segunda-feira, 7 de abril de 2008

Wagner Ferreira (A Alma do Carnaval)

O carnaval estava para nascer, e a alma de Ana Maria queria fugir.

Parecia querer evadir-se de um mundo vivido no avesso.

Ela nunca se conformou em abandonar o Cenário carnavalesco depois que se casou. Nunca mesmo!

O marido lhe proibiu de desfilar na passarela, a alegria da sua juventude precocemente reprimida.

Desde então ela se limitou a ser uma dona de casa exemplar, alimentando o esposo, e guiando seus três filhos.

Odiava aquela monotonia perfeccionista temperada pela estabilidade inabalável da sua família.
Mas agora, neste carnaval, queria voltar a desfilar, principalmente para sentir sua liberdade ressurgir.

Os filhos já estavam crescidos e o marido precisava ser enfrentado.

Resolveu! Desfilaria mesmo contra a vontade da família, e falaria na hora do almoço quando todos estariam reunidos na mesa. “Tem que ser agora ou nunca.” Pensou.

Sequer se preocupou em servir a refeição de prato em prato como ela sempre fazia.

“Hoje eu não existo.” Pensou convicta. “Até as empregadas possuem seus dias de folga!”
E num único disparo atirou aquele rancor acumulado pelos anos:

- Vou sair no bloco das frenéticas andorinhas...

Como se não fosse ela quem estivesse ali, talvez uma irmã gêmea, ou um clone...

O marido e os três filhos se assustaram.

Como uma mulher exemplar, que não saia de casa, não fazia fofocas, sempre disposta e prestativa se interessaria por carnaval?

Ninguém acreditou. “Deve ser piada, ou crise da meia idade”, pensou o marido.

Ele se lembrou da sua irmã, que na menopausa pirou. Quis ser atriz de teatro, e abandonou tudo.

Todos os olhares se revelaram como censura e um jurado se constituiu.

O esposo na cabeceira tomou a palavra batendo o cabo da faca na mesa como se fosse o martelo de um magistrado.

– Não admitirei esta loucura de forma alguma, e não se fala mais nisso.
Mas ela não se intimidou:
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- É isso mesmo, cheguei à conclusão que devo me libertar um pouco desta escravidão, desta rotina, esquecida do mundo. - Pra mim chega!

- Acho que até Deus esqueceu que eu existo. - Eu gosto de carnaval e dai? -Quero me divertir também.

-Tenho meus direitos...

- Eu sabia que ficar assistindo aquelas novelas ia dar nisso. Contestou o marido.

- Eu nunca te tranquei em casa, taí os meninos de testemunha. - Que isso mulher, depois de velha pirou!

- Velha é sua mãe. Retrucou.

- Não ponha minha mãe no meio, ela sim que era mulher exemplar, não confundia liberdade com libertinagem.

- Vamos parar com esta briga besta e me passe a salada. Protestou o filho mais velho.

- E seu coração? Perguntou o filho do meio.

- Não coloquem o meu coração como pretexto, ele está funcionando muito bem, e nada como fazer aquilo que gosto para ganhar vitalidade.

Todos tinham lhe condenado, com exceção da filha caçula.

- Deixa a mamãe, pô ! -Ela precisa se divertir um pouco.

- É nisso que dá tratar a mulher com carinho e não deixar faltar nada em casa...

- Antigamente isso era motivo de uma surra, é isso que você merece...

- Ah é assim seu descarado, estou cansada de te fazer carinho quando você chega caindo de bêbado...

- Bêbado é seu pai, aquele pinguço, aliás, eu não sei onde estava com a cabeça quando tirei você daquele cortiço imundo.

- Ta vendo filha o machista que é seu pai...

- Sou machista mesmo, e dai? Continuou gritando.

- Sabe mãe, eu acho que a senhora tem que se divertir mesmo, mas pêra ai né, desfilar em bloco de rua é demais, se quiser te levo no clube, pelo menos meus colegas não vão ficar tirando sarro de mim. Acrescentou o filho mais velho.

- Ta vendo? -Depois eu é que sou machista.

E o marido se aproveitando da situação, pediu que quem estivesse de acordo levantasse a mão.

Só a caçula levantou. - Vocês são todos quadrados acrescentou.

- Ta bem mulher, se você quiser desfilar pode ir, nem to ligando mais.- Lavo minhas mãos como Calígula...

- E quer saber de uma coisa, vou aproveitar que é carnaval e comprar uma fantasia de palhaço, pois é isso que sou nesta casa.

-Não é Calígula pai, quem lavou as mãos foi Pilatos...Corrigiu o primogênito.

Ana Maria não se abateu com a opinião da família, aquilo era um quartel, um verdadeiro regime comunista.

“Abaixo Fidel Castro, e viva a sociedade capitalista”. Pensou.

Precisava mudar, agir, ser dona do seu nariz, ressuscitar aquela alma carnavalesca, encher-se de glória.

Abortaria o carnaval da sua vida? - Não! Murmurou.

Imaginou-se no meio da avenida, até que explodiu o carnaval...

Os brasileiros inflavam-se nesta bolha de ilusão, que estourava nas migalhas da quarta feira de cinzas...

Mas que lhe importava? A fantasia era sua liberdade, que mascarava sua fuga, mas alimentava o seu sonho de ser admirada por todos.

“Melhor isso do que uma traição”. Lampejou em pensamento.

As pessoas passeavam suas loucuras e o mundo para Ana Maria era a avenida, a vida era o ritmo do samba, e a cada pique e repique da batucada, era a vida que vingava em suas veias.

A máscara era sua identidade, cobrindo a amargura, que ela descontava em cada passo.
A lua já amadurecia quando ela surgiu no fim da avenida.

“Sobrepujava o bloco” “Asas do ”Falcão”. Depois o das” “Panteras”, e logo em seguida o das “Frenéticas Andorinhas,” que rompeu a passarela.

Aninha primava entre confetes e serpentinas, mesclados com os aplausos eufóricos da platéia delirante. Logo estaria diante da comissão de jurados.

“Falariam de mim no alto falante”? Pensou.

Gastava os dentes de tanta emoção. Estava absoluta como porta estandarte.

Ofuscava, luzia ,brilhava, uma verdadeira rainha de carnaval.
O povo retribuía em aplausos. Sua vibração procrastinava a eletricidade da sua alma.

Seu coração batia, batia , batia... Até que parou.

Sua garganta ficou sufocada por aquela emoção.

Ficou caída no asfalto, que de longe era colorido, mas de perto não escondia sua função de consolador de vítimas. Diante daquela mulher caída na avenida, houve um minuto de silêncio.

Ogum, Xangô, Iemanjá foram chamados para salvar a situação.

Ana se despediu desta vida e começou a chover.

Apagava a estrela. Que imediatamente foi colocada numa maca onde algumas serpentinas pousavam lentamente, e partiu num carro que deu o socorro conveniente.

Ela esteve soberba. Foi, sem nunca ter sido.

Alguns minutos depois o samba voltou a tocar com mais força do que antes, e o povo pôs se a cantar e a rebolar.

O pacto do carnaval havia se consolidado.

Para Ana Maria restou a soberba de conhecer sua alma.

Fonte:
http://www.sorocult.com/

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