segunda-feira, 28 de março de 2016

Clevane Pessoa (Poemas Avulsos)

DE ANJOS E DE PÁSSAROS

Ergo olhar deslumbramento
vejo anjos sobre cabeças humanas
dentro da catedral;
Anjos de ferro negro,
esculturas na arquitetura
de formas quase profanas
a romper tradição.

Não desabe ó figura
milenar, tu que estás
bem sobre mim ,
que não rezo orações prontas
e somente sei usar
o verbo molhado em pranto
ou a metáfora cheia de luar.

(…)
Que desabem
sobre as cabeças dos poetas
os passarinhos em alarido
dentro de um mercado,
a parecer kamikaze,
suicida em massa,
ao jogar-se do teto ao chão
apenas para bicar migalhas.

São nosso retrato:
livres, sem sermos canalhas,
videntes com olhos cheios de palhas
a pre/dizer os tempos,
cada fato envolvido
no pacote dos tesouros,
crianças e sábios a um mesmo tempo,
a chamar atenção pelos voos inusitados.

(…)

Prefiro os pássaros vagabundos
das ruas e das igrejas,
mercados e sinais.
Não são artes singulares e belas
nem enfeites de catedrais:
os anjos passarinhos
de Brasília
estão presos a cabos
e suspensos
sobre nossas cabeças
a lembrar talvez pecados ,
talento, criatividade embora.
Já os pássaros – anjos
desde o Egito antigo
têm a missão de carregar almas
entre a vida terrena
e a morada dos deuses.
ALEGORIA DAS PALAVRAS SOLTAS

Que as mãos dos poetas
libertem as palavras de conceitos e preconceitos antigos.
Que a voz dos poetas entoe cantos inusitados
e muitas vezes inaudíveis aos demais.
Mas que sejam sempre palavras olorosas,
a perfumar os poros dos amados e dos amigos.
O que vier a mais, será benesse e lucro, e dividendo
mais importante que a glória
e a libertação do proprio menestrel.
Que os versos sejam livres, com palavras soltas,
a resignificar todas as im/possíveis metáforas!
PALMEIRA SOLITÁRIA
para Luiz Lyrio, in memoriam

Do alto, para onde cresce
em busca do azul absoluto,
a palmeira (quase) antiga,
bela e conformada,
vê passar o tempo.
Suporta intempéries e poeira
rebrilha rocio ao sol,
na terra das gemas.
Um dia, voltará ao pó
e renascerá no ciclo da vida.
A ESSÊNCIA DOS POETAS

De metáforas alimenta-se o poeta
mas também dos olores mais fragrantes.
faz das eternidades,
meros instantes,
quando voa nas asas das alegorias…

Mas de denúncia também vivem os seus versos
pois sensível qual bolha de murano
destinada á beleza singular,
aquecido pelo fogo da justiça,
consome-se em seu próprio Gibraltar,
divino e humano,
mero e avatar.

O poeta tem nas mãos,
os segredos da sacra escrita,
consagrada aos deuses da Beleza,
mas também ergue o dedo acusatório:
brilha de indignação seu anular,
pois é humanista, artista, esteta
e sabe colocar-se no lugar
de seu semelhante…

O poeta escreve sobre seus sentires
e sobre os sentimentos alheios.
Sussurra ou brada, conforme a acontecência,
mas é sempre emissário da quintessência
que muitas vezes
nessa Terra não encontra lugar…
IMPRESSÃO

A terra é mais que amante-amada:
sem ela o tudo cotidiano
vira um quase nada…
Com ela, um mínimo amplia-se
parecendo a maior riqueza do universo
na transmutação dos ciclos…
DE UM SONHO

Do sonho entressonhado
entreaberta flor
de mil pétalas
holopetalar
traduz-me as sutilezas
e multiplicações
da Palavra…
Cheiro os cheiros,
coloro as cores,
abro o entreaberto
e chego ao self
das revelação.
Ao poeta é permitido sonhar
e sonhando desvendar
o segredo


PASSAGEM
A Gonçalves Dias

Poeta -saudoso, agônico, voltas à terra natal
Frágil, trêmulo, febricitante,
Mas com relembranças fortes
A plenificar-te a alma de energia
Embora estejam enfraquecidas as esperanças…
Queres chegar a São Luiz do Maranhão,
Chegar e andar pelas ruas estreitas,
Pelas calçadas de pedras,
Da ilha de praias singulares
Cujo areal extenso
É lambido pelo mar cor de rio,
Cuja extensão vai dar nas terras de Portugal…
Queres rever pessoas, ouvir os sons
Dos sinos das igrejas, da siringe dos sabiás festivos
Que não esqueceste em teu exílio.
A mulher amada acode-te em teu delírio,
a rememória faz-se musa e te inspira versos
que não mais escreverás…
Um piedoso anjo de cristal,que parece orvalho,
Cheirando a rosas e à maresia,
Faz com que olvides as razões de teu martírio
Pela separação cruel e indevida
Da mulher amada…
Que culpa tens por teu sangue a correr nas veias
Brasileiras, é mestiço,a gerar tantos preconceito .

Súbito, a vida se esvai, a breve vida

As águas em movimento, frias ao teu corpo ardente
Sereias de prata conduzem-te ao Absoluto,
O desconhecido –assustador, por ignoto,
Até que se chegue aos portais dessa outra dimensão.
Teu anjo Estelar, que tantas vezes desceu à Terra
para consolar-te e enxugar-te as lágrimas,
ampara-te, e tomando-te pela mão,
leva-te ao gênese de tua essência,,
pelo túnel pleno de magnífica luminescência…
As asas angelicais, energia em movimento,
Criam mil arco-íris deslumbrantes, o que te encanta na passagem…

Percebes que enfim, estás livre
De qualquer sofrimento e provação
Não tens cor-de pele que te torne um rechaçado,
Carne alguma, cuja carnação de mulato
Marque tua destinação!
Nada que te faça um auto-exilado…
Súbito, ouves risos e canções.
Outros poetas estão à tua espera, Gonçalves Dias.
Ajudam-te, dizem-te teus próprios versos e os deles,
Convincentes de que todos os bardos são iguais de alma
Abraçam-te, cordifraternalmente.
Nem em todas as tuas fantasias,
Te imaginaste assim, igual entre iguais,
diferente entre diferentes,
quais o são todas as criaturas de um mesmo Criador…
Percebes que nesse mundo , não há preconceitos
E que aqui, experimentarás um espaço de estar para ser…
Leve, em pianíssimo, , sentindo uma felicidade inusitada
À tua vida antes atribulada, tributada
de preços que não podias pagar,
deixas-te conduzir ,em agonia agora.
Seria o fim, mas é um recomeço
Afinal, poetas não devem morrer
-não se sua Poesia permanecer
Após sua délivrance ao contrário.
Para sempre, teus versos serão lembrados,
Enquanto houver sabiás, enquanto a serpente dormitar
Enroscada no contorno da Ilha .
Teus poemas são o retrato de teu talento,
De teu perfil, de tua história…
O mar foi o derradeiro abrigo de teu corpo.
A alma…continua em expansão!

Contos Populares do Tibete (Os Amantes)

Era uma vez o jovem filho de uma família pobre. Tratava de ganhar a vida arrancando o que podia do terreno ao redor da casa e guardando o pequeno rebanho de iaques que sua família possuía.

Pelo fato de viver no lado sul, onde a grama crescia pobre e rala, frequentemente o rapaz tinha de percorrer um longo caminho pelo rio, até o lado norte, onde a grama era verde e viçosa, e onde havia montanhas e vales nos quais o seu rebanho podia se apascentar. A viagem levava muitos quilômetros, e o moço tinha que alcançar um baixio do rio, a fim de poder cruzá-lo sem perigo.

Foi durante uma dessas frequentes viagens para o lado norte do rio, que ele encontrou uma formosa jovem. Também ela guardava o rebanho da família, cujo número de iaques era muito superior ao dele. Assim, o moço logo soube que ela não era pobre. Logo, começaram a se falar. Costumavam descansar ao sol, enquanto seus animais vagavam pelo vale. Falavam de suas vidas, de suas famílias, de seus sonhos e de suas esperanças para o futuro. Ele se inteirou de que ela tinha três irmãos e de que se revezava com eles para guardar o rebanho. Toda vez que ele cruzava o rio, olhava se ela estava ali; algumas vezes, sim, outras, um dos irmãos estava em seu lugar.

O jovem casal se enamorou. A moça sabia que a mãe iria ter um grande desgosto quando soubesse dos seus sentimentos, pois desejava que ela se casasse com o filho de uma família vizinha, e tudo estava quase acertado.

Assim, os dois seguiram vendo-se em segredo. Frequentemente, o jovem cantava para ela: eram canções do Tibete, canções de amor, canções sobre o povoado onde ele vivia. E um dia, o moço tirou um dos longos brincos de turquesa que usava e, delicadamente, o entrelaçou nos cabelos dela, de forma a que ficasse escondido. Com isto, os dois se tornavam noivos. Entretanto, quando o rapaz assim agiu, ela havia experimentado uma grande tristeza, pois sabia que sua mãe jamais iria consentir na união dos dois.

Um dia, a mãe da menina, que já suspeitava de algo pelo desejo desta de sair sempre com o rebanho, insistiu para que ela ficasse em casa para tomar banho e lavar-se o cabelo. Quando a mocinha desatou o cabelo, o brinco de turquesa caiu no chão e a mãe reparou nele. Pôs-se uma fúria e obrigou a menina a revelar-lhe quem lhe havia dado o brinco.

No dia seguinte, a mãe disse ao filho mais velho:

— Apanhe esta flecha, e, quando encontrar aquele homem terrível, mate-o.

O filho mais velho pegou a flecha, mas, quando encontrou o rapaz, não pôde matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um corvo e levarei à minha mãe a flecha manchada de sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, disse ao filho que a levasse ao lama do povoado. O lama devolveu a flecha com o recado de que na ponta da mesma havia sangue de corvo, e não sangue humano. A mãe se aborreceu muito. Disse, então, ao segundo filho:

— Apanhe esta flecha e mate-o!

O segundo filho apanhou a flecha, mas, da mesma maneira, quando encontrou o rapaz, não teve coragem de matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um esquilo e levarei à minha mãe a flecha manchada de sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, ordenou ao segundo filho que a levasse de novo ao lama do povoado. O recado desta vez foi de que o sangue da ponta da flecha tampouco era sangue humano.

A mãe não conseguia mais conter-se. Seu ódio em relação ao moço era tão intenso, que não ia descansar enquanto não o visse morto. Procurou o filho mais novo e lhe disse:

— Se você matar aquele homem com esta flecha, eu o recompensarei com o ouro que seu pai me deixou. Mas, se você não o fizer, vou tomar a sua vida no lugar da dele.

O filho mais novo pegou a flecha e, quando encontrou o moço, sentiu-se muito aflito. Não desejava matá-lo, mas sabia que a sua própria vida estava dependendo disso. "Se eu levar a flecha com sangue humano — pensou —, tudo sairá bem: minha mãe pensará que matei o rapaz. Vou disparar a flecha contra a perna dele apenas para feri-lo". Mas, o que ele não sabia era que a mãe havia colocado veneno na ponta de flecha antes de entregá-la a ele.

E o filho mais novo correu, tirou a flecha da perna do rapaz e a levou à mãe. Desta vez, o recado que se recebeu do lama foi de que o sangue da flecha era humano. A mãe não coube em si de contente.

— Por fim, disse, livrei-me da ameaça.

O rapaz ferido estava sofrendo muito: a perna piorava dia a dia e o veneno penetrava cada vez mais no seu corpo. Já não podia andar com o seu rebanho, mas descia à margem do rio e falava aos gritos com a moça, em meio ao ruído das águas desordenadas.

— Como está a sua perna, hoje? — perguntava-lhe ela.

E ele respondia:

— A dor do meu coração é muito maior do que a estou sentindo em minha perna.

A mocinha se afligia e a saúde do rapaz piorava. Um dia, ao perguntar-lhe como estava, ele respondeu:

— Amor meu, logo não estaremos mais juntos nesta vida, pois creio que esta noite eu vou morrer. Se amanhã, quando você descer à margem do rio, houver um arco-íris, vai saber, então, que eu morri.

No dia seguinte, ela desceu correndo para a margem, mas, já muito antes de chegar, viu o arco-íris no céu. Soube, então, que ele estava morto. Sentou-se à margem do rio e chorou até partir-lhe o coração. De repente, escutou, docemente, a voz do moço, que não saía de nenhuma parte, mas que a contornava. Cantava assim:

"O rio tem crescido muito e muito, e nada detém a impetuosa canção das suas águas. Urna vez que nós nos prometemos mutuamente, inimigo algum pode impedir a nossa união."

A mocinha voltou a casa, onde a mãe a esperava. Lançou-se a seus pés, chorando. Suplicou que a deixasse ir ao funeral do rapaz, prometendo-lhe que, quando tudo houvesse terminado, se casaria com o homem que a mãe escolhesse para ela. A mãe, então, consentiu, e ambas, e mais uma criada, foram ao funeral.

Quando chegaram, o moço jazia numa pira funerária, mas, por mais que a família o tentasse, não havia conseguido que seu corpo ardesse.

A moça desvestiu, então, a sua túnica, e a jogou sobre o corpo do rapaz. Imediatamente, se levantou uma chama. A seguir, ela lançou os seus sapatos sobre o corpo, e a chama subiu mais alto ainda. Depois, voltando-se para a criada, pegou o azeite de mostarda que tinham trazido com elas e o derramou sobre o seu próprio corpo. E assim fazendo, entrou na pira funerária que ardia intensamente. E a mãe pôde contemplar, com horror, como a filha se estendia sobre o corpo em chamas de seu amante.

Quando as chamas se apagaram, os ossos do casal se haviam fundido entre si. A mãe da moça e a do rapaz discutiram sobre como separar os restos mortais, para que os que pertencessem a cada um deles pudessem ser enterrados no lado respectivo do rio. A mãe da menina perguntou:

— O que era que dava mais medo a seu filho, neste mundo?

E a mãe do rapaz respondeu:

— As serpentes.

— E à minha filha, as rãs, disse a primeira.

Assim, colocaram uma serpente e uma rã sobre os restos mortais dos jovens, que se separaram, pois os ossos respectivos se deslocaram segundo o medo dos distintos animais: os do rapaz, para o lado sul, e os da mocinha, para o lado norte.

Logo, em ambos os pontos onde foram enterrados os restos mortais, cresceram duas árvores, que se tornaram muito grandes. Seus galhos se estenderam por cima do rio e se entrelaçaram. A mãe da moça mandou que os cortassem. Mas, pouco tempo depois, nasceram, no lugar das árvores, dois arbustos, e, em cada um deles, pousava um pássaro. Os pássaros cantavam um para o outro através do rio, e voavam um em direção ao outro, descendo para brincar nas frescas águas.

A mãe da moça fez matar os dois pássaros e arrancar os dois arbustos pela raiz. Quando os espíritos dos dois pássaros subiam em direção ao céu, o macho disse à fêmea:

— Parece-me que não vamos estar juntos nunca.

— Mas é claro que estaremos — respondeu o pássaro fêmea. — Você vai para as regiões do sal, e eu irei para as regiões do chá.

E assim o fizeram. Deste modo, agora, cada vez que alguém faz chá tibetano com sal e manteiga, os dois amantes se reúnem.(1)

Nota
1. O chá tibetano é preparado fervendo-se as folhas do chá, que vão em pães; passa-se a infusão a uma vasilha e se acrescenta sal e manteiga, batendo-se a mistura. É consumido, habitualmente, junto com tsampa (rtsan-pa), farinha de cevada tostada, que é amassada com o chá formando como que umas bolas.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Asas)

Trabalho numa escola pública municipal, na secretaria. Hoje saí do trabalho um pouco mais cedo e fui ao centro da cidade, para, depois, ainda voltar à Escola e, de lá, partir para casa com a cesta básica do mês.

No caminho de volta para lá, um passarinho me chamou a atenção e, por uns momentos, parei e, de olho nele, que andava de um lado para o outro no chão, como se quisesse voar e não pudesse, pensei: Será que esse pobre passarinho sabe que é um pássaro e que tem o espaço todo a seus pés, digo, suas asas? Não sei, nunca parei muito para pensar nisso, nem sei se já chegaram a estudar o mundo das aves tão a fundo, ao ponto de descobrirem como realmente funciona sua consciência de si. Será que eles sabem que são pássaros? Eu, por exemplo, na fila dos que vêm à luz, lá no Céu, devo ter bobeado, me distraído com algum anjo serelepe e, por engano, tomado a fila dos homens, quando queria mesmo era ter pegado a de um sabiá cantor, de uma andorinha livre, de um bem-te-vi que fica o tempo todo no passado, dizendo que me viu. Logo eu, o sem-asas!

Nunca voei de avião e tenho medo de altura, vertigem que me dá subir numa escada! Mas queria ter asas, singrar os azuis dos olhos da Terra e pousar no fio quase nulo de uma existência que só faz ver o mundo cá de baixo lá de cima dos montes. Talvez, assim, tivesse um monte de histórias, um mundo de estrelas, um lote de amigos. Será?

As crianças da escola em que trabalho, quando em vias de entrar em sala, pouco antes de bater ou o sinal de entrada, ou o de saída, com suas vozes misturadas, camufladas, encobertando-se umas às outras, parecem um ruidoso bando de passarinhos que, coitado, também mal sabe que tem/temos asas!... De papel, de algodão, de isopor, duas asas nuas.

Tomando um "coffee", pensando em nada, em quase nada, recolho as asas da ação, e o pensamento voa. Nas asas da xícara, um biscoito se quebra. As asas são fortes, mas também se quebram. Sem elas, voamos baixo, ficamos térreos, caímos logo, pesados, de chumbo. Cantando, cantando mais, sinto que as tenho, que tenho asas!... E voo.
__________
Fontes:
O Autor
Imagem = http://dollsparablogs.blogspot.com

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Jorge Luis Borges (O labirinto)

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Unha-de-gato)

Ontem, ao entrar numa loja de produtos naturais na cidade onde moro, passou por mim uma menina de ou uns oito, ou nove anos, e disse ao avô:

- Vô, olha aqui! Unha de gato moída! Eles pegam a unha do gato e ralam! - O avô, sem lhe dar muita atenção, falou qualquer coisa como se concordasse e já se afastaram da prateleira.

Vejo que tem sido assim em muitos relacionamentos entre adultos e crianças. A pressa, que era inimiga da perfeição, tem sido inimiga também da comunicação. Amizades ou se desfazem, ou sequer começam, porque há muito trabalho a fazer, muito horário a cumprir, e a vida é que se desfaz sem nem ao menos ter sido vivida. As crianças, que são filhos e filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas, alunos e alunas, então, têm amargado a indiferença dos adultos, que, entre um zap e outro, se esquecem de que o tempo dos pequenos não segue o dos ponteiros do relógio e ignoram compromissos. Não sou criança, mas, muitas vezes, me sinto ignorado também. O tempo dos músicos, dos poetas e de outros artistas é o tempo das crianças. Disso, tenho certeza. E, igual a elas, ainda que fique calado, não diga nada, sinto toda essa indiferença.

Se o avô que vi ontem com aquela menina tivesse parado um pouco de correr, teria lhe explicado que a unha de gato em questão era uma erva, a unha-de-gato, originária da Amazônia, usada para tratar desde asma até câncer. Mas não. Era preciso ir embora, chegar logo ao destino. Mas a qual, se o mais importante era parar um pouco e se abaixar até a altura da criança e lhe explicar qualquer coisa sobre o que ela via? Acho que ele nunca ouviu aqueles versos perfeitos da dupla Palavra Cantada: "Criança não trabalha / Criança dá trabalho". Quem não quiser ter trabalho, que não tenha filhos, porque dão trabalho mesmo. Eu não os tenho, mas ajudei minha mãe a cuidar do irmão caçula. Deu trabalho.

Crianças querem um pouco de atenção e de carinho, tudo o que lhes têm faltado. Não é por acaso que acreditam em uma casa muito engraçada, que não tinha teto, não tinha nada; ou, ainda, na Chácara do Chico Bolacha, onde o que se procura nunca se acha e numa aquarela que, um dia, descolorirá, com unha-de-gato (erva) e unha de gato mesmo, moída, como se fosse ingrediente de um caldeirão mágico de bruxa má; crianças acreditam nisso porque a fantasia que o tempo permite quando nós o permitimos passar devagar é o que as move e o que nos move para a felicidade, que roda, roda, roda, pé, pé, pé, roda, roda, roda, falso adulto bobo é.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.formulaeacao.com.br

Contos Populares do Tibete (A Árvore-Sombrinha)

Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante. Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.

Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1 Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de muitos animais, das mais variadas espécies.

Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham enviado um representante à reunião.

O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta assembleia e disse:

— Boa-noite a todos!

E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.

Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando — olhos desorbitados — a reunião dos animais.

— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?

— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.

Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.

— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e brincando entre as ramagens.

Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.

Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouco:

— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:

— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a estupidez dos humanos.

— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?

O macaco continuou:

— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros. Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um velho macaco.

— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.

O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:

— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.

— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.

Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:

— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.

— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a perna ferida da menina.

Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem sozinhos!

Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha. Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.

— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.

Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.

— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.

O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao leito e tomou a mão da menina entre as suas.

— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.

Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a, com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água. Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.

Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao rio e que a colocasse no fundo:

— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.

O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava, mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado, procedeu tal como aquele homem lhe pedia.

Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para Palden, o pai disse:

— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para pagar-lhe o bem que nos fez.

— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.

O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos. Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde, houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado um milagre.

Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à clareira na qual se erguia a árvore-sombrinha. Quando chegou à árvore, a reunião já havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.

Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.

— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.

Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:

— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria toda a água que necessitasse.

Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava de água tão desesperadamente.

Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco. Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado ao solo. "Será preciso a força de uns cinquenta homens para arrancar este toco — pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.

Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou, pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.

Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.

— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.

— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas questões.

— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.

— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.

A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda. Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que, finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.

Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.

Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"

Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era sábio e muito reverenciado por seu povo.

— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de ajudar a essa gente.

Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.

Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de fazer o que você fez.

Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está pedindo nada para si mesmo.

Palden respondeu:

— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre homem.

Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.

Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então, que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.

Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.

— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.

— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.

— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.

E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões dos animais.

Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".

E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada dos animais.

Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.

Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.

— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para escutar a nossa reunião!

E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto, que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.

As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E, quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.
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Notas
1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".
2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como "pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira, no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos geleiros".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (A morte da cigarra)

Eu, que vendo como compro as imagens que ou vislumbro, ou imagino, vi esta manhã uma cigarra morta. Eu estava chegando ao trabalho, e lá estava ela, intacta, parada, com a barriga para baixo e as translúcidas asas para cima, reluzentes, sólidas, ao sol. Lembrei-me na hora de um verso bonito de Cecília Meireles que diz: Não tenho inveja às cigarras: / também vou morrer de cantar. Isso é bonito, porque um poeta é meio cigarra também. Digo meio e não inteiro por causa do próprio ofício de escrever poemas, que, quase sempre, leva o poeta a ter outro trabalho, a fim de garantir o leite das crianças e, o que não é raro, seu próprio. Assim, meio cigarra, meio formiga, atravesso as páginas de meus dias, cantando e escrevendo o que vejo. Hoje, pela manhã, vi uma das minhas caída, morta na calçada. Se foi macho, cantou até morrer por sua amada. Se foi fêmea, amou, até morrer, seu bem-amado. Se eu fumasse, acenderia um cigarro e ganharia um trocadilho. Como não fumo, me resta, mais tarde, quando em casa, pegar a guitarra e me lembrar de que as cigarras, como os brutos, os músicos, os poetas e outras formas de inocência distraída, também amam. Com seu canto de moído vidro, seus cacos na garganta atroz, suas asas que desfocam o sol, recolhem-se e morrem.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://sorrisos-e-restos.deviantart.com

Contos Populares Portugueses (O Cego e o Mealheiro)

Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantidade de moedas. Para que ninguém elas roubasse, tinha-as metido dentro duma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo duma figueira. Ele lá sabia o lugar, e, quando arranjava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro.

Ora um vizinho espreitou-o, viu onde é que ele tinha a panela e foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta, ficou muito calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava maneira de tornar a apanhar o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou que por força teria de ser o vizinho. Tratou de ir à fala com ele e disse-lhe:

- Olhe, meu amigo, quero contar-lhe uma coisa muito em particular, que ninguém nos ouça.

- Então o que é, senhor vizinho?

- Eu ando doente, e isto há viver e morrer. Por isso quero dar-lhe parte que tenho algumas moedas enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para si, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tinha aí num buraco mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção, e naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro aonde ela estava, no fito de apanhar o resto do tesouro. Quando bem entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e levou-a para casa. Depois desatou num grande berreiro, para que o vizinho o ouvisse:

- Roubaram-me! Roubaram-me tudo!

E daí em diante guardou as suas moedas num sítio onde nunca ninguém soube.

Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (O nó)

Não, não era o nó dos sapatos, nem o da gravata que o incomodava. O nó era mais fundo, profundo, que um simples nó cego numa corda capaz de aguentar mil pessoas de um lado até o outro da ponte. Mais fértil que um campo minado por beija-flores, que esparramam pólen pela terra em transe do mundo, o nó transgredia os costumes e calava os trinados de qualquer ave. Não, já não era mais a época da repressão política e social iniciada em 1964 neste país, mas este nó, essa nódoa na roupa intelectual de quem se deixasse por isso enredar, este nó o reprimia como nunca. "Pai, afasta de mim esse cálice"... Nossa Senhora! Que nó era esse? Nós, que não tínhamos nada convosco, nem conosco, nos livrávamos desse nó. Era assim mesmo? Quantas vezes esse nó nos norteara rumo ao roubo das rimas, ao ramo das rosas que só era por nós quando nos convinha e, cá entre nós, não reparávamos que, quase sempre, nos perdíamos nele como peixes na rede de nós habitualmente trançada por um pescador experiente. Entrávamos e sentíamos esse nó que nos nublava a visão... Cego, feito o amor, sente hoje na garganta desnuda um cordão umbilical, primeiro nó, que lhe aperta o pomo de Adão, o nó de sua alma, cordão de prata que liga seu corpo à fonte, às mãos do Pai e da Mãe que o alimentam, sem nem mesmo ser nenhuma das aves do céu, nenhum dos peixes do mar. O nó, invisível, essencial, prende sua voz e solta suas lágrimas. Sim, sempre afrouxa os nós dos sapatos e os da gravata que, é bom que se diga, não usa. Mais fundo, profundo, o nó da existência.
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O Autor
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Jorge Luís Borges (A sedução do tigre)

Na infância pratiquei com fervor a adoração ao tigre; não o tigre cor de pêssego dos camalotes do Paraná e da confusão amazônica mas o tigre rajado, asiático, real, que só pode ser enfrentado pelos homens de guerra, encastelados sobre um elefante. Costumava demorar-me infindavelmente diante de uma das jaulas no Zoológico; apreciava as vastas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor dos seus tigres. (Lembro-me ainda dessas figuras: eu que não posso recordar sem horror o rosto ou sorriso de uma mulher). A infância passou, caducaram os tigres, e a paixão por eles, mas eles ainda permanecem em meus sonhos. Nessa lembrança submersa ou caótica, continuam a prevalecer, e assim: adormecido, um sonho qualquer distrai-me e eu sei de imediato que é um sonho. Costumo então pensar: Este é um sonho, uma pura diversão de minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.

         Oh incompetência! Meus sonhos nunca sabem engendrar a apetecida fera. Aparece o tigre, isso sim, mas dissecado e débil, ou com impuras variações de forma, ou bastante fugaz, ou tirante a cão e a pássaro.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Parabéns para um menino )

Há um ano nascia um menino que chamaram Arthur. Sim, Arthur, nome de rei, o da Távola Redonda. Seu pai, Luís Felipe, também nome de rei, mandou-me uma fotografia de seu pequeno, que mal nascera e já estava lá, sorrindo, aberto para a vida. Por causa desse sorriso, fiz uma música, uma canção de ninar e passei a cantá-la para minha mãe sempre que ela me pedia, até que, finalmente, a mostrei para o pai da criança. Não sei se ele costuma cantá-la para o filho. Muita, muita água rolou desde então, sob a ponte e pelos olhos, que a vida vem da água, vive em água e volta para a água. Se existe algum pó em nossos corpos e em nossas almas é o do tempo, que nos cobre e nos recobre de poeira de estrelas, nossa cosmicidade natural, tão clichê, que nem a notamos. Somos de tempo, os tais seres históricos. De história em história, viramos memória e voltamos para as águas, de rio e de mar, com seus afluentes. Eu, que, em meio ao trajeto, me perco em lagos, pequenas fontes, parabenizo os pais pelo nascimento do menino Arthur há exatamente um ano.

A imagem de seu sorriso é a primeira e a única que tenho. Quando o vi ao vivo, ele estava dormindo. Não é à toa que as crianças e os velhos dormem tanto. No caso delas, por estarem se acostumando ao nosso mundo; no dos velhos, porque já estão se preparando para o outro, que, no fundo, é o mesmo, dois lados do eterno espelho em que nos vemos todos. Pela água, pela luz e pelas fotografias, como essa, a do Arthur.
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Fontes:
O Autor
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