quinta-feira, 18 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Borboletas, Pirilampos - Um Homem à espera de ser Terra


     
BORBOLETAS, PIRILAMPOS

      No coberto do nosso pátio se passou a juntar a rapaziada da aldeia. Ali podíamos brincar protegidos pelo telhado de colmo. Nessa tarde, minha mãe saiu cedo e os meus assobios logo convocaram a miudagem. E vieram crianças aos magotes. Mas não foram apenas os miúdos que compareceram. Sem darmos conta, no alpendre se haviam juntado todas as borboletas da região. Era um infindar de asas e cores. Ao de leve toquei as asas de uma delas. Nos meus dedos ficou presa uma poeira dourada. Pareciam pequeninas escamas. Afinal, escamas como as de um peixe sem peso.

      Prisioneiros naquele exíguo espaço, que mais podíamos fazer senão brincar ao jogo das adivinhas?

      - Sabem qual é diferença entre borboleta e gente?

      - A pessoa tem alma, borboleta é alma.

      - O pirilampo morre?

      - Não. Que ele é como o Sol: apenas se põe.

      No flagrante da brincadeira vimos passar o menino branco, filho do dono da fábrica. Parecia mais pálido do que era, cabelos finos encharcados num desalinho. Os nossos cabelos, crespos, não se desmanchavam assim tanto.

      Todos os meninos se riram do miúdo, menos eu. Magoaram-me seus olhos gulosos invejando os nossos risos. Ainda me veio à boca o convite: ele que se juntasse. Mas qualquer coisa me suspendeu. Melhor seria não o forçar a que recusasse.

      De repente, meu pai, olhar esgazeado, rompeu-se entre nós. Os miúdos se encostaram nas paredes a dar espaço à fúria dele. O dedo, em riste, me alvejou:

      - Onde é que foi sua mãe?

      - Ela foi ao Tsilequene.

      - Você, se é mentira, bem que se pode arrepender. Vá já dizendo adeus aos seus amiguinhos.

      Com violência, ele me puxou pelas roupas. A mostrar que eu era coisa, não gente. A mostrar que ele era homem, não pai. A vergonha doía-me mais que as pancadas que se avizinhavam.

      - Senhor, desculpe...

      Era a voz descolorida do miúdo branco. Meu velho parou, surpreso, mantendo-me pelos colarinhos.

      - Desculpe, senhor: trago uma mensagem da sua esposa.

      - Mensagem? Da minha esposa?

      - Sim, senhor. Encontrei-a no mercado.

      - No Tsilequene?

      - Sim, no... nesse. Disse-me que entregasse isto ao seu filho.

      Relutante, meu pai me libertou. Aproximei-me do moço que estendia as mãos fechadas. Abriu as mãos nas minhas, de costas para todos os outros. Como eu previa, não havia nada no oco de suas mãos.

UM HOMEM À ESPERA DE SER TERRA

      Vou, não vou!

      Era o avô que gritava, angustiado. Saí correndo para a varanda. Não pude acreditar nos meus olhos: meu avô, trémulo, atacava com a bengala a cadeira sagrada de sua companheira. Enquanto esgrimia a bengala, não parava de berrar:

      - Espere, Ntoweni, não faça isso. Não faça isso comigo.

      Corri mais a ampará-lo do que a pará-lo. Porque a bengala já tombara da sua mão tremente. Ajudei-o a sentar-se, sacudi o ar para lhe restituir o peito. Ficou assim um tempo, seu respirar sendo um fio mais sumido que o rio. Contudo, seus pés raivosos procuravam ainda atingir a cadeira da falecida. E eu me perguntei: será que o nosso avô alguma vez tinha morado todo ele, inteiro, na crença daquele sagrado?

      Até que ele desabou, rosto enterrado entre as mãos. Meu avô chorava. Em vez de lágrimas, porém, lhe caíam pedrinhas pelo rosto.

      - Está chorar porquê, avô?

      - Estou com tanta saudade...

      - Saudade de quê?

      - Não sei, já esqueci.

      Minha mãe, entretanto, regressara a casa. Exibi as pedras choradas por seu pai.

      - Não diga disparates, filho. Já basta de coisa estranha!

      Atirou ao chão as pedrinhas, se chegou ao avô e sacudiu a cabeça. com vigor desmanchou o nó que o atava à cadeira:

      - Nunca mais ninguém amarrará ninguém nesta casa! Que era coisa que nem aos bichos se permite. Gritava alto e bom som para que toda a família escutasse. Meu pai repostou:

      - Mas, sem corda, ele vai-se, mulher. A mínima brisa, ele levanta. Você, depois, vai buscá-lo em cima da árvore?

      A mãe não desarmou. E, num outro tom, como se soubesse de segredos, proferiu:

      - Vai ver que, desatando-o a ele, estaremos a desamarrar a chuva. Vai ver!

      Meu pai se resignou. Mas ainda, antes de sair, depositou um búzio sobre o colo do avô. Era uma concha enorme, desses caracóis marinhos que crescem até ser do tamanho de uma rocha. Servia de peso e ele, na espera, podia até se entreter. Quem tem um búzio, tem o mar. O mais velho encostou o ouvido na concha e adormeceu enquanto a si mesmo se embalava. E já não era pessoa. Era um barco volteando por esse mar que ele nunca visitara e de que sempre falava:

      - Ah. esse mar, eu nunca lá estive mas já lá muito me perdi!

      O avô sempre quisera navegar para o estuário. Todos sempre se opuseram. Um dia, ele foi, fingiu que foi. Não passou da segunda curva do rio. Num remanso, ocultou o barco na margem e se abrigou num esconderijo. Ficou assim uns dias, deixou que a demora apertasse em nosso coração, fez pesar a sua ausência. Só depois regressou, empurrado pela fome e pela sede. Meus olhos ansiosos o cravejaram. Ele rebaixou os cantos dos lábios, displicente:

      - O mar como é? Ora, meu neto, o mar não se pode contar...

      E divagava, frases destoadas: tudo não é senão um ressoar de concha, águas de arribação. E o tontear do nada no vazio de um búzio.

      - Você entra na canoa, pega no remo mas não rema que é para não ofender o rio, entende?

      Não entendia. Como agora, continuava sem entendimento. Olhei em redor: todos se tinham retirado. Ficara eu reparando os estragos na cadeira de Ntoweni. Como que para castigo levantei uma das madeiras quebradas. O avô abanou a cabeça:

      - Veja o que fiz, quebrei o sustento dessa cadeira.

      - Isto repara-se, avô.

      - Mas a culpa é dela. A culpa é de Ntoweni. Diga uma coisa, meu neto: tenho culpa de não ter morrido? Tenho culpa, porventura?

      Pela primeira vez, o avô falava da morte. Parecia ter aberto uma porta interdita. Porque seguiu falando sem se deter. Que a sua tristeza não era o morrer. Era o não saber terminar. Se ele aprendera tanta coisa, até a posar para a fotografia. Não sabia, contudo, posar para a morte. Que palavra, que rosto preparamos para esse momento final?

      - Quando eu era menino, cheio de vida, eu sabia morrer. Agora, que já vou para a despedida, já esqueci como se morre.

      - Avô, morrer é coisa que ninguém sabe.

      - Sabe o peixe. Já viu como o peixe desfalece? Sem cansaço, sem tristeza, sem protesto.

      - Ora, avô, não falemos de coisas tristes. Sabe uma coisa? Um dia iremos os dois a ver o mar...

      - Eu já não tenho tempo. Devia era ter aprendido com o peixe,

      - Não diga isso, avô.

      Olhei para o mais velho e, num instante, o vi todo desaguado, ressequido como um deserto. Afinal, o pai tinha razão. O avô estava secando. Nele eu assistia à vida e seu destino: nascemos água, morremos terra.

      Minha mãe que, entretanto, chegara interrompeu-nos a conversa. Ao pesar aquela nossa tristeza, ela se interrogou: que falas seriam aquelas que tanto ensombravam o meu rosto?

      - Meu pai, por que fala de morte com um miúdo desta idade?

      - São verdades que esse miúdo necessita ir amanhando respondeu o avô.

      - Conversa - respondeu a mãe. E virando-se para mim, tranquilizou. - Não leve no peito, meu filho, isso é tudo fingimento.

      Cão que ladra é porque tem medo de ser mordido. Do mesmo modo, o avô se apoiava na palavra para ganhar força, vencer os medos que o atacavam por dentro.

      - Tudo isso é fingimento - repetiu a mãe.

      O avô fingia tudo, fingia pescar, fingia até viver. Não nos lembrávamos nós de como ele inventara a viagem rio acima?

      - Inventei mas não menti. Você vai aprender, meu neto: toda a viagem é um faz de conta.
     
continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 11


REFAZ-SE O RIO...

MOTE:
Vestem-se as águas de prata...
Saltam no espaço vazio...
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio.
A. A. de Assis 
Maringá/PR

GLOSA:

Vestem-se as águas de prata...
e num bailado bonito,
qual uma doce sonata
ecoam pelo infinito!

Eu fico a olhar essas águas...
Saltam no espaço vazio...
Misturam-se às minhas mágoas
num doloso desafio!

O espetáculo arrebata,
mas tudo volta ao normal.
Findo o show da catarata,
segue o rio o seu ritual!

Olhando essa calmaria,
me emociono e até sorrio,
pois com imensa harmonia,
sereno refaz-se o rio.
__________________________

HISTÓRIA DA GENTE

MOTE:
Esta saudade infinita
do amor que a gente viveu,
é a mensagem mais bonita,
que o meu passado escreveu!...
Aloísio Alves da Costa  
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Esta saudade infinita
fez ninho em meu coração
e, nele, até hoje habita
com a minha aprovação!

É doce e linda a lembrança
do amor que a gente viveu,
daquela eterna aliança
que um dia, entre nós, nasceu!

Minha alma, emotiva, grita
ao recordar nosso amor.
É a mensagem mais bonita,
a que tem maior valor!

Eu sou feliz novamente
lembrando o que aconteceu
na bela história envolvente,
que o meu passado escreveu!...
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O MAIOR SONHADOR

MOTE:
Redimindo os pecadores,
conduzindo-os para a luz,
o maior dos sonhadores,
morreu pregado na cruz!
Aparício Fernandes  
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Redimindo os pecadores,
por puro amor e altruísmo,
tentou aplacar as dores
numa espécie de exorcismo!

Mostrando um novo caminho,
conduzindo-os para a luz,
plantou afeto e carinho
na bondade que reluz!

Somente amizade e amores
queria ver fecundar,
o maior dos sonhadores,
no seu doce e eterno amar!

A falta de humanidade,
sempre, à tristeza conduz,
e o sonhador, na verdade,
morreu pregado na cruz!
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NOITES... LUAS...

MOTE:
Noite, noite que me enlevas,
luas cheias, luas novas,
se novas, tudo são trevas
se cheias, tudo são trovas!
Carolina Ramos  
Santos/SP

GLOSA:
Noite, noite que me enlevas,
em estrelas navegando
ao paraíso me levas,
vou feliz me aconchegando!...

Tantas luas, tão bonitas,
luas cheias, luas novas,
tuas luzes infinitas,
de um Ser Maior, nos dão provas!

À negritude tu elevas
a razão de tudo enfim...
Se novas, tudo são trevas
que gritam dentro de mim!

Num luar só de alegria
essa minha alma, renovas,
e brota, então, a poesia...
Se cheias, tudo são trovas!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVII. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. Junho de 2004.

Arthur de Azevedo (As Asneiras do Guedes)



Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.

Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes sabem? – o maior asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:

– Tenho uma filha já adúltera.

– Adúltera?!

– Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.

– Adulta quer o senhor dizer…

– Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.

– Luxuriosa?!

– Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.

– Ah!

– Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos… sim, porque minha mulher é muito sensual.

– Sensual?!

– Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.

Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.

Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali:

O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:

– Li no "O País" a notícia do seu aniversario…

E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:

– Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.

Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os lábios para não rir.

– Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde esteve a passeio.

– Era tempo de fazer uma viagem! – explicou ele. – Foi a primeira vez que saí do Rio de Janeiro.

– Eu também não saí ainda desta cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói – disse D. Henriqueta.

– Vejo então que a senhora é cortesã… – acudiu o Guedes curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.

– Cortesã?!

– Cortesã, sim… filha da Corte…

– Oh! Guedes! – observei baixinho. – Pois você não vê que está dizendo uma inconveniência?

– Tem razão… Atualmente não se deve falar em Corte…

E emendou:

– Vejo então que a senhora é capitalista federalista.

D. Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provável que ao leitor não aconteça o mesmo. Paciência.

– Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe de São Paulo?

– Muito boas! Aquilo é uma grande terra!

– Dizem que há lá muita sociabilidade.

– Como?

– Muita convivência…

– Isso há… As famílias visitam-se… Ou moços coabitam tom as moças.

– Ora essa!

– Que entende você por "coabitar"?

– E… é…

– É uma indecência… uma inconveniência… uma coisa que não se diz!…

O Guedes inflamou-se:

– Está você muito enganado… "Coabitar" é…

E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:

– O senhor tem aí um dicionário que me empreste?

– Pois não?

E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.

– Muito bem! – disse eu. – Procure "coabitar".

Depois de folhear em vão o dicionário durante um rol de tempo, o teimoso exclamou:

– Não dá! Não dá! Vejam…

– Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!

– Tem razão, tem razão… Onde estava eu com a cabeça?

E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.

– Não dá! Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com u nem com o!

Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem h? Dê cá o dicionário!

E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.

– Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".

– Mas isso…

– Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:
"Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".

– Perdão! – bradou o Guedes furioso. – Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu quem não me quis ouvir!

E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:

– Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Peixar do Tempo - A Lenda de Ntoweni

     
O PEIXAR DO TEMPO

      Sentado sobre a balaustrada da varanda eu abanava as pernas. Afugentava ócio e mosca. O avô me repreendeu, severo:

      - Pare de balançar as pernas!

      - Porquê?

      - Não sabe que é assim que se embala o filho do diabo?

      Estanquei as pernas, sacudi a cabeça. Tudo aquilo me surgia sem a devida realidade. O avô, por exemplo, segurava uma cana de pesca. O fio pequeno e o anzol ficavam suspensos a uns palmos do chão. Pescava no ar. Haveria, dizia ele, sempre um peixe que não saberia separar as águas. O avô, mais os seus ditos. Enquanto fingia pescar, os olhos fixavam um inexistente horizonte. Pensava no nascimento da bezerra?

      Recordei os tempos em que, todos os domingos, ele me levava à pesca. Sem conversa, nos quedávamos na margem enquanto olhávamos o rio e suas eternidades. Pescar é um modo de ser peixe nas águas do tempo.

      - Pescar é muito bom. E sabe porquê? Porque é uma atividade sem nenhuma ação. Está entender, meu neto?

      - Sim, avô.

      - Você também gosta desta pescaria, não é?

      Lá no alto, a águia pesqueira volteava. O avô dizia de um modo que soava assim:

      - Olha a água pesqueira!

      A água pesqueira, sim. Me aprazia pensar que era o rio, ele mesmo, quem pescava. O avô muito elogiava as sábias preguiças. Certa vez me tentou convencer de que o mundo andava tão ocupado em nada fazer que até o rio por vezes parava.

      - O rio parado? Mas, avô. isso é coisa que nunca ninguém viu.

      - Isso é porque o rio desata a mover-se assim que vê gente chegando.!

      Nesse jogo de enganos eu me embalava enquanto o mais-velho cantarolava como se espreguiçasse. E era sempre a mesma cantilena:

      O rio, sem cio, um fio. Macio, sem pio, um pavio.

      Eu aguardava um só instante: o de desanzolar o peixe, o escorregadio corpo do bicho prateando em minhas mãos.

      - Cuidado, não se pique!

      Meu avô era o único que me dedicava cuidados. Nem meu pai nem minha mãe nunca me tinham lustrado em mimos. Por isso, mais que a chuva, me doía agora aquele definhamento dele. Não é que, antes, ele não fosse já magro. Mas, agora, se extinguia a olhos vistos. Seu estado se precipitara desde que soube que o rio tinha secado. Nunca mais comeu, nunca mais bebeu. Aquela rejeição me causava estranheza. Afinal, o avô sempre dissera:

      - A velhice não é uma idade, é uma decisão.

      - Uma decisão?

      A velhice é uma desistência.

      Desistido, meu avô cedera ao tempo. E agora, uma vez mais, eu interrompia a sua imaginária pescaria para lhe levar um copo de água. Mas o avô recusou, sorrindo:

      - Não se aflija, eu bebo como os pássaros, debico nas gotas.

      Ajeitei a manta sobre as suas pernas que despontavam como galhos pontiagudos. Ele entendeu os meus cuidados e se explicou:

      - Já vi o rio minguar, tantas vezes. Mas secar assim tão completamente é coisa que nunca eu podia imaginar. Diga, meu neto: você sabe quem é esse rio?

      - Quem é o rio? - estranhei.

      - Vou-lhe contar uma história, meu filho.

      - Uma história com final feliz?

      Eu já sabia: a única história com final feliz é aquela que não tem fim. Era assim que ele dizia. Desta vez, porém, o tom era outro, nem eu lhe reconhecia o pigarrear grave.

      - Não é uma história. É um segredo que corre na família. Escute com atenção.

      - Eu escuto sempre com toda a atenção.

      - Não é isso. É que vai ouvir a minha voz, no princípio. Depois, já no fim, escutará apenas a voz da água, a palavra do rio.

      Enquanto o avô ia revelando a lenda, eu me embalava como se, de novo, me entretivesse em pescarias.

A LENDA DE NTOWENI

      No princípio, quando chegaram aqui os nossos primeiros, este lugar não tinha água. Nem lagos, nem rios, nem sequer charcos. Só no Reino dos Anyiimha é que, chovia, só lá é que adormeciam os grandes lagos de Chilua. Os primeiros habitantes do nosso lugar sofriam e morriam olhando as nuvens que passavam.

      Mandaram então Ntoweni, a avó de sua avó, para que fosse ao Reino dos Anyumba e trouxesse provisões de água para a aldeia. Ntoweni era como a neta: uma mulher de extraordinária beleza. Pois ela levou uma cabaça grande e prometeu que voltaria com ela cheia. Beijou os filhos, abraçou o marido e despediu-se de todos.

      Ntoweni chegou à cidade e, logo, o imperador soube da sua chegada. Mandou que ela comparecesse na sua residência. O grande senhor apaixonou-se pela beleza daquela mulher. e disse-lhe:

      - Só lhe darei água se nunca mais sair daqui. Hoje mesmo você vai ser minha esposa.

      Ntoweni pensou e decidiu fazer-se de conta. Entregou-se ao rei naquela noite, deixou que ele dela abusasse. Antes de adormecer, o monarca ainda ameaçou:

      - Se fugir eu lhe mandarei matar.

      Na manhã seguinte, Ntoweni escapou por entre a poeira dos caminhos. Assim que deu pela sua ausência, o rei mandou que a seguissem. Quando ela se aproximava de sua casa, uma azagaia cruzou o espaço e se afundou nas suas costas. A cabaça subiu, desamparada, pelo ar e a água se derramou, desperdiçada. Mas quando a vasilha se quebrou no chão. os céus todos estrondearam e um rasgão se abriu na terra.

      Das profundezas emergiu um rugido e uma imensa serpente azul se desenrolou dos restos da cabaça.

      Foi assim que nasceu o rio.

      Quando meu avô se calou eu deveria escutar a voz do rio. Mas nada soava. Apenas um silêncio nos magoava como uma ferida interior. Talvez fosse saudade da águia pescadora, saudade da água pesqueira. Sentiremos sempre a saudade como um mar em que, em outra vida, nos tenhamos banhado.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Monteiro Lobato (O Casamento da Emília)


Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.

Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.

Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante.

– Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? – e saiu.

Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá.

– Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando um pontapé no noivo.

Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.

Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências.

– Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição.

– Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, os Visconde de Sabugosa.

– Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada.

– O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.

– Sim, mas…

– Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido.

O representante do noivo suspirou.

– Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente…

Emília deu uma risada.

– Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre “lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas.

O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que

Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.

– Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque…

– Uma lata d’água, diga logo! – completou Emília mordendo os beiços.

Narizinho interveio, repreensiva.

– Você está aqui para noivar, Emília, para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá, hein?

E dirigindo ao representante:

– O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha?

– Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles.

E recitou:

Pirulito que bate bate,
Pirulito que já bateu,
Quem adora o Marquês é ela.
Quem adora Emília sou eu.

– Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos esses versos! O Marquês é um grande poeta!…

Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.

– O verso está todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!

Narizinho bateu o pé e franziu a testa.

– Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?

Depois, voltando-se para o representante:

– Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade?

O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.

Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se despediam.

Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta:

– Este noivado esta me acabando com a vida, vovó. Todas as noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!…

– Mas que é que está faltando para o casamento, menina?

– Os doces, vovó…

– Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces.

Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.

Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em quase todos os convidados ia comer de mentira.

Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas.

Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do Picapau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca.

Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.

Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer.

Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma.

Terminada a festa. Narizinho disse:

– E agora, Pedrinho?

– Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias.

Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente – nhoc! Deu um bote na mais bonita.

– Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina.

Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho…

– Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!…

Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.

Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. O gênios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia consolar-se do logro que levara.

Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre.

– Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa. – Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí…

Narizinho dava-lhe esperanças.

– Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) V


CARTA INÚTIL

Tu não mereces o meu sofrimento
ele é grande demais para quem és,
nem devia afinal (triste momento),
- por fraqueza humilhar meu sentimento,
e ajoelhar-me adorando-te aos teus pés...

Passaste tão depressa!... Em minha vida
às vezes penso que nem foste minha!
Como a aragem soprando distraída
acendeste uma brasa adormecida
e deixaste-a queimar-se após, sozinha...

Minha angústia interior é aquela chama
vermelha, consumindo a brasa acesa...
A Vida é assim... bem sei... sofre quem ama,
e, covarde, é o mundo, o que reclama
contra um quinhão de dor e de tristeza!

Ainda guardo a silhueta de teu vulto
e o que ontem me dizias sei de cor,
- por tudo o que mentiste não te insulto,
fiz das lembranças que deixaste um culto
e a vida sem lembranças... ainda é pior...

Quase sempre é melhor o sofrimento
quando ele encerra uma lembrança boa,
que uma vida vazia, o isolamento,
- sem uma voz trazida pelo vento!
- sem um vulto passando na garoa!

Doloroso é voltarmos nosso rosto
e o passado fugir como um caminho
deserto, a essa hora roxa do sol posto,
- sem um riso, uma lágrima um desgosto
a saudade de um beijo ou de um carinho...

Quando o mal terminou, já está curado,
mesmo a sombra da dor ainda conforta...
- bem pior, é não ser ter nunca chorado,
vendo o mundo a passar sem ter passado
e a vida inteira inutilmente morta!

Confesso, sim... que não mereces tanto
não mereces um culto igual ao meu...
Tudo em ti foi tão falso... hoje, me espanto
ao ver que tantas vezes o teu pranto
numa ironia cruel me comoveu...

Mas, não toquemos nisso... Não se deve
falar de um mal que nos maltrata assim,
- nem sempre o que se pensa a gente escreve...
- que o esquecimento seja um véu de neve
descendo suave sobre o nosso fim...

Teu amor foi apenas uma nuance,
desmaio de um segundo nos meus braços,
- é inútil que ainda insista e ainda me canse
a procurar em vão nesse ex-romance
a falsa trajetória de teus passos...

Foste um lírico instante de beleza
a efêmera existência de uma flor!
Uma folha a rolar na correnteza,
um segundo de anseio e de incerteza,
- mentira ingênua que eu chamei de amor!

Gota d'água brilhante ainda em suspenso
num fio... quando o sol quente a encontrou,
- partida que não teve o adeus de um lenço,
história antiga que não tem mais senso,
livro que o vento sem querer fechou...

Foste isso: uma ilusão que a gente espera!
(E as ilusões são como as serpentinas
que nos fogem da mão...) Falsa e insincera
hoje me lembras uma fora de hera
no muro branco de passado em ruínas!

Que fizeste do mundo de alegrias
que presenteei ao teu destino vago?
Dei-te a mancheias tudo que querias,
- palavra de honra que não merecias,
o sádico prazer com que me embriago...

Não mereces a dor que punge e espinha
nem esta carta viva de emoções!
Às vezes penso que nem foste minha
e que a minha alma louca, anda sozinha
num delírio de sombra e de visões!

É sempre assim. A mão destrói o sonho!
Toquei-te... E eras de pano, tola e fútil,
- ainda bem que te foste!... Hoje, tristonho
reduzi - com estes versos que componho -
a nossa história numa carta inútil...

Nunca esta carta te será bem-vinda
hás de soltá-la indiferente aos pés...
Confesso, - quando a dor me fere ainda
que a Vida que sonhei e hoje está finda,
era grande demais... para quem és...

CARTAS

Vou correndo buscá-las - são tão leves!
mas trazem a minha alma um grande encanto,
- por que as cartas que escreves custam tanto?
- por que demora tanto o que me escreves?

Não deves torturar-me assim, não deves!
- Do teu silêncio muita vez me espanto...
Mando-te longas cartas - e entretanto
como tuas respostas são tão breves!...

Recebes cartas minhas todo dia,
e elas não dizem tudo o que eu queria
mas falam-te de amor... de coisas belas!

Tuas cartas... Mas dou-te o meu perdão,
- que me importa afinal ter razão,
se gosto tanto de esperar por elas!

CENA À HORA DO POENTE

Na sala, sobre o tapete macio e felpudo
de veludo
onde se desmanchou uma encarnada rosa,
ela, inquieta e nervosa,
vai, vem...
- há mais de um quarto de hora, sem ninguém ...

Há mais de um quarto de hora...

Pára. Vai à janela, alonga o olhar lá fora
pela rua silenciosa e vazia...
E vai morrendo o dia
e a tarde é langorosa,
pela rua vazia e silenciosa . . .

É tarde já... O céu que em cambiantes desmaia
atrás de algumas nuvens de cambraia
avermelhadas, no poente
acende a primeira estrela, de repente...
          
Ela passeia sabre o tapete felpudo  
e macio, de veludo,  
- ansiosa...
Para junto a uma jarra no canto da sala
e distraída, despetala  
e esmigalha entre os dedos uma rosa...

O relógio de parede, grande, indiferente,
continua marcando os segundos... No poente
a tarde se escondeu  
              
Ela vai à janela, - a noite já desceu  
azul-opala, formosa,
mas muito fria...
- e a rua continua silenciosa  
silenciosa e vazia

Ela aperta no seio as mãos alvas e finas
mãos que parecem feitas de neblinas...
Ouve bater no peito o coração
descompassadamente,
e inutilmente,
o quer conter com a mão...
- pelo ar, há o tique-taque, igual, indiferente,
do relógio de parede, que no silencio da sala
monologa e fala . . .

Um segundo... outro segundo...

Cada um contendo em si que eternidade! Um mundo
de estranha expectativa...
A sua ânsia é tão viva
que ela de novo para,
chega junto ao relógio e de bem perto o encara,
e o seu tormento é tanto
que o olhar turvo se embaça em prenúncio de pranto...

Suas mãos se entrelaçam, se apertam, nervosas,
e da jarra do canto
como que por encanto
algumas rosas
sem querer,
num lírico morrer,
despetalam-se juntas, silenciosas...

É então que na estranha penumbra da sala
há um silêncio maior: o relógio se cala!
- não se ouve o tique-taque indiferente no ar...

Lá fora a noite em sombras flutuantes se embuça...

Ela esconde entre as mãos o seu rosto... soluça
e começa a chorar...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Uma Estranha de Unhas Rubras - Segredos, Silêncios


UMA ESTRANHA DE UNHAS RUBRAS

      Na manhã seguinte, despertei ao comando ríspido de minha mãe.

      Vista-se, rápido!

      No braço estendido exibia a roupa de cerimônia. Na outra mão, pingavam os meus únicos sapatos:

      - Calçar os dois, mãe?

      - Calce-se, completo.

      Até ali eu apenas podia calçar um sapato de cada vez. Assim, imparmente, poupava nos calçados. Por isso, naquele dia, eu até coxeei, desabituado que estava de marchar com dupla sola.

      Entramos na rua como se mergulhássemos num lago. A chuva mantinha-se suspensa, em arranjos de gotas verticais. Andar e nadar, nesse momento entendi, diferem só pelo lugar de duas letrinhas. Por causa dessas duas letrinhas chegamos à porta da fábrica todos encharcados. Minha mãe, no entanto, se prevenira. E do saco de mão saiu uma toalha com que nos secamos. Mandaram-nos sentar num banco das traseiras.

      Ficamos horas em silêncio, à espera que um chefe nos mandasse entrar. Lá veio um, da nossa raça. Era um homem forte, polido e maneiroso. Um casca fina. Falava um português com mais ondas que curvaturas. Enrolava os erres às cambalhotas com a língua. Não era um sotaque. Era um modo de mostrar que não falava português como nós. Sua atenção se afunilou em minha mãe, parecia um pelicano fixando o peixe. Aqueles olhos babões me davam aflição.

      - Venho por causa dos fumos - disse a mãe.

      O homem torceu o cigarro entre os dedos e derramou o tabaco desfeito sobre o cinzeiro.

      Depois, tossiu e falou como se engolisse cada uma das palavras:

      - Só o patrão grande pode falar sobre esses assuntos... Vou ver se ele lhe pode receber. Mas esse miúdo vai ter que sair.

      - Mãe, eu queria ficar consigo...

      - Pode ir, meu filho, não se preocupe. Pode ir. Mas cuide de não desperdiçar os sapatos.

      Os sapatos foram poupados, sim. Mas muita areia entrou-me para a alma nesses momentos de espera. Acabrunhava no banco do pátio quando vi pingarem vidrinhos sobre a areia. Sobressaltei-me: era a chuva que se resolvera a tombar? Mas, não. Eram berlindes. Um menino branco, à minha frente, atirava berlindes para o chão onde meus pés se afundavam. Entendi o convite, me ergui e apanhei as esferas de vidro uma por uma. Fiz uma cova, e outra e mais outra. Completas estavam as três covinhas.

      - Não quer jogar, menino?

      - Não posso.

      - Porquê?

      - O meu pai não deixa. Não me deixa brincar com.., com vocês.

      Eu já sabia. Só não disse a palavra: pretos. Nós éramos simplesmente “vocês”. Juntei os berlindes numa mão e entreguei-lhos.

      - Brinque o menino sozinho. Eu fico só assistir.

      - Não posso. A minha mãe não me deixa brincar no chão Essa terra de África dá doenças.

      Devolveu-me os berlindes. Assentei as mãos na areia e lancei-os à cova. Reparei como os olhos do branquito brilhavam. Me cheguei a ele e soprei em seu ouvido:

      - Ora, seu pai, sua mãe... eles estão aqui para ver?

      O miúdo apontou a fachada da fábrica. Pela janela, o seu pai espreitava, desconfiado. Por essa mesma janela me pareceu ver o vulto de minha mãe. Depois, a cortina se fechou.

      - Aproveite agora que ninguém nos vê!

      O menino ainda hesitou. Mas, depois, o seu joelho ganhou a terra e iniciamos um jogo. E logo o mundo se resumiu àquelas covinhas mais o bater do vidro contra o vidro.

      Não tardou, porém, que a sombra de minha mãe se projetasse no átrio. Olhei de encontro ao sol e o seu corpo surgia aumentado, capaz de converter o dia em noite. Mas era só a raiva que lhe conferia tais dimensões.

      - Já se pode descalçar', poupa os sapatinhos na volta...

      Passou uma mão a ajeitar o lenço, acertou a roda da saia na cintura e, autoritária, me arrastou pelo braço, como se apressasse um peso morto.

      - Diga-me, mãe, aquele senhor escutou as nossas razões?

      Ela nada respondeu. Apenas as suas unhas se espetaram na minha carne. Estranhei o afiado daquela dor. Uma mãe não tem unha. É só feita de doçura. Mas eis que a minha me arranhava, cinco fúrias se cravavam no meu braço. Reparei, ademais, que as ditas unhas estavam pintadas. Um vermelho triste, como um sangue já pisado.

      À entrada de casa, a mãe se agachou até se atamanhar comigo e, sacudindo-me pelo braço, sentenciou:

      - Nunca, mas nunca, fale disto a seu pai!

      Pendida sobre mim, voz contaminada, olhar incendiado: minha mãe se desusava. Uma estranha ocupava a sua alma. Uma estranha de unhas vermelhas.

SEGREDOS, SILÊNCIOS


      De noite, quando nos juntamos na sala, o avô voltou à carga:

      - EU vi!

      - Viu o quê, desta vez?

      - Pois eu vi o compadre Mauriciano subir de barco para apanhar fruta.

      Naquela espasmaceira, já não havia alma para riso. Suspiros se juntaram, incrédulos. Só eu, no imediato instante, olhei pela janela e vi barcos percorrendo os ares, ancorando nos ramos altos. A água deitando-se no céu: um azul vertendo em outro azul.

      Jantamos sob a nuvem do silêncio. Me custava engolir, a lembrança da visita à fábrica me ocupava o peito. Não era o segredo que pesava, mas o partilhá-lo com minha mãe. Segredo é coisa que os homens comungam apenas com outros homens. Para ser fiel à minha mãe eu estava traindo a minha masculina condição.

      De soslaio, olhei o corpo magro de nossa mãe. Ela estava tensa, parecia que se guardava para explodir. Meu pai espreitava a sua tensão como a impala olha a flecha no arco do caçador. Talvez por isso tenha tomado a dianteira:

      - E você, mulher, onde foi esta manhã, tão cedo?

      - Fui visitar minha comadre, lá no Tsilequene. Lá há mais chuvisco que aqui.

      - E, não cai em lugar nenhum.

      As mulheres se ergueram para levantar a mesa. Das mãos de minha mãe os pratos escorregaram e deflagraram em mil estilhaços. Ficamos nós, os homens, em resguardo, à espera do que se seguiria. Não tinha sido um simples quebrar da louça. Havia algo mais profundo que estilhaçava no nosso lar. Foi quando, mãos nas ancas, a mãe veio à sala pedir contas:

      - Isso, deixem amolecer esses vossos cus na porcaria das cadeiras...

      Um riscar de dedos fez acender a chama no isqueiro. Meu velho entretinha suas pequenas fúrias. De rompante, minha mãe avançou sobre o marido e lhe arrancou o isqueiro. Deu dois passos e lançou o objeto pela janela.

      - Estou farta!

      E saiu, batendo a porta. Ainda a vi adentrar-se na chuva até perder contorno. Nem passou um tempo, meu pai também se ergueu e se encaminhou para a porta. A tia barrou-lhe o caminho:

      - Onde vai, cunhado, vai ter com a minha irmã?

      - Vou procurar o isqueiro.

      - Mas você, cunhado, por que é que recusa falar com alguém lá da fábrica?

      - Eu sei com quem vou falar.

      - Com quem?

      - Com o rio. Vou falar é com o rio.

      Sem mais explicar, meu pai saiu. Furtivo como uma sombra, fui seguindo seus passos. Quantas vezes fizéramos aquele caminho, encosta abaixo? Desta vez, porém, era diferente. Meu pai, primeiro, rodopiou a esgravatar entre os capins. Procurava o isqueiro. Em vão. Depois, como nada encontrasse desceu a ladeira. Não parou nos lugares costumeiros. Antes cruzou as penedias, para além do bosque, onde era interdito as crianças sequer espreitarem. Era ali, na mata sagrada, que haviam sepultado os nossos antigos.

      Escondido entre os arbustos, vi como ele se ajoelhou junto à margem, mãos mergulhadas na argila enquanto invocava um rosário de palavras. Meu pai rezava?

      Acreditei que ele não me tinha visto. Enganei-me. Falou, asperamente, sem erguer a cabeça:

      - Você não pode estar aqui...

      - Eu já vou indo, senhor meu pai.

      - Não, espere. Venha aqui.

      - POSSO?

      - Se aproxime com os respeitos. Agora, ajoelhe comigo.

      Meus joelhos pareciam, de súbito, desapertados: tombaram na areia branca do leito. Já só restava um fio de água. Os bancos de areia se exibiam como costelas no corpo da terra. Ninguém diria como o rio já fora reboliço, rolando as ancas pelas margens.

      Meu pai me pediu devoção. Eu fechei os olhos, com demasiado medo para ter crença. Até que senti como que um pulsar debaixo de minhas pernas. Um coração batia por baixo do chão? Me assustei:

      - Que ruído é esse, meu pai?

      - É um pilão.

      - Um pilão por baixo da terra?

      - São os deuses. Eles estão descascando o tempo para nos servir...

      Estremeci, em arrepio. E se a terra desmoronasse, escavada como um oco no vazio? Se em vez da chuva, o que tombasse fossem as casas, a estrada, os bichos e as gentes? Eu já via mil mineiros, como meu pai, esburacando o planeta, criando descomunal vala comum para as criaturas de todos os continentes. Era esse, afinal, o pesadelo de criança que me fazia despertar e gritar por minha mãe: o desabar do mundo e meu pai preso nos subterrâneos.

      O reviver desse pesadelo me fez estremecer. Pela primeira vez, estendi o braço a meu velho, em pedido amparo. Ele demorou a dar-me a mão e, quando o fez, parecia estar segurando um peixe vivo. Foi um fugaz instante. Logo ele se corrigiu e fechou o gesto no corpo.

      - Sabe quem está enterrado aqui?

      - Não sei, pai.

      - São as Ntowenis.

      O caracol fez a casca e ficou tonto. E é por isso que nunca sai de casa. Também eu me sentei, incapaz de sair da interior neblina. Meu pai dissera “as Ntowenis”, no plural. Afinal, quantas havia?

      - A avó de sua avó também se chamava Ntoweni. As duas estão enterradas aqui. uma juntinho da outra.

      Dizem que elas, de noite, saem juntas. Sopram as cortinas, levantam as nossas pálpebras e nos insuflam os sonhos, É então que, por breves instantes, se vislumbram duas luas cruzando os céus.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

domingo, 14 de abril de 2019

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 1

Nota: 
Estas trovas do Professor Garcia estão sendo reeditadas em virtude de que algumas tiveram erros na digitação em alguns de seus versos. Os olhos cansados e teimosos já estão me traindo. 
Grato pela compreensão.
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A fé, que a beata carrega,
é tão repleta de luz...
Que crer, que em tudo que pega,
existe um sinal da Cruz!

À tarde, eu vejo chorando,
sozinha, à beira do cais...
Uma saudade acenando
aos que não voltam jamais.

Crê na força de teus braços;
que o destino, por vingança...
Põe atropelos nos passos
de quem não tem confiança!

Eu guardo como se fosse
um dos sentimentos meus...
O amargor de um beijo doce
que roubei dos lábios teus!

Eu sou menestrel das rimas,
dos versos, velho aprendiz...
E o som, dos bordões, das primas,
é que me faz ser feliz!

Foram-se as lindas auroras
da estação mais colorida!...
E, agora o outono das horas
martela as horas da vida!

Mastro erguido, vela a prumo,
dois sentimentos iguais:
Segue a jangada sem rumo
e eu, no rumo de outro cais!

No entardecer sempre existe,
aos sopros do sol se por...
Uma cor rubra mais triste,
na ausência de um grande amor!

O outono, sem dar sinais,
aos poucos, contando os passos...
Achando pouco os meus ais,
põe mais cravos nos meus braços!

O tempo, assim, como a gente,
chega, passa, vai embora.
Saudade, eterna vertente
da eterna dor de quem chora!

O velho abade, sem sono,
reza na antiga abadia
a eterna prece de outono,
no altar da melancolia!

Reparte filho, este pão,
que te dei desde criança!...
Quem planta o amor, colhe o grão
dos bons trigais da esperança!

Se a planta mesmo ferida,
sorrindo oferta uma flor...
Nas cinzas negras da vida,
que lindo exemplo de amor!

Se essa dor te desconsola,
e a mágoa, ainda te afeta;
perdoa!... Que a dor se evola
do coração do poeta!

Se esse andarilho, entre os sábios,
é o vento que te levou...
Foi quem roubou de teus lábios
o mel de quem te beijou!

Se há flores mais preciosas
entre os jardins dos rosais...
Não há disputa entre as rosas;
sentem-se todas iguais!

Se o suor justo é tão nobre
no rosto de quem trabalha...
Não troco o suor do pobre
pelos milhões de um canalha!

Se o tempo, ingrato, me afronta,
culpo a ingrata insensatez
do espelho, que mostra a conta
das rugas que o tempo fez!

Sozinho à beira da estrada,
um rancho de palha!... Um rancho!...
E uma saudade sentada
pendurada em cada gancho!

Velho tempo, ah! Quem me dera,
sentir de novo a virtude
dos sonhos da primavera
no verdor da juventude!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar vol.2. Caicó/RN: Edição do autor, 2018. 
[livro gentilmente enviado pelo autor]