quarta-feira, 19 de julho de 2023

Contos das Mil e Uma Noites (O saco prodigioso)

Contam que o califa Harun Al-Rachid, atormentado certa noite pela insônia, apelou a Jafar, seu vizir, para que lhe proporcionasse algum divertimento. Jafar respondeu: “Ó Emir dos Crentes, tenho um amigo chamado Ali que sabe uma porção de histórias deliciosas, ótimas para apagar as mágoas e acalmar os ânimos irritados!” 

Ali foi imediatamente chamado à presença do califa, e o califa disse-lhe: 
“Escuta, Ali! Disseram-me que conheces histórias capazes de dissipar a mágoa e de trazer o sono. Desejo de ti uma dessas histórias.” 

Ali respondeu:
Ouço e obedeço, ó Emir dos Crentes! Porém, não sei se devo contar-vos algo que tenha ouvido com meus ouvidos ou que haja visto com meus olhos!” 

Al-Rachid disse: 
“Prefiro uma história de que tu mesmo participes!” 

Então, disse Ali: 

“Um dia, estava eu sentado em minha tenda, vendendo e comprando, quando chegou um curdo para negociar comigo alguns objetos; mas, de repente, apoderou-se de um saco que eu tinha diante de mim, e sem se dar sequer ao trabalho de ocultá-lo, quis levá-lo, como se fosse de sua absoluta propriedade. De um salto, agarrei o curdo pela aba da roupa e exigi que me devolvesse o saco; mas ele encolheu os ombros e disse: “Ora este saco é meu com tudo o que contém!” Então, gritei o mais alto que pude: “Ó muçulmanos, salvai das mãos deste infiel o que é meu!” Ao ouvir meus gritos, todo o mercado agrupou-se em redor de nós, e os mercadores me aconselharam a queixar-me ao Cádi. 

“Quando chegamos à presença do cádi, mantivemo-nos de pé respeitosamente, e começou ele por perguntar-nos: “Quem de vós é o querelante e de quem se queixa?” O curdo, então, sem dar-me tempo para abrir a boca, adiantou-se alguns passos e respondeu:
Dê Alá seu apoio a nosso amo, o cádi! Este saco é meu. Pertence-me com todo o seu conteúdo. Havia-o perdido, e acabo de reencontrá-lo diante deste homem!” 

“O cádi perguntou-lhe: 
Quando o perdeste?

“O curdo respondeu: 
Ontem, e sua perda impediu-me de dormir à noite!” 

“O cádi disse-lhe: 
Enumera-me os objetos que contém!” 

“Sem titubear um instante, respondeu o curdo: 
“Em meu saco, ó nosso amo cádi, há um lenço, dois copos de limonada com a borda dourada, duas colheres, um almofadão, dois tapetes para mesa de jogo, duas panelas com água, duas cestas de vime, uma bandeja, uma marmita, um depósito de água de barro cozido, uma caçarola de cozinha, uma agulha grossa de fazer malha, dois sacos com provisões, uma gata, duas cadelas, uma vasilha com arroz, dois burros, duas liteiras para mulher, um traje de pano, duas peliças, uma vaca, dois bezerros, uma ovelha com dois cordeiros, uma fêmea de camelo com dois camelinhos, dois dromedários de carga com suas fêmeas, um búfalo, dois bois, uma leoa com dois leões, uma ursa, dois zorros, duas camas, um palácio com dois salões de recepção, duas tendas de fazenda verde, dois dosséis, uma cozinha com duas portas e uma assembleia de curdos de minha espécie, dispostos a dar fé de que este saco é meu saco.” 

“Então o cádi olhou para mim e perguntou-me: 
E que tens tu para contestar?” 

“Eu, ó Emir dos Crentes, estava estupefato com tudo aquilo. Entretanto, avancei um pouco e respondi: 
Que Alá leve e honre o nosso amo cádi! Eu sei que em meu saco há somente um pavilhão em ruínas, uma casa sem cozinha, um canil, uma escola de adultos, uns jovens jogando dados, uma guarida de salteadores, um exército com seus chefes, a cidade de Basra e a cidade de Bagdá, o palácio antigo do emir Chedad-Ben-Aad, um forno de ferreiro, um caniço de pescar, um cajado de pastor, cinco rapazes e doze donzelas intatas e mil condutores de caravanas dispostos a jurar que este saco é meu!” 

“Quando o curdo ouviu minha resposta, irrompeu em choro e soluços, e depois exclamou com a voz entrecortada por lágrimas: 
Ó nosso amo cádi, este saco que me pertence é conhecido e reconhecido, e todo mundo sabe que é de minha propriedade. Aliás, contém, além do que enumerei e que ia esquecendo, duas cidades fortificadas e dez torres, dois alambiques de alquimista, quatro jogadores de xadrez, uma égua e dois potros, uma sementeira, duas jaqueiras, duas lanças, duas lebres, um rapaz inteligente, dois mediadores, um cego, um coxo e dois paralíticos, um capitão de marinha, um navio com seus marinheiros, um sacerdote cristão, um patriarca e dois frades e, por fim, um cádi e duas testemunhas dispostas a jurar que este saco é meu!” 

“Ao ouvir estas palavras, o cádi olhou para mim e perguntou-me: 
Que tens para contestar a tudo isso?” 

“Eu, ó Emir dos Crentes, sentia-me enraivecido até a ponta dos cabelos. Adiantei-me, contudo, mais alguns passos e respondi com toda a calma de que era capaz: 
Alá esclareça e consolide o juízo de nosso amo, ó cádi! Devo acrescentar que neste saco há, além do que já enumerei e que também ia esquecendo, medicamentos contra dor de cabeça, filtros e amuletos, cotas de malhas e armários cheios de armas, mil carneiros destinados a lutar a chifradas, um parque com gado, homens dados às mulheres, outros afeiçoados aos rapazes, jardins cheios de árvores e de flores, vinhas carregadas de uvas, maçãs e figos, sombras e fantasmas, frascos e copos, cinco casais recém-casados com o seu séquito, vinte cantoras, cinco formosas escravas abissínias, três hindus, quatro gregas, cinqüenta turcas, setenta persas, quarenta cachemirenses, oitenta curdas, outras tantas chinesas, noventa georgianas, todo o país do Iraque, o paraíso terrestre, dois estábulos, uma esquita, vários banheiros públicos, cem mercadores, uma mesa de madeira, um escravo negro que toca clarinete, mil dinares, vinte caixões cheios de tecidos, cinqüenta armazéns, as cidade de Kufa, Gaza, Damieta, Assua, os palácios de Kisra Anuchiruan e de Salomão, todas as comarcas situadas entre Balkh e Ispahan, a Índia, o Sudão e o Khorassan. Meu saco contém ainda (Alá preserve os dias de nosso amo cádi) uma mortalha, um ataúde e uma navalha de barbear para a barba do cádi se o cádi não quiser reconhecer meus direitos e não sentenciar que este saco é de minha propriedade!”

“Quando o cádi ouviu tudo aquilo, olhou-nos e disse: “Por Alá, ou sois dois gaiatos que quereis zombar da lei e de seu representante, ou este saco é um abismo sem fundo ou o próprio Vale do Dia do Juízo!” 

“E para verificar quem estava mentindo, o cádi mandou abrir o saco ante as testemunhas. Continha umas cascas de laranja e uns caroços de azeitonas!

“Então, admirando-me o quanto pode alguém admirar-se, declarei ao cádi que aquele saco pertencia ao curdo e que o meu havia desaparecido. E fui-me.”

Quando o califa Harun Al-Rachid ouviu esta história, riu gostosamente, deu um magnífico presente a Ali, e dormiu até a manhã seguinte!

Fonte:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX.
Disponível em Domínio Público

Daniel Maurício (Mosaico de Sentimentos)


AMAR

Amar
palavra fácil de rimar.
Amar
difícil acontecer.
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APARTAMENTO

Olhar janela
panorama
um... dois... mil!
Luzes, esplendor
céu escuto
eu sozinho
no computador.
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JANEIROS

O verde dos teus olhos
encheram-me de esperanças para o amor.
Mas os janeiros foram passando,
rápidos como as águas
barulhentas entre as pedras
para as quais jamais retornam.
Hoje, os olhos já não choram
mas o peito ainda arde
estranhamente.
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LUAR

A lua
de tão cheia
espremia-se entre os prédios
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NOSTALGIA

Uma velhinha
olhando pela vidraça
quebrada
a chuvinha
que teimava a cair.
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PAPEL

Papel
por que falar das coisas grandes?
Suas grandezas, bastam-se a si mesmas.
Por que não falar
desse retângulo de sulfite branco
que fita-me
coisa-me
cochicha-me
segredos
que só eu posso entender?
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PARDAL SOLITÁRIO

Como um pardal solitário
pulando entre telhados
gorjeio com tintas e lágrimas
nos muros da cidade
à procura do meu amor juvenil.
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PÁSSARO FERIDO

Escorria a poesia.
O ambiente conspirava.
Os lábios entreabertos
resfolegavam
suplicantes.
Escorria a poesia.
As pernas tremiam.
Num movimento de ancas...
Pássaro ferido em meus lençóis,
Escorria…
Pura sedução.
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POEMA ACANHADINHO

Deflorei um livro
abri suas pernas-páginas
meus olhos bêbados
de tanta beleza
devoraram um poema
acanhadinho
que sangrava em minhas mãos.
Lágrimas, suor e céu.
Foi assim meu primeiro amor
pela poesia.
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POR AÍ

Andei por aí
todo solto na vida,
na vã esperança
de me curar de você.
Mas em cada ato
em cada fato
sempre vem você,
revivendo todo o amor
despertando toda a dor.
Ai, ferida que não sara!
Será que só você pode curar?
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QUEM É?

Quem é esta doida
santa ou devassa
que no meio da noite
por onde ela passa
exala a lascívia
respira a luxúria
vaca profana
de que me ama
e também a José?
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TEIMOSIA

Uma dor
que não quer curar
um amor
que não quer vingar
um botão
que teima em não desabrochar
um adeus
que não quer dizer
é o medo de poder
ter o que não se quer.
Seria pelo mesmo amor?
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VENTOS DA LIBERDADE

Vera Aurora
verdadeira deusa do amanhecer.
Nem preciso fechar os olhos
para rememorar a imagem
de tuas belas pernas
sob a eterna saia de veludo bordô.
Passos altivos
caminhar esnobante
aos olhares gulosos.
Desejos guardados,
pecados encobertos pelo medo,
Hoje, não há espaço para os segredos
a paixão ficou grande demais
para continuar sendo sussurrada
às escuras.
Vera Aurora,
verás a aurora do amor,
quando cortares as amarras
que te ligam ao velho cais.

Fonte:
Daniel Maurício. Mosaico de Sentimentos. São Paulo: Scortecci, 2013.
Enviado pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (As abelhas ETs)

O POLICIAL QUE VIERA da capital para investigar a estranha e misteriosa morte de um pescador num dos braços do rio que cortava aquele pequeno vilarejo perdido nos cafundós da floresta, se achegou do ancião que todos nas redondezas diziam ter sido a única testemunha que presenciara os derradeiros momentos do falecido antes que ele perdesse a vida quase alcançando a linha da marina onde, aliás, também ficava sediado o barracão da colônia de pescadores. O velhinho fumava seu cachimbo e espiava, em silêncio, para as águas barrentas do rio que se perdia ao longe. Pigarreou para se fazer notar e indagou:

— E então, meu bom homem, vai me contar direitinho como tudo aconteceu com seu amigo?

— Se o senhor quiser realmente ouvir...

— Pode começar. Sou todos ouvidos.

O ancião deu uma tragada longa em seu cachimbo e encarou o policial que o contemplava encostado na entrada que acessava a ponte onde alguns barcos estavam amarrados:

— Seu Manoel, moço, vinha vindo embora para casa. Estava bem ali, ó. Tá vendo aquela ilhazinha quase perto da margem?

— Ali? Aquela perto da barranca?

— Não, lá, depois dos manguezais.

— Tudo bem. Continue...

— Ele viajava numa piroga.

— Piroga?

— Canoa. Piroga, por aqui, é o mesmo que uma espécie de embarcação.

— Entendi. 

— Seu Manoel é um grande pescador.

— Melhor dito: era!

— Não, meu prezado. É. Mesmo depois de morto, ele continuará sendo um pescador. Um grande pescador.

O policial sorriu à essa observação infantil, mas percebendo a humildade de seu interlocutor, concordou com ele: 

— Está bem. Vamos supor que seja assim. E daí?

— Seu Manoel segurava dois remos enormes. A canoa dele era do tipo daquela, às costas do senhor, está vendo? A pintada de azul. Vinha cheia de peixes. Abarrotada. Então aconteceu...

— O que aconteceu exatamente?

— As abelhas chegaram em bando. Vieram dali.

O pescador apontou para uma espécie de bosque fechado:

— Chegaram em um enxame?

— Que seja, se assim o amigo está dizendo. 

— Mas eu soube, pelos vizinhos do senhor, que seu Manoel morreu afogado. Afinal, foi afogado ou picado?

— Acho que “Afopicado...” 

— Como?! Afo... afo o quê? — Quer, por favor, repetir?

— “Afopicado”, moço. Afogado com picado e vice-versa. Veja bem: quando as abelhas estavam se aproximando, o barco dele, velho de guerra, sentindo a presença fria da morte e temendo ser mordido...

— Picado... – emendou o policial:

— ...Com medo de ser, como o senhor bem colocou, picado, o barco não esperou pelo pior. Se armou e pá, puf! Saiu correndo...

O policial não pode deixar de dar um largo sorriso e aproveitar para fazer uma piadinha:

— O barco saiu correndo! Correndo ou nadando?

— Escuta só, meu senhor. Acho que nem uma coisa nem outra. A embarcação, a meu ver, deixou o local em desabalada “navegância”, ou, a toda velocidade, como se costuma dizer na linguagem dos pescadores. O senhor entende, não é mesmo?  Os barcos navegam. Resumindo: o barco antes de “tirar o time” emborcou. Antes que o senhor me pergunte o que é emborcar, vou logo esclarecendo. Virou de barriga para baixo. Depois que se livrou da carga, deu no pé. Se deixou ser levado pela correnteza...

— E as abelhas?

— Como perderam de vista o barco, caíram matando em cima do infeliz do seu Manoel. 

— Dentro da água?

— Aquelas abelhas nadavam. 

— Ué! Abelhas nadam?

— As daquela marca, sim...

— O senhor quis dizer, daquela espécie?

— Quis dizer e, de fato, disse. Perceba. As daquela espécie, são inimitáveis. Mergulham, nadam de costas, de frente, de lado, de banda. São feras. Inteligentes, ladinas. Mais até que os homens que, como eu, mais o velho Manoel (que o Bondoso Pai o tenha na glória), trabalharam a vida inteira em braços de rio como este que o senhor está vendo aqui.  Tem umas destas espécies que pulam de cabeça em busca do néctar, para produzirem o mel.

Mais gargalhadas: 

— O senhor está me dizendo que as abelhas picaram seu Manoel dentro da água?

— Perfeitamente.

— Mas...

— Até alguns peixes, na hora da confusão, saíram lanhados.

— Se entendi direito, picados?

— Mais ou menos a mesma coisa. A ordem dos fatores... sabia que encontrei um par deles com ferrões no cachaço do pescoço?

O policial estava às voltas de desistir daquela conversa fiada. Afinal, não chegaria à lugar algum dando atenção aquele infeliz, ouvindo a sua prosa de bocó sem noção. Perdera tempo. Um tempo precioso, à sua visão centrada dentro de um objetivo que ele tinha como lógico e real. Entretanto, antes de sumir do pedaço dando adeus definitivo ao seu interlocutor, se abriu feito mala velha em mais uma de suas enormes risadas barulhentas. Parecia um menino bobo diante de um fato inusitado:  

— No pescoço? Essa foi boa... e na barriga do falecido não encontraram nada que nos possa levar à alguma solução?

O velhinho, muito sério e tremendamente compenetrado, continuou firme, sem mover um músculo das faces cheias de cicatrizes provocadas pelo tempo que ficaram expostas aos raios solares:

— Perto das guelras... o senhor precisava estar aqui, na hora fatal. Ia se certificar de que não estou mentindo.

— O senhor já viu, alguma vez, essas abelhas por aqui?

— Até acontecer essa fatalidade com meu amigo, não. 

— Saberia informar, ao menos, de onde poderiam ter vindo?

O ancião apontou, com o cachimbo voltado para o céu azul acima da cabeça deles, um lugar no distante apartado do infinito:

— De lá.

O policial seguiu a indicação para onde a remota figura sinalizava:

— Das nuvens?

— Não, seu moço. De outro planeta. Acho que as tais abelhas têm parentesco com seres de outra galáxia desconhecida.

— Nessas alturas do campeonato o senhor vai querer me convencer de que, se eu sair por aí, posso encontrar uma nave?

O longevo ficou deveras chateado com esta observação inoportuna:

— Não digo que o senhor tope com a nave. Mas, com certeza, tropeçará ou cairá num buraco enorme...

— Buraco enorme?

— Sim, meu bom amigo. Uma cratera de dimensões espetaculosas que ela deixou logo ali na frente, na hora em que as abelhas se preparavam para empreenderem a viagem de volta ao desconhecido de onde, suponho, tenham partido para chegarem até aqui. 
Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 20

 

Artur de Azevedo (Uma noite em Petrópolis)

O Gustavo era literato e quase jornalista. Casou-se muito novo, aos vinte e três anos, e fez-se guarda-livros, porque decididamente a literatura não lhe dava com que manter a família.

O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada.

Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume.

— Gustavo!

— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir!

— Ouve; trata-se de uma coisa grave.

O Gustavo deu um pulo da cama.

— Hein?

— Tia Pulquéria...

— Morreu?

— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente.

— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz!

— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai...

— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento!

— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha.

— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho.

Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima — a ama seca de todos os quatros — tomava o trem para Cascadura.

O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão.

Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro.

O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar uma noite longe da família.

Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe:

— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade...

— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível.

— Pois aproveite a noite dormindo bem.

— Onde?

— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã.

A ideia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro e leve como uma flor! Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite.

O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex-Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta.

O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus.

Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões:

— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã!

Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si.

— Olhe quem ele é: O Gustavo!...

— Oh, Miranda!

— Que fazes tu em Petrópolis?

— Vim dormir, e tu?

— Eu resido aqui.

— Ah! E em que te empregas?

— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio.

O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se.

— Não! Já não te deixo!... – protestou o Miranda. – Anda daí tomar comigo um copo de cerveja.

— Não... desculpa-me...

— Não admito desculpas!

— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel.

— Nada! Nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte...

— Isso é uma extravagância: está chovendo!

— Ora! Um chuvisquinho à toa! Vamos!

— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono!

— Oh, desgraçado! Pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!…

E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria.

Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço.

— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! Nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas.

— Fala! – disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado.

— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha!

O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? — O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta:

— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha!

E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico.

— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! Um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas!

E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas dilatadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências...

Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro.

O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. Ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis — era esse o título do projetado jornal, — com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida.

A chuva caía agora a cântaros.

Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento:

— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!...

O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta.

O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou-se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado!

Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali!

Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!...

Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse:

— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai!

O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria.

Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.
Fonte:
Artur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.
Disponível em Domínio Público

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao Entardecer) – 2


 A chama em minha alma acesa
que o vento instigava forte,
hoje é lume sem defesa
que um sopro conduz à morte.
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Agrediu nosso romance,
rasgando cartas, retrato,
como se em último lance,
desse termo a um pugilato.
= = = = = = = = =

A loira cor do arrebol
que os campos de trigo enfeita
é mel que emana do sol,
dulcificando a colheita.
= = = = = = = = =

A verdade, transparente,
me diz que não vais voltar,
mas meu coração, carente,
se recusa a acreditar.
= = = = = = = = =

Bendigo o canto das águas
que fiel à correnteza,
arrasta angústias e mágoas
e cicatriza a tristeza.
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Desperdiçou toda a vida
semeando ódio e falsidade;
e hoje, enferma e esquecida.
colhe o fruto da maldade.
= = = = = = = = =

Do bom e do que sofri
no percurso das estradas,
resta a paz que eu adquiri.
O mais... são águas passadas.
= = = = = = = = =

Ela, ansiosa, em sobressalto,
ele a esboçar um poemeto...
E o flerte era o ponto alto
pelas voltas ao coreto.
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É símbolo de confiança
e a tensão nos descontrai,
a mãozinha da criança
aninhada ò mão do pai.
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Levando minhas imagens,
a musa me abandonou,
e inerme, ao léu das voragens,
o meu verso naufragou.
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Leva o barco as nossas mágoas,
sulcando as ondas além,
mas do outro lado das águas,
leva esperanças a alguém.
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Na seara de minha vida,
dos fracassos já refeita,
semeio, e em nova investida,
calma eu aguardo a colheita...
= = = = = = = = =

O amor chega sem aviso,
e em surdina, sem razão,
no mais tranquilo improviso,
se instala em um coração.
= = = = = = = = =

Orgulhoso, o mar gigante
desdenha dos rios a frágua,
sem lembrar, nem por instante,
que surgiu de um olho d'água.
= = = = = = = = =

O sol, silencioso, desce,
e é mais um dia a morrer,
mas do outro lado uma prece
lhe agradece o renascer.
= = = = = = = = =

Pela faixa policroma,
mensageira da bonança,
traz o arco-íris que assoma
o retorno da esperança.
= = = = = = = = =

Poeta, em doce magia,
eleva-se do seu chão,
atrelando a fantasia
às correntes da razão.
= = = = = = = = =

Que alegre repique o sino
trazendo mensagem tal
como a do arauto divino:
"Paz na Terra! Hoje é Nata!!''
= = = = = = = = =

Que ao som dos brindes em festa,
Natal a comemorar,
Jesus encontre uma fresta
e retorne ao seu lugar!
= = = = = = = = =

Reverencia o amigo
que te amparou na subida,
que esteve sempre contigo
nos maus momentos da vida!
= = = = = = = = =

Sempre que a insônia me apanha,
eu busco a voz das estrelas.
Vem-me a paz e... coisa estranha,
eu nem preciso entendê-las.
= = = = = = = = =

Uma flor despetalada,
por acaso ou ironia,
é a imagem desalentada
de um amor em agonia,
= = = = = = = = =

Vendo, em mudo sofrimento,
a vida me desertar,
entendo enfim, porque o vento
se recusa a silenciar.
= = = = = = = = =

Vi no esplendor do arco-íris
desprezo à prece que fiz;
pois cada faixa, ao partires,
foi perdendo o seu matiz.
= = = = = = = = =
Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 3: O potrinho

Nas manhãs frias de inverno, as mais congelantes de todo o país, os peões Juca, Simão, Pedro, Juliano, dentre outros, para se protegerem do frio, iam para a lida vestidos com ponchos pesados, feitos de pura lã, extraída das ovelhas da região.  Juca, o capataz da fazenda, dava início às ordenhas bem antes do raiar do sol. Ele sempre foi o homem de confiança da família Machado, e também o motivo de muitos cochichos entre os colegas, pois corria à boca pequena (
fofoca) que a sua esposa, Amélia, uma jovem descendente direta de indígenas,  o traía entre os arrozais com o peão Simão, que não era mais jovem e nem mais bonito do que o capataz, mas fazia sucesso com as mulheres.

Mas esqueçamos os cochichos e voltemos a refletir sobre os encantos daquele lugar dadivoso, um dos ambientes mais graciosos de todo o Rio Grande do Sul.

Ao leste da fazenda, ficava a plantação de arroz. Ao oeste, foram construídos os currais e cocheiras que abrigavam numerosos animais, a maioria, bois, ovelhas e cavalos. Ao norte das terras, cultivava-se um jardim colorido, com flores de diversas espécies e árvores frutíferas. O constante bailado das borboletas e o afinado cantar dos pássaros compunham ali um cenário verdadeiramente divino. Isadora adorava aquele canto da fazenda. Ali, conversava consigo e tentava entender os desígnios da vida.  Da vida como um todo. E da sua própria vida.

Ao sul, portal de entrada e saída, ficava o armazém "Peleando contra o Trago”. E ao lado, a escola onde Isadora estudou até que a professora, dona Almerinda, faleceu e o colégio teve as portas fechadas, deixando as crianças da localidade sem terminar os estudos.

Eram cinco horas da manhã, e dona Ana estava cheia de encomendas de aniversário a serem entregues no início da tarde. Sabendo que dificilmente daria conta do serviço sozinha, bateu à porta do quarto da filha.

-  Isa, acorda! Preciso da tua ajuda.

- Já vou mãe! - respondeu a filha com voz de sono.

Ao entrar na cozinha, Isadora se deparou com a mesa lotada de preparativos para quitutes e com o fogão à lenha quase sem espaço para colocar tantas panelas.

- A senhora está fazendo doces para servir a um batalhão, minha mãe?

- Olha que coincidência: dois vizinhos de nossas terras estão aniversariando hoje.
 
– Minha mãe, isso é escravidão.

- Deixa de ser exagerada, filha. Estamos precisando de dinheiro, como bem sabes. Mãos à obra.

 - Sim, eu lhe ajudo. Mas isso não está certo. A senhora é esposa de um rico fazendeiro. Na dispensa já falta comida. Onde o pai coloca o dinheiro que ganha? - indagou Isadora, com profundo desconsolo.

A mãe se calou. E ambas se concentraram nos quitutes.

Do lado de fora se ouvia o palavreado do Tagarela, papagaio de estimação, o latido do vira -lata, Costelinha, nome dado pelo seu aspecto muito magro... E o canto dos pássaros que adoravam pousar nos ipês que enfeitavam os arredores da casa.

Ipês, de flores brancas, rosas e amarelas. Os de copas amarelas eram as árvores favoritas da menina Isadora.

No intervalo dos trabalhos, quando as massas de bolos estavam assando,  debruçada no parapeito da janela da cozinha, Isadora começou a dissertar um trecho de um texto do educador Rubem Alves, também, adorador da mesma espécie de planta:

“Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está para chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio”.

Lá pelas três horas da tarde, Ana e a filha estavam exaustas, mas com os doces e salgados prontos.

- Isa, chama o Juca para fazer as entregas.

- Está bem. Vou ver se o encontro. Mãe, agora trate de descansar um pouco.

- Vou tomar um banho e deitar um pouquinho - disse a mãe que, sem ânimo, acabou adormecendo na cadeira com a cabeça e os braços debruçados sobre a mesa.

Isadora correu a fazenda à procura de Juca. Ao vê-la passar, os peões pararam o serviço e, por instantes, se apegaram à ilusória felicidade de um dia poder apertá-la entre os braços.

A moça tinha consciência do encanto que despertava naqueles homens simples, sedentos de aventuras, e sentia-se lisonjeada por isso.

Achava graça em ver a cara de bobo de cada um e respondia aos seus acenos. Mas ao se aproximar, mesmo simpática, nunca aceitava ouvir cantadas.

Certa vez um jovem peão a convidou para sair. Mas, no mesmo instante ela cortou as intenções do pobre rapaz.

E quanto aos casados, com frequência, cochichava ao pé de seus ouvidos -  pares de me olhar assim ... Senão conto tudo à tua esposa.  E depois seguia com o seu jeito livre de ser... Como se nada estivesse acontecendo.

- Pedro! Viste o Juca? – perguntou ela.

- Não vi o companheiro ainda hoje.

- Bem. Então vou até a cocheira apanhar o Relâmpago. A cavalo o acharei depressa.

Pedro tirou o chapéu em sinal de reverência e respeito, mas logo espichou os olhos e se deleitou ao observar o balanceado do corpo da jovem patroa no seu distanciar frenético.

Na cocheira, Isa se deparou com Juca tentando salvar a vida de um potrinho.

- O que houve com o bichinho? - indagou ela preocupada.

- Encontrei o pobrezinho abandonado no meio da estrada. - disse o peão.

- Ele está muito fraco. Deve ser fome. Traz leite, Juca. Rápido.

O agregado obedeceu.

Eles tentaram fazer com que o animal se alimentasse, mas o bichinho rejeitou a mamadeira.  

- Acho melhor chamar o veterinário Bernardo, senão ele vai morrer - disse Isadora - Ó Deus! Ao ver o animal assim, até esqueci. A mãe precisa que faças as entregas de umas encomendas com urgência. Manda o Juliano chamar o veterinário. Vou ficar aqui cuidando do pobrezinho.

   - Mas o patrão não vai gostar de saber que a filha dele está enfiada entre os bichos e os peões dentro de uma cocheira. - alertou o atencioso capataz.

- Com o pai eu me entendo depois. Agora vai.

Isadora aguardou o socorro ao lado do potro. E relembrou que numa tarde semelhante àquela, quando tinha apenas sete anos e pode acompanhar pela primeira vez o parto de um potrinho, filho da Generosa, uma linda égua baia, a mais cara da criação, que morreu após dar à luz. Antes de fechar os olhos, observou o filhote de forma tão terna e doída. Naquele momento sentiu um arrepio de dor vindo daquela mãe que não era um ser humano, mas também possuía sentimentos. Desde aquele acontecimento, Isadora se apegou aos bichos. Especialmente aos cavalos, seus companheiros de andanças sem destino.

Infelizmente, a espera pelo veterinário foi inútil. No decorrer dos exames o animalzinho faleceu.

- Mal nasceu para a vida e já se encontrou com a morte, ao contrário do que aconteceu à Generosa - disse ela chorando.

- Quem é Generosa? perguntou o veterinário. Mas ela, com um nó na garganta, se manteve calada.

- Sei o quanto gosta dos cavalos, mas não podemos fazer mais nada. - afirmou o veterinário. Tu vives em meio aos bichos, e sabe que essas coisas acontecem.

- Sei. Mas evito estar presente.

Ao término daquele momento triste, ela tomou o seu Relâmpago e, galopando, desapareceu por entre as trilhas de terra da fazenda.  
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora

Contos e Lendas do Paraná - 18 (Campo Mourão - Cerro Azul - Guaratuba)


Nota: em letras maiúsculas o nome da cidade que é originária a lenda/conto


CAMPO MOURÃO
A lenda de São Tomé (o caminho do Peabiru)


Num dos dias mais frios do mês de junho, Nhô Juca, figura muito conhecida na região, por ser uma personagem enigmática e muito amável com todos que o conheciam, estava em seu rancho, às margens do rio Piquiri, acendendo uma pequena fogueira para se aquecer. Ia assar
pinhão, fruto da Araucária. Era costume dos moradores dali comer pinhão e também saborear o chimarrão, a erva nativa.

Nhô Juca tinha muitos compadres, pois sendo uma pessoa muito antiga no lugar, ajudava todos que o procuravam, com seus remédios caseiros, seus conselhos de ancião e seus belos causos. No rústico rancho onde vivia, nos finais de tarde, recebia seus amigos. Sentados em banquinhos, ou pedaços de troncos, ouviam e contavam histórias, principalmente causos de assombração, boitatá, saci-pererê e muitas outras. Além da iluminação da fogueira, no centro do rancho usava-se uma lamparina de querosene.

Então nesse final de tarde, como um ritual, seus companheiros, após um dia de lida na roça, vieram conversar com o compadre Juca e também ver se ele não estava precisando de nada, pois era sozinho na vida. Dele não se conhecia a existência nem de mulher, nem de filhos. A conversa estava tão animada que nem perceberam a tempestade que se aproximava. O vento era tão forte que atravessava de um lado para outro do rancho, ficando impossível manter a lamparina acesa.

Os visitantes estavam assustados, porém Nhô Juca, em sua calma, começou a lhes contar uma nova história. Disse que aquela região já havia pertencido aos índios e que estes haviam construído um caminho muito importante: o caminho do Peabiru. Era uma trilha muito antiga e comprida, começava no Oceano Atlântico e terminava no Oceano Pacífico, atravessando a América do Sul. Tinha mais ou menos 3 mil quilômetros de comprimento e cerca de 1,4 metro de largura, mais parecendo uma grande valeta no meio da floresta.

– E este caminho ainda existe? – perguntou Pedro, maravilhado.

– Pois bem, os índios, nossos antepassados, tinham a sua sabedoria, não eram bobos não. Eles plantavam nesse caminho uma grama miúda que evitava que a chuva lavasse a terra e, ao mesmo tempo, impedia que as ervas daninhas invadissem a valeta. Assim, o caminho ficaria sempre limpinho, mais parecendo um corredor encarpetado de verde, bem fofinho.

– Ah! Que espertos, hein, compadre? – disse Pedro, admirado.

– Pois bem, como eu lhes falei, os índios não eram burros não, essa grama era plantada em alguns trechos e ia se reproduzindo e avançando o caminho. E também soltava umas sementinhas gelatinosas que grudavam nos pés e pernas dos que por ali passavam e a levavam pelo caminho; dessa forma, as sementes iam caindo e novos trechos iam sendo formados.

E a conversa continuou, falaram dos índios, seus costumes e até da sua saída da região. Nhô Juca, então, resolveu contar-lhes sobre a lenda que envolve este caminho milenar.

– “Sabem, compadres, dizem que por este caminho andava muita gente importante da nossa história. Ouvi, certa vez, um moço lá da capital, que tava cavocando uns buracos na beira do rio, procurando sei lá o que, dizer que por aqui passou um homem branco, pois só existiam os índios e este homem fez muita coisa boa para eles. Dizem que ele veio das águas e que seu nome era Tomé ou Pai Zumé, como os índios o chamavam. Era um homem branco, alto, com longas barbas. Usava cabelos curtos com uma tonsura no alto da cabeça, igual às que os padres tinham. A roupa branca ia até os pés, amarrada por um fino cinturão de couro. Nas mãos trazia um livro semelhante ao Breviário dos sacerdotes e também uma cruz.

– “Por todos os lugares onde passava, deixava seus ensinamentos, condenando a poligamia e a antropofagia. Ele evangelizava os índios falando sobre o único Deus. Também ensinou aos índios o cultivo de outras culturas como a cana-de-açúcar e o milho. Por pregar a palavra do bem e censurar a imoralidade, causou grande revolta nos chefes e pajés que, furiosos, mandaram persegui-lo, incendiando as cabanas onde se abrigava para descansar, disparando flechas e pedras no profeta. Ileso dos atentados sofridos, sempre fugia pelas águas dos rios ou do mar.

– “Muitos dos antigos dizem que o homem branco era Tomé, apóstolo de Jesus Cristo, o mesmo que duvidou da ressurreição, pois pediu para colocar seus dedos nas chagas de Cristo para ver o sinal dos cravos em suas mãos. Como foi descrente, Jesus lhe deu a missão de pregar o evangelho nas terras mais longínquas do mundo. Naquela época, o mundo era apenas o Oriente, a Europa, África e a Ásia. Dizem que Tomé foi primeiro para a Pérsia. Assim que concluiu suas pregações, entrou num barco de mercadores rumo às Índias. Alcançou a Índia chegando até a China. Depois avançou no mar, indo parar em ilhas não determinadas. Como chegou ao Brasil, não se sabe, apenas alguns padres jesuítas relatam sua passagem por estas terras. Seu percurso começava no oceano Atlântico e terminava no Pacífico.”

– Nossa, compadre, esse caboclo viajou muito, hein! – exclamou Pedro.

– Pois é, era a sua missão e nada o impedia. Porém, certo dia os inimigos conseguiram pegá-lo e o amarraram numa grande pedra. Furiosos, surraram-no e o largaram desmaiado. Então, três grandes águias desceram do céu, cortaram as amarras e o libertaram. Ele fugiu pelas águas da mesma maneira que havia chegado e nunca mais ninguém soube do seu paradeiro.

– E esse caminho do Peabiru ainda existe, compadre? – pergunta Pedro.

– Olha, eu escutei uns moços, lá no boteco do seu João-Pé-Grande, falando desse caminho, dizem que ainda existem alguns lugares dele. Mas ainda tem mais. O Apóstolo Tomé ou Pai Zumé, dizia que era para preservarem o caminho do Peabiru, e se um dia ele fosse destruído pelos gigantes de ferro e aço, haveria muita seca, as aves e animais iriam acabar e as águas dos rios se tornariam escuras.

Nhô Juca enche a cuia com a água fervente da chaleira preta de ferro e repassa para Pedro. Todos ficam em silêncio. Apenas a fumaça dos palheiros sobe no ar.

– É preciso ver para crer.
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CERRO AZUL
Mais uma do Hermógenes


Isso foi nos tempos da primeira república. Hermógenes, o grandalhão, mandava em Cerro Azul. Sua fama é de um homem muito malvado. Era tão temido, que teve pai batizando filho com o nome de Hermógenes, como sinal de respeito e para aplacar a ira do “Sinhozinho Malta” daquele tempo.

Era um político muito vingativo, segundo a versão de alguns. Ele tinha o apoio do Governo Estadual, por ser o chefe político da região. Como “não havia” autoridade policial era ele que “fazia o serviço”, à sua maneira. Estava sempre rodeado dos seus capangas, que cumpriam religiosamente todas as suas ordens. Quando ordenava para prender alguém e este não obedecia à voz de prisão, os capangas tinham recomendação de matar.

Certa vez, conta-nos Chico Tiblier, Hermógenes teria mandado prender um camarada e disse que se não pudessem trazê-lo vivo, que trouxessem a cabeça dele. E não é que os desgraçados fizeram o serviço ao pé da letra! Trouxeram a cabeça e a colocaram na mesa. Hermógenes, ao vê-la, teria dito:

– Barbaridade! Que serviço vocês fizeram. Com o susto, o tirano desmaiou e nunca mais conseguiu ser o mesmo. A cabeça do homem foi enterrada nos fundos de sua casa, onde é hoje o bar do Jadir. Depois que Hermógenes morreu, contam muitas pessoas, a casa dele ficou assombrada. Dizem, por exemplo, que o assoalho da casa se erguia e formava um caixão.
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GUARATUBA
A lenda do Brejatuba


Itacunhatã, assim é chamada uma rocha que forma o conjunto do morro do Cristo. Nome originário dos índios tinguis, que habitaram o litoral. Itacunhatã era um guerreiro famoso e perdido de amores por Juracê, da família dos Carijós.

Num passeio no alto do Brejatuba, Itacunhatã achou que havia conquistado Juracê. Ao envolvê-la em seus braços, Juracê esquivou-se e saiu correndo. Quando, de repente, caiu do alto do morro, sendo engolida por uma onda. Itacunhatã atirou-se para salvá-la, mas as ondas recuaram, ele foi de encontro às pedras e acabou morrendo.

O mar arrependeu-se e trouxe a jovem de volta para ser salva por Itacunhatã, que já não podia mais salvá-la. E assim o mar tem feito, trazendo sempre Juracê em suas ondas, para que um dia seja pega e salva por Itacunhatã

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2005.

domingo, 16 de julho de 2023

Adega de Versos 109: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Como ser chique)

Muita gente vive preocupada em ser reconhecida como elegante, fina, requintada ou, como ainda se diz, chique. Ser chique é agir de modo apreciado pelas figuras que povoam as altas rodas às quais ascenderam pelo dinheiro e pela aceitação dos outros. Em todas as cidades, até nas pequeninas e de menor importância econômico-político-social, encontram-se homens e mulheres muito interessados em pontear como a nata da sociedade local. Desenvolvem um esforço colossal para causarem boa impressão. Para granjear entre os seus concidadãos a admiração e o aplauso sem os quais a vida lhes parece uma coisa sem graça, penosa de ser vivida. No mundo inteiro, pelo que se percebe, há pessoas para quem a opinião alheia pesa mais do que as próprias convicções.

No passado, tempo em que as oceânicas distâncias impediam o acesso às fontes europeias da cultura e da elegância, as famílias abastadas destas rudes plagas enviavam os filhos à França, berço da “noblesse” e do conhecimento de então. Nossa fonte cultural, como os mais vividos recordam, desde então, recende os seus inegáveis eflúvios franceses. Só nas últimas décadas é que se impôs o domínio cultural norte-americano, que hoje todos conhecemos. Assim como o embrutecimento nas relações humanas, que hoje todos suportamos. No seu tempo de estudantes, muitos adultos de hoje tiveram que estudar francês, não inglês, como atualmente. Alguns chegaram a estudar até latim, matriz da nossa língua e cultura.

A prática da elegância, do fino trato no relacionamento interpessoal, era exigência de qualquer educação digna desse nome. Nem todas as normas eram evidentes ou de fácil assimilação. Por isso, muito se apreciavam os manuais de boas maneiras ou de civilidade, que os estudantes, especialmente os de colégio interno, eram obrigados a conhecer a fundo. Um dos mais divulgados, em todo o Brasil, desde os anos 30, foi o de autoria de Carmen D’ Ávila.

Mais recentemente, quem mostra interesse por saber o que fica bem em sociedade tem que recorrer à mestra Glória Kallil, consultora de estilo e de negócios ligados ao comportamento e à moda. Em matéria de etiqueta e elegância, nada escapa ao seu conhecimento.

Nunca me interessei por conferir o que ela fala ou publica. Nem me preocupou saber em que pensa ou crê. Mas um texto enviado por uma querida amiga levou-me a dar atenção a essa professora da arte de ser chique, como todos desejam. A página é longa, mas interessante. O pedacinho final diz assim:

“Para ser chique, chique mesmo, você tem, antes de tudo, de se lembrar sempre de quão breve é a vida e de que, ao fim e ao cabo, vamos todos terminar da mesma maneira, mortos sem levar nada material deste mundo. Portanto, não gaste sua energia com o que não tem valor, não desperdice as pessoas interessantes com quem se encontrar e não aceite, em hipótese alguma, fazer qualquer coisa que não lhe faça bem, que não seja correta.

Lembre-se: o diabo parece chique, mas o inferno não tem qualquer glamour. Porque, no final das contas, chique mesmo é crer em Deus. Investir em conhecimento pode nos tornar sábios… mas amor e fé nos tornam humanos”.

Conforta saber que isso não é sermão de padre nem de pastor. Afinal, a verdade independe de quem a profere.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 87

Mundanos espalham o medo no mundo e os humanos se recolhem rapidamente como cordeirinhos aos seus abrigos. Manhãs, tardes, noites ficam negras, pensares estacam, a vida encolhe. Lobos disseminam o ruim, o mal, o pior. O planeta é um caos programado. A insânia impera, domina, mata.

O vento espalha a verdade assoprando que a história se repete, as promessas de fim do mundo são pequenos apocalipses de tempos em tempos. A mitologia celta e as sibilinas dos romanos prediziam que no final dos tempos ocorreriam mudanças climáticas, decadência das classes sociais, maldade e o relaxamento dos costumes. Recordemos como chegaram os costumes na decadência do Império Romano.

A vida é infestada de males ? Eles são sazonais. Surgem de tempos em tempos. E sempre aparecem outros - novos ou antigos - que andam rondando nossas herdades físicas, psíquicas e materiais. Bem dizia o avô-filósofo, "onde está o homem está o perigo".
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXXVIII


Ante a paz dos pirilampos,
felizes na escuridão,
vão-se as mágoas pelos campos
e as dores também se vão!
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Ao ver a infância indo embora,
cheia de sonho e saudade,
comparo a uma flor que chora
dando adeus à mocidade!
= = = = = = = = =

As mágoas têm seus agravos;
e, entre as maldades profanas,
o tédio carrega os travos
das amarguras humanas!
= = = = = = = = =

As ondas, em terno açoite,
sob a nudez do luar,
tecem as vestes da noite
na areia branca do mar!
= = = = = = = = =

A trova que afasta o tédio,
que provoca pranto e dor,
pode conter o remédio
para as angústias do amor!
= = = = = = = = =

Bem mais difícil seria,
para manter minha calma,
fazer versos sem poesia,
e, versos pagãos, sem alma!
= = = = = = = = =

Desfaz todos os entraves
e quebra todos os nós,
o timbre das notas graves
do canto dos curiós!
= = = = = = = = =

Diante do altar e de joelhos,
curvo a cabeça ante a Luz
e, ouço os mais santos conselhos
que há no silêncio da Cruz!
= = = = = = = = =

Eis que o amor, se justifica
pelo tempo que perdura;
quanto mais velho ele fica,
mais nos dá força e ternura!
= = = = = = = = =

Juventude!... Ante os teus ais,
pelos teus frágeis acenos,
percebo cada vez mais
que existes cada vez menos!
= = = = = = = = =

Minha rua, pobre e bela
e, eu sempre a quis pobre e nua;
na infância, eu brincava nela
sem ser criança de rua!
= = = = = = = = =

Não sei por que tu partiste;
mas, te impedir, eu não pude,
porque entre nós, não existe
os sopros da juventude!
= = = = = = = = =

Nas pétalas de uma flor,
deixei um recado assim:
– Se alguém tiver mais amor,
proteja essa flor, por mim!
= = = = = = = = =

Nesta manhã, calma e mansa,
nós somos dois arrebóis
jorrando luz e esperança,
na esperança de outros sóis!
= = = = = = = = =

O orvalho que molha a flor,
tem beleza e desencanto:
à noite, gotas de amor
e, à luz do Sol, vira pranto!
= = = = = = = = =

O teu canto, ave canora,
na prisão, que alguém te deu,
tem toda a dor de quem chora
por alguém que já morreu!
= = = = = = = = =

Quando tu passas dengosa,
a vida de amor se banha
e, minha alma preguiçosa,
a tua sombra acompanha!
= = = = = = = = =

São tantos os teus desvelos
nesta fronte encanecida,
que ao contemplar teus cabelos,
contemplo a fronte da vida!
= = = = = = = = =

Saudade - ao som da viola,
numa noite de luar,
na noite em que nos consola
faz a gente delirar!
= = = = = = = = =

Se a desventura te amarga,
e tu, reclamas por isto,
pensa no peso da carga
dos braços da cruz de Cristo!
= = = = = = = = =

Sigo com minha alegria
e, as horas comigo vão;
mas, se eu voltar algum dia,
as horas não voltarão!
= = = = = = = = =

Sobre a vida, às vezes, penso,
à luz de tantas auroras,
que a vida é um sino suspenso
martelando a dor das horas!
= = = = = = = = =

Teu nome, nunca enxovalhes
em busca de fama e glória,
que a verdade em seus detalhes
desfaz as farsas da história!
= = = = = = = = =

Tristonha, e de alma sombria,
em tudo se complicava:
diante do pranto, sorria,
mas, ante o riso, chorava!
= = = = = = = = =

Tuas cartas!... tuas cartas,
só me causam pranto e dor,
por tantas lembranças fartas
desses excessos do amor!
= = = = = = = = =

Tudo que sobra em meu teto,
e a massa do pão, que amasso,
vêm da mistura do afeto
de tudo aquilo que eu faço!
= = = = = = = = =
Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Enviado pelo trovador.

Machado de Assis (Vae Soli!)

Um dia desta semana, farto de vendavais, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, farto de ver como se descompõem os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silêncio sem quietação, peguei de uma página de anúncios, e disse comigo:

"Eia, passemos em revista as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magnésias, sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas-de-leite, cobradores, coqueluche, hipotecas, professores, tosses crônicas..."

E o meu espírito, estendendo e juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma coluna abaixo. Quando voltou à tona, trazia entre os dedos esta pérola:

Uma viúva interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruído, e também com meios de vida, que esteja como ela cansado de viver só; resposta por carta ao escritório desta folha, com as iniciais M. R..., anunciando, a fim de ser procurada essa carta.

Gentil viúva, eu não sou o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das mulheres. Ai de quem está só! Dizem as sagradas letras; mas não foi a religião que te inspirou esse anúncio. Nem motivo teológico, nem metafísico. Positivo também não, porque o positivismo é infenso às segundas núpcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não queres amar; estás cansada de viver só.

E a cláusula de ser o esposo outro aborrecido, fato de solidão, mostra que tu não queres enganar, nem sacrificar ninguém. Ficam desde já excluídos os sonhadores, os que amem o mistério e procurem justamente esta ocasião de comprar um bilhete na loteria da vida. Que não pedes um diálogo de amor, é claro, desde que impões a cláusula da meia idade, zona em que as paixões arrefecem, onde as flores vão perdendo a cor purpúrea e o viço eterno. Não há de ser um náufrago, à espera de uma tábua de salvação, pois que exiges que também possua. E há de ser instruído, para encher com as luzes do espírito as longas noites do coração, e contar (sem as mãos presas) a tomada de Constantinopla.

Viúva dos meus pecados, quem és tu que sabes tanto? O teu anúncio lembra a carta de certo capitão da guarda de Nero. Rico, interessante, aborrecido, como tu, escreveu um dia ao grave Sêneca, perguntando-lhe como se havia de curar do tédio que sentia, e explicava-se por figura: "Não é a tempestade que me aflige, é o enjoo do mar". Viúva minha, o que tu queres realmente, não é um marido, é um remédio contra o enjoo. Vês que a travessia ainda é longa, — porque a tua idade está entre trinta e dois e trinta e oito anos, — o mar é agitado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel e indefinível. Não te contentas com o remédio de Sêneca, que era justamente a solidão, "a vida retirada, em que a alma acha todo o seu sossego". Tu já provaste esse preparado; não te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro que uma companhia.

Pode ser que a esta hora já tenhas achado o esposo nas condições definidas. Não estás ainda casada, porque é preciso fazer correr os pregões, e tens alguns dias diante de ti, para examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; não vá ele sair, em vez de um coração arrimado à bengala, um coração com pernas, e umas pernas com músculos e sangue; não vás tu ouvir, em vez da tomada de Constantinopla, a queda de Margarida nos braços de Fausto. Há desses corações, nevados por cima, como estão agora as serras do Itatiaia e de Itajubá, e contendo em si as lavas que o Etna está cuspindo desde alguns dias.

Mas, se ele te sair o que queres, que grande prêmio de loteria! Junto à amurada do navio, vendo a fúria do mar e dos ventos, tu ouvirás muitas coisas sérias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos a fúria dos ventos e o tumulto das ondas livre, do enjoo, como pedia aquele capitão de Nero, e por diferente regime do que lhe aconselhou o filósofo. E a tua conclusão será como a tua premissa; em caso de tédio, antes um marido que nada.

Fonte:
Machado de Assis. Páginas Recolhidas. Publicado originalmente no RJ: Editora Garnier, 1899.
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