A cantina ficava em meio da praça — a vila por ali desfilava. Passavam as mulheres matinais, os velhos poeirentos, as moças em idade divorciadoura. A todos ela espreitava da obscuridade. Como se a sombra lhe desse uma ilha intransponível. E daquele abrigo ela assistisse ao proceder do tempo.
Também eu passava por ali regressado de minhas aulas noturnas. A mim ela me repetia a sempre igual pergunta: “Se havia passado no cemitério.” E sempre eu apressava uma resposta:
—Sim, passei.
—Não viu fosforescências?
Fosforescências? Sim, fogos-fátuos, chamas sem labareda por dentro. Emanavam das profundezas, cinzas luzentes pairando no lugar dos mortos. O que produzia tais súbitas claridades eram pirilampejos das almas, os fosfogênicos falecidos virando de posição. Carecemos de explicar o mundo quando tememos os acontecimentos. Mas Dona Amarguinha nem precisava de explicação. A bem dizer, ela só falava depois da lágrima. Apenas usava de palavra depois de, nos recantos dos olhos, lhe surgir uma aguinha trêmula.
—Viu ou não viu?
E eu que sim, que tinha visto luzinhas se entrelinharem sobre as campas.
— Sabe o que é? É o sacana do meu falecido.
A razão das fosforescências era o seu marido Naftal em sem vergonhices. Já em vida quando fazia amor com ela se acendiam aquelas luzes na obscuridade.
— Aquilo é o sacana na brincadeira com outras.
— Com outras?
— Sim, com falecidas.
Seguiam-se impropérios, a velha desfilava as palavras. Que ele se atolasse nos pântanos do Inferno, malandro do homem que lhe prometera a mais bela das promessas, juramento mais cheio nenhum marido pode encomendar: que um dia ele a levaria a passear onde só as nuvens conseguem alcançar.
Imitava o falecido, em tom jocoso: “Queixa-se, mulher, que eu nunca a levo a passear? Pois eu lhe mostrarei caminhos que nem ninguém sonhou.” Lembrando se, ela ria com a mesma amargura que exibia em seu nome. E apontava sem olhar, dedos cegos indicando as alturas:
— Além de lá, nas nuvens.
Certa noite me decidi ir ter com ela, pesando em mim a mentira. Queria confessar que tinha faltado à verdade, que eu jamais passara pelo cemitério. Quando cheguei à cantina da viúva deparei com um ruidoso ajuntamento. Se encrespavam ali os burburinhos. Os rostos eram de ocorrência. Inquiri, ansioso, a razão da multidão. As vozes ziguezagueavam, em confuso enredo. Resumindo e não concluindo: Dona Amarguinha tinha sido levada, em emergência, a saúde dela já em mal estado. A velha estava desfalecida? Nem tanto, porque seus olhos rebrilhavam no rosto magro enquanto chamava pelo defunto marido:
— Naftal, ó Naftal, não vás.
É que ela estendia os braços para o vazio a pontos de fazer medo. Que a loucura a ela chegara, já se sabia. Mas a pontos daqueles acessos, isso era novidade. E aquilo, quem sabe, podia ser doença de contagiar os próprios mortos e deixar a vila atreita a visitações das almas. Levassem, sim, a desordenada velha e lhe dessem uma guarida para a sua mente vadia.
Aos poucos todos se retiraram. A bisbilhotice é como o gafanhoto: só desanda quando não resta mais folha para roer. A vizinhança se foi, deixando um descampado vazio, nunca o pátio da cantina parecera tão imenso a meus olhos. Subi a escadaria empurrado por dolorosa estranheza. A tristeza me doía como se fora uma doença caranguejando em meus ossos.
Entrei no quarto de Amarguinha. A meus olhos, a penumbra se foi desnudando. A primeira coisa que eu vi: uma flor abandonada sobre a cômoda. E depois, como que um baque em meu entendimento: da cama desalinhada exalavam ainda fosforescências. Como se Naftal e sua esposa ainda cumprissem conjugalidades, seus corpos inventando eternidades.
Me sentei no leito e me quedei frente a um espelho tão idoso que nele me revi com meu rosto de menino. Alisei a dobra do lençol: todo o gesto era inútil como travesseiro que se desse a um morto. Repente, na almofada a mancha me despertou. Sangue? Não, eram marcas de batom. Aquilo muito me espantou: a viúva enfeitara os lábios, enchera de vida seu rosto.
E aconteceu conforme meus dedos roçavam a fronha: a almofada se foi desfazendo. Do rompido irrompia um algodãozinho miúdo que depois foi crescendo e se tornou bastante infinito como se ansiasse habitar os além céus. Abri a janela e aqueles flocos brancos foram subindo, condecorando os céus com as mais luzentes nuvens que jamais por ali esvoaram.
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.