pessoas.

Na tarde do mesmo dia, que foi de alegre alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o «santo», entre luzes e flores, sobre uma mesa forrada de linho alvo, avultava como uma tora apenas falquejada (desbastada). Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas e, como eram indistintas as feições do ídolo, cada qual o apelidou conforme a sua devoção, e foi assim que o santo teve vários nomes, prevalecendo, porém, o de “Senhor Aparecido”.

A nova propalou-se ás povoações vizinhas. Começaram as romarias e, com elas — porque a cabana não podia comportar a turba de devotos — veio a ideia de levantar-se uma capela, onde a imagem tivesse agasalho digno e todos a pudessem contemplar à vontade, pedindo-lhe o que pretendessem.

Não faltaram materiais nem obreiros e, pouco a pouco, ao som de cânticos, foram subindo os muros da capela.

Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de várias partes — cegos, febrentos, lázaros e paralíticos, todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas. 

O santo, sempre entre flores e luzes, parecia indiferente aos rogos dos infelizes.

Uma manhã, porém, certa velha que chegara, entrevada, pôde deixar o estrame (esteira de palha) em que jazia e, por seu pé, sem auxilio, dirigiu-se, entoando louvores, à cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a proclamar e a agradecer o milagre.

Tanto bastou para que se divulgasse, com maravilhosos detalhes, a notícia da cura espantosa. Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém, rezaram e prometiam, nunca mais houve quem saísse do seu grabato (catre), vendo, se era cego; ouvindo, se era surdo; caminhando, se era entrevado; livre da febre ou sem dores. 

Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia quem lhes respondesse “que a razão estava em eles não terem fé” e com isso os desgraçados resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama crescia.

Com a afluência dos devotos, o povoado desenvolvia-se, o seu comércio, que era mesquinho, tornou-se considerável, e à volta da capela, ergueram-se tendas de trabalho: o oleiro apolejando (amassando) o barro, o ferreiro malhando a bigorna, o carpinteiro acepilhando (aplainando) a tábua, o imaginário esculpindo cópias do “santo” que os devotos traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada de crivo e, como sempre chegavam famílias, iam os pedreiros edificando e as oficinas todas laboravam.

Apesar de não se ter realizado outro milagre depois do desentrave da velha, a romaria não cessava e se alguém, por desânimo, mostrava-se descrente, logo lhe citavam o caso da paralítica, descreviam os seus passos, diziam como chegara à cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçais de prata que ela mandara ao santo com um quadro em que estava miudamente referido o milagre sublime.

E assim, os mesmos que regressavam aos lares sem melhoras, faziam o louvor do santo “que curara a velha de uma paralisia de longos anos”. Outra cura não fez a imagem do santo que da cabana, passou ao altar-mor da capela, mas só com haver andado uma entrevada — benefício para o qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande faina, que se alguém, nas terras de longe, aludia á sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom maravilhado:

— “Não há santo mais milagroso!” E lá vinha a referência à paralítica.

Para milhares de desiludidos só havia aquele consolo, e esse bastava para manter a crença o prestigiar o santo. Como esse ídolo da floresta — a que se atribuiu milagre — quantos há de carne e osso que são potentados por terem tido a sorte de achar uma velha entrevada e de fé... que se levantou do estrame e proclamou a sua virtude.

Ídolos e homens... tudo está em criarem fama.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXI


A CARTA
(Lendo o Soneto A Carta Interrompida, de COLOMBINA - 1882-1963)

A carta interrompi. Ninguém resiste
que tanto amor acabe desprezado.
Meu mundo colorido ficou triste,
quando escrevi: está tudo acabado.

O trauma deste amor inda persiste,
— por que viver assim amargurado?
A minha mão se agita e ainda insiste
em terminar o show já começado...

Basta postar a carta já escrita,
tudo acabou, a vida é só desdita,
vou aprender viver no meu limite...

No envelope lacrado — quanto medo,
o correio há de levar o meu segredo,
mas o meu coração já não permite!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

AMOR SUPREMO

Meu coração recorda, emocionado,
o amor que norteou a minha vida,
e continua presente e bem guardado
na inspiração dos versos meus, querida.

Envolto nas lembranças do passado
preservo o que vivi, de fronte erguida.
Vou galopando pelo verde prado
onde a Esperança mora e faz guarida.

E enquanto o coração bater, sedento
vou prosseguir buscando o meu intento:
— continuar feliz por onde eu for.

Quero rever a Luz da madrugada
e despertar ao som da passarada
para viver, contrito, o nosso amor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

BARRA DO MENDES

Barra do Mendes no Sertão Baiano,
és bela, culta, forte e hospitaleira,
povo trabalhador, feliz e humano
em busca da amizade verdadeira.

A vitória de um povo veterano
na construção da paz alvissareira
garante que o progresso, soberano,
já chegou na cidade brasileira.

E quando chega alegre, o viajante,
ela oferece abrigo ao visitante
e as belezas do nosso Chapadão.

Eu quero te saudar, Barra do Mendes,
pelo denodo, fé e luz que acendes
nas glórias imortais de Militão*!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 
* Coronel Militão Rodrigues Coelho (1859 – 1919) obteve a emancipação de Barra do Mendes.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

CONSEQUÊNCIA

Brigamos sem motivo. Era Setembro,
o campo estava verde e havia flores.
O céu cheio de estrelas, eu me lembro,
e recordo também dos dissabores.

Bem alto ela me disse; "não sou membro
desta família que me trouxe dores.
Quero partir, não fico outro dezembro,
quero ter, pelo mundo, outros amores".

E partiu... Nada fiz, fiquei calado,
o silêncio, por certo, dá um jeito
e não carece de nenhum cuidado...

O tempo vai passando e quando a vejo,
ela disfarça a dor que vai no peito,
e eu finjo que não sinto mais desejo.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

ETERNA BUSCA

Nunca quis navegar por outros mares
que a vida, por acaso, me levou,
nem quis rezar também noutros altares,
pois tua imagem nunca me deixou.

Mas parti procurando outros pilares
para atracar do barco, o que sobrou,
porque no temporal dos meus azares
só saudade, no mundo, me restou.

E agora, já no fim desta procura,
confesso que não tive essa ventura
de esquecer, para sempre, a minha dor.

E tudo que busquei nesta jornada
se resumiu, talvez, num quase nada:
— felicidade, eu sei, só com amor.

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça V

Que cabeça! Que cabeça! Nunca me vi tão farto. Tudo andava untado. Se os piolhos tivessem ocupação, eu não tomava outra. E até mesmo para trazer a consciência desembaraçada. Ali não há que arranhar, é vender medida por medida. Compro uma canada. Vendo uma canada. E ainda às vezes se põem linhas de casa, pois todos sabem que nas medidas pequenas sempre há quebras. E então, que homem tão escrupuloso com que eu dei! Eu conto, para pintar e conhecerem a sua boa alma, um caso sucedido na sua loja.

Tinha um caixeirinho que era um ladronete (ladrão). E que fez para furtar ao povo? Na balança oposta à dos pesos, pos-lhe, pela banda de baixo, uma bolinha de cera no fundo e, como da outra banda ia o gênero, já se sabe que, quanto a bola pesava, tanto ele furtava em cada peso que vendia. Vai o tendeirinho da minha alma dar com o furto. Ora que lhe parecem que ele faria? Pois eu lhes digo: salta-me no caixeiro e fez-lhe confessar que tempo havia que ele fazia aquele furto. O mesmo confessa que havia cinco meses. Diz o patrão: — Pois não importa. Eu quero pagar o furto que tu fizeste ao público. Passa-me já essa bola de cera para a banda dos pesos e outro tanto tempo quero dar o de César a César. E, no mesmo instante, fez mudar a bola. Mas também mudou os pesos e continuou a pesar como dantes.

Numa cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a ser econômico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: — Quanto mais grandes são, mais gastam. Os queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro. Cebolas, era um pasmo! Ninguém fazia molhos com mais elegância. Tinha a habilidade de transformar o sebo em manteiga. Também se aquele não está no céu, mal por nós. Tinha a pachorra, só para fazer bem, de andar procurando ovos que estivessem chocos. Comprava-os a trinta réis a dúzia e vendia cada um por um vintém, quando muito por vinte e cinco, um ovo e um pinto.

Ouviu dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe areia e desta forma unia o asseio ao benefício. Nos feijões, seguia aquele ditado: Uma verde com uma madura. Comprava, por exemplo, os novos a oito tostões, os velhos a cruzado, misturava uns com os outros e vendia-os pelo mesmo que lhe tinham custado, isto é, a oito tostões. Não queria ganhar nada com o próximo e dava a razão, dizendo: — É alimento que só comem pobres.

Também dava crédito a alguns oficiais mecânicos. Mas não lhes vendia os gêneros por mais que os vendia aos outros. Só apenas no rebate das férias é que levava sessenta por cento. Sim, senhor, é nesta cabeça que eu passei uma vida regalada. Chupava-lhe o sangue e ele nada sentia. Suponho que era por ser alheio. Não tinha tempo nem para se coçar. Mas que desgraça! Uma noite, pela volta das três horas, deu-lhe um estupor, não disse nem guarde Deus a vossa mercê. Eu apenas o senti frio, quis-me safar. Mas neste tempo chega um boticário vizinho que chamaram com muita pressa e pos-lhe o ouvido ao pé da boca para ver se o sentia respirar. Eu, sem perder tempo, me passei para a cabeça do dito, na qual ponho a minha Carapuça VI.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 4

 

A. A. de Assis (Por que “Vós”?)

“Por que vós, tão gravata-e-colarinho? O você comunica muito mais”
. Quem disse isso foi Carlos Drummond de Andrade, o megapoeta.

Os portugueses são muito bons em pronomes e lidam sem dificuldade com essa coisa de “tu” e “vós”, mas na maior parte do Brasil o tratamento habitual é “você”. Tanto que, nas regiões onde o “tu” é mais usado como indicativo de intimidade, é comum o falante escorregar em discordâncias como “tu gosta”, “tu viu”. Nesse caso, por que não eliminar de vez o “tu” e o “vós”? A gente ficaria com o “você”, que é menos complicado e “comunica muito mais”.

Veja como seria fácil conjugar verbos: Eu estou, você está, ele está, nós estamos, vocês estão, eles estão.... Se for preciso usar tratamento cerimonioso, bastará substituir “você” por “o senhor”, “a senhora”. E se, por exigência de algum ultrarrigoroso protocolo, não for possível simplificar as coisas, o “você” se transformará em “vossa senhoria”, “vossa excelência”, mas sempre com o verbo na terceira pessoa.

Os políticos, que por ofício precisam se aproximar do povo, poderiam ser os primeiros a arquivar o tal de “vós”, até pelo perigo de misturar “vós” com “vossa excelência” e formar aquela salada: “Saúdo vossa excelência e vossa luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazeis ao nosso próspero município...” Ora, “vossa excelência” concorda com “seu/sua” e pede o verbo na terceira pessoa do singular; “vós” concorda com “vosso/vossa” e pede o verbo na segunda do plural. “Vossa excelência” é apenas a roupa de gala do “você” (forma reduzida do antigo “vossa mercê”).

Dessa trapalhada no uso das expressões de tratamento não escapam nem mesmo pessoas mais cultas, igualmente sujeitas a ocasionais cochilos na concordância. 

“Tu” e “vós” são pronomes realmente complexos para uma população habituada a conversar usando o familiaríssimo “você”. Seria, portanto, sábio e prático aposentar logo os dois tropeços que só servem para aumentar os desarranjos gramaticais. Diríamos simplesmente assim: “Eu quero, você quer, ele quer, nós queremos, vocês querem, eles querem”. E nenhum estudante precisaria mais dizer o que de um deles certa vez ouvi: que “o verbo se fez problema e habitou entre nós”...

Ninguém, na fala real, diz “vós gostais”; dizemos “vocês gostam”. Até a Bíblia, para comunicar mais, tem aparecido hoje em versões populares, onde o “vós” cede lugar ao “você”: “Amem-se uns aos outros como eu amo vocês”.

Esquecer o “tu” e o “vós” seria um bom passo em benefício da descomplicação da língua. Acabaria a vexação de dizer “tu vai”, “vossa excelência quereis...” E o discurso ficaria mais leve: “Saúdo o senhor e sua luzidia comitiva nesta honrosa visita que fazem ao nosso próspero município”. 

Penso até que a comitiva ficaria mais luzidia e bem mais próspero o município... 
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 02-11 -2022)

Fonte:
Texto obtido no facebook do autor.

Jaqueline Machado (Poemas Avulsos)


DIAS NUBLADOS 

Às vezes, o céu da nossa vida fica nublado. 
A névoa toma conta 
de todas as paisagens. 
Da paisagem 
das coisas de dentro 
e das coisas de fora. 
A beleza do mundo 
fica destorcida 
e a gente chora... 
E é preciso chorar 
para desabafar e limpar 
o que parece 
não ter cura. 
Precisamos 
nos permitir a isso, 
pois nem tudo 
é nossa culpa. 
Às vezes viver dói, 
arde, queima. 
Acontece... 
Em dias assim, 
é preciso ter paciência. 
Deixar os olhos chover... 
Mais cedo ou mais tarde 
o céu torna a ficar azul. 
O sol volta a brilhar! 
E a gente volta a sorrir. 
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TUAS CAMADAS 

Durante teu sono, 
sem aviso, 
visitei o teu coração. 
E nele, avistei temporais. 
Benzi teus ventos 
e a tua tempestade cessou. 

Depois, visitei tua mente, 
e enfrentei teus temores. 
Recitei palavras de amor. 
E na minha canção 
te fiz repousar. 

Mais tarde, passeei 
por tuas entranhas. 
Nelas, me deparei 
com os teus abismos, 
fontes e montanhas. 
E assim, 
desvendei teus véus. 
Me revesti de tuas luzes 
E nos teus breus 
me perdi. 

Busquei sair de volta 
pela porta de saída 
do teu coração. 
Repousei em tua superfície 
E as tuas cicatrizes, beijei 
com emoção. 

Depois 
de todos os beijos, 
acordaste de repente. 
Para mim 
sorriste lindamente. 
Banhou-me em teu amor 
de paraíso 
até me fazer adormecer em teus braços. 
Ao despertar, constatei: 
Amo-te de forma plena. 
E como adorei 
repousar em cada uma 
das camadas 
do teu ser…

Fonte:
Versos enviados pela autora.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça IV

Não foi das melhores cabeças em que caí. Tive meus incômodos. O tal barbeirinho já endireitava o olho à coifa e tinha o maior cuidado na cabeça, quando, na verdade, era um traste que lhe não devia dar nenhum. Ele, ora em pente de bichos, ora em azeite para sacar as lêndeas, ora em pós e banha de cheiro, gastava quantos vinténs tinha. Chamavam-lhe por alcunha o Amola do que ele se picava tanto que esteve cinco vezes preso por bulhas que teve por amor deste ditério (troça). Mas ultimamente, quando lhe chamavam o Amola, já amolava, fazia que não entendia. Era um falador eterno. Sabia quanto se passava duzentos passos em redor da loja, de forma que só pelas novidades tinha mais gente na loja que o resto dos barbeiros do bairro. Não posso deixar de contar um ópio que lhe sucedeu com um freguês dos avulsos e que achei lindo, principalmente por se julgar ele tão esperto.

Entra-lhe um dia um homem pela porta dentro, que teria os seus quarenta anos, com umas barbas de quarenta dias. Contou-lhe quarenta histórias. Disse-lhe que as suas barbas sempre as pagava a quarenta réis. Que a causa de as ter grandes era por ter prometido uma quarentena não as fazer mas que, quarenta dias a fio, as havia de barbear. Depois de o ter aquarentado por todas as formas, vira-se para ele e diz-lhe muito admirado: — Vossemecê bota as barbas que rapa no pano? — Pois onde as hei-de botar?, lhe respondeu o mestre. — Dessa me rio eu, ainda tinha mais esta para ver! Vossemecê certamente está doido? Esses cabelos têm uma grande serventia e se vossemecê quer guardar, eu lhes pago depois de enxutos, e bem secos, à moeda de ouro o celamim (1).

O barbeiro, que o único peso que tinha na cabeça era eu e o cabelo, ficou tão admirado como contente. Protestou pela conserva e o freguês pelo ajuste. Mas nestes dares e tomares acabou-se a barba e safou-se, com muitas cortesias, sem pagar nada, no que o mestre não reparou, na esperança do futuro ganho. Três meses levou o bom do homem a ajuntar cabelo e a pô-lo ao sol. E ainda que a barba fosse de graça, sempre a escanhoava duas vezes. Já tinha quase meio alqueire, apareceu o maroto do freguês. Muita festa para a festa. Então ajuntou? — Sim, senhor, não me ficou barba em claro, tenho bastante quantidade. E eu muita precisão. Vamos a isto. Logo. Primeiro vamos à barba.

Aparelha-se a cara, bota-se-lhe a barba abaixo e, depois de feita, vai o papalvo buscar meio alqueire de barbas muito limpas e enxutas. Ainda agora o tratante se entra a esconjurar: Está tudo perdido! — Pois que tem? replica o mestre, — eu fiz tudo o que vossemecê me disse. — Não senhor, faltou o principal. — Pois que é? — Era preciso que vossemecê tivesse todos estes cabelos apartados; os loiros a uma banda, os negros à outra, os ruivos, os brancos, etc. O mestre arde, vira a buscar o chuço [2] e o magarefe safa-se com duas barbas de graça e duas horas de mangação que encaixou ao barbeiro, o qual entrou num frenesi que o julguei doido. E ficou tão zangado com homem de barbas grandes, que barba que passasse de uma semana era como confissão de um ano: jamais a fazia ainda que lhe dessem um tostão. De forma que a alcunha que tinha do Amola mudaram-lha e lhe chamavam o Barba-curta. Mas sempre sou obrigado a dizer que era um dos homens mais regulares que tenho conhecido na minha vida.

Ele erguia-se pela manhã, bebia um copo de aguardente e comia o seu dente de alho. Assoava-se, lavava o rosto, tocava o seu bocado de viola. Se aparecia algum amigo, punha a viola aos outros. Era um bocadinho de língua que fazia molho de tudo. Depois afiava as suas navalhas e, se era dia de fregueses, dava-lhe uma volta, e sempre pedia a algum amigo que lhe ficasse na loja, para demorar alguém que entrasse, no caso de ele ir perto. O seu comer era sopa, vaca e arroz [3] e não se fartava de dizer aos amigos que era a sua diária. De tarde, quando não tinha que fazer, lia Carlos Magno* ou dizia mal da vizinhança. De forma que estava já tão senhor destes autores que citava as folhas e conhecia os vizinhos pelos seus nomes, ocupações e costumes. Umas inquiriçõezinhas tiradas por ele, não havia nada que lhe chegasse. Era um dos melhores genealogistas e tinha feito a árvore de geração de Judas. E dava razão por que se não comiam as maçãs de Arcipreste e não deixou de lucrar com isso.

Defronte dele moravam umas raparigas de quem ele compôs a vida. E, antes de a dar ao prelo, deram-lhe uma navalhada na cara que não deixava de lhe dar sua graça. Mas deixou de compor. Ultimamente descompunha qualquer pessoa por dá cá aquela palha. Numa dessas descomposturas que teve com um tendeiro, agarrou-se-lhe este aos cabelos com tanta ânsia que lhe trouxe uma mão-cheia deles, nos quais eu vim pegado por casualidade. E foi felicidade e esperteza minha passar-lhe para a mão antes que os botasse fora. A poucos passos estava na cabeça onde lhe encaixei a Carapuça V.
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Notas
(1) O celamim ou selamim é uma antiga unidade de medida de capacidade para secos, usada em Portugal e no Brasil, correspondendo à décima sexta parte de um alqueire. Hoje em dia, o celamim é usado no Brasil para medidas agrárias. (wikipedia)
(2) Chuço: Zagaia, na língua piolha. [N. do A.]
(3) Almoçava a sopa, jantava a vaca e ceava o arroz. [N. do A.]

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

George Abrão (Recarregando as baterias)

Nossos veículos, nossos aparelhos eletrônicos, nossos telefones celulares periodicamente necessitam de recargas em suas baterias para o seu perfeito funcionamento.

Nós, seres humanos, cujos corpos são movidos pela energia produzida por nossos metabolismos, sendo que cada batida dos nossos corações produz corrente de eletricidade, que varia a sua potência de um para outro indivíduo, dependendo da constituição orgânica das células e da condutibilidade de cada corpo, somos também máquinas elétricas. Sendo assim, é indispensável que cada ser humano mantenha o equilíbrio elétrico do seu corpo, sendo que ele depende da saúde física, mental e emocional de cada indivíduo.

Então, quando muitas vezes nos sentimos indispostos, sem muito ânimo e não achando muita graça no nosso habitat, é sinal evidente de que a nossa bateria - nosso coração - precisa ser recarregada para voltar às suas funções normais. E para isso se faz necessário se faz que diversifiquemos as nossas atividades; que mudemos de ambiente fazendo uma viagem ou mesmo um passeio a lugares agradáveis ao cinema, ao teatro ou até mesmo a um shopping e, principalmente, que reencontremos os nossos amigos em uma reunião, onde o bate-papo corra descontraído e onde possamos rir e nos divertir de forma sadia e reconfortante.

Ontem tive uma experiência que comprova essa teoria: como eu sofro de moléstias consideradas incuráveis pela medicina (não por Deus), apesar das minhas atividades diárias, sentia necessidade de algo mais, de mudar um pouco a minha rotina. Então recebi um convite de dois grandes e queridos amigos para que fosse jantar com eles e com mais alguns outros também bons amigos. Relutei um pouco, pela minha dificuldade de locomoção, mas acabei aceitando e fui com uma querida amiga.

Lá chegando, percebi que já ocorria certa mudança em mim pelo carinho com o qual fui recebido, pela atenção que me dispensaram, pelo excelente bate-papo muito alegre e descontraído, pelo cardápio excelente que nos foi oferecido, mas principalmente pela amizade e pelo companheirismo que eram a tônica da reunião.

A noite, para mim, tornou-se muito curta, pois sentia, virtualmente, a minha bateria recarregar-se aos poucos, dando-me mais ânimo para prosseguir a minha jornada.

Uma coisa tão simples? Um simples jantar? Não! Um momento único, o qual por mais que tentemos jamais será repetido, mesmo que busquemos o mesmo espaço, com a mesma decoração, com as mesmas pessoas, com o mesmo cardápio, enfim, mesmo que procuremos fazer tudo igual!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLI

A estrela tem seu momento
de mostrar todo o fulgor,
pode assim o firmamento
se revestir de esplendor.
= = = = = = = = = 

A água pura e cristalina
abrindo valos nos montes,
talvez a grande obra prima
se espalhando desde as fontes.
= = = = = = = = = 

Água para o chimarrão
não precisa ser fervente,
tendo a cuia e tudo à mão
basta que ela seja quente.
= = = = = = = = = 

A humanidade se afasta
do seu rumo à paz geral.
Só criar as leis não basta,
mas cumpri-las é vital.
= = = = = = = = = 

A neve cobre a paisagem
fazendo descer seu manto,
mesmo sendo maquilagem
veste-a de fulgor e encanto.
= = = = = = = = =

Ante o drama do tropeço
não podemos fracassar,
se não for bom o começo
é a vez de recomeçar...
= = = = = = = = = 

Antes de cruzar os braços
vê o que resta pra alcançar,
talvez juntar os pedaços
dos que estão a balançar.
= = = = = = = = = 

Aos habitantes da terra
clama o céu paternalmente,
que deixem de lado a guerra
e vivam fraternalmente.
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Da inveja nasce o ciúme
e da vingança a traição,
o amor que os seres reúne
morre sem definição.
= = = = = = = = = 

Em nome do crescimento
hoje, perdeu-se a noção,
de haver desenvolvimento
junto com preservação.
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Existem alguns amigos
que não são muito leais,
quando surgem os perigos
somem pelas laterais.
= = = = = = = = = 

Jamais aja sem pensar,
pense sempre antes de agir
e depois de começar
não pare sem concluir.
= = = = = = = = = 

Muita gente pede esmola
sem entrar no educandário,
melhor se tornasse a escola
a luz para o itinerário.
= = = = = = = = = 

Muitas vezes já parei
chorando na solidão,
noutras também já chorei
parado na imensidão.
= = = = = = = = = 

Nenhum casal seja omisso,
nem se jogue pelo abismo,
pois antes do compromisso
deve haver companheirismo.
= = = = = = = = = 

No buquê da natureza
admiramos tantas flores,
umas com rara beleza,
outras de raros olores.
= = = = = = = = = 

No mundo nunca devemos
temer quaisquer desafios,
pois quanto mais os tememos,
mais nos tornamos vazios.
= = = = = = = = = 

Num sorriso imaculado
sem respingos de maldade,
faz um semblante calado
se encher de felicidade.
= = = = = = = = = 

O mundo com sutileza
nos mostra tudo o que tem,
cabe a nós, sem avareza,
escolher o que convém.
= = = = = = = = = 

Os propósitos divinos
são de preservar a vida,
mormente a dos pequeninos
muitas vezes esquecida.
= = = = = = = = = 

Quem seca o pranto do irmão
não tem tempo pra chorar,
nunca está na contramão
quem a paz deixa aflorar.
= = = = = = = = = 

Se quiseres alcançar
o sol, distante no além,
saiba que deves passar
pelas estrelas também.
= = = = = = = = = 

Toda estrela cintilante
teve um caminho a trilhar.
Se a sua não for brilhante
deixe a dos outros brilhar,
= = = = = = = = = 

Tristeza e melancolia
não podem servir de alento,
mesmo pequena, a alegria,
é maior que o sofrimento.
= = = = = = = = = 

Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Nilto Maciel (Circuito)

“Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.”
Julio Cortázar, Casa tomada.

Cansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam diante de um bar. Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto.

O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até a tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes.

Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as ideias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo.

Por um instante Irene esqueceu de si mesma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas ideias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de ideias. A única ideia daquela noite deveria levá-los de volta à sua casa. Sim, a casa lhes pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado?

Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal. “Somos irmãos”. Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro.

Morava sozinho num casarão. Os pais mortos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento não quis nunca. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês.

O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. “Precisamos ir embora, caminhar”. Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. “Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos”. Irene amparou-se no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. “Iremos de carro”. Pior ainda. Não conseguiria dirigir. “Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer”.

O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro.

Súbito o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça III

Também não passei má vida e jamais passei pelo receio do pente de bichos, que foi traste que nunca lhe foi à cabeça. Mas vi-me ao princípio num perigo iminente. O pai da tal minha senhora contratava em pedras, e esmorecia pela filha, de forma que em ela lhe doendo um dedo, doía ao pobre homem o corpo todo. 

A rapariga entrou a queixar-se, uma vez dores de cabeça, outra vez do corpo moído, depois espinhela caída, constipação etc. Entraram a dizer que eram lombrigas, mas passados alguns tempos que a moléstia eram calos, e com efeito eram, que os pregou ao pai de maço e mona. Assentaram os peritos que eram necessários banhos. A menina, que estava com apetite na receita, quis logo ao outro dia tomá-los. O pai opôs-se, dizendo que era preciso preparar o corpo. Veio o mezinheiro e disse que o preparo do corpo para tomar os banhos era despir a camisa. A menina conveio nisso e, no outro dia, apresentou-se no mar. 

Depois de mil bichancros (gestos ridículos) e coisas ridículas do costume, como por exemplo: Está muito fria! Ai, que me mordeu um caranguejo! Meti uma ostra num pé! Não posso tomar o fôlego! Ai ...! Ai...! quem me acode! Perdi o fundo! etc., e outras coisas deste mesmo calibre, apresenta-me com a cabeça debaixo da água. 

Agora o verás: nunca me vi tão quente, apesar da água estar fria. O que me valeu foi uma coifa que a tal senhora levava, quando não, alguma barriga de linguado me esperava. Quando me vi fora da água não o podia crer. Mas, passado este primeiro susto, reconheci em mim mais agilidade, desembaraço de cabeça, apetite de chuchar e vim no conhecimento que muita gente melhora tomando os outros o remédio.

Enfim, botei o medo para trás das costas e continuei nos banhos e cheguei a estar tão gordo, que de gordo estava feio. Meus companheiros e amigos me desconheciam. Mas isto durou pouco tempo porque o pai entrou-se-lhe a meter na cabeça que os banhos da filha lhe haviam dar nele, proibindo-lhes, sendo o prelúdio desta proibição meia dúzia de bofetões bem puxados que a tal senhora recebeu com desgosto, apesar do pai lhes dar com a melhor vontade. Mas isto a mim não me importa, nem tem nada com a minha história.

Assim fui vivendo até que um dia meteu-lhe o diabo na cabeça o lavá-la com aguardente. Bagatela. Julguei que dava a casca. Fiquei tão atordoado que, quando tornei a mim, não sabia onde estava. Tremiam-me as pernas, andava-me a cabeça à roda, amargava-me a boca, não fazia senão espreguiçar-me e eu cuidei que tinha uma maligna às costas. Mas não foi nada. Melhorei e melhorei celebremente por uma casualidade. A moléstia, que me tinha ficado desta bebedeira, eram afrontamentos e uma espécie como de asma. Faltava-me o ar de forma que, estando na cama, julgava morrer de aflição. Mas pouco durou isto.

Um sujeito que tinha vindo de viajar agradou-se da menina. E, como o pai lhe fechava a janela logo à noite, ela tomou a mania de a abrir pela meia-noite e punha-se a falar até às duas e três horas com o tal suplicante. Isto foi o que me deu vida a mim, e a ela. Aquele fresco que tomava, inteiramente me restabeleceu. A fala, já se sabe, que era para bom fim. Ajustou-se o casamento. Concluiu-se e a noite do noivado jamais me esquecerá. Tive um trabalho incrível, em que lhes havia de dar a essas duas criaturinhas! Começa o marido, com o dedinho, a catar a cabeça da mulher. Eu que percebo isto, e o perigo em que estava, passo para a cabeça do marido. Passado um instante, larga o marido a catadela e salta a mulher a catá-lo. Torno para a cabeça da mulher e assim passaram toda a noite e eu aos saltos de cabeça em cabeça. Pela madrugada descansei alguma coisa, mas protestando de me safar apenas pudesse, o que concluí no dia imediato, deixando-me ficar na cabeça do marido que, indo fazer a barba, me passei para a cabeça do barbeiro e aí fiz a minha Carapuça IV.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.