quarta-feira, 23 de junho de 2021

Estante de Livros (Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello)

Título original: Sei Personaggi in cerca d´Autore
Autor: Luigi Pirandello (1867-1936)


Sinopse:

Escrita em 1921, esta obra relata um ensaio de teatro. O ensaio é invadido por seis personagens que, rejeitadas por seu criador, tentam convencer o diretor da companhia a encenar suas vidas.

No início, o diretor fica perturbado por ter seu ensaio interrompido, mas aos poucos começa a interessar-se pela situação inusitada que se apresenta diante de seus olhos. As personagens o convidam a encenar suas vidas, mostrando que mereciam ter uma chance. Com isso, acabam convencendo-o a tornar-se autor e tentam mostrar ao diretor que suas vidas são reais.

Comentários (José Monir Nasser):

“Luigi Pirandello é o maior renovador do teatro italiano e uma das maiores influências sobre o teatro moderno. Há quem veja nele o precursor do teatro do absurdo de Beckett e Ionesco. Originário da Sicília, região de fraca herança cultural, cresceu sob o Risorgimento, o movimento de unificação da Itália. Otto Maria Carpeaux diz que Pirandello tem três fases: a siciliana, a italiana e a europeia, transcendendo sua origem provinciana e atingindo a universalidade. Correspondentemente, o eixo da obra madura de Pirandello é o drama da identidade humana, de que é o maior intérprete dramático.

Apresentada pela primeira vez em 1921 no Teatro Valle em Roma, “Seis Personagens à Procura de um Autor” foi recebida com hostilidade, aos gritos de “Manicômio”, “Manicômio”. A apresentação subsequente, em Milão, foi bem recebida. A peça aos poucos evoluiu para aceitação plena, até virar um clássico.

As discussões entre as personagens e o diretor compõem uma análise filosófica do teatro e da perda de consciência da existência humana, dentro da temática preferida de Pirandello que é a procura da identidade humana, ou seja: Quem somos nós? Assim, o peso da peça divide-se entre a narrativa em si, e os aspectos paratextuais, que ganham a cena.

Diretor e personagens discutindo constroem também uma querela de formas de fazer teatro. As personagens, tentando mostrar ao diretor que suas vidas são reais, em relação ao palco, e ele defendendo a relatividade do que está sobre o palco, toma como parâmetro a vida "real". A peça entra, assim, em um outro aspecto: torna-se um estudo metalinguístico do teatro, a arte discutindo a si mesma. A forma de representação proposta pelo diretor não é aceita pelas personagens. Não querem ser representadas pelos atores da companhia. Afinal, como alguém poderia representar melhor a vida de uma personagem do que ela própria?

Resumo da narrativa:

Pirandello nos apresenta a estória de uma família de personagens que invade o ensaio de uma companhia teatral. De acordo com o artifício da ficção, as personagens de uma peça teatral estão consubstanciadas, agindo e atuando no mundo real, mas sofrem de uma forte lacuna de sua própria constituição, que é o fato de sentirem a necessidade de encontrar um lugar ou uma estória em que possam viver seus “dramas internos”. Isto acontece, dentro do contexto da peça, por conta da negligência do dramaturgo, que os criou, dando um conflito e uma vida interna a cada um deles, mas que desistiu de inventar uma estória necessária para fazê-los viver.

A tensão do drama está contida no espanto e na dificuldade em que o diretor da companhia e os atores têm em compreender a “vida” extraordinária dessas personagens. Deste ponto, Pirandello explora diversas situações limites, que oscilam entre o trágico e o cômico, e, ao mesmo tempo, discute diversos aspectos da natureza da personagem de ficção. O principal ponto de partida do dramaturgo é evidenciar que a “verdade” da personagem de ficção pode, muitas vezes, ser mais forte do que a “verdade” do ser humano. A personagem de ficção assim figura, pois ela está fixada no texto em todos os seus traços e seus conflitos, enquanto o ser humano é uma entidade em constante transformação e variação. No decorrer desse confronto entre essas duas “verdades”, fica evidenciado também que o que garante a “vida da personagem” e a “noção de identidade” num indivíduo do mundo real é um mesmo elemento: uma ficção, uma construção artificial. Enquanto na personagem esta construção permanece pronta e acabada, no ser humano, por estar vivo, ela permanece sempre indefinida e inacabada.

Trechos do livro:

“Mas por que – disse para mim mesmo – não descrever um caso como este, realmente inédito, de um autor que se recusa a dar vida a algumas de suas personagens já nascidas vivas na fantasia dele, bem como o caso de como essas personagens, por possuírem definitivamente, em si próprias, a vida, não aceitam ficar fora do mundo da arte? Afinal elas não estão separadas de mim, já vivem por sua conta, adquiriram voz e movimento, portanto, já se tornaram, por si mesmas, personagens dramáticas, mediante a luta pela vida que tiveram de travar comigo; personagens que podem mexer-se a falar por si sós; vêem a si próprias como personagens; aprenderam a se defender de mim e saberão defender-se igualmente dos outros. Então, vamos deixá-las ir para onde costumam se dirigir, a fim de poderem viver como personagens dramáticas: para o palco. E vamos ver o que acontece.”

“Dessas seis personagens, portanto, aceitei o ‘ser’ e recusei a razão de ser. Delas peguei o organismo, do qual tirei a função existente, emprestando-lhe outra mais complexa, onde a delas entra apenas como um dado de fato.”

“Tudo o que tem vida, justamente pelo fato de viver, possui forma e, por isso, está sujeito a morrer. Com a obra de arte, porém, acontece o contrário: ela se perpetua viva, justamente porque é a forma.”

“Uma personagem, senhor, pode sempre perguntar a um homem quem ele é. Porque uma personagem tem, verdadeiramente, uma vida sua, assinalada por caracteres próprios, em virtude dos quais é sempre ‘alguém’. Enquanto que um homem – não me refiro ao senhor agora – um homem, assim, genericamente, pode não ser ninguém.”

Interpretação da obra:

1. As personagens são imortais e eternas.
2. Os atores são farsantes e volúveis.
3. A personagem tem existência fixa.
4. As personagens são mais duráveis que seus autores e atores.
5. A personagem não existe sem um ator.
6. As personagens precisam ser criadas por um autor. É o autor que faz a personagem existir.
7. As personagens são esquemas abstratos e só existem na boca dos atores.
8. A personagem é perpétua; para ela o tempo não existe!
9. A personagem vive sempre o momento eterno.
10. A personagem é alguma coisa: o homem pode não ser.
11. A personagem só existe no contexto para a qual ela foi criada.

Entendendo a Obra:

1. Vida real e vida teatral.
2. Arte é imitação da vida. Arte não pode ter vida, a vida é mais complexa que a arte.
3. A arte não pode ser idêntica à realidade, mas ela tem que ser verossímil.
4. A arte não consegue substituir a realidade.
5. As personagens da obra foram rejeitadas pelo autor.
6. As personagens não parecem mais humanas que os atores? Por quê? Porque elas representam a humanidade propriamente dita.
7. O que se pode compreender da futilidade dos atores?
8. As personagens estão a busca do seu criador.
9. O que o criador representa? A saudade do Paraíso perdido pelo pecado.
10. O que as personagens querem recuperar? O sentido da vida.
11. Os atores representam o projeto da vida humana.
12. As personagens são rebeladas contra o destino.
13. O homem está infeliz com aquilo que ele é.
14. Esta é uma história da perda da consciência da existência humana.
(José Monir Nasser)

terça-feira, 22 de junho de 2021

Adega de Versos 31: Professor Garcia

 

Sammis Reachers (A insanidade de Marival)

Finais da década de 90, eu havia acabado de entrar na função de cobrador, na empresa Ingá. Certo dia, em meio aos trabalhos, chegou a notícia de um feito quase inacreditável, de tão louco. Vamos aos fatos.

A linha era a 49-1 (mas naquela época as duas linhas 49 eram designadas, e não me pergunte o porquê, por 49-3 e 49-4). O cobrador era o Marival, mulato invocado e conhecido por seus arroubos de fúria. O dia de verão estava especialmente quente; eram por volta das três da tarde, os ônibus da linha ainda não possuíam ar condicionado. Para completar, o carro estava rodando 'no buraco', a muita distância do carro da frente, e já lotado.

O furioso Marival estava transtornado. As roletas ficavam na parte de trás do veículo, no meio do salão, e a lotação era tanta que nem uma brisa conseguia entrar pelas janelas e alcançar Marival. O bruto suava em bicas, o sol batia diabólicos 43 graus, e chegando à praia de Icaraí, pra fechar o caixão, um engarrafamento fora de hora...

O amigo Marival já estava sentindo tonteiras, e cheio, excepcionalmente transbordante. De repente, ele se levanta da cadeira e dá um berro lá pra frente:

– Chicão, abre aí! Abre essa droga de porta e espera que eu vou ali…

O motorista Chicão não entendeu nada, mas abriu a porta e viu Marival pular e correr para a praia.

– Vai pegar troco no quiosque – pensou o velho Chicão. Qual não foi sua surpresa quando, alguns segundos depois, um dos passageiros gritou:

– Motorista, o Cobrador mergulhou na água!

Ao se levantar para olhar para a praia, Chicão viu o maluco do Marival, com o uniforme encharcado, já correndo de volta pro ônibus. Subiu pela porta traseira, pulou a roleta, sentou-se no banco e, sob o olhar espantado dos mais de oitenta passageiros que lotavam o ônibus, gritou, tranquilo:

– Bora Chicão, agora pode tocar.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes 
do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Cerqueira (Poemas Avulsos)

CREPÚSCULOS

Sumiram, por encanto, as pálidas estrelas.
A lua se escondeu entre as ondas do mar.
O pescador largou, içando as brancas velas,
grandes lenços que vão, muito longe, a acenar.

Os montes, na amplidão, quais negras sentinelas,
despiram, pouco a pouco, os encantos do luar.
No diáfano esplendor de inimitáveis telas,
a estrela da manhã começa a desmaiar.

Aves recruzam no alto, em álacre revoada.
Tudo canta e sorri, num mágico fulgor.
O sol brilha no Oriente, a fronte alevantada,

como um rei sem rival, feliz, dominador;
e a exsurgir do arrebol de esplêndida alvorada,
enche a terra de luz, num êxtase de amor.
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HOMO HOMINIS LUPUS

Tigres, leões, leopardos e panteras,
elefantes, pesados mastodontes,
ictiossauros, mamutes de outras eras,
pelas brenhas vagando e pelos montes;

os que viveram nas furnas e taperas;
corvos, revoando em turvos horizontes,
hienas, répteis terríveis, brutas feras,
monstros do mar, negros rinocerontes;

ursos bravos, bisões, touros ferozes,
lobos, chacais, em pelotões atrozes,
as selvas rebolcando em luta insana...

Todas as feras juntas deste mundo
são preferíveis ao horror profundo
da ingratidão e da maldade humana.
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O IPÊ


Árvore nativa dos campos e florestas do Brasil, cuja copa frondosa toda se cobre de flores de ouro, É o símbolo do Brasil no "Jardim da Paz" da cidade de La Plata, República Argentina.

Sobre a encosta do monte escarpado e sombrio,
onde o mato nativo esbraceja e descora
batido pelo sol, ergue-se, azul em fora,
lindo e frondoso Ipê, quase à beira do rio.

A linfa de cristal corre em leito vazio
e, sentindo-se pobre, envergonhada chora.
O Ipê, colmado de ouro, os espaços enflora,
dominando altaneiro esse sertão bravio.

À tarde vêm pousar os alados cantores
em sua copa erguida, encantada e tamanha
que de longe deslumbra em flavos esplendores,

E ele avulta, a atitude engalanada e estranha,
como a sugar da terra e a transformar em flores
o áureo veio, profundo, ignoto, da montanha.
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O UIRAPURU

Nas florestas imensas escondido,
bem alto, sobre as copas verdejantes,
donde não se ouve o mínimo estalido
das folhas secas dos oitis gigantes,

o pequeno cantor, despercebido,
em seus trilos agudos e vibrantes,
aprimora e traduz todo o sentido
com que desperta os corações amantes.

Assim o Uirapuru, álacre, canta.
des'que o sol da Amazônia se alevanta,
e o passaredo o imita na espessura.

Corre a lenda que o pássaro encantado
para quem o ouve é um símbolo sagrado,
o talismã do amor e da ventura.
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POETA

(Escrito aos 17 anos de idade)

Alma, feita de luz, para as trevas nascida
como os astros da noite e os faróis sobre os mares,
não mais sonhes, vagando ao palor dos luares,
alma feita de luz para as trevas da vida.

Tu, que foste à matéria e à ilusão sempre unida,
és senhora da terra e dominas os ares.
E, se podes galgar os cimos estelares,
por que vives assim, para a terra pendida?

Por que sangras assim tuas asas de neve,
nesse rastro de dor que teu voo descreve?
Por que trazes da noite esse aspecto tristonho?

E, no entanto, aí vais, entre o abismo e a ventura,
a arrastar, cruelmente, em eterna tortura,
o madeiro da vida ao calvário de um sonho.
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Eduardo Reis da Gama Cerqueira, advogado, jornalista e poeta. Nasceu em Cataguases,MG, em 1884  e faleceu em 1950, no Rio de Janeiro.

Filho de Eduardo Ernesto da Gama Cerqueira e Mathilã da Silva Reis Cerqueira. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em 1907. Foi funcionário efetivo da Fazenda por concurso realizado na Delegacia Fiscal de Minas Gerais, em 1905. Em 1908, em concurso realizado no Tesouro Nacional, no Rio de Janeiro, obteve o 1. lugar. Em 1910 foi designado para exercer, em comissão, o cargo de Secretário do Ministro da Agricultura, com as funções de Chefe do Gabinete do Ministro. Exerceu vários cargos de responsabilidade: foi Delegado Fiscal do Tesouro, Conferente da Alfândega do Rio de Janeiro, e finalmente Oficial Administrativo do Tribunal de Contas. Fiel cumpridor de seus deveres, elogiado e querido por seus chefes e colegas, estimado por todos, Gama Cerqueira deixou um marco brilhante em sua trajetória de trabalho.

Desde os 17 anos, compôs e publicou versos, sonetos e artigos, colaborando em diversos jornais não só do Rio de Janeiro, como nos de São Paulo, Belo Horizonte, Juiz de Fora e outros. Foi principalmente colaborador incansável do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil. Publicou o poema "Portugal" em 1923 e "Luz e Sombras" em 1947. Deixou prontos para o prelo "Vinte e Duas Estrelas", e "Terra da Promissão" (este composto de poemas e sonetos históricos, descritivos e patrióticos, de exaltação do Brasil); e "Livro íntimo", transbordante de emoções diversas.

Tendo-se casado em 1908, ficou viúvo de D. Carmelita Barcellos Cerqueira, em 1941. Seus filhos: Célia Cerqueira Cavalcanti, Edgard Barcellos Cerqueira, Maria José Barcellos Cerqueira, Wilson Barcellos da Gama Cerqueira e Luiz Gonzaga de Barcellos Cerqueira, que lhe herdaram a sensibilidade poética.


Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Nilto Maciel (Maneco, Futebol e Cerveja)

Morreu ontem Maneco, ou Manoel dos Santos Pereira. Há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna, poucas pessoas devem se lembrar do atacante. Aliás, há raríssimos registros de sua passagem pelos clubes cearenses e muitos dirigentes e cronistas chegam a negar a sua existência como jogador de futebol. No entanto, parentes e amigos são testemunhas de sua vida dedicada ao esporte. A viúva, Maria do Socorro Pereira, afirma ter ele vestido a camisa do Ferroviário em 1963, não sendo certo haver jogado no campeonato estadual. Nelson Silva, amigo de Maneco desde o ano anterior, nega as informações prestadas por dona Maria: “Nunca chegou a um time profissional. Jogava em times de bairros, principalmente do Benfica, das Damas, do Jardim América. Apesar disso, dominava a bola como poucos, driblava a torto e a direito, chutava com os dois pés, fazia gols de primeira”. Outro amigo do craque, Jonas Craveiro, mais velho três anos, lembra do dia da apresentação de Maneco ao Fortaleza, por indicação de um veterano do time. Infelizmente não foi aproveitado, motivo de desgosto para o craque. “Chegou a se embriagar durante vários dias, tão decepcionado ficou”. O historiador Rafael Macedo não nega as informações prestadas pelos amigos de Maneco. Pelo contrário, dá notícia da apresentação do jovem ao Ceará (talvez para se vingar da humilhação sofrida no time rival) e de nova decepção, pois nem sequer teria sido recebido pelo treinador. Jair Pereira, um dos filhos de Maneco, sabe de todas essas histórias e de outras. Segundo ele, o pai procurou todos os clubes da capital e por nenhum foi aproveitado. E é esta a razão de seu desgosto pelo esporte. O que fizeram ao seu pai não foi pouco. Segundo Perilo Duarte, outro amigo do falecido, a causa do fracasso do atacante só pode ter sido a bebida. “Desde muito novo o Maneco vivia na boemia. Eu, ele e outros amigos. Muita cerveja e futebol”.

Para Everaldo Silveira, amigo de infância do falecido, desde menino Maneco queria ser goleiro. Aos domingos, após as missas, realizavam-se jogos na Praça da Matriz de Palma. Pois Maneco não nasceu em Fortaleza, como muitos supunham, mas na pequena Palma. O “campo” lhe parecia enorme. No entanto, talvez não passasse de cinquenta metros de comprimento. Apenas uma parte da praça. Os rapazes vestiam uniformes coloridos, calçavam chuteiras. Os goleiros se paramentavam de joelheiras e camisas de mangas compridas. Muita gente saía à rua para ver o espetáculo. O garoto achava tudo maravilhoso. Vem desse tempo sua paixão pelo futebol. Da noite para o dia, porém, os jogadores sumiram. Não havia mais jogos na praça. O prefeito ou o vigário devem ter proibido tais jogos diante da Prefeitura e da Matriz.

Maria do Socorro lembra detalhes da infância de Maneco, apesar de se terem conhecido quando jovens, em Fortaleza. O menino morou em três casas em Palma. Casas enormes, de tetos muito altos e chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, jogava bola, com os irmãos, na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano da sala. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veriam. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse seus rogos. Ou quando o pai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

A mãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mesmo quando os filhos confundiam bola com bala. Então vinham castigos físicos ou de proibição.  Três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. Mas como viver sempre estudando? No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos. O gato caçava borboletas, a correr e saltar entre as bananeiras. As galinhas iam e vinham, a cacarejar, enquanto o galo passeava galante. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta.

Everaldo passa horas a falar do passado. Naquele tempo poucos garotos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. A primeira denominação seria a do gênero; a segunda, a da espécie. De meia, porque o envoltório da bola era essa peça. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Os meninos jogavam nas calçadas. Quando não o jogo, os simples chutes de um lado para outro da rua. As paredes serviam de anteparo e, ao mesmo tempo, de linhas de gol. Às vezes dois garotos de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro de­terminado número de gols. Ao vencedor cabia, como “prêmio” (não seria “castigo”?), jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Maneco se dedicava de corpo e alma ao futebol. Dedicou-se ao esporte como poucos. Apesar disso, há anos fora dos gramados e da mídia, desde a fratura de uma perna, poucas pessoas devem se lembrar do atacante.

Na calçada, o pequeno goleiro quase voava, em busca da bola-de-meia. Os outros garotos o elogiavam. E ele se enchia de amor-próprio. Sim, quando se tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhou tornar-se goleiro profissional. Não conhecia ainda estádio. Não sabia o significado de um espetáculo esportivo. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado a treinar num time de futebol-de-salão, engoliu numa tarde mais de sete gols. Um fracasso! Maneco não passou do primeiro treino. Chamaram-no de frangueiro, e nunca mais o convidaram a entrar na quadra. Não o convidaram, é certo, porém voltou muitas vezes a ele, para ver a seleção municipal ser derrotada por times de outras cidades. Nelson Silva desconhece o primeiro fracasso do amigo. No entanto, conheceu muito o atacante: “Nunca chegou a um time profissional. Jogava em times de bairros, principalmente do Benfica, das Damas, do Jardim América. Apesar disso, dominava a bola como poucos, driblava a torto e a direito, chutava com os dois pés, fazia gols de primeira”.

Lembra-se Everaldo daquele tempo como se hoje fosse. Às vezes ia à casa do amigo, para tirar dúvidas de português ou matemática. Porém, Maneco não estudava muito. Na hora do estudo, recortava fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas e as colava num caderno velho. Passou a gostar de outras fotografias: atrizes de cinema, animais, carros, cidades. Adorava fotos de cidades grandes. Os arranha-céus o fascinavam. Passava horas a catar restos de revistas no lixo. Num terreno ao lado das salas de aula do colégio dos Salesianos. Deviam ter pertencido aos alunos internos.  

Havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Os da cidade, eram quase todos pobres, filhos de comerciantes, funcionários públicos. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, por algum tempo os alunos externos foram convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entravam por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Os da cidade ficavam ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. Para Maneco, a bola parecia excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Os pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto feria os dedos.

Todo garoto de Palma jogava bola. E torcia por um time de Fortaleza. Essa torcida se manifestava também no jogo de botões. Futebol de botões. Cada menino possuía dois ou mais times. Os de Maneco chamavam-se Calouros do Ar e Gentilândia. Os irmãos se dividiam entre Ceará, América, Fortaleza, Ferroviário e Usina Ceará. A viúva do craque, Maria do Socorro Pereira, afirma ter ele vestido a camisa do Ferroviário em 1963, não sendo certo que tenha jogado no campeonato estadual. Não importa se vestiu ou não vestiu. Pois os irmãos de Maneco também não se tornaram jogadores profissionais. Quando os times de um deviam se enfrentar, convocavam um dos irmãos para manejar os botões da equipe secundária. Os campeonatos duravam poucos dias. Aconteciam diversos jogos por dia. A mãe gritava: “Vão tomar banho”; “Venham almoçar”. Os garotos perdiam a noção do tempo, entretidos com os botões, quase todos de paletó. De onde vinham, como os adquiriam? Talvez nos armarinhos. Raspavam as bordas a gilete. E cada botão recebia um nome de jogador. Maneco sabia de cor os nomes de todos eles. Servia de campo uma mala de madeira, antiga, de mais de meio metro de altura. E a bola? Ah, a bola não rolava, porque nada tinha de redonda. Deslizava, atingida pelo botão. Ou voava para o gol, levantada pelo toque sutil ou violento do “jogador”. A bola parecia uma miniatura de panela – uma tampinha de creme dental. A meta, a baliza, o gol, a trave media cerca de dez centímetros de largura, cinco ou seis de altura. Feita de madeira, trazia ao fundo um pedaço de véu ou tecido mais resistente, como se fosse a rede. O goleiro equivalia a uma caixa de fósforos, recheada de pedras.

Desde Palma, Maneco acompanhava transmissões de jogos pelo rádio. Ao se mudar para a capital, não perdeu o hábito. Parava diante das lojas, para ouvir as locuções radiofônicas de jogos, quando voltava para casa, à noite, vindo do Liceu. Caminhava até o ponto do ônibus de Joaquim Távora. Às vezes ia e voltava a pé, com os dois irmãos. Quando perdiam o horário do ônibus ou quando os estudantes saíam às ruas em protestos. Arrancavam os paralelepípedos das ruas Liberato Barroso e Guilherme Rocha, para impedir a circulação dos veículos. Com medo, os motoristas recolhiam os ônibus às garagens. Ou por ordem dos patrões. Quase ninguém nas ruas. As luzes dos postes mal iluminavam as vias públicas. Cachorros ladravam.

Em Monte Castelo, onde a família de Maneco morou pela primeira vez em Fortaleza, havia sempre quermesses, festas populares, religiosas ou simplesmente um alto-falante todas as noites a irradiar canções em voga. Nelson Gonçalves, com “A volta do boêmio”, não parava de cantar.

Jonas Craveiro chora quando lembra do dia da apresentação de Maneco ao Fortaleza, por indicação de um veterano do time. Infelizmente não foi aproveitado, motivo de desgosto para o craque. “Chegou a se embriagar durante vários dias, tão decepcionado ficou”.

Maneco foi sepultado no Cemitério Parque da Paz. Ao velório compareceram apenas os parentes mais próximos e dois ou três amigos e vizinhos.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Contos e Lendas do Mundo (O Morcego)

As borboletas, que hoje vemos pousar, leves, nas flores, na superfície das águas, e até mesmo paradas no ar, não chegam nem aos pés daquilo que em determinado tempo foi o morcego: a mais bela ave da criação.

Mas as coisas nem sempre foram assim: quando a luz e a sombra começaram a andar, ele era como o conhecemos agora e se chamava biguidibela: biguidi, mariposa; e bela, carne... Mariposa em carne, isto é, mariposa pelada. O morcego, era, então, a mais feia e desventurada de todas as criaturas.

Até que um dia não aguentando mais o frio, subiu ao céu e disse a Deus:

- Senhor, estou morrendo de frio, preciso de umas penas.

E como Deus, embora nunca pare de trabalhar, jamais volta a pôr as mãos em tarefas já cumpridas, não tinha nenhuma pena para lhe dar. Assim, disse-lhe que voltasse à Terra e suplicasse em seu nome uma pena a cada uma das aves existentes. Porque Deus sempre dá mais do que se lhe pede.

De volta à Terra, o morcego recorreu aos pássaros de plumagem mais vistosa: a pena verde do pescoço do papagaio, a azul da pomba azul, a branca da pomba branca, a furta-cor do colibri.

Assim, de todas as aves o morcego ganhou uma pena e tornou-se a mais linda das aves.

Orgulhoso, voava ao romper da manhã, e as outras aves, refreando o voo, paravam para admirá-lo. Havia sobre a Terra uma emoção nova, provocada pela beleza dessa nova criatura. Ao cair da tarde, voando com o vento do poente, coloria o horizonte.

Certa vez vindo do outro lado das nuvens, criou o arco-íris, como um eco de seu voo.

Sentado nos ramos das árvores, abria e fechava as asas, sacudindo-as num tremor que alegrava o ar. Todas as outras aves começaram a ter inveja dele, e o ódio tornou-se unânime, como unânime havia sido um dia a admiração.

Então um outro dia, subiu ao céu uma revoada de pássaros, com o colibri à frente. Deus ouviu sua queixa. O morcego fazia pouco deles; além disso, com uma pena a menos, sofriam com o frio. E eles mesmos, de volta, trouxeram uma mensagem dizendo que o morcego deveria comparecer ao céu.

Quando ele se apresentou, Deus o fez repetir os gestos que tanto haviam ofendido seus companheiros. E, ao sacudir as asas, ficou como antes, sem penas. Diz-se que durante um dia inteiro choveram penas do céu.

Desde então, o morcego só voa ao entardecer, em rápidos giros, caçando penas imaginárias. E não para nunca, para que ninguém possa ver sua feiúra.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 20: Foi tudo culpa da pia

TENHO UM AMIGO COMUM, o José Cardoso, excelente compositor, que impreterivelmente não deixa de beber a sua cachaça. Chova ou faça sol, haja algo ou não para comemorar, lá está ele, fiel à sua companheira. Outro dia, ao socorrer um cidadão que fora atropelado no trânsito, fui parar, quase às duas horas da madrugada, num pronto socorro desta cidade. Para surpresa minha, quem não encontro na recepção, com a cara toda arrebentada preenchendo uma ficha para ser atendido?

Ele mesmo, o José Cardoso. Entre espantado e boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado, pelo fato de ter me visto), lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido. Meio estonteado e titubeante, mais para lá do que para cá, o coitado explicou com a voz meio rouca.

— Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimável que você está presenciando, agradeço à ela. Unicamente à ela...

— A pia? Mas que pia?

— Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que é uma pia?

— Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação pode haver entre uma pia e este seu estado deplorável?

— Vou tentar explicar. Como sempre faço, depois do serviço, passei na birosca do Aleijadinho. Tomei umas geladinhas com alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado. Depois de algumas boas rodadas, acabei de chegar no ‘lar, doce lar’. Entrei direto para o banho, jantei, vi um pouco de novela na televisão e, então, segui para um quartinho que tenho nos fundos.

— Não entendi. Quartinho nos fundos?

— Precisamente. Não sei se você sabe, faz tempo que não nos vemos, mas eu construí um espaço nos fundos lá de casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minha filha que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisa? Você foi convidado por ela para ser padrinho...

— Cardoso, esquece o resto. Quero saber, neste momento, da história da pia. Não enrola e conta logo...

— Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, me dirigi para o quartinho. Sempre que resolvo ‘embriagar’ a alma, para compor alguma coisa nova, me tranco nesse aposento e ‘meto bronca’.

José Cardoso aparentando um certo cansaço, tomou fôlego e prosseguiu.

— Bebi até o copo fazer bico e a garrafa pedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você conhece melhor que eu, não aprova a ideia. Aliás, ela nunca aprovou. Odeia quando bebo alguma coisa. Acredito até pretendia ‘tirar uma’ e eu não estava muito disposto a chacoalhar os ossos. Conclusão: a filha da mãe da minha querida esposa me pegou de porrada e a coisa acabou neste quadro que o companheiro está vendo com os próprios olhos.

— Mas espera lá! Você não falou que não foi a Ritinha?

— De fato. Não foi!

— Então, José Cardoso?

— As ‘cacetadas’ que a Ritinha me deu, você sabe, não fizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor, não doem. Me ajudam até pensar numa poesia e numa música mais romântica. A culpa, realmente, foi da pia.

— Está bem, quero um relatório detalhado. Sou todo ouvidos...

— Vou procurar ser o mais claro possível. Na verdade, tenho sempre em casa, doze garrafas de aguardente da ‘boa’. Gosto deste número, o doze. Me dá sorte. Inclusive foi a minha primeira música gravada pelo saudoso Orlando Dias...

Voltou a renovar o fôlego e seguiu com seu relato.

— Acontece que a Ritinha bateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamos uma pequena discussão. Entre tapas e beijos, ela resolveu medir as forças e avançou, resoluta para cima de mim, de cabo de vassoura e me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine...

— Você não obedeceu, não é mesmo?

— Nem poderia, Barbosinha. Como já estava grogue, ou para lá de Bagdá, entrei em ação. Peguei a primeira garrafa, bebi mais um copo e joguei o resto na pia...

— Na pia?

— Sim, na pia. Em seguida, peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei, também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceira garrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água que os passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Com toda força. Voou caco de vidro para tudo quanto é lado. Com a quarta garrafa, não foi diferente. Bebi na pia e joguei o resto no copo...

— Como é que é...?

— Você já vai entender: calma ai. Na quinta garrafa, eu me armei de uma tigelinha cheia de tira-gosto, joguei a tampa da tigelinha nos cornos da Ritinha, abri a quinta garrafa nos dentes e ingeri, de um só gole, toda a bagaceira. Depois passei a mão na sexta garrafa, corri para a pia, bebi seu conteúdo sem ao menos contar até cem. Na sequência, para não perder o pique, joguei o copo no resto. Na sétima, meu camarada, a bagunça se fez hilária. Peguei no resto, enfiei o dedo nos olhos da nossa empregada que veio correndo quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela me xingar todinho, bebi a pia...

— Bebeu... bebeu a pia?

— Na seguinte, nem lhe conto. Que loucura! Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremessei, com tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiu como uma bomba dessas caseiras. Pense numa bomba caseira fazendo um estardalhaço dos infernos. Por derradeiro, joguei a décima garrafa no copo, por azar tropecei na décima primeira e, cego de raiva, fora de mim, me atirei, sem mais demora ou delongas, literalmente (enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo do sovaco), de cabeça, na pia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 20 de junho de 2021

Nemésio Prata (Panaceia de Versos) – 1

São versos enviados em diversos dias pelo trovador Nemésio em correspondência com Feldman (eu).

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Nós, Trovadores, estamos,
hoje, em alegria, imersos,
pois no Café desfrutamos
de sua Chuva de Versos!
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Se a lua inspira o Poeta...
também o faz o arrebol;
venturoso é para o esteta
ter os dois por seu farol!

Trovar não é brincadeira,
e quando se é "corrigido"
pelo Feldman, nem "peixeira"
faz ele tomar "partido"!
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Ao botar o seu negócio
botou sócio e se "ferrou".
Foi o "sabido" do sócio
no negócio que "enricou"!

ou

Ao botar o seu negócio
cuidado pra não botar
um "sabido" como sócio:
ele pode lhe "ferrar"!
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Curitiba, capital
do Estado do Paraná,
além de urbe escultural,
tem parte com Ceará,
através das Poesias,
que dão cor aos cinzas dias,
vindas lá de Maringá!

Vida longa, Curitiba!
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Se achando muito inspirado,
(o babalaô da Trova!),
um bardo se pôs a prova
num concurso, e o inesperado:
na trova..., foi reprovado!
Se sentindo injustiçado,
não muito "civilizado",
acusou a comissão
pela sua frustração
de trovador... Ah, coitado!
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Logo chega a primavera,
todas flores vão florir...
Novos dias no porvir.
E o Nemésio, uma fera
que sumiu de nossa esfera.
Há uns tempos sem notícia,
devo chamar a polícia?
Foi por um ET abduzido?
Ou dos pobres escondido?
Qual será sua felícia?

(José Feldman)

Resposta do Nemésio:


Caro José, sem polícia!
Eu confesso: estou faltante
nas trovas, mas nesse instante
quero dar-lhe uma notícia;
estou cheio de felícia!
Sem sair da nossa esfera
fui até a estratosfera
ao "ouvir" esta delícia
de notícia, sem "malícia":
O Nemésio é uma fera!

Pena não ser verdadeiro
o que dizes. Eu, uma fera?!
Ai, ai, ai, como eu quisera!
Na verdade, companheiro,
sou só um reles troveiro!
Sabedor que não mereço,
mesmo assim eu agradeço
esta franca exaltação,
te afirmando, de antemão,
que este encômio não tem preço!
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Ao meu amigo José,
pessoa fenomenal,
que de forma colossal
enfrenta dura maré,
pelo que tiro o boné,
só desejo que seu Deus
como faz aos filhos Seus,
cuide desta enfermidade,
dando-lhe longevidade:
pois não é hora de adeus!

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.
Imagem por Gael Mac Tireban

Milton S. Souza (A Índia e o Peão)

Os dois moravam no fundo da fazenda do patrão, num velho galpão abandonado transformado em morada. Não eram felizes e nem infelizes: ele sabia que precisava dela para superar a velhice; e ela sabia que não tinha mais ninguém no mundo. E assim, mesmo sem amor ou paixão, dividiam as vidas e as poucas coisas que possuíam. Ele tinha mais tristezas para carregar: fora o maior peão da fazenda. Os cavalos que domava orgulhavam o patrão, ganhavam carreiras de cancha reta e rendiam na lida campeira. Era o maior domador. Mas a idade foi chegando. E quando o patrão sentiu que o peão não daria mais lucro, resolveu fazer uma “obra de caridade” com ele: ofereceu o velho galpão para servir de moradia, com o trato dele zelar pelos arames das cercas. Foi com muita dor no coração que retirou os seus poucos pertences do alojamento dos peões. Nem cavalo tinha, pois nunca recebeu nada pelo que fazia. Era cama, comida e muito trabalho…

Quando chegou no galpão, uma surpresa: já havia uma moradora. Logo reconheceu a velha índia que seguidamente ia até a fazenda para benzer algum peão picado por cobra ou com ferida braba. Enquanto arrumava um canto para acomodar os trastes, ela, imediatamente, começou a fazer uma trouxa com suas roupas velhas e cacarecos. Mas ainda restava um pouco de ternura no coração daquele peão. Com poucas palavras, ele disse que ela podia ficar, pois havia lugar para os dois. Um pouco desconfiada, ela recolocou as suas coisinhas no lugar. Ficaram morando cada qual no seu canto. Ele fez alguns consertos no galpão, para pode morar melhor. Ela olhava, sem dizer nada.

Mas o destino resolveu aproximar os dois: ele levou um tombo quando consertava uma parede, ficando desacordado. Ela, mesmo frágil, conseguiu arrastar o velho peão até o quartinho dele. E ficou dias e noites cuidando do doente, fazendo ele tomar alguns chás amargos, tratando com folhas e plantas os seus machucados. Ficou curado. E não deixou ela levar de volta os seus trastes. Ficaram morando juntos.

Mas o tombo havia deixado marcas. E o velho peão, algum tempo depois, sofreu um derrame cerebral. A velha índia, notou a gravidade da situação. E resolveu ir até a fazenda buscar ajuda. Demorou muito para ser entendida. Insistiu. E o patrão resolveu mandar uma carroça buscar o doente e levar até o posto de saúde na vila.

Foi quase um dia de viagem. E a índia junto, em silêncio, preocupada com aquele homem que era seu sem ser seu. Foram largados no posto de saúde. Como o estado do doente era grave, a prefeitura encaminhou, numa ambulância, para um hospital na capital. Ela sempre junto, de carona.

Os 400 quilômetros de ambulância debilitaram mais o doente. O peão foi direto para a UTI. E ela, durante 18 dias, ficou acompanhando o caso, dormindo nos bancos do corredor do hospital, comendo alguma coisa quando alguém ficava com pena, usando os sanitários para lavar as suas roupinhas velhas e fazer a sua higiene. Ficou conhecida como a “velha do peão”. Só podia entrar na UTI e ficar ao lado dele meia hora por dia. Era o seu momento mais feliz.

Mas a felicidade dura pouco: o peão não resistiu. E ela chorou baixinho por ele e também por ela: sozinha naquele lugar, sem nenhum conhecido, sem nada...

Uma freira, que estava com um familiar no hospital, entendeu todo o drama. E levou a velha índia para o colégio católico onde trabalhava. Hoje, quase um ano depois daqueles dias sofridos, ela cuida do jardim da escola. E tem o seu quartinho para morar com dignidade. Está garantindo uma velhice mais feliz. De vez em quando, quando brota uma saudade no coração, ela colhe uma das flores mais bonitas e oferece para Nossa Senhora. A Virgem entende o que diz o seu silêncio: ela só quer, algum dia, poder encontrar o seu peão nos jardins da eternidade. Por certo vai conseguir…

Fonte:
Recanto das Letras
Imagem por Gael Mac Tireban

Silmar Böhrer (Croniquinha) 26

Uma questão crônica das crônicas (croniquinhas) é a definição do tema a abordar. Porque são tantos os até pequenos detalhes, que de repente focamos num deles mais apreciado, mais comentado, mais vivido.

Tenho por hábito constante caminhar.

Milhares de dias, milhares de quilômetros ambulando. E bem ou mal comparados, os caminhos e os caminhares são como as leituras - nos mostram, atiçam as ideias, ensinam a enxergar mais longe, fazem pensar nas nuances e matizes das trilhas.

Nas andanças corriqueiras pela veredas da mata, aprendemos a ver a natureza com outros olhos - o riacho caudaloso, os nambus à beira d'água, as curucacas na campina, a orquestra da passarada - musicalidade junto ao som daquele silêncio ensurdecedor nos caminhos.

Nestas constância pelos carreadores vivemos legítimas vilegiaturas, buscando a essência dos bons dias. Caminhadas são fruição: como na vida, devemos aproveitar as delícias da paisagem.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Imagem por Gael Mac Tireban

sábado, 19 de junho de 2021

Adega de Versos 30: Luciano Dídimo

 


Solange Colombara (Carreata de Micro-Contos) – 2 –

MADRASTA


Sua vida madrasta finalmente teve fim ao cruzar os portões do Paraíso. Realizara seu maior sonho: Ser mãe.
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CIMO

No cimo da nostalgia, Adalgisa quase conseguiu tocar a lua.

Desceu a montanha cantarolando ao luar.
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MEDO

Sentia de tudo um pouco: Palpitação, mãos suadas, dor no estômago. Mas ao sentir aqueles olhos lhe sorrindo, o medo passou e o primeiro beijo aconteceu.

Fonte:
Textos enviados pela autora.

Brasil Andrade Holsbach (Caderno de Poemas) – 1 –

BEM DISTANTE, NO SERTÃO...

Lá nos pagos, onde eu moro,
bem distante... no sertão...
quando a lua faz clarão,
toco viola, canto e choro!

O meu canto de saudade
ecoa longe, sobe o monte...
se escoa pela fonte
em que brinquei na mocidade!

Minha prenda foi viver
n’outra choça, junto a Deus...
me deixou na solidão...

Vou cantar-lhe até morrer
pra me abrir a porta dos Céus
e curar meu coração!
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GÊNESE DUM SONETO

As cortinas se abrem em sonho e fantasia!..
Um artista tosco dança em palco aos turbilhões
em vil papel a exibir assombrações...
É que anoitece no portal da poesia!

Mas há também a entidade a pugnar
e expugnar o mau pensar que a alma corrói...
No versejo de palavras meu herói
escande os versos para a métrica ajustar.

Peço aos céus me confortar co’ a luz divina
e Deus a verve sopra em mim para inspirar
verso rimado numa plateia a aplaudir.

De madrugada a estrela d’alva me ilumina
e meu soneto vem ao mundo pra animar
um coração que por mim pulsa a sorrir!...
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NÃO HÁ TEMPO RUIM PRA AMAR

Hoje o dia ‘stá chuvoso,
não tem noite de luar;
não há tempo ruim pra amar
- nosso tempo é dadivoso!

Como pode reclamar
(quando o dia está adverso)
quem tem Deus no Universo
sempre pronto a confortar?!

Se a tristeza te abater,
por querela de amor,
não te ponhas a chorar.

De manhã, no alvorecer,
Quem, perene, rega a flor
nosso amor há de irrigar!…
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PELOS VERDES CAMPOS DA MINHA TERRA

Pelos verdes campos da minha terra,
o vento que sopra, inverno e verão,
traz o bom tempo para a plantação
rir e florir nas nascentes da serra.

Planta a semente para a passarada
alimentar-se em qualquer estação;
trinar e pulsar como um coração
que ama mais brando no alvor da alvorada.

O Deus deste mundo, sábio, perfeito,
fez o livre arbítrio e fez o perdão...
enviou o Filho do amor pra perdoar...

Se a chama se esfria... dentro do peito
haverá brasa, calor e paixão
que o sopro do amor não deixa apagar!...
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POR QUEM BATE O CORAÇÃO?

Por quem bate o coração?
- Por aquele a quem mais ama:
o seu bem a quem declama
os suspiros da paixão!

Fantasia?... Pois que seja
essa musa da vivência
que lirismo em pura essência
ao poeta inspira, enseja!...

Vou fazer uma poesia
pra dizer-lhe quanto a amo:
não suporto mais calar-me.

No meu mundo fantasia
lindo verso a ti declamo
porque quero entregar-me!...

Fonte:
Facebook do poeta.
https://www.facebook.com/brasil.holsbach

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 42) O Chato

ALFINETE CARDOSO pega o telefone e liga para um número que está sobre a mesinha de centro escrito num papelzinho de cigarro. Espera. Na quinta vez, atende uma voz feminina.

— Bom dia! Pois não?

— Bom dia. De onde fala?

— Que número o senhor ligou?

— Este que estou falando com a senhora.

— Tudo bem, senhor, mas qual é o número?

— Minha linda, ai não é do Jóquei Clube?

— O senhor deve ter ligado errado. Aqui é da funerária Suba em Paz. O senhor queria ver o preço de uma urna mortuária?

— Credo em cruz, moça. Funerária? Tô fora. Obrigado.

Três minutos depois Alfinete Cardoso tenta novamente. Na pressa, e ligeiramente nervoso, pode, de fato, ter discado um número diferente ao invés do numeral correto. De novo, a espera. Na quinta vez é atendido. Desta feita, um homem de voz grossa se faz presente.

— Bom dia?

— Bom dia, meu amigo. Com quem falo, por favor?

— Com quem o senhor quer falar?

— Com o Durcaine do Jóquei Clube

— Não, meu amigo. Aqui não é do Jóquei Clube. E nem tem pessoa aqui com este nome. Como é mesmo o apelido do dito cujo que o senhor falou ai?

— Durcaine.

— Realmente o senhor se enganou...

— O que funciona ai?

— O inferninho do Camilinho... as melhores garotas da cidade.

— Meu Deus, não é possível. Inferninho do Camilinho?

— Sim senhor. Por que o espanto?

— Por nada, desculpe.

Impaciente, Alfinete Cardoso, faz nova tentativa. Aperta as teclas pausadamente, para não errar de novo. Mais uma espera embaraçosa o deixa meio que fora de si. Na oitava vez, atende uma mulher. Pela voz parece ser de uma idosa. Antes que ele diga alguma coisa, ela se antecipa e grita, ou melhor, explode.

— Até que enfim, seu cachorro. O que estava fazendo, que não me atendeu?

— Senhora, bom dia. Desculpe. Estou procurando pelo Durcaine...

— Não venha com esta história furada para meu lado. Estou esperando você com a carne para eu preparar e fazer os bifes. Aposto que parou no bar do Tadeu e encheu os chifres. Não se faça de idiota, nem mude a voz. Te conheço há sessenta anos. Durcaine, Durcaine, você vai ver o Durcaine quando chegar aqui. O pau de macarrão está te esperando... Vá lamber sabão. Traga a carne. Vai atrasar o almoço. Droga!

— Senhora... eu...

A furiosa senhorinha não se faz de rogada. Desliga nas barbas dele.

Alfinete Cardoso decide que tentará pela derradeira vez. Se não der certo desta, jogará o papelzinho fora e o tal do Durcaine, que vá para os quintos do inferno com o Joquei Clube e tudo mais que tiver direito. Ao selecionar as teclas marcando os números desejados, percebe que as suas mãos tremem bastante, em face, claro do nervosismo que o atormenta. Na décima segunda vez (quando pensava em interromper a ligação) atende uma criança.

— Oi... quem é?

— Sou eu... é vovô?

Alfinete Cardoso se abre num sorriso amarelo. Fala com certa ternura na voz.

— Como é seu nome?

— O meu?

— Sim!

— Lulu...

— Lulu, que nome bonito. A sua mamãe está?

— Acho que está...

— Chama ela pro titio.

— É vovô... vô, por que o senhor esta mudando a voz?

— Não, não é o vovô e nem estou mudando a voz.

— Quem é?

— Minha princesinha, chama a sua mamãe pro titio.

— É vovô. Vovô, o senhor está me fazendo de boba?

Alfinete Cardoso, mais irritado que poste fugindo de cachorro mijão, não desliga o telefone. Ele joga, ensandecido, o aparelho com toda força, em direção à parede. Por azar, acerta, em cheio, a cabeça da mulher dele, que atravessava, da cozinha para o quarto, justamente naquele instante.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

A. A. de Assis (Rex, um cãozinho da roça)

A semântica tem dessas coisas: todo mundo diz que o cão é o melhor amigo do homem, e da mulher também. Mas ninguém chama seu melhor amigo ou sua melhor amiga de cão, cachorro, cachorra, cadela... Dá dó terem dado a um animal tão querido um tão mal-escolhido nome. Outros bichos receberam nomes até poéticos: andorinha, ovelha, colibri, borboleta, golfinho, vaga-lume. Por que logo o cão tinha que ter esse nome que mais parece xingamento?

Mas o que eu queria falar era de outra coisa. Dia desses o amigo Kaltoé, o megacraque do desenho, me sugeriu: “Faça uma crônica sobre a perda de animaizinhos de estimação. Todo mundo tem ou já teve um”. De pronto me lembrei do Rex. Vou contar.

Morei na roça até os 8 anos, quando me mudaram para a cidade (São Fidélis-RJ) a fim de continuar os estudos iniciados numa escolinha rural. Fui morar com um irmão mais velho e três irmãs. Na roça eu tinha dois cachorros: um grande, chamado Combate, e um pequeno, Rex. Queria porque queria levar os dois comigo para a cidade. Meu pai, com paciência, me convenceu de que o cachorro grande não se adaptaria: acostumado à plena liberdade, com espaço à vontade para correr, bagunçar, caçar preás, ele sofreria demais se fosse confinado num quintal. Acabei concordando. Levei apenas o pequeno Rex.

Estava indo tudo bem, até que chegou o dia da festa do padroeiro. Conforme a tradição, a cidade foi despertada às 5 da manhã pelo desfile de alvorada da banda de música. Em meio ao alegre retumbar das tubas, tambores e trombones, pipocava um estonteante foguetório. Pra quê?... Apavorado ante aquele barulhão todo, o cachorrinho Rex, criado no sossego da roça ao som de pássaros, grilos e cigarras, começou a latir sem cessar, até que achou um buraco na cerca e se mandou na maior disparada. Até hoje não sei onde foi parar. Só sei que chorei por mais de uma semana e jurei nunca mais ter outro animal em casa.

Jurei mas não cumpri. Quando vim para Maringá morei durante alguns anos numa casa com quintal. Um dia um amigo me perguntou se eu aceitaria de presente um filhote de cachorro. Lucilla e eu pensamos bem, aceitamos. Demos-lhe o nome de King. Cresceu rápido, virou um baita cachorrão. Depois apareceu uma cachorrinha vira-lata. Demos comida a ela, a bichinha não quis mais ir embora. Para combinar com o King, demos-lhe o nome de Konga.

Numa certa manhã Konga resolveu brincar na rua em frente, passou um carro e ela foi atropelada. Corri, peguei no colo. Perna quebrada. Levei à loja veterinária do Astolfo Castanheira, ele engessou, garantiu que não era coisa grave. De fato não era. King e Konga ficaram conosco enquanto viveram. Deixaram uma saudade enorme. Prometi de novo que nunca mais teria animal de estimação. Dessa vez cumpri.

Kaltoé tem razão. Perder um animalzinho querido é muito triste. Dói demais.
 
Melhor parar a conversa aqui.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-6-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VIII, motes e glosas

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ORILO VIROU FORMIGA
ENTRE AS MALAS DO CORREIO.


Empresa dura o castiga
Com grossa enchente de malas
E, para bem despachá-las,
Orilo virou formiga;
A papelada o fatiga,
No corre-corre sem freio.
De minha parte, eu receio
Perder sua lira doce,
Pois o poeta enfurnou-se
Entre as malas do Correio.

(O poeta Orilo Dantas vinha faltando às sessões do Clube dos Trovadores do Seridó e alegava sobrecarga de serviços nos Correios, onde trabalhava)
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COISAS GUARDADAS QUE EU TENHO
QUE ÀS VEZES VOCÊ NÃO TEM.


Quero mostrar-lhe o desenho
Da vida, desde menino,
Um traçado do destino,
Coisas guardadas que eu tenho:
Carrego o peso de um lenho
Que Deus transforma num bem,
E quando a descrença vem,
O Mestre de Nazaré
Me devolve aquela fé
Que às vezes você não tem.
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OS MEUS SONHOS DE POETA
JÁ FORAM REALIZADOS.


Nunca fui um bom esteta,
Mas fiz da forma uma lei
E na trova não frustrei
Os meus sonhos de poeta;
O que falta, Deus completa
Pra redimir os pecados
Dos versos desengonçados
Que discrepam dos demais,
Por isso meus ideais
Já foram realizados.
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É MARCA, É FERRO, É RIBEIRA.

É sela, é brida, é arreio,
É gibão, é perneira, é luva,
É raio, é trovão, é chuva,
É roda, é moenda, é veio;
É seio, é carta, é correio,
É lenha, é forno, é caldeira,
É vela, é pavio, é cera,
É leite, é coalhada, é soro,
É vaca, é bezerro, é touro,
É marca, é ferro, é ribeira.
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O POETA TAMBÉM CHORA,
MAS CHORA COMO QUEM CANTA.


Todo poeta se inspira
Na vibração de seu canto,
Embora, às vezes, o pranto
Em seu caminho interfira;
Afeito ao toque da lira,
O som das canções o encanta,
Mas, se um dia a musa santa
De seus sonhos vai embora,
O poeta também chora,
Mas chora como quem canta.

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FUTURO É QUASE PRESENTE,
PRESENTE É QUASE PASSADO.


Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo;
Numa fração de segundo,
A roda do tempo gira;
Quando um instante se retira,
Outro encosta no tablado.
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente...
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.

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POESIA VEM DE ALGUM CANTO
QUE EU NUNCA SOUBE EXPLICAR.


Coisa tão simples... Deus cria,
Dá de graça a qualquer pobre,
Mas nenhum gênio descobre
Os mistérios da poesia;
Filha da noite e do dia,
Tem luz de estrela e luar;
Percorre os caminhos do ar
E nos bafeja; entretanto,
Poesia vem de algum canto
Que eu nunca soube explicar.

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AFINEI PELA PRIMA DA VIOLA
O POEMA QUE FIZ PRA MINHA PRIMA.


Adocei a toada sertaneja,
Imitando a ternura dos gorjeios;
Busquei longe a alegria dos recreios
Embalados na terra benfazeja;
Com as bênçãos do Deus de minha igreja,
Recebi lá do céu a melhor rima
E, com todos os brios da auto-estima
De um canário liberto da gaiola,
Afinei pela prima da viola
O poema que fiz pra minha prima.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão.
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carolina Ramos (Férias na roça)

Quanta saudade!… Saudades das minhas férias na roça!…

Das cavalgadas matinais, na fazenda do Pinhal, cedinho, quando o orvalho ainda brilhava nas folhas adormecidas, à espera de que o Sol as viesse despertar!

Saudade da algazarra dos pássaros madrugadores. Saudade do estalar da lenha sob a chapa do fogão que amparava o bule do café, enquanto o aroma familiar se espalhava pelos cômodos do velho casarão da fazenda, a esgueirar-se pelas janelas, a competir com o aroma adocicado das flores do jardim.

Saudades do velho Lucrécio - passos lentos, carapinha branca, voz pausada e mansa - que, nas noites embuçadas em mistério, eletrizava a criançada sentada à sua volta, de olhos arregalados a ouvir suas histórias, suspensa nos "causos" por ele contados, que envolviam sacis, lobisomens, assombrações e tanta coisa mais que acabava por perturbar a mansuetude do sono dos anjos.

Filho de escravos, Lucrécio era dessas pessoas que não podem faltar no cenário de uma fazenda que se preze. Alto, magro, pele negra, curtida de sol e alma de algodão... Se Lobato o tivesse conhecido, certamente haveria um Lucrécio no Sítio do Picapau Amarelo.

Ainda garotinha, mas já com veleidades de boa amazona, pedia-lhe que encilhasse o meu cavalo (nunca o mais manso) e Lucrécio recomendava sério, de dedo em riste:

- Cuidado, minina. Num pode galopeá... num pode memo, viu? I num si meta no mato, qui tem munta cobra por ali...daquelas perigosa... cheia de veneno!

E eu apenas assentia com a cabeça... sabendo que nem tudo seria cumprido.

Ah! o velho Lucrécio, que nos ensinava a valorizar a poesia dos aboios, o canto desafinado e dolente de um carro-de-boi... o ranger festivo das porteiras quando se abriam... e a pancada seca do adeus quando se fechavam atrás de nós.

Lucrécio juntava a criançada da vizinhança e nos levava, em bando, a catar ninhos de pinhão e de ovos... A colher laranjas e, também, aquelas jabuticabas brilhosas, como que envernizadas, a enverrugar troncos e os galhos das jabuticabeiras.

Ensinava-nos a ouvir, bem de perto, o pipilar dos passarinhos nos ninhos... mas... sem tocá-los, já que, sem esses cuidados, os ninhos poderiam ser abandonados e os filhotes expostos ao repúdio dos pais.

Quanta, quanta saudade da Fazenda do Pinhal, lá para os lados de Itapetininga, moldura preciosa da paisagem da minha infância! Seus proprietários - sr. Leonardo e a esposa, dona Nenê. Ela, prima de minha mãe.

Lembro-me da roça, viçosa, de onde vinham os verdes que enfeitavam a nossa mesa... Da fonte, gorgolejante, entre a ramagem do bosque, a oferecer linfa pura e fresca... Do balido das cabras e dos carneiros, pernas finas e acolchoados de lã... Das vaquinhas leiteiras que nos brindavam com bigodes de leite morno… lembro-me também do extenso algodoal, semelhante a imenso campo nevado que nem o Sol a pino conseguia derreter!

E lembro-me, ainda, com doida saudade, do meu cavalinho, o Expresso, que, ao ser transportado para a Hípica de São Vicente, seria o cobiçado presente dos meus quinze anos... "negro como a asa da graúna", lépido como um pé-de-vento... a correr pelos campos, onde o veneno de uma urutu-cruzeiro, cruelmente, o roubaria de mim!

E, afinal... que saudade... que saudade tão grande... daquelas noites forradas de estrelas (hoje engolidas pela poluição) quando era possível ouvir a brisa fresca sussurrar entre os pinheiros... Sempre a lembrar-nos que a vida passa depressa... tão depressa quanto a água do rio... que murmureja a seguir em frente para, com certeza... nunca mais voltar!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Estante de Livros (Tudo é possível para quem ousa sonhar, de Jaqueline Machado)

“Este é um livro motivacional, onde a autora nos faz acompanhar, como se estivéssemos a subir os degraus de uma escada, cada fase de evolução do indivíduo, desde o nascimento, os primeiros passos, a escolinha, as decepções, a rebeldia, o bullying, os caminhos, a adolescência até a fase adulta. Numa linguagem simples mostra a importância da vida, fazendo-nos refletir a cada passo sobre nossa existência e nossa missão. Jaqueline também apresenta alguns ícones da humanidade que dentro de suas próprias limitações e campos de atividade conseguiram voar alto, deixando suas marcas como exemplos de superação.

Enfim, este livro nos mostra que com fé podemos superar as vicissitudes da vida e mesmo que aprendizes, podemos ser mestres de outros desta e das futuras gerações."
(Texto de apresentação do livro, por José Feldman)
 
TRECHO DO LIVRO 
 
FELICIDADE

A felicidade nos guia, nos guarda, nos inspira...
Envia tantos sinais...
No mágico instante do parto, ansiamos pelo mundo
e o mundo anseia por nós.
No dia da nossa chegada, uma pressa misteriosa invade
nossa alma e, de cinco em cinco minutos, as mães
choram com as contrações provocadas pela nossa incontrolável
ansiedade.
Mas mãe tudo entende...
Paga o preço do pesar.
Chora contente...
Pois sua dor vem do amor.
E por amor vale a pena sofrer feliz.
Em certos momentos do parto, a mãe não sabe se
chora ou se sorri, pois ela está fazendo o milagre da vida
acontecer trazendo ao mundo, um filho...

Costumo dizer que, de todos
os espetáculos da Terra,
é o espetáculo do parto
que Deus senta para assistir...

Nesse momento tão corriqueiro e, ao mesmo tempo,
sempre único, em que a mulher contente sofre com dores
para dar à luz, nascemos chorando...
Na verdade, não sei bem se nascemos a chorar ou a
cantar.
Tenho em mim essa deliciosa dúvida... Mas isso não
importa.
Chorar... Cantar...
Os compassos do lirismo da vida são os mesmos.
E a verdade é que nascemos para a felicidade.
Nascemos do amor.
E o amor nos ensina que felicidade não é apenas um
estado de espírito, mas sim um dom.
Um dom tão magnífico que também se revela na adversidade.
Na alegria ou na tristeza, essa graça bendita chama
por nós, bate à porta do nosso coração, faz plantão diante
dos olhos, cócegas em nosso nariz.
Da espera, das contrações e das lágrimas, a vida nasce.
E isso nos mostra que a dor não é feita apenas de lamentos,
e que o prazer não é feito apenas de satisfações...
Nada tem um lado só.
No momento da concepção, quem comanda os corpos
são os estímulos do prazer...
Na hora de nascer, quem comanda são os estímulos
da dor...
Prazer e dor são faces de uma mesma moeda.
E possuem grandeza infinita, pois um nos ensina a
vencer pelo trabalho, e o outro, pelas carícias do amor...
Quando o pesar invade o nosso coração, é sinal de
que somos árvores férteis.
Capazes de dar frutos...
Quando este pesar machuca nossa alma, é porque
ele está cavando nossa terra para plantar flores de perfume
sem igual.
Quando a angústia faz chover lágrimas em nosso
rosto, as nuvens se enchem de água para regar os jardins
celestiais da nossa própria alma.
A transformação faz com que tudo nasça e renasça
o tempo todo.

A vida é uma
mãe em constante
gestação.

O livro está disponível para venda no site da Amazon (https://www.amazon.com.br)
 
Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Umberto Eco (Como justificar uma biblioteca particular)

Desde criança, tenho estado habitualmente exposto a dois (e apenas dois) tipos de piada: "Você é aquele que sempre responde" e "Você é aquele que ressoa pelos vales." Passei toda a minha infância convencido de que, por um curioso acaso, todas as pessoas que eu encontrava fossem estúpidas. Depois, tendo chegado à idade adulta, precisei descobrir que existem duas leis a que nenhum ser humano tem como esquivar-se: a primeira ideia que vem à mente é sempre a mais óbvia e, depois que a pessoa tem uma ideia óbvia, não lhe ocorre jamais que outros já possam tê-la tido antes.

Reuni uma coleção de títulos de artigos e resenhas, em todas as línguas do tronco indo-europeu, que variam entre "O eco de Eco" e "Um livro que produz eco". Salvo que, nesses casos, desconfio que não tenha sido esta a primeira ideia que veio à mente do redator; toda a redação deve ter-se reunido, discutido cerca de vinte títulos possíveis e, finalmente, o rosto do redator-chefe se iluminou e ele disse: "Rapazes, tive uma ideia fantástica!" E os colaboradores: "Chefe, você é um demônio, como é que tem essas ideias?" "É um dom", deve ter sido a sua resposta.

Não quero dizer com isto que todas as pessoas sejam banais. Tomar uma obviedade por ideia inédita, inspirada pela iluminação divina, revela certo frescor de espírito, um certo entusiasmo pela vida e sua imprevisibilidade, um certo amor pelas ideias – por menores que elas possam ser. Sempre me lembrarei do primeiro encontro que tive com o grande homem que foi Erving Goffman: eu o admirava e amava pela genialidade e a profundidade com que sabia recolher e descrever as nuances mais sutis do comportamento social, pela capacidade que tinha de perceber traços infinitesimais que até então haviam escapado a todos. Nós nos sentamos num café ao ar livre e ao fim de algum tempo, olhando para a rua, ele me disse: "Sabe, acho que hoje há automóveis demais circulando nas cidades." Talvez nunca tivesse pensado nisto, porque geralmente pensava em coisas bem mais importantes; tinha tido uma iluminação imprevista, e o frescor mental para enunciá-la. Eu, pequeno esnobe intoxicado pelas palavras de Nietzsche, teria sido incapaz de dizê-lo, mesmo que o pensasse.

O segundo choque da obviedade sobrevém a muitos que se encontram em condições iguais às minhas, ou seja, que possuem em casa uma biblioteca de certas dimensões – de tal maneira que, entrando em nossa casa, as pessoas não tenham como deixar de notá-la, inclusive porque nossa casa não contém muitas outras coisas. O visitante entra e diz. "Quanto livros! Já leu todos?" No início eu achava que esta frase só fosse pronunciada por pessoas de escassa intimidade com o livro, acostumadas a ver apenas estantezinhas com cinco livros policiais e mais uma enciclopédia infantil em fascículos. Mas a experiência me ensinou que também é pronunciada pelas pessoas que concebem as estantes como mero depósito de livros lidos e não a biblioteca como instrumento de trabalho, mas isto não bastaria. Estou convencido de que, quando se vê diante de muitos livros, qualquer pessoa é tomada pela angústia do conhecimento, e fatalmente resvala para a pergunta que exprime seu tormento e seus remorsos.

O problema é, à piada "O senhor é aquele que responde sempre" basta reagir com um sorriso e no máximo, quando é o caso de ser gentil, com uma "Boa, esta!" Mas é preciso dar uma resposta à pergunta sobre os livros, enquanto o maxilar se enrijece e filetes de suor gelado escorrem ao longo da coluna vertebral. Durante algum tempo adotei uma resposta desdenhosa: "Não li nenhum deles; senão, por que estariam aqui?" Mas esta é um resposta perigosa, porque desencadeia a reação óbvia: "E onde guarda os que já leu?" A melhor é a resposta padrão de Roberto Leydi: "E muitos mais, senhores, muitos mais", que deixa o adversário paralisado e o reduz a um estado de veneração estupefata. Mas acho esta resposta impiedosa e ansiogênica. Ultimamente, eu me inclino por outra afirmação: "Não, estes são os que preciso ler durante o próximo mês, os outros eu guardo na universidade", resposta que por um lado sugere uma sublime estratégia ergonômica e, por outro, induz o visitante a antecipar o momento da despedida.

Fonte:
O segundo Diário Mínimo. Publicado em 1992.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXIII

Ah, Quanta melancolia!

 
AH, QUANTA melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu

Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
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A Lua (dizem os ingleses)
 
A LUA (dizem os ingleses)
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma ideia se perde.

E era essa, era,  era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus reveses
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.
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A Mão Posta Sobre a Mesa
 
A MÃO POSTA  sobre a mesa,
A mão  abstrata, esquecida,
Imagem da minha vida...
A mão que pus sobre a mesa
Para mim mesmo é surpresa.
Porque a mão é o que temos
Ou define quem não somos.
Com ela aquilo que fazemos
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Amiel
 
NÃO, NEM NO SONHO a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na ação,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor.
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A Minha Camisa Rota
 
A MINHA camisa rota
(Pois não tenho quem me a cosa)
É parte minha na rota
Que vai para qualquer cousa,
Pois o estar rota denota
Que a minha [...]
Para muita coisa de volta.

Mas sei que a camisa é nada,
Que um rasgão não é mal,
E que a camisa rasgada
Não traz a alma enganada,
Em busca do Santo Graal.
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A Montanha Por Achar
 
A MONTANHA por achar
Há de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver,
Quando o encontrar, há de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe,
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade,
Porque a vida é só metade.
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Análogo começo
 
Análogo começo.
Uníssono me peço.
Gaia ciência o assomo —
Falha no último tomo.

Onde prolixo ameaço
Paralelo transpasso
O entreaberto haver
Diagonal a ser.

E interlúdio vernal,
Conquista do fatal,
Onde, veludo, afaga
A última que alaga.

Timbre do vespertino.
Ali, carícia, o hino 
Outonou entre preces,
Antes que, água, comeces.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
in Jornal de Poesia

Andréia Alves Pires (A moça do retrato)

Pela primeira vez Marcela iria passar a tarde na casa da tia Iná. Tão diferente a tia Iná: espichada e fina, bem cabeluda, sempre com um vestidão de uma cor só. Iná morava em frente e gastava bastante tempo pensando em coisas como a vida, o universo, o zodíaco e a dificuldade tremenda que as pessoas têm para dizer o que sentem e para compartilhar projetos, espaços e histórias. Naquela terça-feira, Iná acordou esgotada. A sensação não era exata, parecia algo entre a impotência e a perplexidade. Havia demorado a pegar no sono e antes do sol dar as caras já estava de olhos estalados, fixos no céu branco do quarto. Desconfiou que fossem as notícias por toda parte, o excesso e o teor escandaloso e absurdo delas, ou as eleições por toda parte, o excesso e o teor escandaloso e absurdo delas. Talvez fosse ausência. Tem lembrado tanto da irmã ultimamente. Não podia definir o que fazia o peito apertar daquela maneira, mas estava decidida a melhorar o astral. Como?

Iná queria garantir um dia de contentamento e não tinha ânimo nem para pentear os cabelos. Então o telefone tocou e do outro lado da linha a voz era possibilidade. Alô, Iná, ocupada hoje? Só tu podes me quebrar este galho. Repara a Celinha para mim até umas cinco horas? É que ela entrou em férias e não consegui me organizar, chamar a babá, e tal. A vizinha falava rápido e a Iná gostava das conversas mais arrastadas, das palavras pronunciadas por completo e das pausas nos devidos lugares, para que a escuta fosse decente, fizesse jus ao assunto, pois qualquer assunto merece atenção, pressupunha. Tá, manda para cá. Devolveu o telefone à base e pensou: destino.

Iná tinha um jeito muito honesto de conversar com a menina, sem diminutivos, sem aperto de bochechas, e atento de verdade ao que a criança dizia, não seria ruim recebê-la. Marcela mal terminou o almoço e estava pronta, batendo o pezinho na calçada. Vamos, mãe? A vontade de xeretar a casa e a vida da vizinha quase não cabia nela. Da vez que entrou lá com a mãe só pôde ver da distância os livros espalhados, a estante repleta de quinquilharias, os gatos, o tapete felpudo. Era muita aventura prometida para uma tarde só. E ela queria saber da mulher que também vivia na casa. Uma moça que seguidamente via entrar e nunca sair, que chegava sozinha e nem fazia barulho, e que tinha dois olhos de vaga-lumes, verdes e brilhantes.

Ficou na ponta dos pés, esticada, e tocou a campainha. Que bom teres vindo, Marcela. Entra. Podes ficar tranquila, que eu cuido da tua filha até voltares, disse Iná à vizinha. Juntas na sala, Iná ofereceu uvas e retalhos de maçã. A menina queria tudo e já tinha frutas na boca e nas duas mãos quando parou, hipnotizada, diante do retrato na parede. Era a outra moradora. Quem é essa moça, quis saber apontando o indicador. Eu conheço. Gosto tanto dos olhos dela. Ah, Marcela, o nome dela é Lúcia, era minha irmã. Impossível vocês se conhecerem. Era? Não é mais, tia? Bom, vai sempre ser, acho. Ela morreu dias depois de posar para o retrato. Foi fundo demais na lagoa, onde não dava pé, e se afogou. Faz muito tempo, eu ainda era criança, assim como tu. Marcela ficou muito quieta, estudando o retrato e os traços da moça, pensando no que ouviu, antes de. Tia, tens certeza? É que quem morre não volta mais, não é? E eu vejo essa moça atravessar a rua e entrar na tua casa todos os dias. Ela abana para mim e depois fecha a porta. Iná estranhou e ia contestar o absurdo vindo da criança, fantasia tem limite, mas Marcela mesma se respondeu. Já entendi: ela mora no retrato.
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Andreia Alves Pires é Doutora em Letras - Escrita Criativa pela PUC– RS (2017). Mestra em Letras em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRG)(2008). Graduada em Letras - Português/Espanhol pela UFRG (2005). Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (2005).
Escritora de ficção, autora dos livros De solas e asas (2012), Um ninho no estranho (2013) e Azaleia para erva de passarinho (2018), e do romance O céu riscado na pele. Participou do romance colaborativo Condomínio Saint-Hilaire (2017), e das antologias Grenzenlos (2016), Naufrágios Urbanos (2015) e Vitrais: contos do Invitro (2015), entre outras publicações coletivas. Dedica-se principalmente aos temas de escrita criativa, literatura brasileira contemporânea, poéticas do deslocamento e representações do feminino na literatura, jornalismo e educação. É jornalista da UFRG e editora da Concha Editora.