sexta-feira, 31 de maio de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (O escuro alimento)

A MEDIOCRIDADE, conhecida também como uma coisa leviana ou corriqueira, é igualmente assemelhada a um terreno inóspito de areia movediça, ou seja, um determinado local onde um fenômeno natural (tipo uma praia deserta ou mesmo uma área frequentada por grande número de pessoas), tem a sua superfície embebida em água. Por conta de tal entrave, não oferece a resistência devida e necessária para quem se acha em posição de risco iminente. Assim sendo, contribui unicamente para que os menos desavisados (sejam elas pessoas, animais ou qualquer outro tipo de vida que respire) se vejam sumariamente tragados.

Grosso modo, um portento assombroso que pode nos afundar num abrir e fechar de olhos, e em consequência, nos aprisionar, impedindo os nossos passos de seguirem o horizonte delineado, o porto seguro. Visto por uma ótica mais estranha. Privando os nossos objetivos de deslancharem, de irem e virem e de alcançarem o verdadeiro e tão sonhado potencial que todos nós carregamos por força do Criador. Em outras palavras, uma voragem insólita e inesperada desviando para uma rota-alternativa e sem volta os nossos empenhos previamente delineados. 

Se tratando de jornada de existência desconhecida, muitas vezes nos encontramos em um itinerário que parece monótono e sem brilho. Será que a exiguidade, como a areia movediça se faria inevitável, ou melhor posto, poderia ser ela, de alguma forma, simplesmente evitada? Apesar de difícil, vamos tentar explorar o alvo de uma forma bem amena. A mediocridade ou a parvidade não seria apenas uma condição. Ela se faria como uma escolha “não escolhida.” Partindo daí, se manifestaria quando nos contentássemos com o mínimo, ou quando aceitássemos a mesmice e abandonássemos os desafios ainda não buscados. 

O segredo de uma existência falha e traiçoeira, é marcado por alguns comportamentos e atitudes. Quais seriam? Vejamos os mais chatos: O “Conformismo” lidera o ranking. Com isso, a mediocridade floresce, ganha vida e força, se robustece, quando nos agasalhamos com o “status quo.” Não buscamos, como deveríamos, o crescimento, bem ainda, não questionamos, não nos esforçamos, aliás, não fazemos nada... simplesmente aceitamos sem pestanejar, não movendo uma palha, para melhorar o quadro hostil bem ali à nossa frente. Quando nos acomodamos albergados na zona de conforto e deixamos de explorar novos horizontes, o obscuro desordenado imediatamente entra em cena e ganha terreno. 

Se continuarmos inertes, feitos pobres e tristes pacóvios, por certo, mais hoje, ou amanhã, sucumbiremos. Há um outro   ponto a ser trazido à baila. A “Falta de paixão.” Uma vida mal vivida, sem a vitalidade da vicissitude, carece de paixão. Muita paixão. De preferência uma devoção eufórica e avassaladora. Um dos nossos piores problemas está bem aqui diante de nossos narizes. Não nos dedicamos com fervor a nada. Levamos na flauta. Fazemos o mínimo necessário para sobreviver, porém, não nos apaixonamos idolatradamente por nossos projetos, relacionamentos ou sonhos.

Mesma estrada de retorno incerto, amamentamos como a um recém-nascido, a “Ausência de Autenticidade.” A burrice cavalar, nos leva a esconder a nossa verdadeira essência. Tememos ser diferentes e, em razão disso, nos camuflamos mergulhados em meio de uma multidão desenfreada e sem objetivos vorazes e sôfregos. Perdemos, com essa fraqueza, o âmago e, de lambuja, a plenitude. Deixamos de lado a autenticidade e, por conta, nos tornamos meras cópias desbotadas. “Medo do fracasso.” O receio de falharmos nos impede de arriscar. Preferimos não tentar coisa alguma, a enfrentarmos a possibilidade de não atingirmos, em cheio, o sucesso. Permanecemos, pois, onde o risco é mínimo, ou acredite se quiser, quase insignificante. 

“Resistência a mudanças. ” O anódino (insignificante), como todos devem saber, é balsâmico E por qual motivo é assim? Pelo fato de não queremos mudar, de não planejamos ir em frente. A mutação, ou a conversão, acima de qualquer coisa, exige esforço hercúleo e enfrentamento. Optamos pelo menor combate, qual seja, mantermos por comodidade, simplesmente deixarmos as coisas como estão, mesmo que isso signifique uma decisão simples conhecida como “estagnação.” Entre mortos e feridos, como escapar desse carreiro temerário? Como transformar uma existência despicienda em algo mais eficaz e duradoura e logicamente significativa? 

Se os meus senhores e as minhas senhoras me permitirem, darei algumas sugestões. “Autoconfiança.” Reconhecer quando estamos caindo no inócuo (inofensivo) inoperante seria o passo mais propício. Devemos estar sempre atentos aos sinais de conformismo e falta de paixão. A autoconsciência é o passo robusto, na verdade, o passo avultado e mais indicado para a verdadeira mudança. No mesmo seguimento, “Definir metas inspiradoras.” Também tal atitude não pode deixar de ser vista e revista. O que seriam metas inspiradoras? Simples! Estabelecermos ou criarmos situações inusitadas que empolguem, ou que balancem literalmente a roseira. 

O arrebatamento quando ponderoso (importante) e suasório (convincente), costuma dar bons resultados. Devemos também sonhar grande e traçar uma estrada direta e sem curvas, para abocanharmos os objetivos pretendidos. É de bom alvitre lembrarmos sempre que a moderação vulgar não sobrevive quando há uma visão clara e objetiva do que realmente temos como favoritismo. Outro ponto fundamental. “Superar os medos.” Aceitamos com fé e coragem que o fracasso faz parte do processo. Todavia, nunca deixarmos que o receio se achegue e paralise a nossa mente, ou tolha os nossos   movimentos, ou no pior dos mundos, tente pintar de outras cores, o nosso cotidiano. 

Precisamos aprender de uma vez por todas com os erros e continuarmos avançando. Sempre em frente. Passos à retaguarda, nem para tomar impulso. “Carecemos, outrossim, sermos autênticos.” Abandonarmos as máscaras. Mostrarmos como somos, com todas as nossas imperfeições e peculiaridades. A autenticidade é uma fonte libertadora e inesgotável que nos afasta para bem distante da submissão. “Abraçar a mudança.” A vida, meus caros e nobres amigos, é dinâmica. Por assim, se faz mister estarmos dispostos a mudar, a aprender, a crescer. Sobretudo, a nos expandirmos. 

A avareza de espírito, a sovinice, ou até mesmo a ignorância em sua forma mais apurada, não sobrevivem em um coração de portas abertas, menos ainda frenteada a uma alma limpa e cristalina em ritmo constante de transformação total. Termos, acima de tudo, haja o que houver, a certeza amadurecida de que a somiticaria (avareza) é uma escolha. Nós todos podemos, a qualquer tempo, optar por seguirmos um itinerário monótono ou, em via paralela, trilharmos por uma senda mais longa, usque (expressão em direito que significa até) desafiadora, majestosa e significativa. A decisão final, aquela que nos levará ao sucesso, glorioso estará sempre, seja em que circunstancia for, em nossas mãos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Eduardo Affonso (Herói da resistência)

Houve um tempo em que telefone telefonava e máquina fotográfica fotografava.

As coisas eram unívocas, com jurisdições demarcadas, como que regidas por uma religião.

Em algum momento algo se rompeu, e telefones começaram a fazer contas, mandar cartas, tocar música, tirar fotos.

Por que o telefone, não o ferro elétrico? Jamais saberemos.

O ferro elétrico é de um tempo em que máquina de escrever escrevia, carteiro entregava cartas e computador computava.

Então, como se tivessem surtado, computadores começaram a escrever, enviar e entregar cartas, as máquinas de escrever silenciaram, os carteiros tiraram um peso dos ombros e um pouco da alegria dos cachorros.

Relógios marcavam as horas, não batimentos cardíacos.

Cinemas passavam filmes, não encenações de milagres.

Impressoras imprimiam, copiadoras copiavam, aparelhos de fax enviavam fax – hoje, nestes tempos de transgêneros, uma multifuncional dá conta de tudo sozinha.

O micro-ondas já doura e gratina.

O liquidificador, que só liquidificava, mudou o nome para mixer e agora corta, amassa, mistura, processa, rala, pica, bate, tritura, e por pouco não chuleia, caseia e prega botão.

Só o ferro elétrico continua apenas passando roupa.

Ele resiste, solitário, à degeneração dos costumes.

Até os óculos enxergaram que o fim estava próximo, com as lentes descartáveis, e começaram a fotografar, filmar, ensinar o caminho, mandar e-mail.

Em vão.

Os óculos morrerão como morreram o monóculo, o pincenê, o telex, a antena interna, pager, disquete, fita k7, orelhão, ficha de orelhão, lâmpada incandescente, mimeógrafo, bala Soft, goma arábica, revólver de espoleta, anágua, bomba de flit, Emulsão de Scott, cinto de castidade.

Fogões não precisam mais de fogo.
Geladeiras degelam sozinhas.

Quando nada mais for o que era, nos restará o ferro elétrico como prova de fidelidade aos princípios, como exemplo de dedicação exclusiva, de fé inabalável no destino.

Pode soltar vapor pelas ventas, ter dezoito temperaturas, base de teflon, recipiente para amaciante, design aerodinâmico, funcionar com energia solar, não importa.

Não há ideologia de gênero que o faça tirar fotos.
Mandar mensagens de voz.
Pagar contas.
Curtir comentários.

Quando nenhum tecido amarrotar, ou quando roupa amarrotada virar moda, o ferro de passar cairá de pé.

Deixará o mundo pela porta da frente, de cabeça erguida e com a consciência tranquila de jamais ter se rendido.

(publicado originalmente em agosto de 2017)

Vereda da Poesia = 21 =


Trova de Santos/SP

Cláudio de Cápua
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Unindo a seresta ao verso
quero compor na amplidão.
Sou menestrel do universo,
em tardes de solidão.
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Soneto de Santo André/SP

Rommel Werneck
(Rommel dos Santos Andrade Werneck)

LUA LACRIMOSA

Não chores, lacrimosa e nívea Lua!
Se algo que falei agora te magoa,
Perdoa-me por vil lágrima tua
Que em ti desliza e em mim, na alma, ressoa!

Não chores, não destruas a beleza!
Por minha causa, por causa do amor
Eu não quis te causar nenhuma dor
Sabes que te amo, Musa da Pureza!

Mas, mesmo sendo à noite, a sinfonia,
Ficarias mais linda sendo rosa...
Ficarias mais linda sendo estrela...

Tu, se me amares, pálida e tão bela
Deixarás de ser lua lacrimosa
E serás o Sol, luz, fonte do dia!
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Trova Humorística do Rio de Janeiro/RJ

Jotão Silva

Casamento de verdade
pouca gente ainda procura:
querem ter a propriedade
sem pagar pela escritura!
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Poema de Cachoeira do Sul

Jaqueline Machado

QUERIA SER 

Na fração de tempo que cabe todo o meu existir, 
queria ser o brilho eterno de um raio dourado
a despertar a consciência 
de quem não sabe que nasceu para ser feliz...
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Trova de Sorocaba/SP

Dorothy Jansson Moretti   
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A cada golpe que malha
a rude pedra, o escultor
bendiz o cinzel que entalha
a estátua do seu amor.
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Quase um Soneto, de Maringá/PR

José Feldman

A VELHA CHATA

Essa é uma história ridícula,
com certeza é puro papo,
que vivia em uma edícula
uma velha... que era um trapo.

Sempre estava resmungando,
sobre todos, sobre tudo,
e sua vida, estagnando
em seu modo carrancudo.

Passam horas, passam dias,
se esvaindo as alegrias 
passa o tempo sem cessar.

Só esta velha não passa,
chata... parece pirraça,
a todos a azucrinar.
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Trova de Angra dos Reis/RJ

Jessé Nascimento
(Jessé Fernandes do Nascimento)

Me esculpindo a cada dia,
vendo no Mestre o padrão,
tento chegar - que utopia! -
mais perto da perfeição.
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Sextilha de Caicó/RN

Hélio Pedro
(Hélio Pedro Souza)

Surge em cada alvorecer,
o sol que cumpre o seu plano
de aquecimento ao planeta
sem que falte ano após ano,
mas no mundo o que mais falta
é o calor do ser humano.
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Haicai de Manaus/AM

Anibal Beça
(Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto)
Manaus/AM, 1946 – 2009

Morcego em surdina
morde e sopra o velho gato.
Não contava o pulo...
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Pantun de Caicó/RN

Professor Garcia
(Francisco Garcia de Araújo)

PANTUN DE ELEVADA PRECE

TROVA TEMA:
Na aurora de cada dia,
a Deus elevo uma prece;
- Pai, enchei de poesia
nosso povo que padece!
(Joamir Medeiros – RN)

PANTUN:
A Deus elevo uma prece;
ó Pai, salvai por favor,
nosso povo que padece
por falta de pão, de amor,

Ó Pai, salvai por favor,
os excluídos do afeto,
por falta de pão, de amor,
vivem sem lar e sem teto.

Os excluídos do afeto,
não têm voz, nem têm razão,
vivem sem lar e sem teto
ante a cruel exclusão.

Não têm voz, nem têm razão,
por berço, a melancolia,
ante a cruel exclusão
na aurora de cada dia.
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Trova Humorística de Maringá/PR

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis)

Aceitas dar-me os deleites 
da próxima contradança?... 
– Aceito, desde que aceites 
não me apertar contra a pança!
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Soneto de São Paulo/SP

Therezinha Dieguez Brisolla

ACEITAÇÃO

É sorrateira… chega de improviso.
Não há ninguém que a queira ou que a cobice!
Tento aceitá-la… sinto que é preciso
pois expulsá-la, eu acho que é tolice.

Não bate à porta… entra sem aviso.
Põe em meu rosto triste, tal meiguice!
E me faz calma… abranda o meu sorriso
 me dá também um “quê” de criancice.

Mas, não vem só… me traz esta saudade
e a nostalgia desta dor que invade
meu coração e nele  se encarcera.

Pondero bem… e ao discutir comigo
refaço sonhos e, feliz, lhe digo
“Entre, velhice… estava à sua espera”
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Trova Premiada  em São Francisco de Itabapoana/RJ, 2007

Alba Helena Corrêa 
Niterói/RJ

Onde Deus pôs mais beleza?
Na face? Creio que não!
Trago comigo a certeza:
Foi dentro do coração!
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Soneto de Vila Velha/ES

Edy Soares
(Edmardo Lourenço Rodrigues)

QUANDO EU PARTIR

Dá-me o teu colo, afagos e aconchego,
conta-me histórias, dá-me o teu abraço,
sê meu parceiro em coisas que hoje eu faço,
demonstra em vida que me tens apego.

Quando eu mais velho reclamar cansaço,
estende o braço e dá-me paz, sossego
e, ao fim da vida apenas desapego,
deixa eu partir, sem muito estardalhaço.

Não me interessa quem me chora a morte,
melhor saber que em vida eu tive a sorte
de não ter tido amigos de mentira!

Quando chegar o dia da partida,
se vou deixar um corpo já sem vida,
pouco me importa quem acenda a pira.
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Aldravia de São Caetano do Sul/SP

Francisco Nunes

o
salva-vidas
morreu
afogado
na
tristeza
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Sextilhas de Niterói/RJ

Fagundes Varela
(Luiz Nicolau Fagundes Varela)
Rio Claro/RJ, 1841 – 1875, Niterói/RJ

Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado

Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão das tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios

Amo as tímidas aranhas
Que lacerando as entranhas
Fabricam dourados fios
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios

Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras
E as rãs que os pauis habitam
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras

Amo-os, porque todo o mundo
Lhes vota um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação.
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Trova de Bandeirantes/PR

Lucília Alzira Trindade Decarli

A felicidade é rara
e bem poucos a conhecem…
Os que a viram “cara a cara”,
nunca mais dela se esquecem!
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Poema de Portugal

Adolfo Casais Monteiro
(Adolfo Vítor Casais Monteiro)
Porto/Portugal, 1908 – 1972, São Paulo/SP

AURORA

A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
vôo sem pássaro dentro.
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
(Roberto José Correia)
1876 – 1941

No Brasil, é pragmática,
Das discussões na fervura,
Entrar – no meio – a gramática,
No fim a descompostura.
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Glosa de Fortaleza/CE

Francisco Pessoa
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

CADA PASSO É MAIS UM SONHO 
AO LONGO DO CAMINHAR

Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.

Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.
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Trova Premiada  em Bauru/SP, 2004

Neide Rocha Portugal 
Bandeirantes/PR

Entre o barro e o pó da estrada
das lavouras de onde eu venho,
minha herança, na jornada,
são esses calos que eu tenho!
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Spina* de São Paulo/SP

Solange Colombara

SEMENTE

Renasço cada manhã,
ecoando em silêncios
esta intensa sensação

de sentir-se viva, uma ilusão
em que fragmentos da alma
unem-se aos ecos no chão,
germinando de novo a vida...
abraçando a voz do coração.
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* O Spina é um poema de duas estrofes. A primeira de três versos com três palavras, obrigatoriamente, iniciada por uma acepção trissílaba. A última palavra desta estrofe rimará sempre com a última do terceiro e quinto versos. Cada palavra dos versos está representada pelo sinal diacrítico (til). A segunda estrofe é composta por cinco versos com cinco palavras em cada verso.

Palavras compostas com e sem hífen são censuradas no início do poema. Da mesma forma que a ênclise e a mesóclise.

O último verso da primeira estrofe rimará sempre com o terceiro e quinto verso da segunda estrofe. Além deste esquema rímico obrigatório: ABC//DECFC se admite rimas nos demais versos. No entanto, não se deve mudar o esquema rímico obrigatório.

O título e a métrica são opcionais. Ao optar pela métrica regular, não se deve, jamais, alterar a quantidade de palavras dos versos com o intuito de alcançar a métrica desejada.

As conjunções: mas, e, porém, no entanto, entretanto, pois, todavia, contudo, são todas proibidas. As palavras compostas por hífen são contadas como uma única palavra. As compostas sem hífen são contadas individualmente. A aglutinação de palavras por apóstrofo não as tornam vocábulos únicos. Cada elemento será contado como único.

Utilizar palavras iguais nas rimas quando os seus significados forem diferentes; não são permitidas rimas imperfeitas nas sequências obrigatórias.

As palavras contendo as chamadas consoantes mudas (e sonoras) que tenham três sílabas compostas por consoantes e vogais podem iniciar o SPINA.

Eliana Palma (Microcontos) = 3 =

Não suportava mais a fibromialgia. A infiltração de anestésico a fez sorrir, aliviada, pouco  antes que o choque anafilático eliminasse a dor... definitivamente.
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Voluntariosos, não davam o braço a torcer. Trocaram o amor pelo orgulho. Hoje, duas famílias desfeitas sofrem com o reatar da paixão antiga!
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Sentira o carocinho há tempos. Não doía. Deixou para lá! Calva e sem curvas, lamenta a negligência!!!!!
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Depois da “barriga de aluguel”, a casa nova e o coração vazio…
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Trocou a mulher velha e gorda pela gatinha coquete. O coração safenado não resistiu à emoção da primeira noite!
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Sempre se achara diferente dos irmãos; loira, sardenta; os outros, morenaços como o pai. E a voz da vizinha não saía da cabeça: "você é a cara do ex-namorado de sua mãe"...
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Uma vida de paixão à distância. Enviuvou. Esperou impaciente o tempo do luto, e foi atrás do grande amor. Errara o timing. Ele morrera uma semana antes!
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Embirrou que queria o carro da moda. O marido não podia, mas ela exigiu. Saiu da agência tão feliz que os olhos se encheram de lágrimas. Nem viu o ônibus acelerado...
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Fez um book caprichado: muito photoshop, reclamações e correções. E as perguntas invariáveis: "é sua filha"?
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Queria ser famoso no mundo da literatura! Contratou um escritor competente e pagou caro pela edição. Só no dia do lançamento deu-se conta de que nada era seu: nem o nome do autor, na capa...
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Custou para entrar na equipe. Subornou o técnico! No primeiro jogo a falta de habilidade o fez cair, e o estalo no tornozelo o deixou fora das quadras para sempre!!!!
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Chovia torrencialmente. Um homem, ao lado da estrada, fez sinal para parar. Obedeceu, e a pista foi tomada por enorme carreta, na contramão. Não havia ninguém no acostamento a quem pudesse agradecer...
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Do alto, olhava montanhas e vales feitos de nuvens. Estranhou o verde abrupto, e nem ouviu a explosão.
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Não faria exames de prevenção; e se aparecesse alguma coisa? Não fez. Apareceu. Esparramou-se e levou-a!
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Boa pessoa, não acreditava no além. Na hora da passagem, em meio a vultos luminosos, julgou ouvir: "Eu não disse?”
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Sol forte, brisa fresca e mar azul. Tinha fome, mas decidiu dar um mergulho antes. Ainda no ar, ao saltar da popa, divisou o triângulo cinzento, na flor da água, também em busca do almoço...
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Nunca trabalhara, seguindo o exemplo paterno. Na calçada, sob a chuva, em meio aos últimos pertences despejados, amaldiçoava a sabedoria do avô: —"Pai rico, filho nobre, neto pobre"!
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Sonhava em ter asas! Mas, ao menos, não tinha raízes... Custou a subir no penhasco e, finalmente, voou...
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Seu sonho era ser cantor, mas a voz não ajudava. Comprou horários e jabás, mas nada de a carreira decolar. Um dia, ouviu seu empresário cantarolar e trocou os papéis. Hoje, contando muito dinheiro acordou!
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Adotaram-no pequenino, sem se importarem com a procedência. Após a festa de 18 anos, a execução dos ricos pais adotivos no aflorar dos genes assassinos!
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Casou-se com o mais pobre da turma, sob o escárnio dos amigos da roda. Trabalho, poupança, foco, a melhor vida do grupo e a inveja dos demais.
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Sempre fora bela, mas a idade chegava e não cessavam os procedimentos estéticos. E o amigo alemão se recusava a contar a ela o motivo de querer conservar a imagem!

Fonte: Maria Eliana Palma. Momentos em prosa e verso. Maringá, 2016. Entregue pela autora.

Recordando Velhas Canções (Força Estranha)


Compositor: Caetano Veloso

Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O Sol ainda brilha na estrada, e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando
Outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o Sol me ensinou
O Sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos
Na fronte do artista
O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o Sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando
Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o Sol
E o Sol sobre a estrada, é o Sol sobre a estrada, é o Sol

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
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A Eternidade e o Momento: A Força da Arte em 'Força Estranha'
A canção 'Força Estranha', interpretada por Caetano Veloso, é uma obra que contempla a relação entre o tempo e a existência, a arte e a vida. A letra, rica em imagens poéticas, sugere uma reflexão sobre a passagem do tempo e a percepção de momentos que, embora efêmeros, são eternizados pela arte.

No primeiro verso, a visão de um menino correndo e o tempo 'brincando' ao seu redor evocam a ideia de que a vida é um ciclo contínuo e que o tempo é um elemento lúdico, mas também inexorável. A menção aos pés no riacho que nunca foram retirados e ao Sol que brilha na estrada por onde nunca se passou, pode ser interpretada como a imersão do eu lírico na corrente da vida e na luz da criação artística, sem se deixar levar pela pressa ou pela necessidade de seguir um caminho pré-determinado.

A 'força estranha' que leva o eu lírico a cantar é uma metáfora para a inspiração e a necessidade intrínseca de expressão artística. A repetição do refrão enfatiza a intensidade dessa força que impulsiona o artista a criar, a despeito do tempo que não para e das adversidades. A música, portanto, celebra a arte como uma manifestação atemporal e poderosa, capaz de capturar a essência da vida e de resistir ao próprio tempo.

Marcelo Spalding (A Ambientação nos Textos)

A AMBIENTAÇÃO EM TEXTOS HISTÓRICOS

Quem se aventura a escrever um texto histórico deve ter alguns cuidados com o enredo e a ambientação, pelo bem da verossimilhança. O curioso é que em relação ao enredo alguns artistas fazem o que se chama metaficção historiográfica, combinando de modo irreal os fatos da história e por vezes, inclusive, modificando-os. Se isso no começo espantou os leitores e espectadores, hoje é considerado característica da cultura pós-moderna.

Mesmo nesses casos, porém, é fundamental que a ambientação seja verossímil. Por mais que o artista esteja recriando os fatos da Segunda Guerra, como Tarantino em Bastardos Inglórios, não pode de uma hora para outra aparecer alguém com um telefone celular, ou alguém ouvindo Lady Gaga, ou alguém comentando sobre Barack Obama, ou alguém de minissaia.

Nesse sentido, para escrever um texto histórico procure se informar sobre a cultura da época: os costumes, a moda, a gastronomia. Mas, quando possível, procure se informar com textos e documentos da época, não a partir de textos de outros escritores sobre a época, pois sempre que um autor contemporâneo resgata o passado, ele o faz com o olhar contemporâneo.

Claro que alguns se esforçam para tornar a ambientação mais realista, outros não se preocupam com isso (como os blockbusters históricos de Hollywood, em que as mulheres da Idade Média têm cabelos bem cortados, sobrancelhas aparadas e axilas depiladas), mas é impossível dissociarmos totalmente o tempo em que vivemos, seus valores, seu passado, seus aprendizados, do tempo representado.

Lembre-se, por fim, de que a língua também é parte da cultura e também se modifica com o tempo. O próprio vocabulário das personagens precisa ser adequado à época: tenha cuidado com gírias, regionalismos ou construções comuns hoje, mas não utilizadas na época de ambientação do texto.
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A AMBIENTAÇÃO EM TEXTOS FUTURISTAS

A criação de textos futuristas é sempre muito instigante? embora não seja nada fácil. Ocorre que a ambientação de um texto futurista parte da realidade atual, modificando-a de acordo com a proposição do autor: por exemplo, se no futuro viveremos todos vigiados por um Big Brother; ou se no futuro não teremos mais água; ou se no futuro voaremos como pássaros.

Como exercício, imagine o mundo de hoje. Agora faça uma ou outra modificação importante nas leis de hoje (sociais, físicas, econômicas, políticas). E desloque sua história para 50 ou 100 anos adiante. Pronto, pense em quanta coisa mudou em função desse deslocamento.

Alguns escritores, como Júlio Verne, foram saudados como visionários por terem escrito sobre invenções que futuramente se confirmariam. Outros influenciaram as próprias pesquisas e o desenvolvimento tecnológico com seus textos, como Asimov. Modernamente, porém, percebemos que há uma grande quantidade de textos futuristas que se inspiram em pesquisas e relatos já publicados, explorando-os de forma poética e reflexiva em seriados, livros e filmes.

O filme Gattaca, por exemplo, lida com a complexa questão da engenharia genética e seus dilemas éticos. Esta é uma pesquisa avançada, e se não há ainda uma manipulação genética como a proposta no filme é mais por questões legais do que questões tecnológicas. Já Minority Report traz uma temática bastante fantasiosa ? a possibilidade de se prever crimes ?, mas com uma ambientação muito cuidadosa, baseada em pesquisas de ponta, como holografia, realidade aumentada, transportes individuais automatizados, reconhecimento facial, etc. Além disso, o filme cria uma ambientação social muito verossímil, com a tecnologia sendo usada para aumentar a segurança do cidadão, ainda que para isso viole sua liberdade e privacidade (neste aspecto, não poderia deixar de citar o seriado brasileiro 3%). Em histórias como Gattaca ou Minority Report, o futuro parece melhor ou mais organizado (embora os homens, por questões sociais, possam torná-lo aparentemente pior). Pode- mos dizer que essa é uma visão utópica, a do futuro como algo promissor, comum especialmente por aqueles que acreditam nas maravilhas da tecnologia.

Outra visão que se reflete na ficção futurista é a visão distópica, em que a humanidade é destruída em função de guerras, invenções tecnológicas, doenças, etc. Matrix e O Livro de Eli são exemplos de filmes distópicos, sem falar nos clássicos romances Admirável Mundo Novo e 1984. Particularmente me parece melhor evitar o maniqueísmo, cuidando o futuro catastrófico (já um tanto clichê) ou o futuro paradisíaco (até porque você precisa de um conflito).

Fontes:

quarta-feira, 29 de maio de 2024

José Feldman (Versejando) 139

 

Jaqueline Machado (O presenteador)

O jovem disse a um velho sábio:

- Sou um viajante sonhador. Em cada lugar que chego, compro presentes para oferecer às pessoas que amo. Junto dos presentes, ofereço minha transparência e verdade. Mas elas acham que quero algo em troca. Por que isso acontece?

 - “As pessoas não acreditam mais em gentilezas. Acostumaram-se a um estilo de vida onde nada mais parece ser genuíno, gratuito e verdadeiro. Não veem você como um presenteador, mas como um manipulador. Só que manipuladores forçam, e você apenas oferece... E apesar das decepções deve permanecer assim.

“Porque tudo que é manipulado, calculado demais, foge à essência natural das coisas. 

“Tudo o que fere o livre arbítrio, não é da vontade de Deus. 

“Nem trabalho, nem amizade, nem amor. Nem outra coisa alguma. 

“Absolutamente nada deve ser forçado. 

“Se a pessoa recusa o seu presente, não o ofereça mais. 

“Nada pode ser exigido. O estranho é saber que muitos dos que se negam receber presentes da vida, são merecedores de tais dádivas, mas por algum motivo se sabotam.   

“E quando o que é sincero, por razões de orgulho e desconfiança parece ser falso, a Vida, zangada, vem e desfaz milagres e alianças que deveriam ser reconhecidas, celebradas e intensamente vividas junto dos anjos e dos homens.

“Em casos de negações, o merecedor vira pecador. 

“E o presente que era para ser de alguém, é tirado de suas mãos. E oferecido a quem merece mais. 

“É por motivos como estes que muita gente se perde do caminho da felicidade. 

“Vá em paz, meu bom garoto. Siga o seu caminho. E não deixe de viver de acordo com as regras de sua essência.” 

O rapaz, feliz, em sinal de reverencia beijou as mãos do ancião e com sua mochila cheia de lembrancinhas seguiu as trilhas de seu destino...

Fonte: Texto enviado pela autora